Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1644/21.2T8SLV-A.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
DEFESA DA POSSE
LOCATÁRIO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O despacho liminar de indeferimento deve ser reservado para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido.
2. O arrendatário detém legitimidade para defender a sua posse, mesmo contra o locador, nos termos do art. 1037.º n.º 2 do Código Civil.
3. Também o locatário de estabelecimento comercial pode prevalecer-se dessa norma.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Silves, AA e BB apresentaram requerimento executivo contra RACAL CLUBE – Colectividade de Utilidade Pública, apresentando como título executivo uma sentença homologatória de transacção judicial pelo qual esta acordava na cessação do contrato de arrendamento com efeitos a partir de 31.05.2021, data em que entregaria o locado livre e devoluto de pessoas e bens.
Do requerimento executivo consta o seguinte:
1. «Por escritura pública outorgada no dia 14 de Abril de 2021, os aqui exequentes adquiriram o prédio objecto da presente execução, sito na Rua …, em Silves, na freguesia e concelho de Silves, descrito na CRP daquele concelho sob o número …, conforme escritura que se junta como doc. 1 e cujo conteúdo se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. No âmbito do contrato celebrado a Massa Insolvente de EE e FF venderam aos exequentes o referido imóvel onerado com um contrato de arrendamento, celebrado com a Executada RACAL CLUB, cujo termo se encontrava acordado para o dia 31 de Maio de 2021, por transacção homologada no âmbito do processo que correu termos sob o número 289/14.8TBSLV, no 1.º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Silves, cfr. doc. 1 já junto e transacção que se junta como doc. 2.
3. Ora, face aos documentos juntos não restam dúvidas de que ocorreu a transmissão para os exequentes, do direito de propriedade sobre o prédio em apreço, assim como todos os direitos e obrigações inerentes à condição de senhorios.
4. O processo no âmbito do qual foi celebrada a transacção identificada no ponto 2 supra, encontra-se findo, na sequência do despacho de homologação do acordo, datado de 11 de Maio de 2017.
5. Destarte, e não sendo processualmente possível deduzir incidente de habilitação de adquirente nos autos principais, requer-se a V. Exa. que se digne a deferir o presente incidente de habilitação, habilitando os adquirentes, na qualidade e posição de proprietários do prédio identificado e senhorios no contrato de arredamento celebrado com a executada RACAL CLUB, e também que proceda às notificações das partes contrárias nos termos do art.º 356.º nº 1 a) do CPC.
6. De facto, nos termos da transacção judicial formalizada entre os anteriores proprietários do prédio e a aqui executada RACAL CLUB, foi acordado que o contrato de arrendamento cessaria por acordo no dia 31.05.2021 e que, nesse dia a RACAL CLUB entregaria o imóvel locado livre e devoluto e em perfeitas condições de utilização, cfr. doc. 2 já junto.
7. Sucede porém que, à data a RACAL CLUB, não obstante ter sido interpelada para o efeito, não procedeu à entrega do imóvel, cfr. doc. 3.
8. Acresce que, nas sequência das diligências levadas a cabo pelos exequentes tendo em vista a tomada de posse do imóvel, foi possível apurar que o imóvel está a ser utilizado por CC e que este se recusa a entregar a chave do imóvel, cfr. auto de ocorrência da GNR, do dia 01.06.2021, já junto aos autos principais e que se junta como doc. 4.
9. Os exequentes não reconhecem qualquer direito do detentor do imóvel em permanecer no mesmo, tanto mais que, tendo caducado o contrato de arrendamento celebrado com a executada RACAL CLUB, qualquer outro contrato que esteja na dependência deste, nomeadamente um contrato de locação de estabelecimento comercial, cujo detentor do imóvel se arroga titular, cfr. doc. 5, também caducou no dia 31 de Maio de 2021.
10. Nestes termos, deve o Sr. Agente de Execução investir os exequentes na posse, entregando-lhes as chaves, nos termos do disposto no artigo 861.º do CPC.
