Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22/19.8T8BNV.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
PERICULUM IN MORA
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – A situação de perigo que releva, para efeitos do preenchimento do requisito do periculum in mora de que depende o decretamento da tutela cautelar, deverá ser atual e iminente;
II – Visando a providência requerida – a entrega de determinados bens à requerente – evitar que a demora inerente à normal tramitação de ação, destinada a obter a restituição desses bens, venha a impedir o efeito útil da decisão a proferir, não se verifica a atualidade do periculum in mora se a requerente, tendo tomado conhecimento de que a 1.ª requerida não lhe restituiu os bens na sequência da resolução dos contratos de compra e venda que operou em meados de 2016, bem como que esses bens eram utilizados pela 2.ª requerida desde 2015, se conformou com estes factos, só tendo intentado o presente procedimento cautelar cerca de dois anos e meio após a extinção daqueles negócios, inexistindo qualquer elemento superveniente suscetível de alterar a descrita situação, designadamente indiciando que a lesão possa vir a concretizar-se.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

BB, Lda. requereu, no Juízo Local Cível de Benavente, contra CC, Lda. e DD, Lda., procedimento cautelar comum, pedindo se dispense o contraditório das requeridas e se decrete: A) a entrega e o depósito à ordem da requerente de todos os bens descritos nas faturas n.ºs 07/001656, 07/001767 e 2009/0236, que se encontram na sede das requeridas, autorizando a requerente a proceder ao levantamento dos referidos bens e ficando responsável pela guarda e conservação dos mesmos até decisão final a proferir no processo principal; subsidiariamente, B) o arresto de todos os bens descritos nas faturas n.ºs 07/001656, 07/001767 e 2009/0236, que se encontram na sede da 1.ª requerida, para garantia do pagamento do crédito reclamado pela requerente.
A justificar o pedido, alega, em síntese, o fornecimento não integralmente liquidado dos produtos discriminados nas faturas que junta, efetuado à 1.ª requerida no exercício da sua atividade comercial, com reserva de propriedade até integral pagamento do respetivo preço, mercadoria que esta requerida vem utilizando, apesar de não ter cumprido o acordado quanto ao pagamento do respetivo preço, encontrando-se igualmente em dívida duas notas de débito relativas a despesas bancárias da responsabilidade da 1.ª requerida, em conformidade com acordo entre ambas efetuado; acrescenta que a 1.ª requerida cessou os contactos com a requerente e mantém-se incontactável desde meados de 2016, na sequência de resolução dos contratos operada extrajudicialmente pela requerente, não tendo restituído os bens, os quais permanecem na respetiva sede, onde são utilizados pela 2.ª requerida, a qual passou em outubro de 2015 a desenvolver a respetiva atividade naquele local, apesar de se manter a estrutura anteriormente existente, com os mesmos funcionários, equipamentos e nome do ginásio, sendo o sócio gerente da 1.ª requerida atualmente sócio da 2.ª requerida, da qual é sócia a mãe deste; acrescenta que a 1.ª requerida tem dívidas avultadas e não presta contas desde 2016, tendo deixado da pedir à requerente assistência para os equipamentos fornecidos, nos termos anteriormente acordados, pelo que estes se encontram sujeitos a grande desgaste, não demonstrando pretender devolver tais bens, mas sim deles se apoderar através da 2.ª requerida, como tudo melhor consta do requerimento inicial.
Por despacho de 08-01-2019, foi admitida a requerida cumulação de providências cautelares – providência inominada e providência de arresto – e dispensado o contraditório das requeridas.
Produzida a prova apresentada pela requerente, foi proferida decisão que indeferiu o decretamento de qualquer das providências requeridas e condenou a requerente nas custas.
Inconformada, a requerente interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que decrete a providência inominada requerida, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. (…)
84. Consideramos assim que, mesmo com base na matéria de facto indiciariamente dada como provada pelo Tribunal “a quo” se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 362.º e no artigo 368.º do C.P.C.
85. Resulta, em nosso entendimento, que o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação dos normativos constantes dos artigos 362.º e 368.º do C.P.C.
86. Por conseguinte, a decisão da Meritíssima Juíza “a quo” deverá ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o procedimento cautelar não especificado deduzido pela recorrente e ordenando-se, em consequência, entrega e o depósito à ordem da recorrente de todos os bens descritos nas facturas n.º 07/001656, n.º 07/001767 e n.º 2009/0236, que se encontram actualmente na sede das recorridas, sita na R…, Estrada Nacional, …, Salvaterra de Magos, autorizando a Recorrente a proceder ao levantamento dos referidos bens, ficando responsável pela guarda e conservação dos mesmos até decisão final a proferir no processo principal.»
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- do preenchimento dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados indiciariamente apurados em 1.ª instância:
A. A Requerente dedica-se à importação, comercialização e distribuição de equipamentos desportivos, roupa desportiva, suplementos dietéticos, prestação de serviços, ginásio, consultadoria, gestão de conexos e formação.
B. A Requerente é a única empresa distribuidora oficial de todos os produtos da marca Panatta Sport em Portugal e Angola, desde 1997.
