Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Descritores: | FRAUDE FISCAL DOLO CRIME DE RESULTADO CRIME DE PERIGO CONSUMAÇÃO | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Data do Acordão: | 12/17/2020 | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Texto Integral: | S | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Sumário: | 1 - No crime de fraude fiscal nem se exige um dolo específico (intenção de causar prejuízo ao Estado) nem um resultado da conduta (um efectivo prejuízo), não estando nós perante um crime de resultado. Bem ao invés, estamos perante um crime de perigo e de mera actividade. 2 - Para a sua consumação basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra. | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: No Tribunal Judicial da Comarca de Faro – J. Local Criminal de Albufeira - Juiz 1 - correu termos o processo supra numerado no qual o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular contra: (...), LDA., pessoa coletiva com o número (…), com sede em (…), (...), empresário na construção civil, (…), e, (...), empresário na construção civil, (…), imputando-lhes a prática, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001). * A final, por sentença lavrada a 05-03-200 veio a decidir o Tribunal recorrido A. Absolver (...) pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001). B. Condenar o arguido (...) pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001) na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete) euros, o que perfaz o valor de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros). C. Condenar a sociedade arguida (...), LDA. pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001) na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete) euros, o que perfaz o valor de € 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros). D. Condenar os arguidos (...), LDA. e (...) na taxa de justiça que se fixa em 2 UC. * Inconformados os arguidos (...), Lda., Sociedade Comercial por Quotas e (...) interpuseram recurso assim concluindo: 1) Conforme resulta de fls., foi deduzida acusação contra o Arguido imputando-lhe a prática de um crime de Fraude Fiscal, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, nº 1, 7º, 103º, nº 1, al. a), todos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001); * A Digna Procuradora apresentou resposta com as seguintes conclusões: 1.ª (...) e (...), Ld.ª foram condenados pela prática de um crime de fraude fiscal previsto e punido pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, 103.º. n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, respetivamente nas penas de 150 dias de multa 180 dias de multa. * O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal. * B - Fundamentação: B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. A sociedade arguida “(...), LDA.”, NIPC (…), é uma sociedade comercial unipessoal por quotas que se dedica à compra e venda de bens imóveis, revenda de adquiridos para esse fim, urbanização e construção de imóveis e sua revenda em bloco ou propriedade horizontal, e ainda indústria de construção civil e obras públicas.
14. Finalmente, a 7/8/2013, a sociedade arguida adquiriu uma viatura de marca Porsche, matricula (…), no valor de € 79.000,00 (setenta e nove mil euros), tendo considerado para efeitos de depreciação da viatura no ano de 2014, 25% do valor de aquisição, isto é, o valor de € 19.750,00 (dezanove mil e setecentos e cinquenta euros). Contudo, uma vez que o valor máximo legal a imputar como custo a uma sociedade pela aquisição de uma viatura ligeira de passageiros é de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a sociedade apenas poderia ter contabilizado custos de depreciação no valor de € 6.250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta euros), ou seja, máximo legal (€ 25.000,00) multiplicado por 25% da depreciação considerada pelo sujeito passivo. 15. Pelo exposto, a sociedade arguida ao inscrever na sua declaração de IRC referente ao exercício do ano de 2014, um lucro tributável no valor de € 1.399,28, tendo pago apenas € 257,83 (duzentos e cinquenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) de imposto ao Estado, ocultou notas de crédito, lançou como custos valores que sabia não ter tido e outros que não era legalmente admissível, os quais ficam demonstrados no seguinte quadro:
