Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2303/21.1T8EVR.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: REGISTO PREDIAL
ÁREA E CONFRONTAÇÕES
DOCUMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a planta cadastral vale como documento livremente valorável pelo tribunal.


- as confrontações constantes do registo predial valem apenas como início de prova.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. AA (depois substituída) intentou contra a Administração Regional de Saúde do Região 1, IP, a presente acção, formulando os seguintes pedidos:


«condenar-se a R. a:


a) reconhecer a legítima propriedade da A. sobre o prédio misto sito na Quinta 1 e Anexas, inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 17 da secção A e na matriz predial urbana sob os art.ºs 1362, 1371 e 2005 da freguesia da Sé e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 8424 da referida freguesia da Sé (extinta);


b) condenar-se a R. a entregar à A., devoluto, livre de pessoas e bens, o prédio identificado na alínea antecedente;


c) condenar-se a R. a pagar à A. a quantia correspondente ao valor diário de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) até à entrega do prédio em causa, bem como, dos juros legais vincendos desde a data de citação da R. até integral e efetivo pagamento, com as necessárias consequências legais quanto a custas, procuradoria e demais encargos».


Alegou, no essencial, que:


- é proprietária do prédio que identifica.


- a R. promoveu a construção de unidade hospitalar no terreno situado do outro lado da estrada de Local 2 que faz fronteira com a propriedade da A..


- a R. instalou um estaleiro nos terrenos da A. e conduz a obra a partir daí.


- a privação do bem imóvel pela actuação da R. implica uma perda patrimonial pelo menos desde Julho de 2021, calculando-se o dano num montante diário de 250 euros.


A R. contestou, tendo admitido que a A. era dona do prédio que identifica. Alegou, em particular, que:


- a R. estava mandatada para a execução da empreitada de construção do edifício no terreno denominado “Quinta 2”, propriedade do Estado.


- a partir das certidões da Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, a “Quinta 2” não tem qualquer confrontação com o terreno da A. (“Quinta 1 e Anexos”), sendo separadas pelo CM 1...5, não estando assim a R. a ocupar o prédio da A..


Foi entretanto admitida a intervenção de BB, habilitado como adquirente do prédio em causa e em substituição da A. original.


Na sequência de despacho de aperfeiçoamento, o A. apresentou PI aperfeiçoada na qual, correspondendo ao convite formulado e no essencial, alegou que o valor reclamado seria devido a título de sanção pecuniária compulsória, tendo passado a formular o último pedido nos seguintes termos:


«c) condenar-se a R. a pagar ao A. a quantia correspondente ao valor diário de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) até à entrega do prédio em causa, a título de sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A, do Código Civil), até à entrega efetiva do bem.».


A R. respondeu, mantendo os termos da contestação.


Após vicissitudes inerentes ao processo (saneamento e actos complementares, regularização de processado ou indeferimento de pretensão relativa à intervenção principal do Estado) foi realizada a audiência de julgamento e proferida sentença cm o seguinte dispositivo:


«Declara-se que o Autor BB é o legítimo proprietário do prédio misto sito na «Quinta 1 e Anexas», inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 17 da secção A e na matriz predial urbana sob os art.º 1362, 1371 e 2005 da freguesia da Local 4 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 8424 da referida freguesia da Local 4(extinta);


B. Absolve-se a Ré do demais peticionado.».


Desta sentença interpôs o A. recurso, formulando as seguintes conclusões:


I-Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida que julgou a ação parcialmente procedente, e absolveu a Ré, aqui Apelada, Administração Regional de Saúde do Região 1, I.P.: - do pedido de condenação na restituição ao Autor do prédio misto sito na Quinta 1 e Anexas, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 17.º da secção A e na matriz predial urbana sob os artigos 1362, 1371 e 2005 da freguesia da Local 4 (extinta), descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 8424; e - do pedido de condenação no pagamento ao Autor da quantia correspondente ao valor diário de €250,00 até à entrega do prédio em causa, a título de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, até à entrega efetiva do bem, acrescida de juros legais vencidos desde a data da citação da Ré, até integral e efetivo pagamento.


II-O presente recurso versa sobre a matéria de direito e impugna a decisão sobre a matéria de facto.


III- Foram juntos aos autos um mapa cadastral, pelo Autor (requerimento de 02.05.2022), documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento (detalhe do levantamento topográfico do Caminho Municipal 1...5) admitido nos termos do artigo 411.º do C.P.Civil, bem como a visualização do local através do Google Maps – imagem de junho de 2023-, (consultada toda a extensão do Caminho 1...5 que acompanha o tapume de vedação da obra do hospital), os quais se crê que não foram devidamente atendidos e ponderados na decisão proferida.


IV-O tribunal a quo, não realizou convenientemente o exame critico das provas, (artigo 607.º n.º 4 do Código do Processo Civil), violando o tribunal a o disposto nos artigos 1311.º, 1305.º, 483.º e 563.º todos do Código Civil e artigo 7.º do Código do Registo Predial.


V- Discorda o recorrente dos factos que entende terem sido incorrectamente julgados provados nos pontos 7 e 8, e, incorretamente julgados não provados os factos vertidos nas letras A a C, pois os meios probatórios impunham decisão diversa, designadamente as declarações de parte prestadas pelo Autor, os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG e os documentos juntos aos autos pelo Autor (requerimento de 02.05.2022), documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento (detalhe do levantamento topográfico do Caminho Municipal 1...5) e visualização do Google Maps (toda a extensão do caminho 1...5 que acompanha o tapume de vedação da obra do hospital).


VI- Entendeu o Douto Tribunal a quo, dar como provados os factos 7 e 8 com base também nas certidões permanentes prediais juntas aos autos pela Ré, porquanto tanto da certidão referente à «Quinta 1 e Anexas», como da certidão referente à Quinta 2 consta que a primeira confina a Sul com Estrada e que a segunda confina a Norte com Estrada (Estrada Municipal d’Cidade 1 a Local 2).


VII- Desconsiderando por completo as confrontações registadas no mapa cadastral, bem como qualquer levantamento topográfico posterior que apenas tido tal instrumento por base, por manifestamente desatualizado.


VII- No que se reporta aos factos feitos constar como não provados, nas letras A a C, por serem os mesmos decorrência lógica da demonstração dos factos 7 e 8 julgados como provados, entendeu o tribunal que as Quintas não são confinantes, que a “Língua” ou “baleia” de terreno seja efetivamente pertença o Autor e concluiu pela não ocupação da Ré de qualquer parcela do terreno do Recorrente.