C. Por sua vez, as Requeridas dedicam-se a actividades de ginásio, prestando serviços desportivos de ginásio, musculação, cardiofitness etc., aulas de grupo, compreendendo actividades de manutenção física, proporcionadas em ginásio.
D. A Requerente, na qualidade de dona e legítima proprietária de todos os bens – equipamento de ginásio – que constam nas facturas infra discriminadas, forneceu os mesmos à 1.ª Requerida que os solicitou no exercício da sua actividade:
• Factura n.º 07/001656, datada de 07.08.2007, no valor de 4.787,97€
• Factura n.º 07/001767, datada de 29.12.2007, no valor de 2.800,00€
• Factura n.º 2009/0236, datada de 15.03.2010, no valor de 11.020,46€
E. O tipo de bens e o respectivo preço, que constam nas facturas supra descritas, foram acordados entre as partes.
F. Quanto às condições de venda, uma vez que na data em que todos os bens foram colocados nas instalações da 1.ª Requerida esta não tinha disponibilidade para a sua liquidação imediata, as partes acordaram, previamente, que o pagamento seria efectuado até 180 dias após a emissão da respectiva factura, tendo ainda ficado acordado que a Requerente reservava a propriedade de todos os bens constantes nas facturas até integral pagamento das mesmas, aliás como consta nas próprias facturas.
G. Acordaram ainda as partes (Requerente e 1.ª Requerida) que:
- Todas as assistências técnicas (quer efectuadas nos produtos constantes das facturas aqui em causa, quer efectuadas nos produtos constantes de outras facturas) seriam liquidadas a pronto pagamento, pelo que os valores entregues pela Requerida seriam canalizados primeiro para o pagamento das notas de débito ou facturas resultantes dessas assistências e só depois serviriam para liquidar facturas em atraso.
- Todas as despesas bancárias e juros bancários suportados pela Requerente por força de cheques ou letras emitidos pela 1.ª Requerida seriam liquidados por esta a pronto pagamento após a emissão da respectiva nota de débito, pelo que os valores entretanto entregues pela 1.ª Requerida seriam primeiro canalizados para o pagamento das notas de débito resultantes despesas e juros e só depois serviriam para liquidar facturas em atraso.
H. A 1.ª Requerida, apesar de ter recebido toda a mercadoria, que naturalmente vem utilizando na prossecução da sua actividade, não liquidou a totalidade do preço acordado para os respectivos equipamentos, preço esse que consta das referidas facturas.
I. Tendo apenas liquidado, por conta da factura n.º 07/001656, a quantia de 4.787,97€, encontrando-se em dívida o remanescente da factura no valor de 925,08€ e a ainda totalidade das restantes facturas.
J. Entretanto, a Requerente emitiu as seguintes Notas de Débito que tiveram origem em despesas bancárias suportadas pela Requerente por força do desconto de letras não liquidadas por parte da 1.ª Requerida:
• Nota de Débito n.º 2008/0006, datada de 14.09.2008, no valor de 283,32€
• Nota de Débito n.º 2008/0009, datada de 03.12.2008, no valor de 101,30€
L. A 1.ª Requerida não liquidou, no prazo acordado, pronto pagamento, o valor correspondente às referidas Notas de Débito.
M. Assim, a 1.ª Requerida, porque não liquidou os valores em dívida nos prazos acordados, ficou devedora à Requerente do valor global de €15.130,16
N. A 1.ª Requerida apesar de sempre reconhecer o valor em dívida alegava que tinha bastantes problemas financeiros, mas que em breve resolveria a situação, servindo tais desculpas para protelar o seu pagamento.
O. A Requerente sempre tentou, ao longo dos anos, resolver a questão extrajudicialmente, todavia sem qualquer sucesso.
P. A Requerente, por carta registada com aviso de recepção, datada de 11 de Maio de 2016, tendo a 1.ª Requerida recebido a mesma em 12 de Maio de 2016, interpelou-a para que esta procedesse ao pagamento, no prazo máximo de 15 dias, do valor correspondente às facturas e notas de débito vencidas, sendo que, findo tal prazo, considerava-se definitivamente incumpridos e resolvidos, sem qualquer outra interpelação, todos os contratos celebrados, com reserva de propriedade, referentes às facturas em causa.
Q. A 1.ª Requerida, apesar de ter recebido a referida carta, nem sequer se dignou a responder ou a contactar a Requerente fosse para o que fosse.
R. A 1.ª Requerida mantém todos os bens – constantes das facturas em causa nos autos – na sua sede (R…, Estrada Nacional, …, Salvaterra de Magos).
S. A 1.ª Requerida mantém-se incontactável, não atende telefone nem responde às cartas.
T. Nas mesmas instalações da 1.ª Requerida, e onde continua a ser a sua sede, passou, desde Outubro de 2015, a funcionar uma outra sociedade – a 2.ª Requerida DD, LDA.
U. Todavia, toda a estrutura, todos os bens da 1.ª Requerida, sendo que inclusive o nome do ginásio se mantém inalterado.
V. Todos os equipamentos de ginásio fornecidos pela Requerente à 1.ª Requerida, estão a ser usados, desconhecendo a que título, pela 2.ª Requerida.
W. O sócio gerente da 1.ª Requerida, EE, é agora também o novo gerente da sociedade 2.ª Requerida, sendo que a outra sócia é precisamente a sua mãe.
