Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1723/23.1T8FAR.E1
Relator: JOÃO LUÍS NUNES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
MELHORIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A admissibilidade de recurso para a Relação prevista no artigo 49.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, deve aferir-se em função da coima concretamente aplicada a cada infração, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico.
II – E a coima relevante para aferir da admissibilidade do recurso ao abrigo da referida alínea é a coima aplicada pelo tribunal recorrido.
III – A admissibilidade de recurso por ser “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito” (n.º 2 do referido artigo 49.º) apenas se justificará quando o juiz incorre em erro grosseiro, juridicamente insustentável na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, não se destinando a corrigir eventuais erros de julgamento.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1723/23.1T8FAR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I. Relatório
Município 1... impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho (Unidade Local 2) que lhe aplicou (i) uma coima de € 2.800,00 pela prática de uma contraordenação p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, conjugado com o artigo 36.º n.º 2 do Regulamento, (ii) uma coima de € 650,00 pela prática de um contraordenação p. e p. pelo artigo 20.º, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 27/2010 e (iii) uma coima de € 650,00 por uma contraordenação p. e p. artigo 20.º, n.º 6, al. b), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o artigo 14.º da Lei 27/2010.
Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na coima única de € 3.000,00.

Por sentença de 29-09-2023, do Juízo do Trabalho ... – Juiz ..., foi decidido nos seguintes termos:
«Em face do exposto julgo parcialmente procedente a impugnação e, em consequência:
1. mantenho a condenação da arguida pela prática:
- da contraordenação p. e p. pelo art.20º nº 6 al.b) da lei 27/2010 conjugado com o art.14º do DL 27/2010 e art.8º nº 6 e art.4º al. h) do Reg. 562/2006 na coima parcelar de € 650,00;
- da contraordenação p. e p. pelo art.20º nº 6 al. b) da Lei 27/2010 conjugado com o art.14º da Lei 27/2010 e art.8º nº 6 e 4º al.h) do Reg. 561/2006, na coima parcelar de € 650,00;
2. mantenho a condenação da arguida pela prática da contraordenação p. e p. pelo art.25º nº 1 da lei 27/2010, mas com referência ao art.36º nº 1 do Regulamento 165/2014 de 4 de Fevereiro, fixando, porém, a coima parcelar em € 2 200,00;
3. em cúmulo jurídico condeno a arguida na coima única de € 2 500,00».