IX- Fundamentou-se em suma, o Tribunal a quo nas certidões de registo predial que entendeu “(…) não se poder ignorar e que apenas estas são aptas a produzir fé publica”, no depoimento da testemunha GG e na desatualização do mapa cadastral, desconsiderando as confrontações lá registadas, bem como qualquer levantamento topográfico posterior que apenas tenha tido tal instrumento por base, por manifestamente desatualizado.


X-Ora, No que se refere aos Pontos 7 e 8 dos factos provados, nas declarações de parte do Autor foi esclarecido quando questionado sobre a definição a parcela 14 do prédio 17 (...) [1]


XI- Estas declarações são corroboradas pelo documento junto aos autos pelo Autor (requerimento 02.05.2022), documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento (detalhe do levantamento do Caminho Municipal 1...5) e visualização do local através do “google maps”.


XII- Declarações igualmente corroboradas pelas testemunhas:


-CC – Minutos 06’43 (...)


- DD Minutos 04’42 (...)


-EE - Minutos 05’48 (...)


-FF Minutos 15’19 (...)


XII- O verdadeiro litígio dos autos resume-se à parcela 14 do prédio 17, parcela que encontra além da estrada de Local 2 -Caminho Municipal 1...5, pertença do prédio do ora Recorrente, ocupada pela recorrida.


XIII- As declarações de parte do Autor e o depoimento das testemunhas conjugados com os documentos supra mencionados, não deixam dúvidas de que a “Quinta 1e Anexas” (nomeadamente a parcela 14) confina com a “Quinta 2”.


XIV- A decisão tomada pelo tribunal a quo, fundamentada, com base nas Certidões de Registo Predial, e desconsiderando as confrontações registadas no mapa cadastral, não pode colher, uma vez que os elementos contantes da descrição predial derivam de declarações dos interessados,


XV- O que consta da descrição predial, designadamente quanto às confrontações do imóvel, não está abrangida pela presunção legal vertida no artigo 7.º do Código do Registo Predial, cingindo-se, unicamente à existência do direito registado e à sua titularidade.


XVI- Para que tal decisão pudesse colher, haveriam tais confrontações, terem sido corroboradas por meios de prova diferentes desses documentos, designadamente pelos depoimentos das testemunhas e pelos documentos, juntos aos autos, o que claramente não sucedeu.


XVII- Toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, designadamente através dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, no seu todo, corroboram as declarações de parte do Autor, resultando de toda a prova produzida que o Caminho 1...5 – Estrada de Local 2, atravessa a Quinta 1 e Anexas, que a Quinta 2 situa-se do lado norte da Quinta 1 e que ambas as Quintas confinam entre si.


XVIII-Pelo que se impunha, ao tribunal a quo, dar como não provado o ponto 7 “A Quinta 2 situa-se do lado sul da Estrada de Local 2 – Caminho Municipal 1...5”, e o ponto 8, “Este Caminho Municipal faz fronteira com a Quinta 1 e Anexas”, dos factos provados, e, impunha-se igualmente, ao Tribunal a quo, dar como Facto Provado a letra C, “Quinta 2» confina com a «Quinta 1 e Anexas” dos factos não provados


XIX- Pelo que Tribunal ad quem deverá considerar por não provados os pontos 7 e 8 dos Factos Provados e considerar por provada a letra C dos factos não provados.


XX- No que se refere á letra A e B dos factos não provados- “Para a construção do novo Hospital Central do Região 1, a R. ocupou o terreno do A”- resulta das declarações de parte do Autor aos minutos Minuto 3’22 (...)


XXI- Declarações que foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas:


- CC (...)


- FF (…)


- GG que confirmou ter tido conhecimento de um pedido de autorização de passagem pelo terreno, dirigido ao autor, conforme resultou do seu depoimento e disso, também foi entendimento do douto tribunal a quo (Motivação de facto – pág. 8 -2.º parágrafo).


XXI-Destes depoimentos, resultou inequivocamente que Ré ora recorrida “Para a construção do novo Hospital Central do Região 1, a R. ocupou o terreno do A”, ainda que não o tenha feito em toda a sua extensão como disso resultou claro do documento junto aos autos em sede de audiência de julgamento e pelo depoimento da testemunha DD aos Minutos 28’14 –“(...) a área daquele bocadinho da baleia deve ser aí 2720,9 m2 está aí nessa plantazinha.”


XXII- Como pode o douto tribunal a quo considerar que “(…) o taipal da vedação da obra acaba por respeitar a “língua” ou “baleia” de terreno de que o Autor se arroga proprietário. (…)” – Motivação de Facto (pág. 9 in fine e pág 10).


XXIII- Do despacho proferido aquando do depoimento da testemunha FF, resulta que não é visível o muro mieiro, veja-se que a Testemunha aos minutos 25’44 questionado pela Meritíssima Juiz se o muro está do lado de dentro do tapume, refere claramente –“Sim”.


XXIV- Se o muro mieiro não é visível, não será porque a vedação/tapume se situa na “língua” ou “baleia” de terreno propriedade o Autor aqui recorrente? A resposta, atenta a prova produzida só pode ser positiva.


XXV-A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, permitiria, ao Tribunal dar como provado a letra A (dos factos não provados). Pelo que deverá o Tribunal ad quem considerar por provada a letra A dos factos não provados.


XXVI-Da leitura da decisão em crise, constata-se existir vicio de raciocínio na apreciação da prova. Entende a recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da prova, fazendo uma apreciação arbitrária da prova produzida.


XXVII-Ignorou o douto Tribunal a quo as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto provada nos pontos 7 e 8 dos factos provados e não provada nas letras A, B e C dos factos não provados.


XXVIII-Ora, ponderada toda a prova documental, que o Tribunal “a quo”, na decisão de que ora se recorre, não valorizou corretamente os meios de prova: mapa cadastral com o requerimento de 02.05.2022 (ref.ª citius 3253497), o documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento, aquando da inquirição da testemunha DD, bem como a visualização do local através do Google Maps – imagem de junho de 2023-, ficando consignado em Ata que através do Google Maps, os depoimentos das testemunhas e declarações de parte produzidas em sede de julgamento; deveria o tribunal a quo dar como não provados os pontos 7 e 8 e como provadas as letras A, B e C.