X. A 1.ª Requerida, não fazendo inclusive a prestação de contas desde o ano 2016.
Y. Uma vez que existe entre a 1.ª Requerida e a Requerente o presente diferendo, aquela deixou de pedir assistência para os equipamentos marca Panatta, tendo optado por pedir assistência directamente à marca, em Itália.
Z. Os bens em causa são bens de utilização diária e que sofrem grande desgaste.
AA. Pode a requerida trocar esses bens e equipamentos de ginásio por outros de outra marca, perdendo assim a Requerente o rasto a tais equipamentos.

2.1.2. Factos considerados não apurados em 1.ª instância:
1. Além do referido em U, também todos os funcionários são os mesmos.
2. A 1.ª requerida não tem qualquer actividade.
3. A 1.ª Requerida tem dívidas avultadas a credores e à banca, nomeadamente ao BCP, aliás tais dívidas eram usadas como argumento para ir protelando o pagamento à Requerente.
4. A 1.ª Requerida está numa situação de insolvência.
5. Assim, os bens em causa não têm tido qualquer assistência, ou pelo menos, não tem tido uma assistência adequada e oficial.
6. Não tendo, como não têm tido, tais bens a necessária e adequada assistência técnica, face ao permanente e diário desgaste de que são alvo, em pouco tempo irão deteriorar-se chegando ao ponto de deixar de ter qualquer valor comercial.
7. Face à antiguidade das máquinas e à dificuldade em conseguir uma assistência adequada com peças originais.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na decisão recorrida, sustentando que os factos constantes dos pontos 2, 3, 4, 5 e 6 de 2.1.2., considerados não apurados, devem ser aditados à matéria indiciariamente apurada.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância na parte relativa aos indicados pontos da matéria de facto, com vista a apurar se os concretos factos indicados pela recorrente foram incorretamente julgados não apurados, devendo ser acrescentados à matéria indiciariamente assente.
Os factos que a recorrente sustenta terem sido indevidamente considerados não apurados, devendo ser julgados indiciariamente assentes, têm a redação seguinte:
2. A 1.ª requerida não tem qualquer actividade.
3. A 1.ª Requerida tem dívidas avultadas a credores e à banca, nomeadamente ao BCP, aliás tais dívidas eram usadas como argumento para ir protelando o pagamento à Requerente.
4. A 1.ª Requerida está numa situação de insolvência.
5. Assim, os bens em causa não têm tido qualquer assistência, ou pelo menos, não tem tido uma assistência adequada e oficial.
6. Não tendo, como não têm tido, tais bens a necessária e adequada assistência técnica, face ao permanente e diário desgaste de que são alvo, em pouco tempo irão deteriorar-se chegando ao ponto de deixar de ter qualquer valor comercial.
Analisando estes pontos, desde logo se verifica que os elementos constantes do ponto 3 – a 1.ª Requerida tem dívidas avultadas a credores e à banca, nomeadamente ao BCP, aliás tais dívidas eram usadas como argumento para ir protelando o pagamento à Requerente – e do ponto 4 – a 1.ª Requerida está numa situação de insolvência – de 2.1.2. não configuram matéria de facto, antes se traduzindo em conclusões eventualmente baseadas em factos que extrapolam a respetiva redação, o que impede se verifique se os mesmos resultam ou não da prova produzida.
Como tal, considerando que os elementos em causa não constituem matéria de facto, antes envolvendo uma apreciação sobre factos não elencados, assim assumindo natureza conclusiva, não há que determinar o respetivo aditamento à factualidade indiciariamente apurada, mostrando-se desnecessária a reapreciação dos meios de prova indicados pela recorrente.
Quanto ao ponto 2 – a 1.ª requerida não tem qualquer atividade –, decorre da fundamentação da decisão de facto que não foi produzida prova que permitisse considerar indiciariamente assente o aludido facto, motivo pelo qual foi julgado não apurado.
Discordando de tal entendimento, sustenta a apelante que decorre dos factos constantes das alíneas T a W de 2.1.1., considerados indiciariamente assentes, que a 1.ª requerida deixou de ter atividade, passando o ginásio a ser explorado pela sociedade 2.ª requerida, pelo que entende dever o facto constante do ponto 2 de 2.1.2. ser considerado apurado; acrescenta que decorre dos meios de prova que elenca – o depoimento das testemunhas António B… e Vítor C…, o documento n.º 8 junto com o requerimento inicial e o vídeo que indica – que na sede da 1.ª requerida labora a sociedade 2.ª requerida, a qual utiliza as instalações, as máquinas e o nome do ginásio; concluiu que a conjugação dos indicados factos, considerados indiciariamente assentes, com estes meios probatórios, permite considerar apurado o facto constante do ponto 2 de 2.1.2..
Os factos considerados indiciariamente apurados sob as alíneas T a W de 2.1.1. têm a redação seguinte:
T. Nas mesmas instalações da 1.ª Requerida, e onde continua a ser a sua sede, passou, desde Outubro de 2015, a funcionar uma outra sociedade – a 2.ª Requerida DD, LDA.
U. Todavia, toda a estrutura, todos os bens da 1.ª Requerida, sendo que inclusive o nome do ginásio se mantém inalterado.
