Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NULIDADE PROCESSUAL | ||
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Data do Acordão: | 12/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - Os Tribunais de Família e Menores têm competência para todos os termos do processo de inventário, incluindo a venda dos bens a partilhar que não foram licitados, como sucedeu com o imóvel dos autos. II - Na modalidade de venda por negociação particular, subespécie da venda extrajudicial, o encarregado da venda é equiparado ao “mandatário” - art. 905º do CPC pré-vigente, aplicável aos autos. III - O princípio do contraditório é hoje entendido como a garantia (a ambas as partes) de participação efetiva no desenvolvimento da instância, tendo a possibilidade de influenciar todos os desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa, relevantes para a decisão do litígio. IV – Tendo sido proferido despacho a deferir o requerido pelo encarregado da venda, no sentido de ser determinado o auxílio das autoridades policiais, a fim da adquirente do imóvel ser investida na posse do mesmo, sem que fosse facultada aos interessados a possibilidade de poderem exercer a discussão relativamente ao requerido, considerando ademais as ocorrências processuais que antecederam aquele requerimento, tal omissão representa uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º do CPC. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO No âmbito de inventário para separação de meações, instaurado por AA após decretado o divórcio do casal constituído por si e BB, vieram os autos a prosseguir os seus termos e, por não ser possível o acordo das partes quanto à composição dos respetivos quinhões, nem terem sido apresentadas licitações, foi determinada a venda do imóvel a partilhar por proposta em carta fechada[1]. Após vicissitudes processuais várias, veio finalmente o encarregado da venda informar, através de email junto aos autos em 18.10.2019, ter procedido à venda do imóvel no dia 16 desse mês, juntando o respetivo título de compra e venda, DUC no valor de € 144.8000,00 e o seu pagamento pela adquirente/compradora “BUDGEST – Auditoria e Consultoria Fiscal, S.A.”. Subsequentemente ocorreram várias outras vicissitudes processuais que têm retardado o desfecho do processo, sendo que, para a economia do presente recurso, importa aludir ao requerimento apresentado pelo encarregado da venda em 15.11.2022, impetrando que fosse proferido «prévio despacho judicial que determine o auxílio das autoridades policiais – admitindo-se que seja necessário o arrombamento da porta principal de entrada e a substituição da fechadura, - a fim da “Budgest” ser investida de imediato na posse do imóvel, ante a concomitante notificação dos inventariados para que reconheçam o direito desta». Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho proferido em 16.11.2022: «O adquirente de um bem vendido judicialmente pode requerer nos próprios autos contra o seu detentor, a entrega do bem, nos termos do artigo 861º, do CPC, devidamente adaptados, por se aplicarem as regras da execução, por força do artigo 549º, n.º 2, do CPC, (que corresponde ao artigo 463º, n.º 3, do CPC, na versão aplicável a este inventário, por força do artigo 7º do preâmbulo da Lei 23/2013, de 5.3.). Ora, veio o Sr. Encarregado de Venda declarar pretender investir o comprador da posse, entregar-lhe as chaves e notificar o detentor para reconhecer o direito do comprador, cf. artigo 861º, n.º 1 e 3, do CPC, solicitando seja autorizado o auxílio das autoridades policiais, admitindo que seja necessário o arrombamento da porta principal de entrada e a substituição da fechadura a fim da “Budgest” ser investida de imediato na posse do imóvel. Termos em que, no acto de investidura da posse, caso a detentora BB não proceder à entrega das chaves e do imóvel devoluto, autorizo o recurso às forças policiais com arrombamento de porta se necessário, nos termos do artigo 757º, n.º 2, por remissão do artigo 861º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo do n.