17. Finalmente, no campo 428 da declaração de rendimentos, modelo 22, de 2014, foi declarado pela sociedade arguida o montante de € 736,65 (setecentos e trinta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos) referente a encargos com viaturas de valor de aquisição superiores a € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros). Apesar disso, os encargos com a viatura foram muito superiores conforme o quadro seguinte:
19. Ao atuar da forma descrita, o arguido (...) atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, ocultou rendimentos e empolou custos referentes ao exercício de 2014, agindo com o propósito de obter uma vantagem patrimonial, bem sabendo e querendo causar correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou, pois não entregou à Administração Fiscal quantia não apurada mas superior a €15.000,00, a que estava obrigada em sede de IRC, diminuindo assim as receitas tributárias, lesando por via disso o erário público da Fazenda Nacional naquele montante. 20. Para além disso, o arguido ocultou à Administração Tributária a liquidação e cobrança daqueles impostos, ofendeu e colocou em crise a verdade e transparência fiscal, impedindo o Estado Português de concretizar a sua pretensão de lhe ver revelados todos os factos fiscalmente relevantes lesando também, assim, o regular funcionamento do sistema tributário e a realização da justiça fiscal. 21. Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 22. Os arguidos procederam ao pagamento de € 30.682,71 (trinta mil, seiscentos e oitenta e dois euros e setenta e um cêntimo) a 15 de novembro de 2017. 23. O prazo para pagamento voluntário havia terminado a 7/7/2017 – encontrando-se por pagar apenas € 100,00 (cem euros) referentes a custas relativas com uma penhora de imóveis no âmbito de uma execução fiscal para cobrança das dividas resultantes do presente ilícito. 24. Montante esse atualmente já ressarcido integralmente. Mais se apurou que: 25. Os arguidos (...) e (...) exercem funções na qualidade de empresários na área da construção civil, sendo que o ultimo aufere uma renumeração mensal no valor de €1.000,00. 26. Vive com os dois filhos maiores de idades, os quais se encontram a frequentar o ensino universitário, procedendo ao pagamento do montante de € 250,00 a titulo de pensão de alimentos devidos à filha menor de idade que reside com a progenitora, tendo o apoio económico dos seus pais para proceder ao pagamento da renda. 27. Concluiu o 9.º ano de escolaridade. 28. O arguido (...) foi condenado: - Por sentença transitada em julgado a 19.03.2015, proferida no Processo Comum n.º 803/08.8JDLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 11, pela prática de um crime de burla qualificada, na pena de 3 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, sob condição económica. 29.Oarguido (...) foi condenado: - Por sentença transitada em julgado a 06.05.2015, proferida no Processo Sumário n.º 102/13.3GTCBR do Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €6,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses; pena extinta pelo cumprimento. * B.1.2 - Não se provaram outros factos relevantes para a decisão, designadamente que: i. (...) exercia funções de gerência na sociedade, nomeadamente comprando imóveis, vendendo-os, contratando em nome da sociedade, vinculando ambos a sociedade. B.1.3. – Fundamentação da Decisão Sobre a Matéria de Facto « (…) Valorou antes de mais as declarações dos arguidos (...) e (...), os quais foram perentórios e incisivos quanto ao facto de, apesar do primeiro ser quem se encontra registado como o único socio e gerente da sociedade arguida, resultou patente que o arguido (…) mantem uma participação passiva na vida societária, isto é, não intervém na gestão diária da empresa e as correspondentes decisões quanto à priorização dos pagamentos a efetuar, contratos a realizar e seleção da documentação a entregar à contabilidade, limitando-se a facilitar a gestão efetuada pelo seu irmão, (...), sem prejuízo ter conhecimento de algumas das despesas efetuadas, nomeadamente aquisição de bicicletas para oferta e do veiculo automóvel. Nega, contudo, ter tomado qualquer participação na decisão da realização dessas compras, como nega ter conhecimento da alegada nota de credito e/ou despesas sem qualquer documentação. *** B.2 - Cumpre conhecer. O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95. Em concreto suscita o recurso as seguintes questões, em síntese: a) - Da pretensão de impugnação dos factos – conclusões 1ª a 18ª e 21ª a 31ª; * B.2.1 – Os recorrentes levantam uma simples questão, a violação do princípio da livre apreciação da prova contido no artigo 127º do C.P.P.. Isto é, os recorrentes não impugnam a matéria de facto dada como provada mas fazem um simples apelo à eventual violação do princípio da livre apreciação da prova e, por efeito da invocação em 42) da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal, parecendo que isso bastará para que o tribunal deva analisar a questão em termos de apurar se existe algum “erro na apreciação da prova”. O que significa que os recorrentes entendem que este recurso implica que este tribunal deve voltar a analisar a prova à luz – e apenas – dos argumentos que alinham na peça processual. Impõe-se, portanto, apurar e aclarar para que serve um recurso penal em matéria de facto, já que essa é a pretensão de ambos os recorrentes, sendo certo que apresentados como foram são mero sonho processual. Para tal desiderato três artigos do Código de Processo Penal são essenciais para esclarecer a matéria. O primeiro é o artigo 431.º sobre a “Modificabilidade da decisão recorrida” que afirma expressis verbis que: «sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.» Não havendo lugar a renovação da prova e sendo o primeiro requisito [a al. a)] um óbvio pressuposto e necessidade, resta apreciar as duas hipóteses colocadas como essenciais: o disposto no artigo 410º e a impugnação a que se refere o artigo 412º, nº 3, ambos do C.P.P.. E note-se que o artigo é vinculativo no sentido de dever ser interpretado como dizendo “a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se ocorrer um dos casos previstos no artigo 410º ou se o recorrente impugnar nos termos previstos no artigo 412º, nsº 3 e 4 do diploma. Ou seja, a invocação de “violação do princípio da livre apreciação da prova” serve de nada se não ocorrer uma das indicadas vias pois que essa invocação só serve para apelar a um princípio geral de apreciação probatória a inserir numa dessas duas vias. Isto é, contrariamente ao que já aconteceu noutros ramos da actividade humana, não há aqui uma “terceira via”. Concretizando, o recurso sobre matéria de facto apresenta duas formas de apelo, subdividindo-se pela invocação dos chamados “vícios da revista alargada” e que estão previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e que são: a) - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) – o erro notório na apreciação da prova. Para validamente invocar tais vícios o recorrente só tem que demonstrar a sua existência por simples referência ao texto da decisão recorrida, fazendo apelo à racionalidade e às regras de experiência comum. Não necessita de apresentar prova. Aliás, se tiver que o fazer já não está a invocar este tipo de vício mas sim um vício de facto a exigir impugnação e, por isso, o cumprimento do regime do artigo 412º. Desta forma ao recorrente pede-se apenas a sua alegação, o mais concreta e precisa possível, mas mesmo que o não faça o tribunal pode suprir tal deficiência pois que estes vícios “notórios” são de conhecimento oficioso. E são-no porque são os vícios extremos de uma decisão judicial e, em absoluto, não são tolerados pela ordem jurídica. Se a sentença apresenta um destes três vícios tem que ser alterada. Coisa substancialmente diversa se passa com os vícios de facto que não sejam notórios, que se limitem a ser erros de apreciação probatória mas que não sejam patentes, óbvios, pela simples leitura da decisão. Implicam, para nos apercebermos deles, que seja apresentada (produzida em recurso) prova que os demonstre. Aqui já o recorrente tem que apontar de forma especificada e concreta erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Trata-se da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal. Aqui já ao recorrente se impõe o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, não lhe basta alegar que o vício existe, tem que o identificar muito clara e concretamente por referência ao facto concreto (provado ou não provado), tem que dizer qual a prova que demonstra a existência do erro e tem que – pela racionalidade – demonstrar que esse erro implica necessariamente que a prova tem que ser apreciada de forma diferente. Firmou-se doutrina e jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus de impugnação especificada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 que veio consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Podemos portanto concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais: a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal); Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E aqui o impõe significa “impõe” e não apenas “permite”, “possibilita” ou “consente”. A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico. Assim é profundamente errada a ideia muito comum de que a existência de gravações da prova oral implica que basta a existência de um recurso para que o tribunal de recurso tenha que apreciar essa prova gravada mais os documentos, sem qualquer esforço do recorrente. O tribunal de recurso não tem que reapreciar a causa e toda a prova que foi produzida nos autos! O tribunal de recurso só tem que apreciar o recurso nos moldes em que o recorrente o coloca (para além dos vícios de conhecimento oficioso, naturalmente). Se o recorrente o coloca de forma deficiente – se não demonstra a existência de um “erro de revista alargada” do artigo 410º do diploma nem impugna de forma especificada nos termos do artigo 412º - o tribunal de recurso simplesmente e por imposição legal não pode alterar a matéria de facto (artigo 431º do C.P.P.). Em resumo, um recurso não é um somatório de argumentos que, por muito interessantes que sejam, não sigam as supra indicadas vias e pela demonstração de erros óbvios ou demonstráveis por prova que tem que ser, laboriosamente, preparada e apresentada pelo recorrente. Destarte a apresentação de muitos argumentos e a referência a meios de prova produzidos em audiência de julgamento, meramente referida en passant ou de forma genérica e sem a devida concretização como exigido pelo acórdão de uniformização de jurisprudência supra citado é uma actividade votada ao fracasso. Em concreto os recorrentes não cumprem qualquer dos requisitos de impugnação à luz da previsão do artigo 412º do C.P.P.. Nem indicam os factos que se integram numa eventual impugnação, nem indicam especificadamente prova que pretenda sustentar essa sua impugnação e não fazem a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal) nem, alternativamente, identificam a transcrição das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados). E também não se evidenciam nem os recorrentes os apontam, vícios de facto a inserir na previsão do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.. Os recorrentes limitam-se a negar a prática de facto, o que corresponde a uma manifesta improcedência quanto à pretensão de alteração dos factos povados que, face à supra referida previsão do artigo 431º do C.P.P. se devem considerar fixados. * B.2.2 – Da incorrecta apreciação do tipo penal pois que os arguidos não quiseram causar prejuízo ao Estado. A este propósito o arguido invoca expressis verbis que não “quiz causar prejuízo ao Estado Português” (conclusão 18ª), nem “tão pouco causou prejuízo ao Estado, uma vez que procedeu ao pagamento do valor devido em termos de IRC ao Estado Português” e que o dito Estado “não teve, nem sofreu qualquer prejuízo, visto que o imposto devido foi entregue pela Arguida ao Estado Português” (conclusões 19ª e 20ª), daí retirando, embora não de forma explícita, que não deve ser punido – presumimos nós pela referência ao artigo 103º do RGIT e à invocação de ilegalidade – por o tipo penal imputado exigir uma intenção específica de causar prejuizo ao Estado. E diversamente a Digna Procuradora da República que afirmou nas suas conclusões que: 7.ª O tipo legal exige um dolo específico, intenção de obtenção de vantagens patrimoniais (suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias), Face à letra do artigo 103º, nº 1 do RGIT constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas “que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”. A conduta imputada aos arguidos por fraude fiscal concretizou-se através de “ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável” e subsumiu-se à alínea a) do referido preceito que se acaba de citar. Temos pois que nem se exige um dolo específico (intenção de causar prejuízo ao Estado) nem um resultado da conduta (um efectivo prejuízo), não estando nós perante um crime de resultado. Bem ao invés estamos perante um crime de perigo e de mera actividade. No dizer do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (de 02-10-2013, sendo Rel. o Desemb. Jorge Dias): 1. O crime de fraude fiscal é um crime de perigo em que o bem jurídico protegido é a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social e é um crime de «resultado cortado», pois a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima não é elemento do tipo. Basta apenas que as condutas sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem; E para a sua consumação basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra. Crime de resultado cortado, como afirma a Digna Procuradora. A invocação de que o Estado “acabou por não ter prejuízo” é irrelevante, pois que só o seria até ao final do prazo para apresentação da declaração fiscal. A posterior apresentação e pagamento só podem ser atendidos como circunstância atenuante comum/geral. Destarte é improcedente a invocada inexistência de ilicitude na conduta dos arguidos. * B.2.3 – Os arguidos não actuaram com dolo, reclamam os recorrentes. Este motivo de inconformidade do recurso dos arguidos assenta numa afirmação de inexistência de prova de um facto que está provado no facto 21) de forma clara e expressa (“21. Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”). Este facto não pode ser simplesmente negado pelos recorrentes. Tem que ser impugnado nos termos ditos supra. Não o tendo sido, a simples negação é uma inutilidade. O que não invalida que se aprecie outra questão suscitada pelos recorrentes na sua conclusão 36), que «Resulta dos factos dados como não provados que os Arguidos actuando em nome da sociedade Arguida, referente ao exercicio de 2014, quiseram causar prejuízo ao Estado Português». Ora não há aqui qualquer contradição entre este facto não provado e os factos provados, designadamente o facto 21), algo que nos parece estar na base da insatisfação dos recorrentes, já que o facto não provado se centra na “intenção de causar prejuízo ao Estado”, elemento que não ganha relevo no dolo deste tipo penal. * B.2.5 – Afirmam os recorrentes que a condenação dos arguidos é inconstitucional por violar várias disposições da Constituição da República Portuguesa. Em termos conclusivos os recorrentes resumem a sua insatisfação desta forma: 40) O (Tribunal) a Meritíssima Juiza com a Decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Arguidos e, aqui Recorrentes, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não ter em consideração a inexistência de dolo por parte dos Arguidos e o pagamento do imposto devido ao Estado; Dada a insuficiência para apreender neste trecho das razões dos recorrentes havemos de ir buscar suporte argumentativo às motivações e destas retira-se que os recorrentes entendem o seguinte: Acresce que, a Decisão recorrida viola o disposto no artigo 208º da C. R. P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na Lei”. E, a Decisão recorrida viola do disposto no artigo 207º da C. R. P., uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”. Viola também a Decisão recorrida o disposto no artigo 205º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados”. Ora, neste caso essa circunstância não se verifica. Isto é, o (Tribunal) o Meritíssimo Juiz com a Decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Arguidos e, aqui Recorrentes, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não ter em consideração a inexistência de dolo por parte dos Arguidos e o pagamento do imposto devido ao Estado. Dúvidas não existem de que a condenação dos Arguidos e consequente condenação dos mesmos é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Dado que esta norma constitucional dispõe: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Ora, tem forçosamente de ser revogada a Decisão de fls., nos termos do artigo 412º do C.P.P. Dúvidas não existem de que assim, os Arguidos, aqui Recorrentes, não foram tratados de forma igual a outros cidadãos perante a lei. Como é claro esta parte do recurso não tem objecto. Os recorrentes limitam-se a afirmar, desde logo, que a decisão recorrida é “inconstitucional” e não que determinada ou determinadas interpretações jurídicas de normas – e que normas – devem ser tidas por inconstitucionais. Porque não há decisões inconstitucionais! Por outro lado os recorrentes não apontam ou alinham os factos e as razões que lhes permitiram as conclusões quanto à invocada inconstitucionalidade de quatro artigos da C.R.P, designadamente os artigos 13º, 205º, 207º e 208º. Em concreto, qual a falha de fundamentação da sentença recorrida, qual o princípio “constitucional” violado, de que forma foi violado o direito de defesa dos arguidos, como se materializou a violação do princípio da igualdade? O tribunal nada tem de que possa conhecer e incumbia aos recorrentes trazerem aos autos, em devida forma e substância, as razões das suas divergências, algo que aqui claramente não fizeram. Nada há, pois, de que se possa conhecer pelo que o recurso é, nesta parte, rejeitado. *** C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto. Sem tributação. Évora, 17 de Dezembro de 2020 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado) João Gomes de Sousa Nuno Garcia |