V. Todos os equipamentos de ginásio fornecidos pela Requerente à 1.ª Requerida, estão a ser usados, desconhecendo a que título, pela 2.ª Requerida.
W. O sócio gerente da 1.ª Requerida, EE, é agora também o novo gerente da sociedade 2.ª Requerida, sendo que a outra sócia é precisamente a sua mãe.
Analisando a alegação da recorrente, verifica-se que os factos que mesma pretende demonstrar, com a pretendida reapreciação dos indicados meios de prova, foram já considerados indiciariamente assentes, pelo que se mostra desnecessária tal reapreciação, cumprindo averiguar se esses factos, constantes das alíneas T a W de 2.1.1., impõem se considere apurado o facto em apreciação, isto é, que a 1.ª requerida não tem qualquer atividade, conforme defende a apelante.
Como tal, cumpre averiguar se o indicado acervo factual, considerado indiciariamente assente, permite inferir, através de presunção judicial, que a 1.ª requerida não tem qualquer atividade.
Consistem as presunções judiciais em ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, conforme noção constante do artigo 349.º do Código Civil.
Em anotação a este preceito, explica José Lebre de Freitas (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 434) que “legal ou judicial, a presunção baseia-se sempre numa regra de experiência, que estabelece a ligação entre o facto conhecido que está na base da ilação e o facto desconhecido que dele é derivado: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, este é dado como assente quando o primeiro é provado”. As presunções judiciais assentam no raciocínio do julgador e inspiram-se, como afirmam Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 312), “nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana”.
Analisando o acervo factual supra indicado, considerado indiciariamente demonstrado pela prova produzida, verifica-se que a 1.ª requerida deixou de explorar o ginásio que instalou no local onde se situa a sua sede, o qual passou a ser explorado através de outra empresa, cujo gerente é o sócio gerente da 1.ª requerida e da qual é sócia a mãe deste, sendo certo que se mantêm no local os bens anteriormente fornecidos pela requerente e os demais bens pertencentes à 1.ª requerida, os quais são utilizados pela 2.ª requerida. Esta atuação configura um comportamento concludente, do qual decorre que a 1.ª requerida deixou de exercer a atividade de exploração do ginásio em causa, a qual passou a ser exercida por outra sociedade, gerida pelo mesmo gerente daquela, pessoa singular que assume a dupla qualidade de gerente de ambas as sociedades, prosseguindo através da 2.ª requerida a atividade anteriormente exercida no local pela 1.ª requerida.
Porém, daqui não decorrem elementos que permitam concluir que a 1.ª requerida não exerce qualquer outra atividade ou a mesma atividade noutro local, antes se desconhecendo a sua real situação, o que impede se considere demonstrado, face às regras de experiência, designadamente ao princípio da normalidade, que deixou de exercer qualquer atividade.
No que respeita aos pontos 5 – assim, os bens em causa não têm tido qualquer assistência, ou pelo menos, não tem tido uma assistência adequada e oficial – e 6 – não tendo, como não têm tido, tais bens a necessária e adequada assistência técnica, face ao permanente e diário desgaste de que são alvo, em pouco tempo irão deteriorar-se chegando ao ponto de deixar de ter qualquer valor comercial – de 2.1.2., extrai-se da fundamentação da decisão de facto que foram considerados não apurados pelos motivos seguintes:
A propósito da assistência aos equipamentos, referiu a testemunha Rui G…, que chegou a dar assistência aos mesmos, mas que já não o faz há mais de 8/10 anos. Tratam-se de máquinas de uso diário, e como tal, de grande desgaste. A testemunha António B…, referiu que, através da marca Panatta, teve conhecimento que a 1.ª requerida tentou pedir directamente à marca assistência. Já não o fizeram a si. Referiu também que em causa estão máquinas de uso diário, e como tal de grande desgaste, e que como tal tem a certeza que as peças já não são as originais, o que desvaloriza a máquina.
Ambos disseram também que, tendo conhecimento, como o tem o sócio das requeridas, facilmente consegue retirar estas máquinas do ginásio, sendo que, a partir do momento que tal suceda, já não as vão conseguir encontrar.
Face ao conhecimento directo manifestado por estas testemunhas, resultam provados os factos dos pontos Y, Z e AA.
Quanto aos factos constantes dos pontos 5, 6 e 7 resultam não provados porque, o que se retira do depoimento destas testemunhas é que, a assistência não tem sido prestada pela requerente. Agora, não tendo as mesmas contacto com os equipamentos, nem com alguém que tenha tido contacto com os mesmos, naturalmente que, ainda que indiciariamente, não podem dizer que não tem sido prestada uma assistência adequada, ou que esta não tem sido prestada de todo, ou que tem havido uma alteração das peças. A prova, ainda que indiciária, não se pode fazer com base em suposições. Não existindo assim uma sustentação para tais conclusões, resultam os referidos factos constantes dos pontos 5 a 7, não provados.
Discordando deste entendimento, defende a recorrente que os factos constantes das alíneas B, Y, Z e AA de 2.1.1., considerados indiciariamente apurados, conjugados com o depoimento prestado pelas testemunhas António B… e Rui G…, impõem se considerem apurados os factos constantes dos pontos 5 e 6 de 2.1.2..
