Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
214/17.4IDFAR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: FRAUDE FISCAL
DOLO
CRIME DE RESULTADO
CRIME DE PERIGO
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - No crime de fraude fiscal nem se exige um dolo específico (intenção de causar prejuízo ao Estado) nem um resultado da conduta (um efectivo prejuízo), não estando nós perante um crime de resultado. Bem ao invés, estamos perante um crime de perigo e de mera actividade.

2 - Para a sua consumação basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro – J. Local Criminal de Albufeira - Juiz 1 - correu termos o processo supra numerado no qual o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular contra:

(...), LDA., pessoa coletiva com o número (…), com sede em (…),

(...), empresário na construção civil, (…), e,

(...), empresário na construção civil, (…),

imputando-lhes a prática, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001).


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A final, por sentença lavrada a 05-03-200 veio a decidir o Tribunal recorrido

A. Absolver (...) pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001).

B. Condenar o arguido (...) pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001) na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete) euros, o que perfaz o valor de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros).

C. Condenar a sociedade arguida (...), LDA. pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001) na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete) euros, o que perfaz o valor de € 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros).

D. Condenar os arguidos (...), LDA. e (...) na taxa de justiça que se fixa em 2 UC.


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Inconformados os arguidos (...), Lda., Sociedade Comercial por Quotas e (...) interpuseram recurso assim concluindo:

1) Conforme resulta de fls., foi deduzida acusação contra o Arguido imputando-lhe a prática de um crime de Fraude Fiscal, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, nº 1, 7º, 103º, nº 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001);
2) Procedeu-se à realização da Audiência de Julgamento;
3) Por Sentença de fls. A Meritíssima Juiz decidiu o que acima se transcreveu;
4) Isto porque conforme resulta dos autos e da prova junta aos autos, os arguidos Recorrentes não praticaram o crime de que foram condenados;
5) Conforme resulta dos autos, a sociedade arguida possui contabilidade organizada, tendo contratado uma empresa para fazer a contabilidade;
6) A sociedade arguida, através do Arguido (...) entregava todos os documentos à empresa que fazia a contabilidade, não sabendo, nem percebendo como é que a mesma era feita;
7) Pois, se os Arguidos soubessem fazer a contabilidade eram os próprios que a faziam e não necessitavam de contabilista;
8) Não é verdade que os Arguidos apresentaram custos e empolaram custos a fim de não liquidarem o imposto devdido;
9) Os Arguuidos apresentaram todos os documentos na contabilidade, descohecendo como é que o contabilista fez a contabilidade, nomeadamente se teve em conta ou não todos os documentos que lhe foram entregues;
10) Pelo que não é verdade que a sociedade arguida quando mandou fazer a sua declaração de IRC ocultou notas de crédito, lançou como custos valores que sabia não ter tido e outros que não eram admissíveis;
11) Isto porque os Arguidos limitam-se a entregar todos os documentos relativos à sociedade Arguida à empresa de contabilidade para esta fazer a contabilidade;
12) Sendo certo que os Arguidos, não têm, como já se disse, conhecimento de contabilidade, desconhecendo quais as despesas que entram ou não para a contabilidade;
13) Esse trabalho é da responsabilidade do contabilista que está a fazer a contabilidade e a preencher a declaração;
14) Os arguidos entregaram as faturas, bem como as notas de crédito à empresa de contabilidade, desconhecendo o porquê de as mesmas não terem sido lançadas na contabilidade da arguida;
15) Quando os Arguidos foram confrontados com tal situação, os mesmos procederam à regularização da situação, procedendo ao pagamento do imposto devido, conforme resulta dos documentos juntos aos autos;
16) Os Arguidos não agiram com dolo, nem com intenção fraudulenta de prejudicar o estado e não pagar os seus impostos;
17) Não é verdade, e isso ficou provado nos autos, uma vez que os arguidos procederam ao pagamento do imposto devido, que os arguidos se locupletaram-se de montante não apurado, mas superior a 15.000,00 €;
18) O arguido (...), em nome e no interesse da sociedade não ocultou rendimentos, nem empolou custos referents ao ano de 2014, agindo com o propósito de obter uma vantage patrimonial, nem quiz causar prejuízo ao Estado Português;
19) Nem tão pouco causou prejuízo ao Estado, uma vez que procedeu ao pagamento do valor devido em termos de IRC ao Estado Português;
20) O Estado não teve, nem sofreu qualquer prejuízo, visto que o imposto devido foi entregue pela Arguida ao Estado Português;
21) Os Arguidos não ocultaram a liquidação e cobrança dos impostos, visto que os Arguidos entregaram todos os documentos relativos à Arguida à empresa de Contabilidade, a fim de esta proceder à contabilidade, nomeadamente preenchimento da declação de impostos, de acordo com os documentos entregues e de acordo com a lei;
22) A sociedade Arguida, através do Arguido, entrega os documentos, mas não têm conhecimentos legais para procederem à contabilidade da mesma, desconhecendo como é que a mesma é feita;
23) Até porque quem faz a contabilidade e a entrega e assina é um contabilista certificado;
24) Pelo que não é verdade que os Arguidos agiram de forma voluntária, livre e consciente que a sua conduta era proíbida por lei;
25) Até porque conforme resulta dos autos a Sociedade Arguida nunca foi condenada por nenhum crime fiscal, sendo primária;
26) Isto porque o Arguido (...) sempre entregou todos os documentos referentes à Sociedade Arguida à empresa de contabilidade e essa empresa é que lança a mesma, ou seja, preenche as declarações de acordo com os documentos e de acordo com a lei;
27) Isto porque os Arguidos não sabem o que é que é legalmente dedutível, e os valores que poderão ser dedutíveis, para isso é que contrataram a empresa de contabilidade;
28) Conforme resulta do depoimento do contabilista, quer do Arguido (...), este entregava a documentação ao contabilista e deixava ao seu critério a inclusão das despesas na declaração de impostos ou não;
29) Bem como afirmou o Arguido que desconhecia como é feita a contabilidade, mas que entregou todos os documentos à empresa de contabilidade;
30) O Arguido justificou a compra das bicicletas e dos capacetes, que foram para oferecer a um cliente da sociedade, daí ter junto as faturas na contabilidade;
31)Os documentos passam pelo crivo do contabilista, sendo este que sabe se podem ou não ser dedutiveis;
32) Os Arguidos não atuaram com o dolo, ou seja com o conhecimento e intenção de ocultar valores e prejudicar o Estado Português;
33) Até porque como se pode averiguar nos autos, a fiscalização terá sido efetuada pela AT em 2017 e quando apurado o imposto devido, a Sociedade Arguida procedeu ao seu pagamento;
34) O que denota que os Arguidos não agiram como dolo, nem com intenção de prejudicar o Estado; Estado não foi prejudicado, uma vez que lhe foi entregue o imposto devido, não sofrendo qualquer lesão;
35) No caso em concreto não houve a efetiva produção de um prejuízo para o Estado Português, uma vez que, o imposto devido foi integralmente pago pela Arguida;
36) Resulta dos factos dados como não provados que os Arguidos actuando em nome da sociedade Arguida, referentes ao exercicio de 2014, quiseram causar prejuízo ao Estado Português;
37) Não tendo sido dado como provado o dolo dos arguidos, ou seja a intenção de prejudicar o Estado Português, não podiam os mesmos serem condenados pelo crime de fraude fiscal;
38) Tendo em conta o acima exposto e os documentos e prova testemunhal produzida nos autos, devem os Arguidos serem absolvidos do crime de vêm condenados, com todas as consequências legais daí resultantes;
39) Lendo atentamente, a Decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo do arquivamento dos autos;
40) O (Tribunal) a Meritíssima Juiza com a Decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Arguidos e, aqui Recorrentes, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não ter em consideração a inexistência de dolo por parte dos Arguidos e o pagamento do imposto devido ao Estado;
41) Dúvidas não existem de que a condenação dos Arguidos e consequente condenação dos mesmos é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;
42) Tem forçosamente de ser revogada a Decisão de fls., nos termos do artigo 412º do C.P.P;
43) Dúvidas não existem de que assim, os Arguidos, aqui Recorrentes, não foram tratados de forma igual a outros cidadãos perante a lei;
44) A Sentença recorrida viola:
a) Artigos 374º, 379º e 410º do C.P.P;
b) Artigos 13º, 32º; 205º, 207º e 208º da C. R. P; c) Artigos 40º; 69º, 70º; 71º do C.P;
d) Artigo 103º, do RGIT.
Termos em que, serequer,a V.Exas., a REVOGAÇÃO da Sentença recorrida, absolvendo os Arguidosdo crime dequevêmcondenados, comtodasasconsequênciasdaí resultantes, por ser de LEI, DIREITO E JUSTIÇA.