11. Mais se requer que, após entrega efectiva do imóvel, seja a presente execução convolada em execução para entrega de coisa certa, devendo a executada ser obrigada, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do CC, a proceder ao pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, de quantia nunca inferior a € 100,00 por cada dia de atraso, a contar da data de 01.07.2021, o que se requer.»

A agente de execução marcou data para entrega do imóvel e nessa sequência foram deduzidos os presentes embargos de terceiro por CC e mulher DD.
Em resumo, alegaram o seguinte:
- a execução visa a entrega do prédio urbano sito Rua…, em Silves;
- porém, os exequentes já exercem inteiro domínio sobre o imóvel, com excepção do espaço sito no rés-do-chão e cave cujo acesso é efectuado pelos n.ºs de polícia 9-B, 11 e 13;
- este espaço – no rés-do-chão e na cave, com entrada por aqueles n.ºs de polícia – é utilizado pelos embargantes;
- o embargante marido, desde 01.09.1993, utiliza a parte do imóvel correspondente ao rés-do-chão e cave cujo acesso é efectuado pelos n.ºs de polícia 11 e 13, onde explora o estabelecimento comercial de restauração e bebidas denominado …;
- a utilização e exploração desse estabelecimento comercial foi efectuada ao abrigo de contratos de cessão de exploração do estabelecimento celebrados com a Executada RACAL CLUBE;
- o último dos quais celebrado em 22.12.2016, por quinze anos, com início em 01.01.2017 e termo em 31.12.2032;
- quanto à parte do imóvel com acesso pelo n.º 9-B, sito no rés-do-chão, o embargante celebrou contrato de arrendamento com o então proprietário do imóvel, em 30.11.2006, para exercício da actividade de restauração e afins, pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos, mediante o pagamento de renda;
- a parte do rés-do-chão com o n.º 9-B de polícia é contígua com o n.º 11, e o estabelecimento de restauração passou a abranger a totalidade dos espaços respeitantes aos n.ºs 9-B, 11 e 13;
- após obras, consentidas pela RACAL CLUBE e pelo anterior senhorio, o acesso ao espaço que era o n.º 9-B passou a fazer-se pelo n.º 11;
- o pagamento pela utilização dos n.ºs 11 e 13 de polícia era efectuado à executada RACAL CLUBE, e o pagamento do que era devido pela utilização do n.º 9-B era efectuado ao senhorio;
- a executada RACAL CLUBE, por carta de 25.02.2021, deu conhecimento ao embargante da transacção, em que, na qualidade de arrendatária, se obrigara a proceder à entrega do locado até 31.05.2021, e instando-o a proceder à sua entrega;
- no seguimento desta comunicação, o embargante marido encontrou-se com a então proprietária do imóvel, e acordou com a mesma que lhe passava a pagar a ela pela utilização do n.ºs 11 e 13 de polícia (rés-do-chão e cave) o valor que anteriormente entregava à executada RACAL CLUBE;
- e assim, em 08.03.2021 e em 08.04.2021, o embargante marido procedeu a transferências para a conta bancária que aquela lhe indicou, para pagamento quer da renda mensal respeitante ao n.º 9-B de polícia (€ 248,03), quer da renda respeitante aos n.ºs 11 e 13 (€ 734,00);
- os exequentes informaram o embargante da aquisição do imóvel, por escritura de 14.04.2021, pelo que este solicitou informação quanto ao IBAN onde devesse proceder ao pagamento das rendas, o que não lhe foi facultado;
- assim, em 11.05.2021 o embargante procedeu ao depósito da renda na CGD, no montante de € 982,03 (248,03 + 734,00), o que continuou a realizar nos meses seguintes, até Novembro de 2023;
- desse depósito deu conhecimento aos exequentes;
- em Junho de 2023, o Ilustre Mandatário dos exequentes dirigiu carta ao embargante, solicitando a entrega do imóvel, e indicando o IBAN dos exequentes para realização dos pagamentos por conta do uso do imóvel;
- em Dezembro de 2023, o embargante depositou o valor global da renda (€ 982,03) nessa conta dos exequentes;
- os embargantes são terceiros em relação ao processo onde foi decretado o despejo, e a exploração do estabelecimento comercial de restauração e bebidas instalado no local constitui a sua fonte de rendimentos e de oito trabalhadores que ali trabalham.

O despacho recorrido decidiu pelo indeferimento liminar dos embargos, pelo que os embargantes deduzem recurso, concluindo:
1. O presente recurso é interposto da decisão datada de 19/12/2023, que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro por os considerar manifestamente improcedentes e condenou os embargantes nas custas do processo.
2. O tribunal “a quo” efectuou uma súmula da pretensão dos embargantes, vindo a concluir que os embargantes são terceiros e que os embargos podem revestir a função preventiva que foi invocada.
3. Da súmula que foi efectuada pelo tribunal “a quo” do que tinha sido invocado pelos embargantes resulta claramente que os embargantes são arrendatários dos espaços que presentemente ocupam no imóvel.
4. Arrendamento esse celebrado em 30 de Novembro de 2006, com início em 01 de Dezembro de 2006, quanto ao número de policia N.º 9B, com o então proprietário do imóvel, EE, espaço esse que se integrou na restante parte do estabelecimento.
5. Arrendamento que inequivocamente se alargou aos N.º 11 e 13 de polícia em Março de 2021, com o acordo estabelecido e o pagamento da respectiva renda à então cabeça de casal e proprietária do imóvel, FF.
6. Na súmula efectuada pelo tribunal “a quo” foi omitida a matéria que foi alegada pelos embargantes em 42, 43 e 48 da p.i., donde também resulta que os mesmos são arrendatários do local.
7. O arrendamento foi celebrado com os anteriores proprietários do imóvel, que, por força do estatuído no artigo 1057, do Código Civil, se transmitiu aos exequentes.
8. Situação esta que era do perfeito conhecimento dos exequentes, tendo os mesmos reclamado o pagamento das rendas e tendo estas passado a ser pagas na conta bancária indicada pelos exequentes – artigos 33 e 34 da p.i., e documentos 51 e 53.
9. Os embargantes alegaram factos e juntaram aos autos documentos que são fortemente indiciadores de que são arrendatários do local.
10. No entanto, o tribunal “a quo” inexplicavelmente qualifica o embargante marido como sendo um detentor precário do imóvel, quando, na verdade, o embargante marido é arrendatário.
11. Para fundamentar a sua decisão o tribunal “a quo” cita um acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães que se reporta a uma situação que não tem qualquer semelhança com a dos presentes autos.
12. Acresce que, o acórdão em questão foi proferido em sede de recurso num processo em que os embargos de terceiro que foram deduzidos, não foram liminarmente rejeitados, foram recebidos e julgados parcialmente procedentes.
13. Nos presentes autos a decisão recorrida foi proferida com fundamentos que não são aplicáveis ao presente caso e inviabilizou por completo a possibilidade de apuramento da matéria de facto invocada pelos embargantes que é susceptível de demonstrar que os mesmos são titulares de um direito que é incompatível com a pretensão dos exequentes, porquanto, atento o disposto no artigo 1037, N.º 2, do Código Civil, os embargantes, enquanto arrendatários, podem usar contra os exequentes os meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes do Código Civil.
14. Foi no exercício destes direitos que os embargantes deduziram os presentes embargos, que estão suficientemente indiciados, pelo que, não havia fundamento para que os embargos tivessem sido liminarmente rejeitados, tanto mais que o arrendatário pode demonstrar a existência do contrato de arrendamento por qualquer meio – artigo 1069, N.º 2, do Código Civil – o que só pode fazer se a sua pretensão não for liminarmente rejeitada, ser admitida e apreciada.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.
Os factos relevantes à decisão do recurso são os expostos no relatório.

Aplicando o Direito.
1. Do indeferimento liminar dos embargos de terceiro com função preventiva:
O despacho recorrido sustenta o indeferimento liminar com os seguintes argumentos, assim resumidos:
· através dos embargos de terceiro, visa-se defender não apenas a posse mas também qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa;
· a posse incompatível com a realização da penhora é aquela que, sendo exercida em nome próprio, constitui presunção da titularidade dum direito incompatível: enquanto esta presunção não for ilidida, mediante a demonstração de que o direito de fundo radica no executado, o possuidor em nome próprio é admitido a embargar de terceiro;
· os embargantes são terceiros, pois não são executados na execução;
· não podem, todavia, alegar a existência de um contrato de arrendamento, pois não detêm a posse sobre o referido imóvel, sendo unicamente o embargante marido detentor precário.
Porém, temos a afirmar que o despacho liminar de indeferimento deve ser reservado para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, e tal não é o caso.
A situação descrita nos autos é complexa, e a decisão recorrida não atentou que, pelo menos em relação a parte do imóvel cuja entrega se pede – o espaço com entrada pelo n.º 9-B de polícia – o embargante marido alegou a celebração de um contrato de arrendamento, juntando o escrito titulando esse contrato, bem como recibos dando quitação pelo recebimento da renda relativa a tal espaço.
Logo, em relação a esse espaço – cuja entrega também se pede no requerimento executivo, pois ali se pede a entrega de todo o imóvel, sem qualquer exclusão – os embargantes detêm legitimidade para defender a sua posse, mesmo contra o locador, nos termos do art. 1037.º n.º 2 do Código Civil, tanto mais que ainda não foram convencidos da cessação desse contrato de arrendamento, nem o requerimento executivo invoca qualquer título que permita aos exequentes obter a entrega desse espaço.
Quanto ao espaço com entrada pelos n.ºs 11 e 13, os embargantes alegaram factos que poderão demonstrar a existência de um acordo com a senhoria no sentido da locação passar a incluir também esses espaços – arts. 26.º a 32.º da petição inicial – passando esta a receber a renda.
Note-se, de todo o modo, que o contrato de locação de estabelecimento está sujeito ao princípio da liberdade contratual, regendo-se pelas cláusulas estipuladas pelas partes e, subsidiariamente, pelas normas do contrato de arrendamento para fins não habitacionais.
Com efeito, não apenas o art. 1109.º n.º 1 do Código Civil estatui que este contrato se rege pelas regras da subsecção que regula o arrendamento para fins não habitacionais (arts. 1108.º a 1113.º), como o art. 1110.º n.º 1 preceitua que “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação.”
Consagra-se assim – ao contrário do que sucedia no âmbito do art. 111.º do RAU (DL 321-B/90, de 15.10) – a equiparação deste contrato ao arrendamento para fins não habitacionais, o que se alcança quer pela inserção sistemática do art. 1109.º, quer pelo facto das suas obrigações serem compatíveis com as do contrato de arrendamento. Ademais, esta alteração de paradigma justifica-se pela quase exclusão do carácter vinculístico nas normas que regem o contrato de locação.[1]
Ora, o art. 1090.º n.º 2 do Código Civil estabelece que “se o senhorio receber alguma renda do subarrendatário e lhe passar recibo depois da extinção do arrendamento, é o subarrendatário havido como arrendatário directo.”
Os autos ainda não permitem afirmar se ocorrem efectivamente os pressupostos de transformação do locatário do estabelecimento em arrendatário directo do imóvel, e só o julgamento da causa permitirá formular um juízo seguro desta questão.
Por outro lado, esta Relação de Évora já decidiu que o locatário de estabelecimento comercial também pode prevalecer-se do disposto no art. 1037.º n.º 2 do Código Civil, mesmo contra o locador.[2]
Assim, ao contrário do que se decidiu, a petição inicial não é improcedente, de forma manifesta e indiscutível, e deveriam os embargos ter sido recebidos, para os fins previstos nos arts. 347.º e 348.º do Código de Processo Civil.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o recebimento dos embargos, para os aludidos fins.
Custas do recurso pelos embargados.

Évora, 11 de Abril de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Maria José Cortes
Ana Pessoa
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[1] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação do Porto de 25.02.2014 (proc. 583/11.0TBPVZ.P1) e de 14.06.2016 (Proc. 20989/15.4T8PRT.P1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[2] Em Acórdão de 28.06.2023 (Proc. 2112/22.0T8PTM.E1), publicado em www.dgsi.pt.