Os factos considerados indiciariamente apurados sob as alíneas B, Y, Z e AA de 2.1.1. têm a redação seguinte:
B. A Requerente é a única empresa distribuidora oficial de todos os produtos da marca Panatta Sport em Portugal e Angola, desde 1997.
Y. Uma vez que existe entre a 1.ª Requerida e a Requerente o presente diferendo, aquela deixou de pedir assistência para os equipamentos marca Panatta, tendo optado por pedir assistência directamente à marca, em Itália.
Z. Os bens em causa são bens de utilização diária e que sofrem grande desgaste.
AA. Pode a requerida trocar esses bens e equipamentos de ginásio por outros de outra marca, perdendo assim a Requerente o rasto a tais equipamentos.
Reapreciados os depoimentos prestados pelas duas indicadas testemunhas, verifica-se que deles não decorre que os equipamentos em causa se encontrem sem qualquer assistência, pelo que, encontrando-se indiciariamente apurado que a 1.ª requerida optou por passar a pedir assistência técnica diretamente à marca, em Itália, deixando de solicitar tais serviços à requerente e desconhecendo-se se a empresa italiana os prestou e em que medida, não poderão ser considerados indiciariamente assentes os factos constantes dos pontos 5 e 6 de 2.1.2..
Improcede, assim, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.2.2. Preenchimento dos requisitos do decretamento da providência cautelar
Está em causa, no presente recurso, o decretamento de providência cautelar que determine a entrega à requerente dos bens descritos nas faturas n.ºs 07/001656, 07/001767 e 2009/0236, que se encontram na sede das requeridas, autorizando-a a proceder ao respetivo levantamento e ficando responsável pela guarda e conservação dos mesmos até decisão final a proferir no processo principal, decretamento esse que foi rejeitado pela decisão recorrida, que concluiu não se encontrarem preenchidos os requisitos de que depende o deferimento do pedido formulado.
Considerou a decisão recorrida que resulta da matéria de facto indiciariamente apurada a celebração, entre requerente e 1.ª requerida, de contratos de compra e venda com reserva de propriedade dos equipamentos e máquinas identificados nas três faturas a que alude a alínea D de 2.1.1., os quais vieram a ser declarados resolvidos pela vendedora requerente perante o incumprimento definitivo pela contraparte, assistindo-lhe o direito à restituição dos bens, pelo que se entendeu verificada a probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente e tido por ameaçado, o que não vem posto em causa na apelação.
A apelante discorda da decisão proferida pela 1.ª instância, na parte em que foi rejeitado o decretamento da providência requerida por se ter entendido não se extrair da factualidade indiciariamente apurada o fundado receio, que invocara, de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação ao aludido direito à restituição dos bens, motivo pelo qual se concluiu não se encontrar preenchido um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar.
No que respeita aos motivos pelos quais se considerou não preenchido o indicado requisito, extrai-se da decisão recorrida o seguinte:
(…) Perante estes factos, resulta que, a 1.ª requerida, tem uma dívida, para com a requerente, há mais de 10 anos, e não demonstra, nem nunca demonstrou, qualquer intenção de efectuar o respectivo pagamento. Vem protelando a resolução deste diferendo, talvez até aproveitando-se da boa vontade da requerente. E nem mesmo, a carta que lhe foi remetida pela requerente, em 2016, fez com que cumprisse a sua obrigação, inclusivamente fazendo a entrega dos bens.
Deixou de atender o telefone e de responder a cartas.
Perante este comportamento, revela-se a 1.ª requerida, uma verdadeira incumpridora.
Porém, importa salientar que, em causa, e dada a resolução do contrato, está o direito de propriedade da requerente sobre os bens e o direito à sua restituição, e consequentemente, porque estamos no âmbito de um procedimento cautelar, o justo receio de lesão grave e dificilmente reparável deste direito.
Importa assim verificar se existe alguma ameaça a este direito.
Provado resultou que, a partir de 2015, na sede da 1.ª requerida passou a estar outra sociedade, com o mesmo objecto, a fazer uso dos equipamentos.
Porém, o sócio é o mesmo.
Como resultou provado, toda a estrutura, todos os bens da 1.ª requerida, sendo que, inclusivamente o nome do ginásio se mantem inalterado. – cf. ponto U. Todos os equipamentos de ginásio fornecidos pela requerente, estão a ser usados pela 2.ª requerida – cf. ponto V.
Contrariamente ao alegado pela requerente, não consideramos que daqui resulte um ocultar do património, ou um esconder os bens em causa com o intuito de esvaziar o seu património.
O que aqui releva são os equipamentos e máquinas que foram vendidos à 1.ª requerida, e quanto a estes continuam exactamente no mesmo local. E a serem usados.
(…) Os bens foram vendidos para o ginásio, e continuam no ginásio. A 1.ª requerida, apesar do incumprimento de longos anos, não os retirou do local e não deixou de lhes dar o uso para o qual foram comprados, ou de proporcionar o gozo dos mesmos.
Depois, importa salientar que, o sócio da 2.ª requerida, é o mesmo. Portanto, ainda que estejam a ser utilizados pela 2.ª requerida, não estamos a falar de um terceiro, que seja totalmente alheio, ou desconhecedor do negócio que foi realizado com a requerente.