º 6, do mesmo preceito legal. Notifique.» Por requerimento de 17.11.2002 veio a interessada BB arguir a nulidade daquele despacho «por violação notória e grave do princípio do contraditório» e omissão de pronúncia sobre o requerimento por si apresentado em 14.11.2022, no qual concluiu: «(…), deve ser declarada a excepção da incompetência em razão de matéria deste tribunal relativamente aos despachos proferidos, sob pena de nulidade dos mesmos». Apreciando esse requerimento o tribunal a quo proferiu, nesse mesmo dia 17.11.2022, o seguinte despacho: «Quanto à primeira questão este tribunal não tem de fazer observar o contraditório num pedido de recurso à força pública para a execução dum acto judicial que é consequência duma venda judicial transitada em julgado. Aliás, face à pacificação da situação jurídica a ora Requerente já deveria ter entregue o imóvel à compradora, voluntariamente. Para mais, já anteriormente ao recurso da decisão que considerou não terem ocorridos nulidades na venda judicial se autorizou o recurso à força pública para a investidura da adquirente na posse do imóvel, não constituindo uma novidade jurídica nestes autos. E, por último, last but not least, tendo a conferência de interessados sido realizada há 10 anos, a ora Requerente teve tempo suficiente para tirar os seus pertences do imóvel. Em segundo lugar, a Requerente está certamente a confundir esta venda judicial com outra figura jurídica, talvez com o despejo, uma vez que este é o tribunal competente para o Inventário em curso e o Encarregado de Venda tem poderes para vender o imóvel e investir a adquirente na posse.» Inconformada, a referida interessada apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem: «Incompetência em Razão de Matéria Não é este tribunal materialmente competente para a entrega coerciva do bem imóvel, isto é, em matéria executiva, compete aos juízos de família e menores a execução por alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, a execução por alimentos devidos a menores ou maiores e a execução das decisões relativas a multas, custas e indemnizações (artigos 122.º, n.º 1, al f), 123.º, n.º 1, al e), e 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).I Por sua vez, nos termos do artigo 129.º, “compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil”. II Qualquer outra decisão, diversa das já elencadas, tem de seguir as regras do processo executivo próprio, devendo o interessado munir-se do respectivo título e apresentar o requerimento executivo em juízo, no tribunal competente.III Invocando-se a exceção da incompetência absoluta do tribunal, que é do conhecimento oficioso do tribunal, pelo que em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 96.º al a), 98.º e 99.º n.º 2 do C.P.C., deve o tribunal a quo se declarado incompetente em razão da matéria, com todas as legais consequências.Ilegitimidade/Falta de Competências do EV Acontece que, uma entidade particular, como é o caso deste EV (que se dedica ao negócio imobiliário), não tem qualquer competência de carácter executivo, sendo que estes actos, tão só e apenas podem ser dirigidos e executados por agente de exceção ou oficial de justiça, nos termos da tramitação legal própria. Pois as diligências previstas ao abrigo do artigo 861º e ss, são da competência exclusiva do Agente de Execução, sob pena de praticar o crime de procuradoria ilícita e usurpação de funções p.e.p nos artigos 7º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto e 358º do C.P.IV V Qualquer diligência de carácter executivo, apenas e tão só compete ao Agente de Execução, com poderes públicos e estatutários para o efeito, ou, nos casos previstos na lei, ao Senhor Oficial de Justiça.Isto é, cabe ao agente de execução realizar todas as diligências numa execução judicial, incluindo as citações, notificações e publicações, as penhoras e vendas, e a liquidação e pagamento dos créditos. Entre os actos próprios de uma execução, são afastadas da sua competência e atribuídas aos juízes somente as questões de natureza exclusivamente jurisdicional, isto é, que impliquem decidir em definitivo um litígio surgido durante a execução - por exemplo, uma oposição à execução ou à penhora ou reclamações sobre actos do agente de execução (artigos 231.º; e 719.º-723.º do C.P.C e da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro) VI Pelo que qualquer acto que venha a ser praticado pelo EV, e em violação das normas e princípios invocados, são nulos e passíveis de procedimento criminal, o que se invoca.Violação do Princípio do Contraditório Conforme dispõe o artigo 3º n.º 3 do C.P.C, 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.VII VIII Acontece porém, que em desrespeito total e manifesto, pelo exercício do contraditório, veio a Senhor Juiz a quo, a 16/11/2022 e com data de elaboração e notificação do CITIUS em 17/11/2022, proferir o despacho, a autorizar o auxilio das forças policiais, sem ouvir as partes processuais e desconsiderando por completo as repercussões gravosas, em concreto na vida da Requerida, da decisão pesada aí proferida.Pelo que o despacho ora proferido, é nulo, o que expressamente se invoca, por violação notória e grave do princípio do contraditório. IX Assim, o incumprimento pelo tribunal do disposto no art.º 3.º n.º 3 e 4 do C.P.C é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no art.º 195.º n.º 1 do mesmo diploma legal, pois foi omitido um ato que a lei prescreve, que consistia em dar a possibilidades partes de exercer o contraditório, sendo que a intensidade desta violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil, que a decisão final ao dar cobertura a esse desvio processual acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada.Omissão essa que é susceptível de influir no exame e na decisão da causa, uma vez que demonstra uma gritante violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, expressamente consagrados nos arts. 3º, nº 3 e 4º do C.P.C. e também no art. 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. X Pelo que, o mesmo é nulo com todas as legais consequências, anulando-se todo oXI Aliás, é com clareza que se denota que os presentes autos, deixaram de pertencer às partes, que não são notificadas dos requerimentos apresentados pelos adquirentes e cujo contraditório é ignorado, para passarem a figurar como partes (sem pagamento das taxas devidas) os intervenientes acidentais, o que naturalmente não deixa de constituir uma violação grave ao princípio invocado, ao da igualdade e de acesso ao direito consagrados nos artigos 13º e 20º da C.R.P, que também se deixa expressamente invocado.Sem prescindir, XII O referido recurso foi interposto e subscrito por ambas as partes no processo, e não sendo o EV ou o adquirente parte no processo, já que o recorrido é o tribunal, já devia ter sido proferido o despacho nos termos do artigo 641º do C.P.C. O que até à data não aconteceu, constituindo em nosso entender uma omissão de pronúncia, que se deixa invocada.XIII A decisão em crise, atenta à precária forma como conclui pelo indeferimento das questões suscitadas, pois limitou-se a consignar que o tribunal é competente e o EV pode praticar os actos em causa, violou grosseiramente o dever de fundamentação contidos nas normas dos artigos 154º do C.P.C, 20º n.º 4 e o 205.º, n.º 1 da C.R.P, e artigos 6.º da. CEDH, 14.º do PIDCP e 10.XIV Há por isso e erro de julgamento, na interpretação e aplicação do direito.XV Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 3.º n.º 3 e 4, 195.º n.º 1, 96.º al a), 98.º e 99.º n.º 2, 221º, 255º, 231.º; 861º e 719.º-723.º, do C.P.C e da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, e 122.º, n.º 1, al f), 123.º, n.º 1, al e), e 131.º e 129º da Lei da Organização do Sistema Judiciário e 13.º, 20.º da CRP, e 7º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto e 358º do C.P, e 154º do C.P.C, 20º n.º 4 e o 205.º, n.º 1 da C.R.P, e artigos 6.º da. CEDH, 14.º do PIDCP e 10, entre outros.Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que declare a execpção da incompetência absoluta deste tribunal e das nulidades invocadas, nomeadamente, ilegitimidade/falta de competência e poderes do EV, violação do princípio do contraditório e omissão de pronúncia, assim se fazendo Justiça!!!» Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se na apreciação do seguinte: - Competência material do Tribunal a quo; - Falta de competências do encarregado da venda; - Violação do princípio do contraditório. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Os factos e a dinâmica processual a considerar são os que constam do relatório que antecede, havendo ainda a considerar que foram interpostos dois recursos que subiram nos próprios autos de inventário, sendo que um desses recursos, interposto pela adquirente do imóvel “Budgest – Auditoria e Consultoria Fiscal, Ldª.”, incide sobre o despacho de 23.11.2022 que determinou a sustação da entrega do imóvel. O DIREITO Da competência em razão da matéria do tribunal a quo para ordenar a entrega do imóvel ao adquirente Sustenta a recorrente não ser o tribunal a quo materialmente competente para a entrega coerciva do bem imóvel, pois «em matéria executiva, compete aos juízos de família e menores a execução por alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, a execução por alimentos devidos a menores ou maiores e a execução das decisões relativas a multas, custas e indemnizações (artigos 122.º, n.º 1, al f), 123.º, n.º 1, al e), e 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário)», sendo competentes para a referida entrega, segundo a recorrente, os juízos de execução nos termos do art. 129º da mesma Lei. Antes de mais, importa referir que tendo os presentes autos de inventário sido instaurados em 31.08.2011, é-lhes aplicável o regime do inventário regulado no Código de Processo Civil, na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, face ao disposto no art. 7º da Lei 23/2013, de 5 de março[2], que aprovou o regime jurídico do processo de inventário, e art. 29º da Portaria nº 278/2013, de 26 de agosto, que expressamente prescreve que aos processos de inventário instaurados antes da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, mantêm a tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de agosto de 2013. Assim, à venda judicial aplicam-se as regras da venda no processo executivo por força do disposto no artigo 463º, nº 3, do CPC pré-vigente, atual art. 549º, nº 2. Por sua vez, dispõe o art. 1404º, nº 3, do CPC pré-vigente, que o inventário em consequência de divórcio «corre por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação e segue os termos prescritos nas secções anteriores»[3]. Acresce que nos termos do disposto no artigo 122º, nº 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), Lei nº 62/2013, de 26 de agosto: «[o]s juízes de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos». Ou seja, não há a menor dúvida que os Tribunais de Família e Menores têm competência para todos os termos do processo de inventário, incluindo a venda dos bens a partilhar que não foram licitados, como sucedeu com o imóvel dos autos (vide ata de Conferência de Interessados de 05.04.2016). O Tribunal a quo é assim competente em razão da matéria para ordenar a entrega ao adquirente de imóvel vendido no âmbito do processo de inventário. Improcede, pois, este segmento do recurso. Da falta de competências do encarregado da venda Defende a recorrente que «qualquer diligência de carácter executivo, apenas e tão só compete ao Agente de Execução, com poderes públicos e estatutários para o efeito, ou, nos casos previstos na lei, ao Senhor Oficial de Justiça». Sem razão, porém. Na modalidade de venda por negociação particular, subespécie da venda extrajudicial, o encarregado da venda é equiparado ao “mandatário” - art. 905º do CPC pré-vigente, aplicável aos autos. A sua atuação pautar-se-á pelas regras do contrato de mandato civil. O contrato de mandato é aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ato jurídico por conta da outra - art. 1157º do CC. No caso particular das vendas em processo executivo, o encarregado da venda atua mandatado pelo tribunal[4], como, aliás, sucedeu nos autos, tendo o mesmo sido nomeado por despacho de 31.01.2017, depois de se frustrar a venda por propostas em carta fechada. Dúvidas não há, pois, que o encarregado da venda tinha toda a legitimidade para requerer ao tribunal as diligências para entrega do imóvel ao adquirente, a sociedade “Budgest, S.A.”. Improcede também este este segmento recursório. Da violação do princípio do contraditório Defende a recorrente ter havido violação do princípio do contraditório, por ter sido proferido despacho sem a mesma ter sido ouvida sobre o requerimento do encarregado da venda de 15.11.2022, ocorrendo assim uma nulidade processual nos termos do art. 195º, nº 1. do CPC. Vejamos, pois, se lhe assiste razão. A nossa lei processual atual consagra, efetivamente, um princípio genérico de proibição de decisões-surpresa, que constitui ainda uma outra vertente do princípio do contraditório, tal como o legislador também o reconhece na formulação do art. 3º, nº 3, do CPC, ao relacionar o princípio do contraditório com a proibição de decisões-surpresa: «[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.» Sabe-se que «o princípio do contraditório é hoje entendido como a garantia (a ambas as partes) de participação efectiva no desenvolvimento da instância, tendo a possibilidade de influenciar todos os desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objecto da causa, relevantes para a decisão do litígio»[5]. Sendo assim, a razão da audição das partes é ainda – mas também apenas – a do respeito do princípio do contraditório (na aludida vertente da proibição de decisões-surpresa). E, nesse conspecto, afigura-se-nos então óbvio que tal respeito se bastará com a simples comunicação, efetuada pelo tribunal, de que existe a possibilidade de decidir de certa maneira, sem necessidade de uma especial concretização dos respetivos fundamentos. E isso na medida em que outros valores ou princípios – como o direito ao recurso ou o dever de fundamentação das decisões – não ficam precludidos[6]. Volvendo ao caso concreto, verificamos que na sequência de requerimento apresentado pelo encarregado da venda, em 15.11.2022, no sentido de ser determinado o auxílio das autoridades policiais, a fim da adquirente do imóvel ser investida na posse do mesmo, foi logo proferido despacho em 16.11.2022 a deferir o requerido sem se ouvir a recorrente. Tal audição impunha-se, considerando que logo em 23.11.2022 foi proferido despacho a determinar «a sustação da entrega do imóvel que constitua a habitação daquela, como requerido por BB, por força do artigo do art.º 6.º-E n.ºs 7 al. b), na redacção dada pela Lei 13-B/2021 de 05.04, e actualmente vigente, se refere à Lei n.º 1- A/2020, de 19 de Março, pois não foi alterado pela sua versão mais recente (Lei n.º 91/2021, de 17/12), ficando suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo, os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, (…)», decisão que, aliás, foi objeto de recurso ainda não decidido. Não tendo sido facultada aos interessados a possibilidade de poderem exercer a discussão relativamente ao requerimento do encarregado da venda, considerando ademais as ocorrências processuais que antecederam aquele requerimento, tal omissão representa uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º do CPC. In casu, a nulidade processual cometida está a coberto da decisão judicial que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação, podendo o vício em causa ser objeto de recurso e ser declarado por esta Relação[7]. Tal nulidade implica a anulação da decisão-surpresa que autorizou o recurso às forças policiais com arrombamento de porta se necessário, no ato de investidura da posse da adquirente do imóvel, caso a recorrente não procedesse à entrega das chaves e do imóvel devoluto, omitindo a possibilidade da recorrente poder previamente exercer o direito de se pronunciar sobre tal matéria. No caso, estando pendente recurso do despacho de 23.11.2022, acima parcialmente transcrito, que sustou a entrega do imóvel à adquirente do mesmo, deverão os autos aguardar pela decisão que vier a ser proferida nesse recurso, e só no caso de ser revogado o dito despacho deverá, após observância do contraditório, ser apreciado o requerimento do encarregado da venda a que se vem aludindo. Procede neste segmento o recurso. As custas do recurso serão suportadas pela recorrente, na proporção do seu decaimento, que se fixa em 2/3 – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV – DECISÃO Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, decide-se: - Anular a decisão recorrida na parte em que considerou «não ter de fazer observar o contraditório num pedido de recurso à força pública para a execução dum acto judicial que é consequência duma venda judicial transitada em julgado», devendo ser proferida oportunamente, sendo caso, decisão que, após observância do contraditório, aprecie o requerimento do encarregado da venda em apreciação. - Manter, no mais, o decidido. Custas pela recorrente nos termos sobreditos. * Évora, 7 de dezembro de 2023 Manuel Bargado (relator) Maria da Graça Araújo (1ª adjunta) Maria Adelaide Domingos (2ª adjunta) (documento com assinaturas eletrónicas) __________________________________________________ [1] Cfr. Ata de Conferência de Interessados de 05.04.2016 do apenso A. [2] A qual acabou por ser revogada pelo art.º 10.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, em vigor desde 1/1/2020. [3] E assim continua a ser depois da entrada em vigor da Lei nº 117/2019, de 13/9 - cfr. Acórdão desta Relação de 09.06.2022, proc. 153/17.9T8PTM-A.E1, in www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência nesse sentido. [4] Neste sentido, Lopes Cardos, Manual da acção executiva, INCM, p. 573. [5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 27-29 e 38-41, em especial p. 40. [6] Cfr. Acórdão desta Relação de 23.02.2016, proc. 3067/13.8TBFAR.E1, in www.dgsi.pt. [7] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 27.10.2022, proc. 2314/21.7T8PRD.P1, in www.dgsi.pt, com várias citações doutrinárias e jurisprudenciais. |