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A Digna Procuradora apresentou resposta com as seguintes conclusões:

1.ª (...) e (...), Ld.ª foram condenados pela prática de um crime de fraude fiscal previsto e punido pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, respetivamente nas penas de 150 dias de multa 180 dias de multa.
2.ª Inseriram-se nos factos provados 19. 20. 21. os factos pertinentes à afirmação do dolo.
3.ª Não há contradição com os factos que se consideraram não provados porque o conhecimento, a intenção e a ação são as que se atribuem ao arguido (...);
4.ª A sociedade foi condenada por causa do crime praticado pelo seu representante (artigo 11.º do Código Penal).
5.ª O preenchimento do elemento subjetivo exige o dolo (conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade) em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
6.ª O tribunal retirou dos factos provados a afirmação dos elementos que compõem o dolo tendo em conta as modalidades da ação verificadas, a experiência profissional de (...) e os critérios da experiência comum, com o que se fez uma apreciação em conformidade com os critérios do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
7.ª O tipo legal exige um dolo específico, intenção de obtenção de vantagens patrimoniais (suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias),
8.ª Mas não exige que haja intenção de causar prejuízo ao Estado. Ter dado como provado tal facto é inócuo, não é necessário à condenação nem impõe a absolvição, só pode relevar para a medida da pena concreta.
9.ª A consumação do crime descrito no artigo 103.º do RGIT basta-se com a intenção – é um crime de resultado cortado – basta que a atuação visasse a obtenção de vantagens patrimoniais. Se as obteve o crime exauriu-se. Se não obteve o crime consumou-se mesmo sem a obtenção de benefício.
10.º O pagamento posterior só releva para a medida da pena por constituir reparação, a ponderar ao abrigo do disposto no artigo 71.º do Código Penal.
Espera-se seja negado provimento ao presente recurso confirmando-se a sentença recorrida.