Não presta contas desde 2016, no entanto, desconhecemos se continua a exercer alguma actividade, até porque se desconhece a sua, actual, situação financeira.
A este propósito, alegava a requerente a existência de dívidas avultadas, por parte da 1.ª requerida, e consequentemente, o receio de que os bens que vendeu viessem a ser penhorados por outros credores ou que viesse a ser decretada a insolvência.
Apesar de não ter logrado provar a alegada situação económica difícil, esclarecemos que, face à cláusula de reserva de propriedade, a sua posição se encontra protegida, atento o disposto no art.º 342.º do CPC e art.º 104.º do CIRE.
Revertendo à matéria de facto provada.
Resultou provado, que deixou de ser pedida assistência à requerente – cf. ponto Y. No entanto, é também lógico que tal tenha sucedido, dado que a 1.ª requerida está ciente de que tem uma obrigação para com a requerente. Porém, o facto de não ser a requerente a dar assistência aos bens, não significa que esta não esteja a ser dada, ou que não esteja a ser dada correctamente ou de forma adequada.
O que, também contrariamente ao alegado, não nos permite concluir que, os equipamentos percam o seu valor, por não lhes estar a ser dada assistência pela requerente.
Resulta também que, os bens em causa são bens de utilização diária e que sofrem grande desgaste – ponto Z. Mas este desgaste, já ocorre, naturalmente, há 10 anos, ou seja desde que começaram a ser utilizadas e que se encontram no ginásio, nada há que nos permita concluir que, de um momento para o outro, percam o seu valor.
Feita esta apreciação, cumpre-nos dizer o seguinte:
A revolta da requerente é perfeitamente perceptível e justificada perante a postura que vem sendo assumida pela 1.ª requerida, de incumpridora. Mas os procedimentos cautelares têm uma finalidade muito específica. E o certo é que, face ao que resultou provado, não conseguimos concluir pela existência de um justo receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito de propriedade sobre os bens vendidos.
Se a outra sociedade foi criada para fugir a dívidas ou esconder património, como é alegado, não foi criada para esconder os bens que foram vendidos à 1.ª requerida, porque estes continuam no mesmo local: no ginásio. E continuam, da mesma forma a ser utilizados. Depois, além de se desconhecer se ocorreu algum negócio entre as requeridas, relativamente aos bens, estamos a falar do mesmo sócio, ou seja, as instalações e as máquinas não estão a ser utilizadas por terceiros.
Resultou provado que, pode a requerida trocar esses bens e equipamentos de ginásios por outros de outra marca, perdendo a requerente o rasto a tais equipamentos. Efectivamente pode fazê-lo. Como já o podia ter feito. No entanto, nada resultou provado que nos permita concluir que o vá, de facto, fazer, ou que tenha intenção de o fazer, por exemplo, porque o ginásio esteja para fechar e os bens estejam a ser retirados.
Veja-se que, a requerente remeteu uma carta à 1.ª requerida, exigindo o pagamento da divida, e resolvendo o contrato, em 2016. De Maio de 2016 a Fevereiro de 2019, passaram quase 3 anos, e os bens continuam no mesmo local, a ser-lhes dado exactamente o mesmo uso. Pelo que, não é lógica a conclusão da requerente de que, a requerida pode fazer desaparecer os bens. Se o quisesse fazer, já o tinha feito, perante a ameaça da requerente recorrer às vias judiciais, como o fez constar da carta.
Temos que acrescentar que, ficou o Tribunal esclarecido sobre o facto de estarem em causa apenas uma parte, pequena, dos bens existentes no ginásio, e que a sua falta não faz o ginásio parar. Mas certo é que, a 1.ª requerida, ou a 2.ª requerida, têm que necessitar destes bens, para ainda lhes continuarem a dar a uso.
A propósito do justo receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito (…)
Não se exige uma certeza inequívoca quanto à existência da situação de perigo, aliás dificilmente comprovada em processos com as características e objectivos dos procedimentos cautelares, bastando por isso, mas sendo condição essencial, que se mostre plausível e racionalmente fundado esse pressuposto.
É exactamente a referida ameaça do direito da requerente, e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, que não se verifica na situação concreta.
Existe da parte da 1.ª requerida um protelar do pagamento da divida, ou a intenção mesmo de não a querer pagar. Mas por outro lado também, um deixar as coisas tal como sempre estiveram, não tendo ocorrido, relativamente aos bens vendidos, qualquer alteração, ou não recaindo, sobre os mesmos qualquer perigo.
Voltamos a salientar, até pela sua importância que, está outra sociedade na mesma sede, a utilizar os bens. Mas está lá desde 2015, sendo o sócio exactamente o mesmo. E apesar da carta que foi remetida em 2016, passados quase três anos, os equipamentos e as máquinas, continuam exactamente no mesmo local e a ser-lhes dada, exactamente a mesma utilização. Não fugiram os representantes das requeridas com os mesmos, e nem sequer os trocaram, ou resulta que tenham intenção de o fazer, como não resulta que lhes estejam a dar uma utilização imprudente. Aliás, muito pelo contrário, dado o tempo de compra dos mesmos. Como não resulta que, o ginásio vá fechar, ou que estejam a ser vendidos ou trocados os bens existentes nos mesmos.