XIX- Ao que acresce, ainda, que na sentença em crise o Tribunal a quo fundamenta a sua decisão em documentos cujo desentranhamento dos autos foi ordenado por aquele Tribunal (página 7), nomeadamente dos documentos juntos com o requerimento de 10.05.2023, desentranhado por despacho de 06.02.2024.


XXX-A ação de reivindicação é dirigida à entrega a coisa, o que significa que a causa de pedir não é apenas a titularidade ou os factos constitutivos do direito, mas também uma situação de desconformidade na relação com a coisa, consistente na sua detenção (ou posse) por terceiro, que implicitamente contraria a situação de direito real, e a que a entrega, enquanto momento essencial, deve pôr termo.


XXXI- A causa de pedir, na ação de reivindicação, é composta pelo direito real ou pelos seus factos constitutivos, e pela detenção da coisa por terceiro, em desconformidade com aquele direito, constituindo até a situação de facto desconforme um momento prévio sem o qual o recurso à reivindicação carece de sentido.


XXXII- Na ação de reivindicação, a causa de pedir é integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e, pela violação desse direito pelo reivindicado, consistindo, por um lado no reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e por outro lado na condenação do reivindicado a restituir-lhe a coisa reivindicada. É, exatamente nisto, que consiste o pedido e a causa de pedir nesta ação instaurada pelo autor recorrente contra a aqui Ré recorrida.


XXXIII-In casu, na sua da petição inicial, o Autor ora recorrente alega ser o proprietário do Prédio misto sito na Quinta 1 e Anexas, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 17.º da secção A e na matriz predial urbana sob os artigos 1362, 1371 e 2005 da freguesia da Sé e que a Ré Recorrida ocupa parte da sua propriedade sem qualquer título válido para o efeito, pedindo, além do mais, que a Ré seja condenada a restituir-lhe o prédio devoluto e livre de pessoas e bens.


XXXIV-O tribunal a quo reconheceu e declarou o Autor, como dono e legitimo proprietário do prédio misto denominado “Quinta 1 e Anexas”, encontrando-se, assim, demonstrada a titularidade do seu direito de propriedade.


XXXV- E, demonstrado ficou, que a Ré se encontra a ocupar o prédio, designadamente a parcela 14 do prédio 17, sobre o qual incide o direito do Autor, uma vez que A Quinta 2 e a Quinta 1 e Anexas são confinantes conforme inequivocamente resultou provado, não só pelos depoimentos das testemunhas, bem como pelos documentos juntos aos autos e visualização do Google Maps, atravessa a Quinta 1 e Anexas.


XXXVI- Mostrando-se, assim, violado o direito do Autor por parte da Ré, havendo assim que restituir a parcela 14 do prédio 17 (“língua” ou “baleia”) ao seu proprietário, aqui o Autor ora Recorrente.


XXXVII-Estabelece no art.º 1311.º, n.º 2 do Código Civil, que, “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”. Sobre o autor de uma ação de reivindicação impende apenas o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa que reivindica e que esta se encontra em poder do réu. O réu, por sua vez, se quiser evitar a condenação terá de alegar e provar que a sua detenção é legítima e oponível ao autor.


XXXVIII-Ora, in casu, é patente que a Ré não logrou fazer a prova de que beneficia de título válido que legitime a ocupação, pelo que a detenção do imóvel, designadamente a parcela 14 do prédio 17, não pode deixar de considerar abusiva.


XXXIV-O artigo 1305º do CC confere ao proprietário os direitos de uso e fruição da coisa pelo que, estando o Autor impedido de fruir o prédio e não tendo a Ré logrado convencer que o detém com base em título válido oponível ao proprietário, assiste ao Autor o direito de formular o correspondente pedido de indemnização, como forma de reparar os prejuízos decorrentes daquela privação.


XXXV-, Acolhemos a tese que defende que para o ressarcimento ao Autor é suficiente a prova da mera privação do uso, pois é esta privação que constitui um dano de natureza patrimonial, indemnizável nos termos do artigo 483º do CC.


XXXVI-Quanto ao direito indemnizatório do Autor de referir será que com os pedidos próprios da ação de reivindicação (reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa) podem cumular-se outros pedidos acessórios, isto é, o pedido de indemnização.


XXXVII-Não podemos ignorar os factos dados como assentes no ponto 4 e 5 dos Factos provados, a Ré contactou a então proprietária por questões relacionadas com a construção do novo hospital na Quinta 2, para solicitar autorização para acesso e passagem à obra que iria iniciar (o novo hospital), e daqui terá de ser concluir se a Ré tem conhecimento e consciência que está a ocupar uma “língua” de terreno (parcela 14) parte integrante do prédio do autor.


XXXVIII-Ficando, assim, demonstrada e provada a ocupação pela Ré, sem título, o prédio do Autor, designadamente, a parcela 14 do prédio 17, pelo menos desde setembro de 2021, o que é fundamento para a sua condenação no pagamento de uma quantia, a título de privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita, que importa na existência de um dano de que o lesado, aqui Autor Recorrente deve ser compensado.


XXXIX-Com a douta sentença proferida, violou o tribunal a quo o disposto nos artigos 1311.º, 1305.º, 483.ºe 563.º todos do Código Civil e artigo 7.º do Código do Registo Predial


A R. respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


Foi depois proferida decisão a considerar habilitada a Administração Central do Sistema de Saúde, IP, para intervir nos autos em substituição da Administração Regional de Saúde do Região 1, IP.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar:


- o mérito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


- reflexos da pretendida alteração da matéria de facto sobre o dever de desocupação e o pagamento de uma invocada indemnização.