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O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. A sociedade arguida “(...), LDA.”, NIPC (…), é uma sociedade comercial unipessoal por quotas que se dedica à compra e venda de bens imóveis, revenda de adquiridos para esse fim, urbanização e construção de imóveis e sua revenda em bloco ou propriedade horizontal, e ainda indústria de construção civil e obras públicas.
2. Pelo exercício da atividade de “compra e venda de bens imobiliários”, a que corresponde o CAE 68100, a sociedade arguida estava, para efeitos de enquadramento do regime de I.R.C., abrangida pelo regime geral da contabilidade organizada e em I.V.A no regime de isenção ao abrigo do disposto no artigo 9.º do CIVA..
3. O arguido (...) encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Comercial como sendo o administrador único da sociedade comercial “(...), LDA.”, NIPC (…) desde 02.03.2012.
4. Contudo, a administração da sociedade comercial sempre foi exercida de facto, no dia-a-dia, pelo arguido (...).
5. (...) foi procurador da sociedade arguida, tendo-lhe sido emitida uma procuração por parte do arguido (...) que lhe conferia poderes para celebrar negócios, de contratar, comprar e vender em nome da sociedade, bem como representar a sociedade perante os bancos.
6. (...) exercia as funções de gerência na sociedade, comprando imóveis, vendendo-os, contratando em nome da sociedade, vinculando a sociedade.
7. No âmbito da sua atividade, a 29/5/2015, a sociedade arguida apresentou a declaração de I.R.C. referente ao exercício do ano de 2014, tendo nessa declaração apurado o valor de € 257,83 (duzentos e cinquenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) de imposto a pagar ao Estado.
8. Em 2017, no âmbito de uma ação de fiscalização tributária constataram-se omissões de valores que resultavam num aumento da matéria coletável e constaram-se contabilizações de gastos e custos não conformes com as exigências legais, que empolavam os custos, tudo visando a não liquidação e pagamento do imposto devido. Assim:
I - A sociedade arguida contabilizou a fatura n.º 1400/000180, datada de 16/4/2014, de prestação de serviços emitida pela sociedade (…, no montante de € 183.370,00 (cento e oitenta e três mil e trezentos e setenta euros), isto é, contabilizou um custo de € 183.370,00 (cento e oitenta e três mil e trezentos e setenta euros).
II – Contudo, à sociedade (…) apenas foi paga a quantia de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros).
III – A sociedade (…) emitiu em 2014 a nota de crédito n.º 1400/000004, no valor de € 61.370,00 (sessenta e um mil, trezentos e setenta euros), correspondente a um valor tributável de € 49.894,31 e IVA no valor de € 11.475,69.
9. Pela forma descrita no ponto anterior, a sociedade arguida contabilizou o custo de € 183.370,00 (cento e oitenta e três mil e trezentos e setenta euros), omitiu a emissão da nota de crédito no valor de € 61.370,00 (sessenta e um mil, trezentos e setenta euros), declarando assim gastos que efetivamente não teve.
10. Por outro lado, a sociedade arguida lançou na contabilidade, lançamento n.º 2 do diário de compras gerais, o valor de € 2.320,00 (dois mil, trezentos e vinte euros), referente a cinco bicicletas e três capacetes.
11. Tendo em conta a atividade desenvolvida pela sociedade arguida, não foi demonstrada qualquer relação do gasto descrito no número anterior com os rendimentos do sujeito passivo, pelo que não se enquadram no artigo 23.º do CIRC.
12. Em janeiro de 2014, no lançamento 2 do diário de operações diversas, foi contabilizado um documento onde são registadas em contas de gastos, o montante de € 24.140,97 (vinte e quatro mil, cento e quarenta euros e noventa e sete cêntimos), conforme o seguinte quadro:

DataContaDiárioDoc.Valor em Observações
31/01/20146221Operações Diversas22.028,40“Anulação de custos diferidos”
31/01/20146224Operações Diversas21.144,25“Anulação de custos diferidos”
31/01/201462281103Operações Diversas2237,82“Anulação de custos diferidos”
31/01/20146231Operações

Diversas
2125,00“Anulação de custos

diferidos”
31/01/20146232Operações

Diversas
236,30“Anulação de custos

diferidos”
31/01/20146233Operações

Diversas
292,52“Anulação de custos

diferidos”
31/01/20146262Operações Diversas285,67“Anulação de custos diferidos”
31/01/201464240103Operações Diversas219.750,00“Anulação de custos diferidos”
31/01/20146918Operações Diversas284,24“Anulação de custos diferidos”
31/01/20146981Operações

Diversas
2556,77“Anulação de custos

diferidos”
TOTAL24.140,97
13. A sociedade arguida lançou estes valores na sua contabilidade, apesar de não ter qualquer documento de suporte, o que legalmente é exigível.
14. Finalmente, a 7/8/2013, a sociedade arguida adquiriu uma viatura de marca Porsche, matricula (…), no valor de € 79.000,00 (setenta e nove mil euros), tendo considerado para efeitos de depreciação da viatura no ano de 2014, 25% do valor de aquisição, isto é, o valor de € 19.750,00 (dezanove mil e setecentos e cinquenta euros). Contudo, uma vez que o valor máximo legal a imputar como custo a uma sociedade pela aquisição de uma viatura ligeira de passageiros é de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a sociedade apenas poderia ter contabilizado custos de depreciação no valor de € 6.250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta euros), ou seja, máximo legal (€ 25.000,00) multiplicado por 25% da depreciação considerada pelo sujeito passivo.
15. Pelo exposto, a sociedade arguida ao inscrever na sua declaração de IRC referente ao exercício do ano de 2014, um lucro tributável no valor de € 1.399,28, tendo pago apenas € 257,83 (duzentos e cinquenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) de imposto ao Estado, ocultou notas de crédito, lançou como custos valores que sabia não ter tido e outros que não era legalmente admissível, os quais ficam demonstrados no seguinte quadro:
ANO 2014
      Lucro tributável declarado
    1.399,28
      Nota de crédito não contabilizada
    61.370,00
      Documentos sem comprovativo
    24.140,70
      Lucro Tributável corrigido
    €86.909,98
16. A sociedade arguida omitiu rendimentos e empolou custos, evitando assim uma correta liquidação do rendimento em sede de IRC, locupletando-se de montante não apurado, mas superior a €15.000,00.
17. Finalmente, no campo 428 da declaração de rendimentos, modelo 22, de 2014, foi declarado pela sociedade arguida o montante de € 736,65 (setecentos e trinta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos) referente a encargos com viaturas de valor de aquisição superiores a € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros). Apesar disso, os encargos com a viatura foram muito superiores conforme o quadro seguinte:
Data
Conta
Diário
Doc.
Valor em
Observações
31/1/201462.2.6.1.01Compras11.421,98Pneus
28/3/201462.2.6.1.01Caixa11776,06Oficina Porsche
Portagens no valor de € 37,40Portagens no valor de € 37,40Portagens no valor de € 37,40Portagens no valor de € 37,40Portagens no valor de € 37,40Portagens no valor de € 37,40
30/9/201462.2.6.1.01Caixa121.417,07Oficina Porsche
30/9/201462.8.09Caixa123,60Portagens no valor de € 44,80
30/9/201462.8.09Caixa22,76Portagens no valor de € 7,62
30/9/201462.8.09Caixa36,92Portagens no valor de € 18,04
30/9/201462.8.09Caixa517.44Portagens no valor de € 38,64
30/9/201462.8.09Caixa815,80Portagens no valor de € 35.80
30/9/201462.8.09Caixa92,76Portagens no valor de € 7,62
30/9/201462.8.09Caixa1016,60Portagens no valor