Não se verifica qualquer ameaça ao direito de propriedade da requerente sobre os bens vendidos. A situação, mantem-se desde 2010, sem qualquer alteração quanto aos equipamentos e máquinas, que estão exactamente no mesmo local, e a serem usados pela mesma pessoa.
Pelo que, concluímos não se verificar o segundo requisito, de lesão séria e dificilmente reparável do direito de propriedade da requerente.
Defende a recorrente, na apelação, que se mostra preenchido o aludido requisito do decretamento da providência requerida.
No entanto, a improcedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com a consequente não alteração da factualidade considerada indiciariamente apurada, importa se considere prejudicada a apreciação da questão de direito, na parte em que a recorrente baseia a verificação de tal pressuposto em matéria de facto não apurada, isto é, fundamenta a solução que preconiza no aditamento à matéria indiciariamente assente dos factos constantes dos pontos 2, 3, 4, 5 e 6 de 2.1.2.; em consequência da não alteração da matéria de facto considerada indiciariamente apurada, não será apreciada a parte da questão de direito suscitada com base em elementos factuais não apurados.
Porém, considerando que a apelante também defende a alteração da matéria de direito no caso de se manter a factualidade fixada pela 1.ª instância, cumpre apreciar a questão que suscita no pressuposto da não modificação da decisão de facto.
Sustenta a recorrente que, tendo em 2016 interpelado a 1.ª requerida para lhe entregar os equipamentos, na sequência da resolução dos contratos de compra e venda com reserva de propriedade entre ambas outorgados, esta não os entregou e mantém-se incontactável, o que demonstra não ter intenção de proceder à entrega dos bens à respetiva proprietária; acrescenta que o gerente da 1.ª requerida criou a sociedade 2.ª requerida, que passou a laborar no mesmo local, fazendo uso daqueles bens, os quais estão a ser pela mesma usados desde 2015, sendo de utilização diária, pelo que sofrem grande desgaste, e podendo ser facilmente dissipados, elementos dos quais entende decorrer o risco de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito de propriedade sobre os bens em causa.
Vejamos se lhe assiste razão.
Estando em causa um procedimento cautelar comum, no qual é requerido o decretamento de providência cautelar não especificada, cumpre atender ao regime constante dos artigos 362.º a 375.º do Código de Processo Civil.
O artigo 362.º, sob a epígrafe Âmbito das providências cautelares não especificadas, dispõe o seguinte: 1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado. 2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor. 3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte. 4 - Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.
Por seu turno, sob a epígrafe Deferimento e substituição da providência, dispõe o artigo 368.º, além do mais, o seguinte: 1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão. 2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (…).
Destas normas têm a doutrina e a jurisprudência sistematizado os requisitos do decretamento de providências cautelares não especificadas, a saber: a probabilidade séria da existência do direito invocado; o fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação; a adequação da providência solicitada à situação de lesão iminente do aludido direito; a não existência de providências específicas para acautelar esse direito; não exceder o prejuízo resultante da providência o dano que com ela se quer evitar.
Extrai-se do requerimento inicial apresentado pela ora apelante que o presente procedimento cautelar visa acautelar o efeito útil de ação a intentar, na qual, com fundamento em resolução operada extrajudicialmente pela requerente, por incumprimento definitivo imputável à 1.ª requerida, de contratos de compra e venda com reserva de propriedade entre ambas outorgados, venha a ser peticionado o reconhecimento do direito de propriedade da requerente sobre os bens que identifica e a consequente condenação das requeridas a procederem à respetiva entrega à requerente.
Destina-se a providência requerida – a entrega à requerente dos bens em causa, autorizando-a a proceder ao respetivo levantamento da sede das requeridas e ficando responsável pela guarda e conservação dos mesmos até decisão final a proferir no processo principal – a evitar que a demora inerente à normal tramitação da ação a intentar, desde a respetiva propositura até ao trânsito em julgado da decisão final, venha a impedir o efeito útil de tal decisão.
Porém, da factualidade indiciariamente apurada decorre que os contratos em causa foram outorgados em 2007 os dois primeiros e o terceiro em 2010, respeitando ao fornecimento pela requerente à 1.ª requerida dos bens identificados nas faturas a que alude a alínea D de 2.1.1., datadas de 07-08-2007, 29-12-2007 e 15-03-2010, tendo sido acordado o pagamento do preço no prazo de 180 dias subsequente à data de emissão da fatura respetiva, o que não foi cumprido, apenas tendo sido paga uma parte da quantia titulada pela primeira das faturas e permanecendo o quantitativo restante em dívida, situação que se manteve durante vários anos, até à resolução dos contratos operada pela requerente em meados de 2016, data a partir da qual deixou de conseguir contactar com a 1.ª requerida, a qual não procedeu à restituição dos bens, mantendo-os no ginásio instalado local da respetiva sede, onde vêm sendo utilizados pela 1.ª requerida desde o respetivo fornecimento e pela 2.ª requerida desde 2015.