III. Foram considerados provados os seguintes factos [2]:


1. A propriedade do prédio misto sito na «Quinta 1 e Anexas», inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 17 da secção A e na matriz predial urbana sob os art.º 1362,1371 e 2005 da freguesia da Sé e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 8424 da referida freguesia da Sé (extinta), encontra-se inscrita a favor do Autor;


2. A Ré é uma pessoa colectiva de direito público, integrada na administração indirecta do Estado, dotada de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial serviço desconcentrado do Ministério da Saúde, tem como âmbito de actuação a região Região 1 e a sua actividade visa coordenar as ofertas e optimizar os recursos disponíveis para prestar os cuidados de saúde necessários à comunidade que serve;


3. O Estado Português é dono e legítimo proprietário do terreno denominado Quinta 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, sob o n.º 464, do Livro n.º 4-Ex, da freguesia da Local 4, com a área de 75,575ha, inscrito na matriz predial rústica da Sé, sob o artigo n.º 7, Secção B;


4. Em momento anterior ao Verão do ano de 2021, a R. contactou AA (anterior proprietária do prédio) através do seu procurador em Portugal, o agora Autor, BB, uma vez que aquela dividia a sua vida entre Portugal e a Suíça;


5. Tais contactos prendiam-se com a construção do novo Hospital Central do Região 1 no terreno denominado Quinta 2 e identificado em 3;


6. O ora Autor não se opôs à passagem dos executantes da obra pela propriedade (que à data pertencia a AA);


7. A Quinta 2 situa-se do lado sul da Estrada de Local 2 – Caminho Municipal 1...5;


8. Este Caminho Municipal faz fronteira com a «Quinta 1 e Anexas»;


9. A «Quinta 1 e Anexas» encontra-se a ser explorada por um rendeiro há cerca de 8 anos.


E foram tidos por não provados os seguintes factos:


A. Para a construção do novo Hospital Central do Região 1, a R. ocupou o terreno do A.;


B. A R. instalou um estaleiro nos terrenos do A., sem contrapartida pecuniária, e conduz a obra a partir daí;


C. A Quinta 2 confina com a «Quinta 1 e Anexas»;


D. A A. tinha colocado o bem imóvel em causa no âmbito do mercado imobiliário para venda;


E. A avaliação imobiliária em questão apontava para quantias a rondar os vários milhões de euros;


F. O A. encontra-se impossibilitado de vender o prédio denominado «Quinta 1 e Anexas» por conta da actuação da R.;


G. O A. encontra-se impossibilitado de actualizar o valor da renda cobrada por conta da actuação da R.;


H. O A. deixou de receber apoios do IFAP referentes a uma parcela do seu terreno, por conta da actuação da R.


IV.1. O recorrente cumpriu com suficiência os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (art. 640º do CPC), importando avaliá-la (isto considerando que os factos impugnados correspondem a uma unidade de sentido ou à mesma realidade factual).


A questão factual radica, em primeira linha, na determinação dos limites dos dois prédios em causa. Com efeito, a tal matéria respeitam directamente os factos provados 7 e 8 e o facto não provado da al. c), sendo que os factos não provados das al. a) e b) dependem ainda daquela delimitação (a existência de ocupação indevida é questão que tem como pressuposto prévio a fixação dos limites dos prédios).


A prova testemunhal não facultou dados, em si, relevantes, sendo notório que nenhuma das testemunhas tinha conhecimentos autónomos sobre os limites dos prédios. Assim:


- a testemunha DD (que realizou levantamento topográfico do CM 1...5) afirmou que o Caminho Municipal 1...5 atravessava («um bocadinho») a Quinta 1, assim indicando que não seria este caminho a separar os prédios (levou cópia do levantamento que realizou e que foi nessa altura junto ao processo, sendo mais tarde junta cópia a cores). Mas a base da sua afirmação (e do levantamento topográfico que realizou) assentava exclusivamente nos dados cadastrais. Ou seja, não conhecia os limites dos prédios mas apenas aquilo que decorria da planta cadastral.


- a testemunha EE (funcionária da CM de Cidade 1 que foi contactada pelo A. em virtude de dúvidas sobre o CM 1...5, e que esteve depois no local) afirmou que aquele caminho atravessava a Quinta 1, mas, questionada sobre a razão de ciência, afirmou que se baseou exclusivamente na planta cadastral. Tanto que questionada sobre a titularidade da parte «sobrante» do caminho (a área situada após o CM, do lado oposto à Quinta 1), remeteu o esclarecimento da questão para a D. G. do Território. Ou seja, volta a ser aquela planta cadastral o elemento delimitador dos prédios.


- as testemunhas HH (funcionária da Administração Regional de Saúde do Região 1, por isso tendo tido contacto com a situação da obra relacionada com o hospital), FF (engenheiro envolvido no concurso relativo à construção do hospital, cuja construção acompanha) e GG (que, à data, chefiou o gabinete jurídico da Administração Regional de Saúde do Região 2) nenhum contributo facultaram quanto a este aspecto da discussão (sendo que a testemunha FF referiu o muro mas não o indicou como elemento delimitador dos prédios, sendo imprecisa a invocação desta circunstância pelo A. no recurso).


- e a testemunha CC (arrendatário da Quinta 1 e, antes, utilizador das suas pastagens), afirmou que aquela Quinta ocupava os dois lados da estrada (referindo-se ao CM 1...8) mas não explicitou a razão por que assim era, pelo que a afirmação mais não era do que expressão da sua convicção, e não razão de facto.


Quanto às declarações de parte do A., este, naturalmente, sustentou que a parte controvertida pertencia ao prédio de que é dono (a Quinta 1). Pese embora se admita que estas declarações têm valor probatório próprio, não dependente de outros elementos probatórios, devem ser sempre encaradas com cautela, dada a evidente ligação da parte ao conflito. No caso, não se reputaram aquelas declarações como suficientemente convincentes e seguras por si para sustentarem asserções probatórias determinantes, já que, de um lado, a sua posição se baseou igualmente no aludido mapa cadastral, e, de outro lado, numa utilização da parcela que se não mostra realmente corroborada pelos demais elementos. Assim, o A. afirmou que durante muitos anos trataram e limparam a zona e que ela era plantada pelo rendeiro (CC), sendo que esta testemunha, se começou por afirmar que usou «sempre» aquela área, logo de seguida, e quando pedida concretização, revelou que a utilização era afinal apenas episódica («às vezes») e limitada (semeando uma cultura para as vacas); acresce que basta atentar na zona tal como disponível no Google maps, como feito em audiência, mas sobretudo no Google earth, para não apenas verificar inexistirem sinais de culturas desde pelo menos 2006 [3] como se revelar alguma impropriedade da área para utilização agrícola (bastante limitada e estreita, com árvores, sendo necessário atravessar a estrada para a ela aceder e perante uma área muito maior disponível na Quinta 1 situada antes do CM 1...5) - asserção de algum modo corroborada pelo depoimento, distanciado, da referida testemunha FF, que afirmou estar o espaço ocupado por mato e algumas árvores (sugerindo ainda que estaria ao abandono, e adiantando que não faria sentido pastorícia ou outra utilização). Acresce a forma empenhada como depôs, ou as tiradas impertinentes que no decurso das declarações fazia (revelando ao menos falta de distanciamento e rigor, se não mesmo uma postura inadequada [4]), a corroerem o seu capital de convencimento. Para além de, em termos objectivos, fazer afirmações que revelavam falta de coerência, como quando afirmou que era possível construir uma casa na zona em causa, o que a visualização do local na planta junta em audiência ou no Google maps (como feito em audiência), mormente no street view, revela que o espaço é demasiado limitado para o efeito. Ou quando sustentou que não actualizava a renda por o rendeiro estar privado da parcela em disputa (falando em razões morais) quando, e como se referiu, não apenas o rendeiro não assumiu uso relevante da parcela, como estão em causa cerca de 3,5% por cento da área total da Quinta (atendendo à área que consta da planta junta em audiência: cerca de 2.700 m2) e zona, como referido, de diminuta aptidão para utilização eficaz. Acresce que o próprio A. admitiu, nas suas declarações, que a área ocupada era afinal muito pequena (40 ou 50 m2). Não se pretende com isto afirmar que as suas declarações devem ser inteiramente descartadas, mas apenas que, por razoes objectivas e subjectivas, elas se mostram deficientes, incapazes por isso de servir de esteio à demonstração da matéria em causa.


Donde não serem estes elementos probatórios pessoais realmente consequentes.


2. Seguiam-se depois dois dados de origem documental. De um lado, a planta cadastral (junta ao processo e mostrada às testemunhas em julgamento) e, de outro lado, as menções às confrontações que constam do registo predial. Importa, previamente, esclarecer a natureza e, sobretudo, o alcance probatório de tais documentos.


A planta cadastral constitui um documento autêntico, na medida em que corresponde à noção que deriva do art. 363º n.º2 do CC. Mas tal não clarifica só por si o seu regime probatório porquanto este depende de outras regras. Assim, depende em primeiro lugar do próprio regime e finalidade do cadastro, tal como vigente na data da elaboração do mapa cadastral. De acordo com dados disponíveis no site da DGT, o mapa cadastral geométrico de Cidade 1 baseou-se em levantamento efectuado em 1950/1 e entrou em vigor em 1956 (o que se aproxima das declarações do A.). À data, o cadastro era regulado pelo Decreto 12.451, de 27.10.1926, e servia fins essencialmente fiscais - na verdade, e além da identificação da propriedade rústica, visava justamente o lançamento da contribuição predial rústica (art. 1º). Isto significa que não tinha por finalidade marcar de forma autónoma, e dotada de autoridade, os limites dos prédios (aliás, em caso de desacerto entre proprietários, estabeleciam-se soluções de compromisso que ressalvavam expressamente a reivindicação de direitos - v. art. 25º). O valor probatório de tal documento depende, por outro lado, dos termos da sua constituição. A delimitação realizada baseava-se essencialmente em observações no local (mormente marcos ou uma «linha estável»), ajustadas com informações da comissão censuária de cada freguesia (composta por um representante da Administração Geral dos Serviços Geodésicos, um membro nomeado pela freguesia e um terceiro membro nomeado pelos proprietários - art. 5º) e das partes interessadas e, na sua falta, em «informações locais», sendo em caso de dúvida atendida a posse existente (art. 21º e ss.). Ou seja, os limites dos prédios não são fixados com base em intervenções autónomas de agentes públicos (a partir de conhecimentos directos e específicos), mas a partir de informações colhidas nos locais, e informações essencialmente verbais [procedimento que se manteve no DL 143/82, de 26.04 (art. 3º e 7º), no DL 172/95, de 18.07 - que nunca foi efectivamente implementado - e no essencial se mantém no DL 72/2023, de 23.08]. Tudo isto significa, por sua vez, que o mapa cadastral não faz prova plena dos limites que refere pois estes não são factos da própria autoridade nem são factos que ela percepcione directamente [5] (art. 371º n.º1 do CC). Daqui se segue que se trata de documento sujeito, em termos probatórios, à livre apreciação do tribunal [6].


Quanto ao registo predial, os seus dados [7], comprovados por certidão (art. 383º n.º1 do CC e art. 110º do CRP), também correspondem a um documento autêntico, à luz do referido art. 363º n.º2 do CC. Mas, de forma paralela ao cadastro, o registo documentado também não tem, quanto às confrontações, valor probatório especial. De um lado, por razões inerentes ao sistema. Com efeito, visando o registo predial publicitar a situação jurídica dos prédios, estes constituem a base da situação jurídica publicitada (art. 79º n.º1 e 80º do CRP), mas não o objecto de tal publicidade. Daí que, coerentemente, o efeito presuntivo do registo só abranja aquela situação jurídica: presume-se a existência e titularidade do direito registado, mas não os dados do prédio sobre que incide (art. 1º, 2º e 7º do CRP). Por isso que aquele art. 7º se refira ao registo definitivo (que é apenas a inscrição do facto jurídico), e a esse registo faça corresponder os elementos que presume (direito e sua titularidade), nada indicando quanto à descrição. E também por isso que a «fé pública» do registo não se estenda aos dados da descrição, mormente às confrontações [8]. Também assim porque, se o legislador pode atribuir aos dados jurídicos constantes do título alguma constância, fazendo-os presumir, de nada adianta fazê-lo em relação a realidades físicas a que o registador não tem acesso directo (ao contrários do que ocorre com o título jurídico que regista) e que, por natureza (a realidade física, impõe-se, obviamente, à sua mera descrição), prevalecem sobre os dados do registo [parafraseando Seabra de Magalhães, de nada adianta registar uma quinta se na realidade se trata de um quintal...]. De outro lado, as confrontações não correspondem a dados de que o registador (o oficial público) tenha conhecimento directo, sendo colhidas dos títulos que sujeitam o facto registando ou de declarações avulsas das partes (art. 90º n.º1 al. c) e 38º n.º2 do CRP [9]). E por isso que não estão cobertas pelo regime do referido art. 7º do CC. Mas as confrontações que constam do registo não deixam de ter valor probatório (ou de poderem ter valor probatório), embora não privilegiado ou reforçado. O que se justifica desde logo por elas serem colhidas, como referido, dos títulos que sustentam o registo (títulos nos quais intervêm necessariamente os titulares dos bens, e que por isso neles assumem as confrontações indicadas) ou de declarações adicionais (dando lugar a averbamento que, existindo proprietários inscritos, não se pode fazer sem alguma forma de contributo por parte destes, ou de conhecimento por estes: art. 38º n.º1 al. a) e c) do CRP). Por isso que se afirme que aquela indicação das confrontações no registo predial constitua prova prima facie (sujeita a contraprova) [10], por existir uma relação típica entre ela e a realidade.


Atendendo assim a estes dados documentais, o que se verifica é que são contraditórios, por a planta cadastral indicar um limite que faz o prédio do A. confrontar com o prédio do Estado, enquanto o registal predial faz coincidir o limite do prédio do A. com uma estrada, existindo no local o CM 1...8. Atendendo apenas aos documentos, torna-se difícil estabelecer uma relação de prevalência probatória de um sobre o outro. Notando-se que os dados cadastrais não se impõem, quanto às confrontações, aos dados registais, como resulta do art. 28º n.º1 e 2 do CRP.


Porém, concorrem no caso elementos acessórios que permitem dar prioridade aos dados do mapa cadastral.


Assim, verifica-se que:


- a articulação do mapa cadastral com os dados do Google earth revela que os limites que constam daquele mapa coincidem com um muro existente após o CM 1...5, delimitando a zona que o A. reclama (muro, aliás, bastas vezes referido em audiência [11]). Ou seja, o muro coincide com os limites constantes do mapa cadastral. A questão que se coloca então é saber se tal muro seria delimitador dos dois prédios (das duas Quintas) ou se seria um muro interno da Quinta 2. Ora, o que se observa no Google earth é que esta Quinta não tinha outros muros interiores, sendo um espaço amplo sem delimitações. Pelo que não parece curial que aquele muro fosse apenas um muro interior. Acresce que não faria sentido fazer um muro interno nesta Quinta a muito curta distância da estrada existente, para autonomizar uma tira de terreno irregular, privando-a assim de uma utilização racional e eficaz. Ainda que a existência de tal muro anteceda aquele CM 1...8, permanecia a mesma dificuldade, já que ninguém pretende que a Quinta 2 se prolongava para além do sítio onde se localiza aquela EM, pelo que o muro continuaria a demarcar uma zona mínima, sem razão consistente. Acresce que também se verifica, no street view do Google earth, que nas zonas mais baixas desse muro foi colocada uma vedação em arame (em 2009 e em 2014), o que também se ajusta à ideia de que o muro tinha uma função separadora dos prédios em causa. Aliás, a vedação em arame tem uma clara função impeditiva da passagem, assim se justificando, com normalidade, a sua colocação no limite do prédio. Por isso que existam dados bastantes para o considerar ao menos indiciariamente como delimitador.


- neste sentido concorre também a existência de dois marcos junto ao muro, referidos pela testemunha DD (e ainda pelo A.), dando maior credibilidade a este valor delimitador do muro e, assim, aos termos do mapa cadastral.


- não consta que o mapa cadastral tenha sido objecto de impugnação quanto aos limites que assinala. E trata-se de mapa que vigorou por mais de 60 anos, servindo de base aos dados tributários, sendo plausível que, estando incorrecto na delimitação em causa, tivesse já sido discutido.


- a única alteração do local posterior àquele mapa foi a construção do referido CM 1...5, mas esta não alterou os limites cartografados.


São estes dados que, assim, tendem a corroborar suficientemente a delimitação decorrente do mapa cadastral, e bem assim a posição do A..


Curiosamente, o que todavia se não usa como meio de prova, o actual mapa cadastral delimita de forma diferente a Quinta 1, mas deixa o terreno em causa como terra de ninguém pois também não o integra na Quinta 2 [https://snic.dgterritorio.gov.pt/visualizadorCadastro]. Tal pode dever-se justamente à controvérsia existente.


De outro lado, deve levar-se em conta a realidade, comummente conhecida, subjacente à indicação das confrontações. Com efeito, é sabido que as partes têm preocupação limitada com a indicação das confrontações. Acresce que as confrontações não correspondem à definição directa dos limites do prédio mas a um efeito destes limites. O que fragiliza a relação típica existente entre as confrontações e a definição dos limites dos prédios, tornando menos segura a prova de primeira aparência. Por fim, e no caso, ignora-se a origem exacta das confrontações registais (de onde foram colhidas). Sendo que no livro de onde foi extractada a descrição predial do prédio do A. consta que já em 1895 a Quinta 1 confrontava a sul com a estrada de Local 5 (antecedente do actual CM 1...5, embora não se demonstre que os traçados coincidem) e a Quinta 2, o que torna ainda mais insegura a origem da menção.


Acresce que a prova de primeira aparência derivada das confrontações registais é, na verdade, frágil, pelo exposto, podendo até justificar-se sustentar, com T. de Sousa, que «princípio (ou começo) de prova é o menor grau de prova: ele apenas vale como factor corroborante da prova de um facto» [12], não valendo assim exactamente como directamente demonstrador de tal facto.


Neste quadro, tem-se por suficientemente seguro que o espaço em causa integra o prédio do A.. Tal significa, de um lado, que não é possível dar como provado o que consta de 8 dos factos provados pois ele inculca ou pretende revelar que o CM 1...5 constitui o limite sul do prédio do A.. E o mesmo vale para o facto 7 na medida em que, embora com formulação pouco feliz, também pretende revelar que o mesmo CM 1...5 constitui o limite (norte) da Quinta 2. Deverão ser assim relegados para o elenco de factos não provados. E significa, de outro lado, que deve ser dado como provado ao menos em parte o facto que consta na al. c) dos factos não provados. Mas apenas em parte porquanto o mapa cadastral (a partir do documento elaborado pela testemunha DD e junto em audiência de julgamento) revela que na zona em discussão as Quinta 1 e da Quinta 2 confrontam entre si, como se afirma nesta alínea; mas também revela que existe outra zona onde o prédio do A. já confronta, ainda a sul, com o CM 1...5 (zona superior da planta apresentada). Donde não ser possível afirmar-se que a sul confronta com o prédio do Estado pois tal envolve uma exclusividade que não se verifica. Assim, deverá ter-se por provado que: A Quinta 2 confina em parte, após o CM 1...5, com a «Quinta 1 e Anexas» (e não é possível ser mais descritivo dada a exiguidade da alegação do A., que nunca concretiza a área controvertida e até confunde a parte com o todo, reclamando a entrega do prédio na totalidade, como se fosse todo este, e não apenas uma sua pequena parte, que estivesse alegadamente ocupada).


3. No que toca à ocupação de terreno do A. (als. a) e b) dos factos não provados), e como acabou de se referir, o A. não alegou especificamente qual a zona ocupada (art. 14º da PI) e o pedido de restituição formulado até se reporta a todo o prédio do A.. Trata-se de deficiências que, contudo, já não relevam nesta sede. Aqui, nota-se que a discussão vem, em julgamento, a centrar-se apenas na zona do prédio do A. que se situa para além do CM 1...5. É a essa zona que se devem dirigir os factos descritos nas al. a) e b) do elenco de factos não provados.


No que toca à al. b) dos factos não provados, a impugnação é, em rigor, temerária, pois inexiste qualquer prova que ateste que o estaleiro está instalado na zona em discussão (nem o próprio A., nas suas declarações, o sustentou, e as imagens do Google maps/earth são quanto a isso esclarecedoras).


No que toca à al. a), dos factos não provados, deve começar por notar-se que a afirmação da ocupação tem um sentido genérico ou mesmo conclusivo, pois a referência a uma ocupação postula que se indique como se ocupa, quais os actos de ocupação. O que o A., na lógica da sua alegação, fez, concretizando que a ocupação consistia na instalação do estaleiro na zona disputada (v. art. 14º e 15º da PI). Como esta instalação não se prova, tal deveria, por inerência lógica, impedir a demonstração de uma ocupação que se concretizava justamente naquela instalação do estaleiro.


De todo o modo, ainda se revela que a prova produzida também não confirma outro tipo de ocupação. Assim:


- é o próprio A. quem, nas suas declarações de parte, afirma que o R. não está a ocupar a área controvertida. Referiu, como se disse, a ocupação de 40 ou 50 m2, mas reportando-se à zona onde foi colocada gravilha em zona de passagem, e passagem que seria autorizada, como também referiu - v. também facto provado 6. Apesar de alguma ambiguidade na descrição deste facto, trata-se de verdadeira autorização concedida, como decorre da articulação dos art. 3º a 6º da PI e das aludidas declarações do A.. Ora, não se vê como pode o A. (ou a sua antecessora [13]) autorizar a passagem sem esperar que essa passagem envolva alterações do solo (decerto, não iam os veículos circular em cima de material vegetal e terra solta e irregular), pelo que essa colocação de gravilha, tolerada, não constitui sequer intervenção ilegítima, justificadora da sua qualificação como ocupação de (parte) da propriedade do A.. Acresce que mesmo essa passagem não era usada (como decorria v.g. do depoimento, crível, da testemunha II, indicando o uso exclusivo de outra entrada - o que as imagens do Google maps e earth, incluindo a street view, confirmam, vendo-se sempre fechado o portão situado junto à zona controvertida e usada a outra entrada, onde se vêem viaturas). Quanto à colocação de manilhas (de que apenas o A. falou, ignorando-se de todo onde se encontram - ou se na verdade se encontram na zona em causa) ou sinais (sendo também a alegação omissa quanto às manilhas ou sinais), ou mesmo a colocação da gravilha (a revelar-se que excede a autorização de uso, o que não ocorre por falta de dados), não constituem em rigor dados reveladores de uma ocupação tal como alegada (pese embora a deficiente alegação, a restituição só se justifica se o ocupante está no espaço reivindicado, usando-o ou detendo-o, em detrimento do uso do proprietário) mas apenas uma intervenção ilegítima que pode justificar a remoção do colocado, mas não constitui propriamente uma actuação usurpadora do espaço tal como pressuposta num pedido de restituição [14].


- ausência de ocupação que foi também expressamente afirmada pelas referidas testemunhas HH, II e GG (testemunha esta que até explicou a intencional abstenção de utilização, motivada pela controvérsia sobre a titularidade do terreno), e que apenas é contrariada, de forma pouco segura e convincente, pela testemunha CC. Com efeito, e quando questionada esta testemunha sobre se as obras levadas a cabo pela R. ocupavam espaço daquela quinta respondeu dubitativamente («acho que sim»), carácter dubitativo que se manteve quando se referiu a um corte de árvores na zona da Quinta, e que apenas se transformou em certeza quando, confrontado com uma pergunta sugestiva (formulada pela Ilustre Mandatária do A.), ou seja, uma pergunta que já continha a resposta, respondeu com um redondo «sim», sem mais. Obviamente que esta resposta carece de qualquer valor probatório (e por isso que não se devem nunca formular perguntas sugestivas), e não existe qualquer elemento adicional do depoimento que lhe acrescente qualidade persuasiva, permanecendo apenas o carácter inseguro do depoimento.


- aquela ausência de ocupação é, em último termo, igualmente confirmada pelas imagens do Google earth que revelam, desde 2022, a inexistência de qualquer sinal de ocupação da zona disputada - assim como revelam que o tapume colocado coincide com a disposição do muro ali existente (vide imagens de 2021 para 2022). E se é certo que a testemunha FF referiu que os tapumes colocados tapam o muro, também a testemunha HH referiu que estão encostados ao muro, ficando por revelar qualquer ocupação (e por explicitar, sequer, se o muro em causa pertencia ao prédio do A., e não ao prédio onde se constrói o hospital). Nunca seria possível, assim, suportar a afirmação (ocupação) que o A. sustenta no recurso.


Não existe, pois, fundamento para ter como provados os factos elencados nas referidas al. a) e b) dos factos não provados.


4. Deste modo, são os seguintes os factos provados e não provados:


1. A propriedade do prédio misto sito na «Quinta 1 e Anexas», inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 17 da secção A e na matriz predial urbana sob os art.º 1362,1371 e 2005 da freguesia da Sé e descrito na Conservatória do Registo Predial deCidade 1 sob o n.º 8424 da referida freguesia da Sé (extinta), encontra-se inscrita a favor do Autor;


2. A Ré é uma pessoa colectiva de direito público, integrada na administração indirecta do Estado, dotada de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial serviço desconcentrado do Ministério da Saúde, tem como âmbito de actuação a região Região 1 e a sua actividade visa coordenar as ofertas e optimizar os recursos disponíveis para prestar os cuidados de saúde necessários à comunidade que serve;


3. O Estado Português é dono e legítimo proprietário do terreno denominado Quinta 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, sob o n.º 464, do Livro n.º 4-Ex, da freguesia da Local 4, com a área de 75,575ha, inscrito na matriz predial rústica da Local 4, sob o artigo n.º 7, Secção B;


4. Em momento anterior ao Verão do ano de 2021, a R. contactou AA (anterior proprietária do prédio) através do seu procurador em Portugal, o agora Autor, BB, uma vez que aquela dividia a sua vida entre Portugal e a Suíça;


5. Tais contactos prendiam-se com a construção do novo Hospital Central do Região 1 no terreno denominado Quinta 2 e identificado em 3;


6. O ora Autor não se opôs à passagem dos executantes da obra pela propriedade (que à data pertencia a AA);


7. (...);


8. (...);


9. A «Quinta 1e Anexas» encontra-se a ser explorada por um rendeiro há cerca de 8 anos.


10. A Quinta 2 confina em parte, após o CM 1...5, com a «Quinta 1 e Anexas».


E são tidos por não provados os seguintes factos:


A. Para a construção do novo Hospital Central do Região 1, a R. ocupou o terreno do A.;


B. A R. instalou um estaleiro nos terrenos do A., sem contrapartida pecuniária, e conduz a obra a partir daí;


C. (...).


D. A A. tinha colocado o bem imóvel em causa no âmbito do mercado imobiliário para venda;


E. A avaliação imobiliária em questão apontava para quantias a rondar os vários milhões de euros;


F. O A. encontra-se impossibilitado de vender o prédio denominado «Quinta 1 e Anexas» por conta da actuação da R.;


G. O A. encontra-se impossibilitado de actualizar o valor da renda cobrada por conta da actuação da R.;


H. O A. deixou de receber apoios do IFAP referentes a uma parcela do seu terreno, por conta da actuação da R.


I. A Quinta 2 situa-se do lado sul da Estrada de Local 2 – Caminho Municipal 1...5;


J. Este Caminho Municipal faz fronteira com a «Quinta 1 e Anexas»;


V.1. As pretensões do A. reconduziam-se ao pedido de restituição do seu prédio (rectius, de parte do seu prédio) ocupada pelo R. e ao pagamento de indemnização pela inerente privação do uso.


A falta de demonstração dos factos demonstrativos daquela ocupação impedem o acolhimento destas pretensões.


Sem embargo, não deixa de se notar, quanto à pretensão indemnizatória que vem discutida no recurso, que não está em causa algum pedido de indemnização pela privação do uso com base na responsabilidade civil extracontratual (como expressamente se sustenta no recurso), pois, nos termos da PI aperfeiçoada que o recorrente apresentou (e que não foi censurada), o pagamento que é peticionado é formulado a título de sanção pecuniária compulsória (instituto este diferente da responsabilidade civil e sujeito a pressupostos distintos). É certo que na fixação do objecto do litígio se refere estar em causa o pagamento de «uma indemnização a título de responsabilidade civil extracontratual», afirmação que vem depois repetida na sentença impugnada, mas, tendo o aperfeiçoamento realizado respeitado os limites do convite ao aperfeiçoamento formulado, não tendo sido recusado, é ele que marca os limites da pretensão do A.. O eventual erro da sentença não releva porquanto não altera o alcance do pedido efectivamente formulado, nem, nesta parte, existe caso julgado a respeitar (justamente por via da impugnação do recorrente, mas também pelo sentido negativo da decisão). De outro lado, a posição do recorrente não releva porque não pode, em sede de recurso, alterar a pretensão que anteriormente definiu. O que só por si inviabilizaria a pretensão indemnizatória (com base na responsabilidade civil extracontratual) que vem invocada no recurso.


2. Do ponto de vista do mérito do recurso, a alteração dos factos provados altera também o âmbito do reconhecimento da propriedade do A. que foi fixado na primeira instância, pois, enquanto aí o prédio era delimitado pelo CM 1...8, aqui passa a abranger também zona que fica além daquele CM 1...5. Nesse medida, o recurso beneficiou-o. Mas como o decaimento se afere pelas pretensões formuladas com reflexos no dispositivo, o decaimento no recurso tem que se ter por total, e por isso tem o A. que suportar as custas inerentes (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pelo recorrente.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

António Marques da Silva - Relator

Ana Pessoa - Adjunta

Susana Ferrão da Costa Cabral- Adjunta

_____________________________________

1. Tratava-se aqui de reprodução integral de declarações, reprodução esta descabida em sede de conclusões e que por isso não são aqui reproduzidas. O mesmo procedimento foi adoptado em outros momentos das conclusões nas quais o recorrente adoptou semelhante procedimento. Conclusões, aliás, em si demasiado prolixas, excedendo a formulação sintética das questões relevantes que a lei pretende, mas conclusões cujo aperfeiçoamento se não implementou por, no caso, acabar por redundar em acto sem relevo útil, meramente disciplinador mas sem ganhos relevantes (e provocando dilação adicional).↩︎

2. Em reprodução literal.↩︎

3. As imagens anteriores não têm resolução bastante para visualizar a zona em concreto com suficiente precisão ou pormenor.↩︎

4. E o pedido de desculpa subsequente apenas revela que o declarante tinha noção dos limites que ultrapassava.↩︎

5. O máximo que percepcionava eram informações verbais ou marcos no local - mas estes marcos nem constam do mapa.↩︎

6. Como se explicita com maior rigor no Ac. do STJ de 09.09.2010, proc. 398/04.1TBPNI.L1.S1 (em 3w.dgsi.pt), justamente citado pela sentença recorrida.↩︎

7. Simplificando, sem atender à sua actual concretização informática, mas valendo também a sua revelação através de certidões que, impressas, constituem documentos físicos.↩︎

8. Solução jurisprudencialmente pacífica: v., por exemplo, o Ac. do STJ de 02.03.2023, proc. 1091/20.3T8VCT.G1.S1, de 14.07.2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1, ou de 18.01.2018, proc. 668/15.3T8FAR.E1.S2 (em 3w.dgsi.pt).↩︎

9. As al. a) e b) do n.º1 do art. 90º do CRP não valem para as confrontações.↩︎

10. Assim, L. de Freitas em anotação nos Cadernos de Direito Privado n.º30, pág. 22 nota 8.↩︎

11. Sendo referido em regra como meeiro, assim se assumindo uma realidade que era controvertida...↩︎

12. CPC online no Blog do IPPC, nota 6 da «NP art. 410.º-526.º».↩︎

13. Com efeito, e pese a descrição do facto 6, foi esta, então proprietária, quem deu a autorização, como o A. confirmou.↩︎

14. V.g., se deposito lixo num terreno alheio, intervenho nele ilegitimamente mas não o ocupo, no sentido suposto por um pedido de restituição.↩︎