De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para este tribunal.
Para tanto, formulou o seguinte requerimento:
«Município 1..., Arguido nos autos de processo em epígrafe, não se conformando com a douta Sentença de fls. que julgo, parcialmente improcedente a Impugnação da decisão, que lhe aplicou a coima de 2 500,00€, acrescida de custas, vem dela interpor recurso ( Cfr. arts. 49º nº 1, als. a) e c) da Lei nº 107/2009).
Porque está em tempo, tem legitimidade e interesse requer, a admissão do presente recurso a processar com efeito suspensivo.».
E mais adiante, tendo em vista a admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 49.º em referência, escreveu:
«6. Na aplicação do direito aos factos, entendeu-se na sentença recorrida que, Começaremos por referir que o objeto da impugnação judicial é limitado pelas conclusões pelo que não tendo o impugnante nas mesmas (nem nas alegações) suscitado qualquer questão quanto ao fim/uso do veículo, a aferição da factualidade a tal respeitante está-nos vedada, restando-nos averiguar da subsunção da matéria de facto às normas de que o mesmo está acusado”
7. Ora, ao contrário do entendimento perfilhado na sentença, constitui jurisprudência uniforme que o Tribunal não está limitado pelas conclusões e/ou alegações levadas à Impugnação judicial, que aliás não é um verdadeiro recurso, assistindo-lhe poderes alargados de cognição do mérito da questão e da veracidade e exactidão dos factos e sua qualificação. ( ( cfr. Ac. do STJ de 23/05/2019, in www.dgsi.pt )
8. Nos presentes autos estão em causa 3 contraordenações, tendo em cúmulo jurídico sido aplicada ao Recorrente a coima única de 2 500,00€.
9. No âmbito da Impugnação Judicial, o Recorrente alegou sob os artigos 9º, 10º e 11º, que a aplicação de coimas nos processos 122200144 e 122200146 não foi precedida de auto de noticia, designadamente quanto à alegada violação do período de descanso semanal.
10. Com efeito, do teor e mera leitura dos 3 autos de noticia, em sede de “Outras Informações”, consta o seguinte:
- Deverá aguardar por posterior notificação da entidade administrativa competente.
(…)”
11. Essa notificação da entidade administrativa nunca foi concretizada, pelo que os autos em causa, por si só, não poderão constituir suporte idóneo à instauração de processo de contraordenação.
12. Desta forma, ao invés da posição perfilhada na douta sentença recorrida, resulta do teor dos 3 autos de notícia que o Arguido deverá(ia) aguardar posterior notificação da entidade administrativa competente, sem a qual, dizemos nós, não estão reunidos os pressupostos para instauração e inicio de procedimento contraordenaçional, que à semelhança do determinado no processo nº 122200143 não poderia prescindir da notificação do arguido para apresentar defesa ou resposta escrita.
13. Nos autos em causa a Recorrente nunca foi notificada para apresentar defesa em manifesta violação do disposto no artigo 32º da CRP, tendo-se a entidade administrativa limitado a determinar a sua apensação ao processo nº 122200143, aliás em evidente violação do disposto no art. 24º, nº 2 do CPP.
14. Desta forma, com o devido respeito, existe uma errónea e bem visível aplicação do direito aos factos, daí que, caso se entendesse que o recurso não era admissível para o Tribunal da Relação em função do valor da coima, seria, sempre, admissível face ao estipulado no art. 49º, nº 2, do RPCOLSS.».

Terminou a motivação de recurso formulando as seguintes conclusões:
«I – Relativamente aos autos de noticia que sustentam os processos de contraordenação 122 200 144 e nº 122 200 146, alcança-se que o ACT absteve-se da elaboração da participação prevista no artigo 13º nº 4 da Lei 107/2009, sendo inequívoca a ausência deste pressuposto procedimental.
II - De igual modo, como é, documentalmente, apreensível ( cfr. fls. 39 ) a Senhora Instrutora determinou a apensação destes processos ( 122 200 144 e nº 122 200 146 ), ao processo nº 122200143, sem antes ter notificado o Arguido para exercer o seu direito de defesa, o que determina a nulidade do processo face à evidente violação do seu direito de defesa, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 32º da CRP.
III - Não pode concordar-se com a posição de direito perfilhada na douta sentença, quando entende que lhe estava vedada a aferição da factualidade atinente ao fim/uso de veiculo, que, por contrária a jurisprudência firme e unânime levou o Tribunal a proferir uma decisão de facto restrita e circunscrita à posição de direito que, antecipadamente adoptou como aplicável, e que não reflete as varias soluções plausíveis das) questões de direito, mas, unicamente, a que o Tribunal entendeu adoptar. ( cfr. Ac. do STJ de 23/05/2019, in www.dgsi.pt )
IV – Ora. se é certo que do depoimento das testemunhas, em conjunto com a prova ( documental) produzida resulta provada a factualidade considerada provada sob os pontos 1 a 9, não é menos certo que outros factos relevantes para a descoberta da verdade material, atinentes ao fim /uso do veiculo, ficaram provados, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas, AA e BB, supra transcritos para os quais se remete, devendo em conformidade tal factualidade ser aditada aos factos provados.
V - Como é consabido, que os poderes cognitivos do Tribunal ad quem estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida “ ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
VI - A impugnação da decisão de facto e reapreciação pretendida no presente recurso, tem na sua origem uma questão de direito, que resulta própria sentença e que será ( é ) a de saber, se tal como aí entendido , ao Tribunal de 1ª instancia está(va) vedado ….quanto ao fim/uso do veículo, a aferição da factualidade a tal respeitante está-nos vedada.”, ou se, como se defende, ao Tribunal não estava vedado o conhecimento de factualidade atinente ao fim /uso do veiculo.
TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO, DOUTAMENTE SUPRIDOS POR V. EXCIAS. E CONFORME CONCLUSÕES SUPRA, REQUER-SE A REVOGAÇÃO DA DOUTA SENTENÇA E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE DETERMINE O ARQUIVAMENTO DOS AUTOS E CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO DO RECORRENTE, OU QUANDO ASSIM SE NÃO ENTENDA A SUA ANULAÇÃO E DEVOLUÇÃO DO PROCESSO À 1ª INSTÂNCIA CONFORME DISPOSTO NAS ALS. a) e b), n.º2, do art.º 51.º DA Lei 107/09 ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA».