Decorre destes elementos que o incumprimento contratual pela 1.ª requerida se manteve, quanto aos dois primeiros fornecimentos, durante cerca de oito anos e, quanto ao último, cerca de cinco anos, até à resolução extrajudicial operada pela requerente em maio de 2016, com fundamento naquele incumprimento, sendo certo que os bens fornecidos foram sempre sendo utilizados regularmente no ginásio a que se destinavam e onde permanecem.
Pretendendo a requerente obter a restituição dos bens, intenção que mantém desde pelo menos meados de 2016, e conhecendo a utilização que vem sendo dada aos mesmos desde há longos anos, designadamente pela 2.ª requerida desde o ano de 2015, poderia ter intentado anteriormente a ação judicial em causa, o que não fez, recorrendo ao presente procedimento cautelar cerca de dois anos e meio após a resolução contratual, sem que resulte demonstrado qualquer facto recente com a virtualidade de alterar as circunstâncias anteriormente existentes, designadamente algum elemento objetivo que justifique o receio de ocultação ou de dissipação dos bens, conforme vem exposto na decisão recorrida.
Não tendo a requerente, ao longo destes anos, intentado ação declarativa destinada a obter a entrega dos bens, não poderá considerar-se justificado o receio, que agora invoca, de que a eventual demora na decisão de tal tipo de ação lhe cause lesão grave e de difícil reparação, o que afasta a verificação do periculum in mora, requisito de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.
O periculum in mora, conforme explica Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 196-197), “constitui um requisito processual de natureza constitutiva da providência cautelar concretamente requerida – já que a falta desse requisito obsta, por via de regra, ao decretamento efetivo da providência – e traduz-se no prejuízo que pode advir para o requerente em consequência da demora na tutela definitiva do seu direito”; acrescenta o autor (ob. cit., p. 197-198) que “o periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento da tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido”, esclarecendo que cabe “ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis”.
Em anotação ao artigo 362.º do CPC, explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 8) que “não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.
No caso presente, não decorre da factualidade apurada qualquer elemento demonstrativo de que a demora inerente à normal pendência da ação a intentar seja suscetível de lesar de forma grave e dificilmente reparável o direito de propriedade da requerente sobre os bens em causa. Não se encontra indiciariamente assente qualquer facto recente, o qual tenha agravado a situação existente desde há cerca de dois anos e meio, período durante o qual não foi intentada pela requerente qualquer ação tendente o obter a restituição dos aludidos bens.
A situação de perigo que releva, para efeitos do preenchimento do aludido requisito de que depende o decretamento da tutela cautelar, deverá ser atual e iminente, o que não se verifica no caso presente.
Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 420) que “a situação de perigo contra a qual se pretende defender o lesado deve ser atual”. No que respeita à iminência do perigo, Marco Carvalho Gonçalves (ob. cit., p. 202-203) distingue dois tipos de situações: “o evento danoso já se verificou, mas os seus efeitos prolongam-se no tempo, agravando a lesão do direito do requerente; o evento danoso ainda não se verificou, mas é previsível que venha a verificar-se mediante um conjunto de indícios que demonstram a iminência da lesão”; afirma este autor (loc. cit.) que “a providência cautelar deve ser indeferida, porque injustificada, nos casos em que o requerente se tenha conformado com a situação de perigo que ameaça afetar o seu direito, assumindo uma conduta inerte e passiva perante esse facto”, acrescentando que “só assim não sucederá se se tiver verificado alguma superveniência objetiva ou subjetiva que, pela sua natureza ou pelas consequências dela resultantes para a esfera jurídica do titular do direito ameaçado, justifique a adoção urgente de uma providência cautelar”.
No caso presente, em que a requerente, tendo tomado conhecimento de que a 1.ª requerida não lhe restituiu os bens na sequência da resolução dos contratos de compra e venda operada em meados de 2016, bem como que os equipamentos em causa vinham sendo utilizados pela 2.ª requerida desde 2015, se conformou com estes factos, só tendo intentado o presente procedimento cautelar cerca de dois anos e meio após a extinção daqueles negócios, inexistindo qualquer elemento superveniente suscetível de alterar a descrita situação, dúvidas não há de que não se encontra demonstrada a atualidade do periculum in mora.
Como tal, não se encontrando preenchido um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida, deve a mesma ser indeferida, conforme decidido pela 1.ª instância.
Improcede, assim, a apelação.

Em conclusão:
I – A situação de perigo que releva, para efeitos do preenchimento do requisito do periculum in mora de que depende o decretamento da tutela cautelar, deverá ser atual e iminente;
II – Visando a providência requerida – a entrega de determinados bens à requerente – evitar que a demora inerente à normal tramitação de ação, destinada a obter a restituição desses bens, venha a impedir o efeito útil da decisão a proferir, não se verifica a atualidade do periculum in mora se a requerente, tendo tomado conhecimento de que a 1.ª requerida não lhe restituiu os bens na sequência da resolução dos contratos de compra e venda que operou em meados de 2016, bem como que esses bens eram utilizados pela 2.ª requerida desde 2015, se conformou com estes factos, só tendo intentado o presente procedimento cautelar cerca de dois anos e meio após a extinção daqueles negócios, inexistindo qualquer elemento superveniente suscetível de alterar a descrita situação, designadamente indiciando que a lesão possa vir a concretizar-se.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Évora, 11-04-2019
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato