Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
55/22.7YREVR
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: As sentenças proferidas pelo Supremo Tribunal do Reino Unido em momento anterior ao do BREXIT são reconhecidas nos outros Estados-Membros sem quaisquer formalidades e uma decisão proferida num Estado-Membro que aí tenha força executória pode ser executada noutro Estado-Membro sem que seja necessária qualquer declaração de executoriedade, tal como resulta da letra dos artigos 36.º e 39.º do Regulamento 1215/12.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 55/22.7YREVR
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Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
(…), residente em 16 Longmead Way, (…), M24 2SL, Reino Unido,
intentou a presente acção declarativa com processo especial de revisão de sentença estrangeira
contra
(…), residente na Estrada do (…), Edifício (…), Apartamento (…), 8400-505 Carvoeiro, Lagoa (Algarve).
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Pede o requerente a revisão e a confirmação da sentença proferida pelo Tribunal de Família de Oldham, Reino Unido, no processo n.º OL12D00159, em 08/05/2012, que decretou o divórcio entre (…) e (…).
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Devidamente citada, a requerida não deduziu oposição. *
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 982.º do Código de Processo Civil e o Ministério Público pronunciou-se contra a revisão e confirmação da decisão estrangeira. *

II – Saneamento:
O Tribunal é o competente, não se verificando quaisquer excepções dilatórias, nulidades ou questões prévias que importe decidir.
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III – Factos com interesse para a justa resolução da causa:
1) … e … contraíram matrimónio em 05/02/1986, segundo o regime britânico equivalente ao regime português da comunhão geral de bens – conforme certidão de casamento, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
2) Por sentença judicial proferida pelo Tribunal de Família de Oldham, Reino Unido, Processo de Divórcio n.º OL12D00159, em 08/05/2012, foi decretado o divórcio entre (…) e (…) – conforme certidão de casamento, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
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IV – Enquadramento jurídico:
De acordo com a jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores, em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, perfilam-se duas orientações extremas: a da “revisão de mérito” e a da “aceitação plena”: a) no primeiro caso, a recepção de uma sentença impõe uma revisão de mérito, o que implica quase que se ignore o aresto de origem, relegado para a posição de simples fundamento, para que o Estado do foro proceda a julgamento, emitindo a final uma nova decisão de mérito; b) no segundo caso, advoga-se o acolhimento amplo das sentenças estrangeiras, sendo certo que cedo se reconheceu a dificuldade da sua aplicação no estado puro, o que originou a existência de excepções, considerando as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos dos países de acolhimento[1].
Na situação vertente, o requerente faz uso do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012, que se aplica em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição.
No entanto, as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros sem quaisquer formalidades (n.º 1 do artigo 36.º[2] do Regulamento 1215/12) e uma decisão proferida num Estado-Membro que aí tenha força executória pode ser executada noutro Estado-Membro sem que seja necessária qualquer declaração de executoriedade (n.º 1 do artigo 39.º[3]).
Aliás, essa intenção legislativa europeia está bem patenteada no considerando 26 que adianta que «a confiança mútua na administração da justiça na União justifica o princípio de que as decisões proferidas num Estado-Membro sejam reconhecidas em todos os outros Estados-Membros sem necessidade de qualquer procedimento específico. Além disso, o objetivo de tornar a litigância transfronteiriça menos morosa e dispendiosa justifica a supressão da declaração de executoriedade antes da execução no Estado-Membro requerida. Assim, as decisões proferidas pelos tribunais dos Estados-Membros devem ser tratadas como se se tratasse de decisões proferidas no Estado-Membro requerido».
O Tribunal em questão está integrado na Justiça do Reino Unido e a sentença foi proferida em 08/05/2012. Isto é, a sentença em causa foi prolatada em momento anterior ao Brexit.
Efectivamente, em 31/01/2020, às 23h00h UTC, ocorreu a saída formal do Reino Unido da União Europeia, após mais de três anos e meio sobre a data do referendo realizado no dia 23/06/2016. Esse referendo foi organizado após a aprovação do European Union Referendum Act de 2015 pelo Parlamento britânico. Após a saída, iniciou-se um período de transição até 31/12/2020 e as decisões em discussão foram proferidas num momento em que o Reino Unido integrava a União Europeia. Neste capítulo é aplicável a alínea a) do n.º 2 do artigo 67.º[4] do Acordo de Saída do Reino Unido.
Ou seja, é absolutamente dispensável o recurso a qualquer procedimento para que a decisão em causa seja reconhecida em Portugal.
O interesse em agir pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela[5].
Ou, como afirma Manuel de Andrade, deve o direito do demandante de estar carecido de tutela judicial, deve esse interesse de utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo – fluir do alegado[6].
No caso dos autos, ante o alegado e o regime acima exposto, não ocorre uma situação de carência objetiva, justificada ou razoável, de propor uma acção de revisão de sentença estrangeira e daqui decorre que não tem aqui cabimento o processo previsto nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Em função disto, a sentença em discussão não pode ser confirmada e revista, existindo assim uma manifesta falta de interesse em agir, que implica a absolvição do requerido da instância, ao abrigo dos artigos 576.º, n.º 1 e 2[7] e 577.º[8] do Código de Processo Civil.
Esta posição já foi objecto de acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado 16/12/2021, transitado em julgado e publicitado em www.dgsi.pt[9].
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expedidas e o quadro legal aplicável, julga-se verificada a excepção dilatória da falta de interesse em agir, decide-se absolver a requerida da instância relativamente à pretensão de revisão da mencionada sentença.
Custas pelo requerente, ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 18/05/2022

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

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[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2011, in www.dgsi.pt.
[2] Artigo 36.º (Reconhecimento):
1 - As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros sem quaisquer formalidades.
2. Quaisquer partes interessadas podem, nos termos da Sub­secção 2 da Secção 3, requerer uma decisão que declare não haver motivos para recusar o reconhecimento, nos termos do artigo 45.º.
3. Se o resultado de uma ação intentada no tribunal de um Estado-Membro depender da decisão de um incidente de recusa de reconhecimento, será o mesmo tribunal competente para conhecer do incidente.
[3] Artigo 39.º (Execução):
Uma decisão proferida num Estado-Membro que aí tenha força executória pode ser executada noutro Estado-Membro sem que seja necessária qualquer declaração de executoriedade.
[4] Artigo 67.º (Competência, reconhecimento e execução de decisões judiciais, e respetiva cooperação entre as autoridades centrais):
1. No Reino Unido, bem como nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, são aplicáveis os atos ou disposições a seguir enumerados, no que respeita a processos judiciais intentados antes do termo do período de transição e a processos ou ações relacionados com esses processos judiciais nos termos dos artigos 29.º, 30.º e 31.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, do artigo 19.o do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 ou dos artigos 12.º e 13.º do Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho:
a) As disposições do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 relativas à competência;
b) As disposições do Regulamento (UE) 2017/1001, do Regulamento (CE) n.º 6/2002, do Regulamento (CE) n.º 2100/94, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho (75) e da Diretiva 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativas à competência;
c) As disposições do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 relativas à competência;
d) As disposições do Regulamento (CE) n.º 4/2009 relativas à competência.
2. No Reino Unido, bem como nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, são aplicáveis os atos ou disposições a seguir enumerados, no que respeita ao reconhecimento e à execução de decisões, instrumentos autênticos, transações judiciais e acordos:
a) O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 é aplicável ao reconhecimento e à execução de decisões proferidas em ações judiciais intentadas antes do termo do período de transição, bem como de instrumentos autênticos formalmente exarados ou registados e de transações judiciais aprovadas ou celebradas antes do termo do período de transição;
b) As disposições do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 relativas ao reconhecimento e à execução são aplicáveis às decisões proferidas em ações judiciais intentadas antes do termo do período de transição, bem como aos atos autênticos exarados e aos acordos celebrados antes do termo do período de transição;
c) As disposições do Regulamento (CE) n.º 4/2009 relativas ao reconhecimento e à execução são aplicáveis às decisões proferidas em ações judiciais intentadas antes do termo do período de transição, bem como às transações judiciais aprovadas ou celebradas e aos atos autênticos estabelecidos antes do termo do período de transição;
d) O Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho é aplicável às decisões proferidas em ações judiciais intentadas antes do termo do período de transição, bem como às transações judiciais aprovadas ou celebradas e aos instrumentos autênticos formalmente redigidos antes do termo do período de transição, desde que a sua certificação como Título Executivo Europeu tenha sido solicitada antes do termo do período de transição.
3. No Reino Unido, bem como nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, as seguintes disposições são aplicáveis do seguinte modo:
a) O capítulo IV do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 é aplicável aos pedidos recebidos pela autoridade central ou outra autoridade competente do Estado requerido antes do termo do período de transição;
b) O capítulo VII do Regulamento (CE) n.º 4/2009 é aplicável aos pedidos de reconhecimento ou execução a que se refere o n.º 2, alínea c), do presente artigo e aos pedidos recebidos pela autoridade central do Estado requerido antes do termo do período de transição;
c) O Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho é aplicável aos processos de insolvência e às ações a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, desse regulamento, desde que o processo principal tenha sido aberto antes do termo do período de transição;
d) O Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho (79) é aplicável às injunções de pagamento europeias requeridas antes do termo do período de transição; se, na sequência desse requerimento, o processo for transferido em conformidade com o artigo 17.º, n.º 1, desse regulamento, considera-se que o processo foi iniciado antes do termo do período de transição;
e) O Regulamento (CE) n.º 861/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho (80) é aplicável a processos para ações de pequeno montante para os quais foi apresentado o requerimento antes do termo do período de transição;
f) O Regulamento (UE) n.º 606/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho (81) é aplicável aos certificados emitidos antes do termo do período de transição.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, in “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, pág. 97.
[6] Manuel de Andrade, in «Noções Elementares do Processo Civil», 1979, pág. 79.
[7] Artigo 576.º (Exceções dilatórias e perentórias – Noção):
1 - As exceções são dilatórias ou perentórias.
2 - As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.
3 - As exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
[8] Artigo 577.º (Exceções dilatórias):
São dilatórias, entre outras, as exceções seguintes:
a) A incompetência, quer absoluta, quer relativa, do tribunal;
b) A nulidade de todo o processo;
c) A falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes;
d) A falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter;
e) A ilegitimidade de alguma das partes;
f) A coligação de autores ou réus, quando entre os pedidos não exista a conexão exigida no artigo 36.º;
g) A pluralidade subjetiva subsidiária, fora dos casos previstos no artigo 39.º;
h) A falta de constituição de advogado por parte do autor, nos processos a que se refere o n.º 1 do artigo 40.º, e a falta, insuficiência ou irregularidade de mandato judicial por parte do mandatário que propôs a ação;
i) A litispendência ou o caso julgado.
[9] Noutro contexto, também sobre o interesse em agir pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/04/2020, consultável em www.dgsi.pt.