O recurso foi inicialmente admitido no tribunal recorrido, mas apenas ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro; contudo, na sequência de deferimento de reclamação do arguido, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, veio a ser admitido in totum.

Na 1.ª instância o Ministério Público respondeu ao recurso, assim concluindo:
«I. Nos autos em apreço foi a Recorrente condenada, em cúmulo jurídico, na coima única de €2 500,00, sendo cada uma das coimas parcelares aplicadas inferior a 25 UCs, não tendo sido aplicada qualquer sanção acessória, pelo que, nos termos do disposto no artº.49º da Lei 107/2009, deverá julgar-se legalmente inadmissível o recurso;
II. A sentença recorrida não enferma do vício de erro notório na aplicação do direito aos factos, erro na apreciação da prova a que alude o nº2, al. c) do art.410º do CPP;
III. O tribunal de recurso está limitado nos seus poderes de cognição às questões que, tendo sido ou devendo ter sido objeto da decisão recorrida, sejam submetidas à sua apreciação, constituindo objecto da impugnação, o qual se define e delimita através das conclusões formuladas na motivação de recurso.
Assim sendo, e não tendo a questão do fim/uso do veículo sido suscitada pela Recorrente na impugnação judicial, não tinha o Tribunal a quo que a apreciar ou sobre ela decidir;
IV. A sentença recorrida apreciou e pronunciou-se adequadamente sobre a inexistência da nulidade relativamente ao alegado incumprimento do disposto no artº13º, nº4 da Lei 107/2009, em termos com os quais concordamos integralmente e que não deverão merecer qualquer reparo;
V. A nulidade suscitada pela Recorrente pela falta de notificação pela entidade administrativa da apensação dos processos, não sendo cominada pela lei, mais não poderá que levar à classificação do acto como meramente irregular, conforme resulta do disposto no nº2 do artº.118º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artº.60º da Lei 107/2009, irregularidade essa que, a ter existido, ficou sanada pela impugnação de foi objeto a decisão administrativa.
Termos em que se entende não ser admissível o recurso interposto, mas, sendo-o, entendemos não assistir razão à Recorrente, mostrando-se a sentença recorrida correctamente elaborada e fundamentada, não tendo a Mmª. Juiz a quo violado qualquer norma legal, devendo ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida».

Neste tribunal, a exma. procuradora-geral adjunta emitiu douto parecer, no sentido da rejeição do recurso, quer ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, (valor das coimas) quer ao abrigo do n.º 2 do mesmo artigo.
Ao referido parecer respondeu o recorrente, mas apenas quanta à (in)admissibilidade do recurso ao abrigo da referida alínea a) do n.º 1 do artigo 49.º, a manifestar a sua discordância e a reiterar que é admissível o recurso ao abrigo dessa norma.

II. Objeto do recurso
Sabido como é que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, no caso a questão essencial colocada à apreciação do tribunal consiste em saber se o arguido cometeu a(s) contraordenação(ões) por que foi condenado.
Todavia, previamente haverá que apreciar da admissibilidade ou não do recurso.

III. Factos
A) O tribunal recorrido deu como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 13 de Junho de 2021, pelas 10h05, na EN ...25, Km 89,9, sentido Local 2/Local 3, BB conduzia o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-AH-...
2. Fazia-o por ordens e direção do arguido.
3. O referido veículo estada equipado com tacógrafo analógico.
4. Fiscalizado por militares da Guarda Nacional Republicana foram solicitados ao dito condutor os discos tacográficos dos últimos 28 dias.
5. O mesmo não apresentou qualquer registo de atividade referente aos dias 17 a 30 de maio de 2021, nem declaração justificando tal período a qual o arguido, em momento prévio à condução, não lhe entregou.
6. Em tal período o motorista esteve em gozo de férias.
7. Na semana de 31 de maio de 2021 e 03 de junho do mesmo ano o referido condutor gozou apenas de um período de repouso semanal de 21 h.
8. Na semana de 6 de junho de 2021 e 13 do mesmo mês o condutor gozou apenas de um período de repouso semanal de 21h15m
9. A arguida não organizou nem supervisionou o trabalho do trabalhador de modo a que o mesmo detivesse a declaração de atividade relativa aos dias não trabalhados, nem de modo a que o mesmo respeitasse os tempos de repouso o que podia e devia ter feito.

B) O tribunal recorrido motivou assim a resposta à matéria de facto:
«Na formação da convicção o tribunal considerou o conjunto da prova produzida que se analisou de forma critica e de acordo com as regras da experiência comum.
Assim as declarações de CC e DD, militares que procederam à fiscalização, conjugadas com o teor dos autos de contraordenação, discos e impressões anexas aos mesmos, bem assim com as declarações de AA, responsável pela divisão de salubridade do arguido desde 2013 e de BB, condutor, que confirmaram que o mesmo não tinha declaração de atividade alusiva às férias que tinha gozado permitiram-nos responder afirmativamente aos factos provados nºs 1 a 8 sendo que a coincidência das declarações do condutor prestadas ao militar que o fiscalizou com as prestadas, de forma sincera e credível, em julgamento não nos deixou dúvidas a respeito do gozo de férias.
Tendo AA referido que não costumam entregar as declarações de atividade aos motoristas, nada referindo a respeito da organização da jornada semanal de trabalho do trabalhador de modo a respeitar os tempos de descanso semanais, nem resultando tal organização de qualquer outro meio de prova, não pudemos responder diferentemente do que fizemos no nº 9 dos factos provados».

IV. Da (in)admissibilidade do recurso
Como decorre do relatório supra, o recorrente interpõe recurso ancorando-se no disposto no n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09.
Impõe-se, por isso, previamente determinar se o recurso é admissível ao abrigo dos referidos normativos legais, sendo certo que não se vislumbra que o possa ser ao abrigo de qualquer outra das disposições legais previstas no mesmo artigo 49.º.

Tenha-se presente que o recorrido foi condenado pela autoridade administrativa em duas coimas no valor de € 650,00 cada, e ainda numa coima no valor de € 2.800,00, tendo em cúmulo jurídico sido condenado na coima única de € 3.000,00.
Já em sede de impugnação judicial, o tribunal recorrido manteve as duas coimas de € 650,00, mas alterou/baixou a coima de € 2.800,00 para € 2.200,00.
E em cúmulo jurídico condenou o arguido na coima única de € 2.500,00.

Antes de entrarmos na análise concreta da admissibilidade ou não do recurso, considerando que já houve reclamação sobre a admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, deixa-se aqui o lembrete que a decisão proferida na reclamação não vincula este tribunal de recurso (cfr. artigo 405.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).
Sob a Epígrafe “Decisões judiciais que admitem recurso”, dispõe o artigo 49.º, n.º 1 da referida Lei n.º 107/2009:
«1- Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º [decisão judicial da 1.ª instância], quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do n.º 2 ao artigo 39.º».
No caso em apreço, não obstante o arguido/recorrente se arrimar na interposição do recurso também na alínea c), crê-se que tal só poderá dever-se a mero lapso, pois o que se prevê em tal alínea é a absolvição ou arquivamento do processo no tribunal recorrido, o que manifestamente não se verificou no caso.
Por isso, apenas releva a alínea a), que exige para a admissibilidade de recurso que seja aplicada coima superior a 25 UC (correspondente a € 2.550,00) ou valor equivalente.
Sendo o direito das contraordenações um direito sancionatório de caráter punitivo, a sanção típica, coima, serve, nas palavras de Figueiredo Dias (“Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora), «(…) como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas».
Por isso, é em função do valor da coima que pode ser admissível, ou não, o recurso para a Relação: como se assinalou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 106/2014 (Proc. n.º 547/2013, in DR, 2.ª Série, n.º 59, de 25-03-2014), a estipulação da alçada de recurso para a Relação em matéria de contraordenações laborais em montante diverso do que se verifica no Regime Geral das Contraordenações «(…) encontra justificação material em função da eleição de critério de recorribilidade assente na gravidade das infrações, medida pelas sanções aplicadas, e congruente com a estrutura sancionatória específica do ordenamento contraordenacional laboral».
Daí que tendo o referido acórdão se pronunciado sobre o artigo 49.º em referência, na vertente de valor das coimas aí previstas para a admissibilidade do recurso, não julgou o mesmo inconstitucional, por, em síntese, se encontrar na margem de conformação do legislador fixar a alçada em que é admitido recurso das contraordenações laborais, «denotando a escolha de valor que comporte significado económico capaz de justificar a intervenção, em recurso, de uma segunda instância judicial».
Assim, a admissibilidade de recurso para a Relação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 49.º é em função do valor da coima: esta terá que ser, no dizer da referida alínea, “superior a 25 UC ou valor equivalente”.
Porém, importa conjugar a referida alínea a) com o disposto no n.º 3 do mesmo artigo 49.º: «Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções e se apenas quanto a algumas das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites».
Ora, face ao citado n.º 3, como este tribunal tem repetidamente afirmado (vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos de 08-11-2017, de 06-12-2017 e de 28-04-2022, procs. n.º 2792/16.6T8PTM.E1, n.º 3438/16.8T8FAR.E1 e n.º 2275/21.2T8FAR.E1, respetivamente, encontrando-se os dois primeiros disponíveis em www.dgsi.pt), a admissibilidade de recurso para a Relação deve aferir-se em função da coima concretamente aplicada a cada infração, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico.
Porém, pergunta-se: qual o valor da coima a atender? a aplicada pela autoridade administrativa ou a aplicada pelo tribunal recorrido?
Note-se que se entendermos que é a aplicada pela autoridade administrativa, tendo esta aplicada uma coima de € 2.800,00 em relação à mesma o recurso é admissível; já se se entender que é a aplicada pelo tribunal recorrido, tendo este reduzido aquela coima para € 2.200,00 o recurso não é admissível.
Estando em causa a interposição de recurso para o Tribunal da Relação de uma decisão judicial (a epígrafe do artigo 49.º é precisamente “Decisões judiciais que admitem recurso”), o valor da coima a atender só pode ser o da condenação proferida pelo tribunal a quo, e não o da ACT.
Para tanto, tenha-se desde logo presente o elemento literal no n.º 1 do artigo 49.º: o recurso é admitido “da sentença ou do despacho judicial”, pelo que é em relação a esta decisão que o recorrente reage; se o tribunal recorrido altera o valor da coima fixado pela autoridade administrativa, significa que este deixa de subsistir, pelo que apenas haverá que atender ao último valor fixado, rectius, pelo tribunal recorrido.
Para além disso, o elemento teleológico aponta também no mesmo sentido: se o legislador fixou a recorribilidade para a Relação em função da gravidade da infração, medida pela sanção aplicada, seria contraditório que, por exemplo, se admitisse recurso de uma coima de 26 UC aplicada pela autoridade administrativa, mas que em sede de impugnação judicial o tribunal recorrido reduziu para 5 ou 6 UC.
E já numa situação inversa, tendo já o Tribunal Constitucional se pronunciado no sentido de não ser inconstitucional a norma que permite o agravamento da coima decorrente de contraordenação laboral em sede de impugnação judicial interposta pelo arguido em sua defesa (Acórdão n.º 141/2009, de 12 de março de 2019), seria também contraditório com o que se deixou referido que não fosse admitido recurso se a autoridade administrativa fixasse uma coima, por exemplo, de 15UC, agravada em sede de impugnação judicial interposta pelo arguido para 26 UC.
Sendo a recorribilidade para a Relação em função da coima aplicada, essa coima só pode ser a que assume relevância jurídica naquele momento, ou seja, a que foi fixada pelo tribunal recorrido, e não em função da que foi fixada pela autoridade administrativa, que já não subsiste.
Se apenas se justifica a intervenção, em recurso, de uma segunda instância judicial, em função do significado económico da coima, mal se harmonizaria que esse significado fosse o decorrente da coima aplicada pela autoridade administrativa, que até já pode ter sido alterado pelo tribunal recorrido e, por isso, ter deixado de subsistir, em detrimento deste último, aquele que precisamente passou a vigorar.

Para sustentar que a coima relevante para a admissibilidade do recurso para a Relação é a fixada pela autoridade administrativa, o recorrente arrima-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-12-2010 (proc. n.º 51/10.7TTTMR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Lido o referido acórdão, não se afigura que o mesmo dê conforto à posição sustentada pelo recorrente: as transcrições do mesmo, efetuadas pelo recorrente, prendem-se com o momento da fixação da aplicação da nova lei processual relativa à possibilidade de recorrer – decisão da autoridade administrativa – e não com o valor da coima fixada por esta.
Atente-se para tanto na seguinte passagem da fundamentação:
«No caso concreto a decisão administrativa foi proferida em 30 de Dezembro de 2009, ou seja, já no domínio do novo RPCOLSS.
Nessa altura, atento o valor da coima aplicada em concreto (€ 1.500,00) já não era admissível recurso de impugnação para este Tribunal da Relação visto o disposto no artigo 49°, nº1, a) do novo RPCOLSS, uma vez que o valor da coima aplicada pelo tribunal recorrido é inferior a € 2.550,00» (sublinhado nosso).
Em defesa do seu entendimento o recorrente convoca ainda o acórdão proferido por este tribunal em 08-11-2017 (proc. n.º 2792/16.6T8PTM.E1).
Porém, trata-se de uma situação claramente distinta, em que o que está em causa é a alínea c) do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009: ora, se o tribunal recorrido absolveu o arguido ou determinou o arquivamento do processo, naturalmente que para efeitos de admissibilidade do recurso nunca nessas situações poderia estar em causa qualquer coima aplicada pelo tribunal recorrido, pelo que, por coerência do sistema jurídico, e tendo em conta o significado económico da coima, só se poderia atender à única que foi fixada, precisamente pela autoridade administrativa.
Ou seja, a gravidade da infração, medida pelo montante da coima, só pode ser a única que foi fixada nos autos, pela autoridade administrativa.
Aqui chegados, impõe-se concluir que face ao valor da coima aplicada pelo tribunal recorrido (€ 2.200,00), o recurso não é admissível.

Mas o recorrente interpôs também recurso ao abrigo do n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009.
Atente-se que estipula o n.º 2, do aludido artigo 49.º, que «[p]ara além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Do citado normativo retira-se que aí se encontram previstos dois fundamentos para a admissibilidade do recurso:
(i) por se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito;
(ii) a fim de promover a uniformidade da jurisprudência.
O recorrente não refere expressamente ao abrigo de que fundamento interpõe o recurso, mas face ao alegado intui-se ser ao abrigo do 1.º dos fundamentos, ou seja, por ser manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito.

A lei não explicita em que consiste tal fundamento de recurso excecional.
Tem-se, contudo, por manifesto que a melhor aplicação do direito não poderá consistir na possibilidade de sindicar toda e qualquer decisão de que discorde o arguido ou o Ministério Público.
Também, estando em causa a melhoria de aplicação do direito, o recurso fica limitado às situações em que tal se apresente “manifestamente necessário”.
Sobre esta problemática, escreveu-se no acórdão deste tribunal de 16-03-2017 (proc. n.º 1096/16.9T8FAR.E1, também relatado pelo aqui relator) que «(…) as situações “manifestamente necessárias à aplicação do direito”, a que alude o n.º 2, do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, hão-de reconduzir-se a situações evidentes, patentes, virtualmente incontrovertíveis que justificam a apreciação pelo tribunal superior.
Com efeito, assumindo o recurso em tais situações natureza excepcional, apenas se justificará quando o juiz incorre em erro grosseiro, juridicamente insustentável, por “manifesto lapso” na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, não se destinando, por isso, a corrigir eventuais erros de julgamento.
De outro modo, estava-se a permitir, por uma via oblíqua – através de uma regra de excepção, prevista no n.º 2 do artigo 49.º e que constitui uma “válvula de escape” – a generalização do recurso para a Relação, quando através da regra (geral) que decorre do n.º 1 do mesmo artigo 49.º, se limitou o recurso da decisão da 1.ª instância, só admitindo o mesmo nas situações aí previstas.
Como se afirmou no acórdão deste tribunal de 10-09-2013 (Proc. n.º 33/12.4YQSTR.E1, disponível em www.dgsi.pt), “(…) só é de aceitar o recurso quando na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados, para alcançar uma maior estabilidade na aplicação do direito, um maior prestígio das instituições encarregadas da administração da justiça e uma maior eficácia do princípio da igualdade dos cidadãos quanto à lei, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele.”.
Ou, como se afirmou no acórdão do Tribunal das Relação do Porto de 24-09-2012 (Proc. n.º 426/11.4TTBGC.P1, disponível em www.dgsi.pt), “[a] admissibilidade de recurso para melhoria da aplicação do direito, nos termos do artº 49º nº 2 da Lei 107/2009 de 12.2, depende da existência da manifesta necessidade de prevenir solução jurídica evidentemente grosseira, errada, indigna ou que comporte efeitos particularmente graves.».
Em suma, e no dizer do acórdão deste tribunal de 28-04-2022 (proc. n.º 2275/21.2T8FAR.E1), o disposto no n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009 «(…) tem como finalidade evitar a consumação de decisões que sejam juridicamente grosseiras e atentatórias da Justiça, evitar a prolação de decisões contraditórias e aperfeiçoar a certeza e segurança do direito e prevenir a ocorrência dos seus efeitos, desde que estes sejam particularmente graves«.

Ora, nada disso se deteta no caso que nos ocupa.
Com efeito, o recorrente alega terem sido violados os seus direitos de defesa consagrados no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que não foi notificado para a presentar a sua defesa.
Contudo, compulsados os autos, verifica-se, por um lado, que na decisão da autoridade administrativa consta expressamente que o arguido apresentou resposta escrita; por outro, na sentença recorrida foram analisadas as (arguidas) nulidades/inexistência dos autos de noticia, para se afastarem as mesmas.
E não se lobriga que a análise aí efetuada, bem como a solução jurídica alcançada, constitua um erro grosseiro, juridicamente insustentável, atentatório da justiça.
Com efeito, aí se escreveu:
Prescreve o art.13º nº 4 da Lei 107/2009 de 14/09 que “relativamente às infrações de natureza contraordenacional cuja verificação não tenha sido comprovada pessoalmente pelo inspetor do trabalho ou da segurança social, há lugar à elaboração de participação instruída com os elementos de prova disponíveis e a indicação de, pelo menos duas, testemunhas e o máximo de cinco, independentemente do número de contraordenações em causa.”
Ora, no caso vertente, os autos permitem concluir que o processo 122200143 se iniciou com o auto de contraordenação elaborado por autoridade policial no dia 13 de junho de 2021, nele constando a factualidade e violação imputadas, a indicação de duas testemunhas – o autuante e colega – devidamente identificados, tendo instruído o mesmo impressão do cartão de condutor; o processo de contraordenação 122200144 iniciou-se com o auto de contraordenação elaborado por autoridade policial no dia 13 de junho de 2021, nele constando a factualidade e violação imputada (art. 20º nº6 al. b) da Lei 27/2010, 30/08), a indicação de duas testemunhas – o autuante e colega – devidamente identificados, tendo instruído o mesmo discos de tacógrafo; o processo 122200146 iniciou-se com auto de contraordenação elaborado por autoridade policial no dia 13 de junho de 2021, nele constando a factualidade e violação imputadas ( art. 20º nº6 al. b) da Lei 27/2010, 30/08), a indicação de duas testemunhas – o autuante e colega – devidamente identificados, tendo instruído o mesmo discos de tacógrafo.
Tanto basta, a nosso ver, para se concluir que se deu cumprimento ao estatuído no art.13º nº 4 da Lei 107/2009 de 14/09 pelo que, quanto a tal questão, inexiste qualquer irregularidade.
Acresce que, conforme decorre do disposto no art.118º do Código de Processo Penal, aplicável por força do estatuído no art.41º do Regime geral das contraordenações ex vi art.60º da Lei 107/2009, 14/09, “1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.”
Por isso, sendo evidente que a Lei 107/2009, no seu art.14º nº 3, prevê a consequência, a contrario, da falta de elaboração da referida participação, nela se não referindo a nulidade nem encontrando a mesma previsão em qualquer outra norma, é para nós claro que a inexistência da dita participação retiraria apenas a força probatória plena ao auto de noticia.
Em face do supra exposto inexiste a apontada nulidade.
Acresce que, conforme consta do auto de contraordenação 122200144 dele se fez constar que “o condutor não respeitou o período de repouso semanal de pelo menos 24 horas gozando num período de duas semanas consecutivas de 31/05 a 13/06 um repouso regular de 21h15m respeitante à semana de 06/06 a 16/06 e outro de apenas 21 horas (…) respeitante à semana de 31/05 a 03/06 “.
Foram apreendidos os discos de 31/05 a 06/06.
Por outro lado, no auto de contraordenação 122200146 fez-se constar que “o condutor não respeitou o período de repouso semanal reduzido de pelo menos 24 horas, gozando num período de duas semanas consecutivas, de 31/05/2021 a 13/06/2021, dois repousos reduzidos inferiores a 24 horas. Na semana de 07/06/2021 a 16/06/2021 o condutor só realizou um repouso de 21h15m entre o dia 12 e 13/06/2021. Ficando desta forma a faltar 2h45m de repouso semanal reduzido. (…)”.
Foram apreendidos os discos de 07/06 a 13/06.
Tanto (…) basta para que se conclua que quer num auto quer no outro consta referência ao período de repouso violado pelo que improcede, também, o suscitado vicio».
Para além do referido, não poderá também deixar de ter-se presente que, como tem sido assinalado pelo Tribunal Constitucional (por exemplo, acórdãos n.º 659/2006 e n.º 487/2009), não se verifica um regime garantístico coincidente entre os procedimentos criminal e contraordenacional.
Daqui decorre, volta-se a sublinhar, que não se vislumbra que se esteja perante um erro grosseiro, juridicamente insustentável, a justificar a intervenção deste tribunal de recurso.
É certo que poder-se-á sustentar – como sustenta o recorrente – diferente interpretação jurídica da seguida pela sentença recorrida: mas daí não decorre, como se viu, que forçosamente a seguida pelo tribunal recorrido seja insustentável, constitua um erro manifesto, e, por consequência, que justifique a intervenção do tribunal superior na melhoria da aplicação do direito.
Assim, e em síntese: entende-se não ser de admitir o recurso, quer ao abrigo do disposto no n.º 1, alínea a) do artigo 49.º da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, quer ao abrigo do seu n.º 2, não se conhecendo, por consequência, da questão nele suscitada.
Face à inadmissibilidade do recurso, deverá condenar-se o recorrente no pagamento de importância equivalente a 3 (três) UC, nos termos do n.º 3, do artigo 420.º, do Código de Processo Penal (ex vi dos artigos 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009).

V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto pelo Município 1....
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
(Documento elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 25 de outubro de 2024
João Luís Nunes (relator)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
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[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Mário Branco Coelho, (2) Paula do Paço.