de € 37,40
31/12/201462.8.09Caixa24,15Portagens no valor

de € 24,15
31/12/201462.8.09Caixa21,20Portagens no valor de € 21,20
31/12/201462.2.8.1.1.03Caixa2180,94Portagens no valor de € 486,94
31/8/201462.6.3.02.01.01Caixa4659,90Seguro automóvel
31/12/201468.1.1.01.2.01Caixa1736,65IUC viatura 91-NS-49
31/12/201462.2.4.01.01Operações diversas119.750,00Amortização viatura 91-NS-49
Total do valor sujeito a tributação
25.668,77
18. Atento o seu valor de aquisição, os encargos com a viatura (…) estão sujeitos a tributação autónoma com uma taxa de 35%, ora tendo a sociedade arguida apenas declarado o valor de € 736,65 (setecentos e trinta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos), quando na realidade foram € 25.668,77 (vinte e cinco mil, seiscentos e sessenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).
19. Ao atuar da forma descrita, o arguido (...) atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, ocultou rendimentos e empolou custos referentes ao exercício de 2014, agindo com o propósito de obter uma vantagem patrimonial, bem sabendo e querendo causar correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou, pois não entregou à Administração Fiscal quantia não apurada mas superior a €15.000,00, a que estava obrigada em sede de IRC, diminuindo assim as receitas tributárias, lesando por via disso o erário público da Fazenda Nacional naquele montante.
20. Para além disso, o arguido ocultou à Administração Tributária a liquidação e cobrança daqueles impostos, ofendeu e colocou em crise a verdade e transparência fiscal, impedindo o Estado Português de concretizar a sua pretensão de lhe ver revelados todos os factos fiscalmente relevantes lesando também, assim, o regular funcionamento do sistema tributário e a realização da justiça fiscal.
21. Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
22. Os arguidos procederam ao pagamento de € 30.682,71 (trinta mil, seiscentos e oitenta e dois euros e setenta e um cêntimo) a 15 de novembro de 2017.
23. O prazo para pagamento voluntário havia terminado a 7/7/2017 – encontrando-se por pagar apenas € 100,00 (cem euros) referentes a custas relativas com uma penhora de imóveis no âmbito de uma execução fiscal para cobrança das dividas resultantes do presente ilícito.
24. Montante esse atualmente já ressarcido integralmente.
Mais se apurou que:
25. Os arguidos (...) e (...) exercem funções na qualidade de empresários na área da construção civil, sendo que o ultimo aufere uma renumeração mensal no valor de €1.000,00.
26. Vive com os dois filhos maiores de idades, os quais se encontram a frequentar o ensino universitário, procedendo ao pagamento do montante de € 250,00 a titulo de pensão de alimentos devidos à filha menor de idade que reside com a progenitora, tendo o apoio económico dos seus pais para proceder ao pagamento da renda.
27. Concluiu o 9.º ano de escolaridade.
28. O arguido (...) foi condenado:

- Por sentença transitada em julgado a 19.03.2015, proferida no Processo Comum n.º 803/08.8JDLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 11, pela prática de um crime de burla qualificada, na pena de 3 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, sob condição económica.

29.Oarguido (...) foi condenado:

- Por sentença transitada em julgado a 06.05.2015, proferida no Processo Sumário n.º 102/13.3GTCBR do Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €6,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses; pena extinta pelo cumprimento.
30. Do certificado de registo criminal da sociedade arguida nada consta.

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B.1.2 - Não se provaram outros factos relevantes para a decisão, designadamente que:

i. (...) exercia funções de gerência na sociedade, nomeadamente comprando imóveis, vendendo-os, contratando em nome da sociedade, vinculando ambos a sociedade.
ii. Do modo descrito no ponto 14 anterior, a sociedade arguida contabilizou custos que sabia não serem legalmente admissíveis, querendo com isso empolá-los, num valor de € 13.500,00 (treze mil e quinhentos euros).
iii. O lucro tributável corrigido da sociedade no ano de 2014 é de €100.410,25.
iv. A sociedade arguida locupletou € 21.956,47 (vinte e um mil, novecentos e cinquenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos).
v. Assim, a sociedade arguida deliberadamente ocultou € 24.932,12 (vinte e quatro mil, novecentos e trinta e dois euros e doze cêntimos), que devia ter declarado, ocultando assim que deveria ter de entregar € 8.726,24 (oito mil, setecentos e vinte e seis euros e vinte e quatro cêntimos) a título de tributação autónoma.
vi. Os arguidos atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, referentes ao exercício de 2014, quiseram causar prejuízo ao Estado Português ao não entregar € 8.726,24 (oito mil, setecentos e vinte e seis euros e vinte e quatro cêntimos) em sede de tributação autónoma.
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B.1.3. – Fundamentação da Decisão Sobre a Matéria de Facto

« (…) Valorou antes de mais as declarações dos arguidos (...) e (...), os quais foram perentórios e incisivos quanto ao facto de, apesar do primeiro ser quem se encontra registado como o único socio e gerente da sociedade arguida, resultou patente que o arguido (…) mantem uma participação passiva na vida societária, isto é, não intervém na gestão diária da empresa e as correspondentes decisões quanto à priorização dos pagamentos a efetuar, contratos a realizar e seleção da documentação a entregar à contabilidade, limitando-se a facilitar a gestão efetuada pelo seu irmão, (...), sem prejuízo ter conhecimento de algumas das despesas efetuadas, nomeadamente aquisição de bicicletas para oferta e do veiculo automóvel. Nega, contudo, ter tomado qualquer participação na decisão da realização dessas compras, como nega ter conhecimento da alegada nota de credito e/ou despesas sem qualquer documentação.
Assim, e não obstante a contradição aparente com o depoimento prestado por (...), contabilista e gerente da empresa que assegura a contabilidade da sociedade arguida, o qual testemunhou que durante um curto período entre 2014 a 2015, seria (...) quem procedia à entrega de documentação na contabilidade e com quem se reunia para a tomada de decisões, a própria testemunha revelou incerteza quanto ao referido período, tendo o próprio arguido (...) esclarecido que as pontuais entregas de documentação realizadas por (...) eram realizadas a seu pedido.
O arguido (...) prestou declarações, negando em sumula a factualidade que lhe é imputada, designadamente alegou desconhecimento da emissão da nota de credito pela sociedade (…), no valor de € 61.370,00 e negou ter entregue qualquer despesa sem suporte documental junto da empresa de contabilidade.
Admitiu ter adquirido cinco bicicletas e três capacetes no valor global de € 2.320,00, cuja fatura entregou à empresa de contabilidade para ser lançada, justificando que se trataria de uma oferta para um cliente, cujo nome olvidou; bem como da aquisição de uma viatura de marca Porsche, matricula (…), no valor de € 79.000,00 e despesas de manutenção e conservação com o referido veiculo, alegando desconhecer que a sociedade apenas poderia ter contabilizado custos de depreciação no valor de € 6.250,00 quanto ao veiculo e que nem todos os encargos não teriam sido lançados, declarando que deixou tal decisão à consideração da empresa de contabilidade.
Tal afirmação é corroborada pelo depoimento de (...), o qual confirmou que, apesar de existir um outro funcionário da empresa de contabilidade adjudicado à data para proceder à contabilidade da sociedade arguida, era a testemunha quem, a final, analisava e verificava os valores lançados e respetivo balancete, tendo sido por decisão da testemunha que os encargos com a viatura (…) não foram declarados no campo 428 da declaração de rendimentos modelo 22 de 2014 (não obstante os arguidos lhe terem entregue a documentação comprovativa correspondente).
Com efeito, afigura-se plausível que os arguidos, atendendo ao critério do homem medio comum e as características dos mesmos, desconhecessem a obrigatoriedade da declaração desses encargos com a viatura sob a forma de tributação autónoma, assim como quanto ao método de calculo do valor de depreciação da viatura considerando o seu valor de aquisição, tendo confiado tal decisão ao TOC por si contratado.
Distintamente, já não se afigura verosímil, novamente considerando as regras da experiencia comum, que o arguido desconhecesse a emissão de nota de credito por um dos seus credores, em particular atendendo ao elevado montante em discussão. Com efeito, não logrou o arguido (...), nem mesmo o contabilista (...) esclarecer de modo plausível a razão para a empresa credora ter “perdoado” uma divida num montante de valor elevado, sobretudo se atentarmos que tal nota de credito foi emitida no mesmo ano em que foi faturada a divida, pelo que não se compreende que a empresa credora, escassos meses apos ter sido paga ainda que em parte, considerasse tal divida incobrável (conforme explicação adiantada pelo contabilista) e muito menos, que nada indicasse ao devedor ate à ocorrência da fiscalização pela ATA, ou seja, durante mais de três anos, a crer na versão declarada pelo arguido (...).
Tal versão da factualidade não merece credibilidade na ponderação do Tribunal, assim como a alegada oferta de cinco bicicletas e três capacetes a titulo de oferta a um cliente da sociedade. Apesar do contabilista assim o ter lançado de acordo com as declarações do arguido, (...), o facto é que não logrou identificar o cliente a quem teria efetuado tal oferta, nem mesmo concretizar a razão de tal oferta, o que se nos afigura de todo implausível considerando não só o art. 23.º do CIRC, mas as regras de boa gestão empresarias. Com efeito, considerando que a atividade desenvolvida pelos arguidos seria de venda e compra de imoveis, a oferta/brinde de bens alheios à atividade desenvolvida, apenas se compreendem num quadro de aliciamento de futuros negócios com um cliente se pretende desenvolver e manter, pelo que se revela incompreensível a alegada ausência de memoria alegada pelo arguido quanto à identificação do cliente e negocio celebrado, ema particular dado o valor elevado do alegado premio.
De igual modo, não pode o arguido, como empresário na área da construção e imobiliário, atividade que desenvolve há um largo período temporal, alegar que desconhecia que apenas podem ser declaradas/lançadas despesas suportadas em documento comprovativo. Alias, o arguido não nega tal conhecimento, alegando, pelo contrario, ter entregue toda a documentação correspondente às despesas.
Tal afirmação é discrepante com o depoimento prestado por (…), inspetor tributário, o qual conjugado com a prova documental junto aos autos, esclareceu a razão da ação inspetiva à sociedade arguida (comissão de valor elevado, tendo a sociedade arguida apenas apresentado como documento comprovativo de pagamento um cheque de €115.000,00, declarando o remanescente do montante como se encontrando por regularizar, o que foi contraditado pela documentação obtida, pelo método de circularização, junto da empresa credora- nota de credito-), mas igualmente as conclusões dessa inspeção, designadamente as omissões nas declarações e empolamento de valores, inclusive a ausência de documentos comprovativos das despesas declaradas sob o titulo de operações diversas, as quais determinaram uma alteração da matéria coletável.
Alias, a testemunha depôs que a justificação apresentada para a ausência da referida documentação seria por se tratarem de meras transferências, tendo, por sua vez, a testemunha (...) justificado a ausência da referida documentação do facto de se tratarem de custos diferidos do ano de 2013.
Ora, e não obstante a explicação avançada pelo contabilista da sociedade arguida, a justificação alegada é contraditada não só pelo conceito em si de custos diferidos, como pelo facto de inexistir essa documentação junta à declaração de rendimentos, a qual se lhe impunha.
Com efeito e considerando princípio contabilístico da especialização (ou do acréscimo), este refere que os custos – despesas - (tais como os proveitos) devem ser reconhecidos no período em que são incorridos (obtidos). Implícito neste princípio está a ideia do “matching” entre custos e proveitos: devem contabilizar-se como custos do período as despesas que foram estritamente necessárias para a obtenção dos proveitos obtidos. Contudo, nem sempre esses custos, se verificam no período em que se faturam: é o caso dos custos diferidos, que correspondem a faturas recebidas relativa a serviços que só irão ser “consumidos” nos exercícios seguintes, pelo que não podem ser reconhecidos como custos deste exercício, os quais, são, nesse caso, anulados e considerados no ano seguinte p. ex: campanha publicitária plurianual ou prémios de seguros.
Todavia, o facto de estarmos perante eventuais custos diferidos do ano de 2013 para o ano de 2014, tal não obsta que tais valores não sejam suportados por prova documental. Acresce que, tendo se logrado apurar que um dos valores em discussão se refere ao montante concertante ao valor da depreciação da viatura matricula (…) (19.750,00), tal valor, considerando a explanação supra exposta não preenche os requisitos contabilísticos de custos diferidos.
Se é facto que a ponderação das despesas não suportadas com documento como custos diferidos, ter-se-á tratado de uma decisão meramente pelo contabilista aquando do preenchimento da declaração de rendimentos da sociedade, contudo, a enumeração e elenco dessas despesas apenas poderá ter sido efetuada pelo arguido, porquanto só este poderia ter conhecimento das mesmas.
Valorou igualmente o Tribunal a prova documental junta aos autos, nomeadamente Parecer da inspeção tributária, de fls. 32 a 41, Documentos de fls. 76 a 119, Pagamento de imposto de fls. 177 a 183, Declaração de IRC, de fls. 227, Documentos contabilísticos e escrituras de compra e venda, de fs. 229 a 278, Informação da AT, de fls. 310 a 313, Certidão permanente da sociedade, de fls. 344 a 350 e Print do registo automóvel, de fls. 351 e 352.
Atendeu, ademais, o Tribunal às Declarações dos Arguidos, quanto às suas condições socioeconómicas e aos Certificados de Registo Criminal, no que se refere à existência de antecedentes criminais.»

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B.2 - Cumpre conhecer.

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Em concreto suscita o recurso as seguintes questões, em síntese:

a) - Da pretensão de impugnação dos factos – conclusões 1ª a 18ª e 21ª a 31ª;
b) - Da incorrecta apreciação do tipo penal pois que os arguidos não quiseram causar prejuízo ao Estado – conclusões 18ª, parte final, 19ª, 20ª e 34ª;
c) – Os arguidos não actuaram com dolo - conclusões 32ª, 34ª a 37ª;
d) – A condenação dos arguidos é inconstitucional por violar normas da Constituição da República Portuguesa – conclusões 40ª e 41ª.

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B.2.1 – Os recorrentes levantam uma simples questão, a violação do princípio da livre apreciação da prova contido no artigo 127º do C.P.P.. Isto é, os recorrentes não impugnam a matéria de facto dada como provada mas fazem um simples apelo à eventual violação do princípio da livre apreciação da prova e, por efeito da invocação em 42) da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal, parecendo que isso bastará para que o tribunal deva analisar a questão em termos de apurar se existe algum “erro na apreciação da prova”.

O que significa que os recorrentes entendem que este recurso implica que este tribunal deve voltar a analisar a prova à luz – e apenas – dos argumentos que alinham na peça processual.

Impõe-se, portanto, apurar e aclarar para que serve um recurso penal em matéria de facto, já que essa é a pretensão de ambos os recorrentes, sendo certo que apresentados como foram são mero sonho processual. Para tal desiderato três artigos do Código de Processo Penal são essenciais para esclarecer a matéria.

O primeiro é o artigo 431.º sobre a “Modificabilidade da decisão recorrida” que afirma expressis verbis que:

«sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.»

Não havendo lugar a renovação da prova e sendo o primeiro requisito [a al. a)] um óbvio pressuposto e necessidade, resta apreciar as duas hipóteses colocadas como essenciais: o disposto no artigo 410º e a impugnação a que se refere o artigo 412º, nº 3, ambos do C.P.P..

E note-se que o artigo é vinculativo no sentido de dever ser interpretado como dizendo “a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se ocorrer um dos casos previstos no artigo 410º ou se o recorrente impugnar nos termos previstos no artigo 412º, nsº 3 e 4 do diploma.

Ou seja, a invocação de “violação do princípio da livre apreciação da prova” serve de nada se não ocorrer uma das indicadas vias pois que essa invocação só serve para apelar a um princípio geral de apreciação probatória a inserir numa dessas duas vias. Isto é, contrariamente ao que já aconteceu noutros ramos da actividade humana, não há aqui uma “terceira via”.

Concretizando, o recurso sobre matéria de facto apresenta duas formas de apelo, subdividindo-se pela invocação dos chamados “vícios da revista alargada” e que estão previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e que são: a) - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) – o erro notório na apreciação da prova.

Para validamente invocar tais vícios o recorrente só tem que demonstrar a sua existência por simples referência ao texto da decisão recorrida, fazendo apelo à racionalidade e às regras de experiência comum.

Não necessita de apresentar prova. Aliás, se tiver que o fazer já não está a invocar este tipo de vício mas sim um vício de facto a exigir impugnação e, por isso, o cumprimento do regime do artigo 412º.

Desta forma ao recorrente pede-se apenas a sua alegação, o mais concreta e precisa possível, mas mesmo que o não faça o tribunal pode suprir tal deficiência pois que estes vícios “notórios” são de conhecimento oficioso. E são-no porque são os vícios extremos de uma decisão judicial e, em absoluto, não são tolerados pela ordem jurídica. Se a sentença apresenta um destes três vícios tem que ser alterada.

Coisa substancialmente diversa se passa com os vícios de facto que não sejam notórios, que se limitem a ser erros de apreciação probatória mas que não sejam patentes, óbvios, pela simples leitura da decisão. Implicam, para nos apercebermos deles, que seja apresentada (produzida em recurso) prova que os demonstre. Aqui já o recorrente tem que apontar de forma especificada e concreta erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Trata-se da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Aqui já ao recorrente se impõe o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, não lhe basta alegar que o vício existe, tem que o identificar muito clara e concretamente por referência ao facto concreto (provado ou não provado), tem que dizer qual a prova que demonstra a existência do erro e tem que – pela racionalidade – demonstrar que esse erro implica necessariamente que a prova tem que ser apreciada de forma diferente.

Firmou-se doutrina e jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus de impugnação especificada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 que veio consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação:

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Podemos portanto concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) - Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
d) – Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E aqui o impõe significa “impõe” e não apenas “permite”, “possibilita” ou “consente”.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Assim é profundamente errada a ideia muito comum de que a existência de gravações da prova oral implica que basta a existência de um recurso para que o tribunal de recurso tenha que apreciar essa prova gravada mais os documentos, sem qualquer esforço do recorrente.

O tribunal de recurso não tem que reapreciar a causa e toda a prova que foi produzida nos autos! O tribunal de recurso só tem que apreciar o recurso nos moldes em que o recorrente o coloca (para além dos vícios de conhecimento oficioso, naturalmente).

Se o recorrente o coloca de forma deficiente – se não demonstra a existência de um “erro de revista alargada” do artigo 410º do diploma nem impugna de forma especificada nos termos do artigo 412º - o tribunal de recurso simplesmente e por imposição legal não pode alterar a matéria de facto (artigo 431º do C.P.P.).

Em resumo, um recurso não é um somatório de argumentos que, por muito interessantes que sejam, não sigam as supra indicadas vias e pela demonstração de erros óbvios ou demonstráveis por prova que tem que ser, laboriosamente, preparada e apresentada pelo recorrente.

Destarte a apresentação de muitos argumentos e a referência a meios de prova produzidos em audiência de julgamento, meramente referida en passant ou de forma genérica e sem a devida concretização como exigido pelo acórdão de uniformização de jurisprudência supra citado é uma actividade votada ao fracasso.

Em concreto os recorrentes não cumprem qualquer dos requisitos de impugnação à luz da previsão do artigo 412º do C.P.P.. Nem indicam os factos que se integram numa eventual impugnação, nem indicam especificadamente prova que pretenda sustentar essa sua impugnação e não fazem a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal) nem, alternativamente, identificam a transcrição das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

E também não se evidenciam nem os recorrentes os apontam, vícios de facto a inserir na previsão do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.. Os recorrentes limitam-se a negar a prática de facto, o que corresponde a uma manifesta improcedência quanto à pretensão de alteração dos factos povados que, face à supra referida previsão do artigo 431º do C.P.P. se devem considerar fixados.


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B.2.2 – Da incorrecta apreciação do tipo penal pois que os arguidos não quiseram causar prejuízo ao Estado.

A este propósito o arguido invoca expressis verbis que não “quiz causar prejuízo ao Estado Português” (conclusão 18ª), nem “tão pouco causou prejuízo ao Estado, uma vez que procedeu ao pagamento do valor devido em termos de IRC ao Estado Português” e que o dito Estado “não teve, nem sofreu qualquer prejuízo, visto que o imposto devido foi entregue pela Arguida ao Estado Português” (conclusões 19ª e 20ª), daí retirando, embora não de forma explícita, que não deve ser punido – presumimos nós pela referência ao artigo 103º do RGIT e à invocação de ilegalidade – por o tipo penal imputado exigir uma intenção específica de causar prejuizo ao Estado.

E diversamente a Digna Procuradora da República que afirmou nas suas conclusões que:

7.ª O tipo legal exige um dolo específico, intenção de obtenção de vantagens patrimoniais (suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias),
8.ª Mas não exige que haja intenção de causar prejuízo ao Estado. Ter dado como provado tal facto é inócuo, não é necessário à condenação nem impõe a absolvição, só pode relevar para a medida da pena concreta.

Face à letra do artigo 103º, nº 1 do RGIT constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas “que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.

A conduta imputada aos arguidos por fraude fiscal concretizou-se através de “ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável” e subsumiu-se à alínea a) do referido preceito que se acaba de citar.

Temos pois que nem se exige um dolo específico (intenção de causar prejuízo ao Estado) nem um resultado da conduta (um efectivo prejuízo), não estando nós perante um crime de resultado. Bem ao invés estamos perante um crime de perigo e de mera actividade.

No dizer do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (de 02-10-2013, sendo Rel. o Desemb. Jorge Dias):

1. O crime de fraude fiscal é um crime de perigo em que o bem jurídico protegido é a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social e é um crime de «resultado cortado», pois a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima não é elemento do tipo. Basta apenas que as condutas sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem;
2.O crime de fraude fiscal só pode ser cometido através de ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável, da ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados á administração tributária ou da celebração de negócio simulado.
3. O tipo objetivo de ilícito preenche-se, pois, com a adoção de condutas que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, tendo o legislador concretizado esses comportamentos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 103.

E para a sua consumação basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra. Crime de resultado cortado, como afirma a Digna Procuradora.

A invocação de que o Estado “acabou por não ter prejuízo” é irrelevante, pois que só o seria até ao final do prazo para apresentação da declaração fiscal.

A posterior apresentação e pagamento só podem ser atendidos como circunstância atenuante comum/geral.

Destarte é improcedente a invocada inexistência de ilicitude na conduta dos arguidos.


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B.2.3 – Os arguidos não actuaram com dolo, reclamam os recorrentes.

Este motivo de inconformidade do recurso dos arguidos assenta numa afirmação de inexistência de prova de um facto que está provado no facto 21) de forma clara e expressa (“21. Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”).

Este facto não pode ser simplesmente negado pelos recorrentes. Tem que ser impugnado nos termos ditos supra. Não o tendo sido, a simples negação é uma inutilidade.

O que não invalida que se aprecie outra questão suscitada pelos recorrentes na sua conclusão 36), que «Resulta dos factos dados como não provados que os Arguidos actuando em nome da sociedade Arguida, referente ao exercicio de 2014, quiseram causar prejuízo ao Estado Português».

Ora não há aqui qualquer contradição entre este facto não provado e os factos provados, designadamente o facto 21), algo que nos parece estar na base da insatisfação dos recorrentes, já que o facto não provado se centra na “intenção de causar prejuízo ao Estado”, elemento que não ganha relevo no dolo deste tipo penal.


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B.2.5 – Afirmam os recorrentes que a condenação dos arguidos é inconstitucional por violar várias disposições da Constituição da República Portuguesa.

Em termos conclusivos os recorrentes resumem a sua insatisfação desta forma:

40) O (Tribunal) a Meritíssima Juiza com a Decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Arguidos e, aqui Recorrentes, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não ter em consideração a inexistência de dolo por parte dos Arguidos e o pagamento do imposto devido ao Estado;
41) Dúvidas não existem de que a condenação dos Arguidos e consequente condenação dos mesmos é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;

Dada a insuficiência para apreender neste trecho das razões dos recorrentes havemos de ir buscar suporte argumentativo às motivações e destas retira-se que os recorrentes entendem o seguinte:

Acresce que, a Decisão recorrida viola o disposto no artigo 208º da C. R. P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na Lei”.

E, a Decisão recorrida viola do disposto no artigo 207º da C. R. P., uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”.

Viola também a Decisão recorrida o disposto no artigo 205º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados”.

Ora, neste caso essa circunstância não se verifica.

Isto é, o (Tribunal) o Meritíssimo Juiz com a Decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Arguidos e, aqui Recorrentes, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não ter em consideração a inexistência de dolo por parte dos Arguidos e o pagamento do imposto devido ao Estado.

Dúvidas não existem de que a condenação dos Arguidos e consequente condenação dos mesmos é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

Dado que esta norma constitucional dispõe: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.

Ora, tem forçosamente de ser revogada a Decisão de fls., nos termos do artigo 412º do C.P.P.

Dúvidas não existem de que assim, os Arguidos, aqui Recorrentes, não foram tratados de forma igual a outros cidadãos perante a lei.

Como é claro esta parte do recurso não tem objecto.

Os recorrentes limitam-se a afirmar, desde logo, que a decisão recorrida é “inconstitucional” e não que determinada ou determinadas interpretações jurídicas de normas – e que normas – devem ser tidas por inconstitucionais. Porque não há decisões inconstitucionais!

Por outro lado os recorrentes não apontam ou alinham os factos e as razões que lhes permitiram as conclusões quanto à invocada inconstitucionalidade de quatro artigos da C.R.P, designadamente os artigos 13º, 205º, 207º e 208º.

Em concreto, qual a falha de fundamentação da sentença recorrida, qual o princípio “constitucional” violado, de que forma foi violado o direito de defesa dos arguidos, como se materializou a violação do princípio da igualdade?

O tribunal nada tem de que possa conhecer e incumbia aos recorrentes trazerem aos autos, em devida forma e substância, as razões das suas divergências, algo que aqui claramente não fizeram.

Nada há, pois, de que se possa conhecer pelo que o recurso é, nesta parte, rejeitado.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto.

Sem tributação.

Évora, 17 de Dezembro de 2020 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado)

João Gomes de Sousa

Nuno Garcia