Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1414/23.3T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
REJEIÇÃO
INCERTOS
AUSÊNCIA DO RÉU EM PARTE INCERTA
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Da conjugação dos artigos 552.º, n.º 1, alínea a) e 558.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil não resulta que a omissão da identificação das partes na petição inicial e dos elementos constantes da alínea a) do n.º 1 do artigo 552.º, que dela devam constar obrigatoriamente, levam sempre à rejeição da petição inicial pela secretaria.
II – E isto porque, nos termos dos artigos 22.º, n.º 1 e 236.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, são admissíveis petições iniciais contra incertos e contra Réus ausentes em parte incerta.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1414/23.3T8FAR.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
I - Relatório
As Autoras AA e BB vieram intentar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra os Réus CC e DD, solicitando, a final, que a ação fosse julgada procedente, por provada, devendo o tribunal declarar “A aquisição do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...58, descrito sob o n.º ...11....R.P., cujos documentos se juntam como documentos números ..., ... e ..., cujas cópias se anexam e cujo conteúdo se mostra reproduzido para todos os efeitos legais, pelas A.A por usucapião, prescrição aquisitiva que se invoca expressamente, nos termos dos artigos 1287.º, 1292.º, 1298.º, alínea b), 1317.º, 1296.º, todos do Código Civil”.
Relativamente à identificação dos Réus fizeram as Autoras constar no formulário eletrónico do Citius, no lugar do nome dos Réus “Incerto”.
E fizeram constar na petição inicial, quanto aos Réus, o seguinte:
- “CC, com residência conhecida em ..., ..., cujos demais dados se desconhecem”;
- “DD, com a última residência conhecida em ..., ..., cujos dados se desconhecem”.
O tribunal a quo perante tal desconformidade proferiu despacho judicial onde determinou:
Atento ao supra exposto, e há manifesta desconformidade existente entre a petição inicial e o formulário eletrónico do Citius, notifique as Autoras, na pessoa do ilustre mandatário, para, nos termos do n.º 3 do artigo 7.º da Portaria 280/2013, de 26 de agosto” e no prazo de 5 dias, preencher o referido formulário, com indicação da morada completa (rua, n.º de porta), sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial (n.º 3 do artigo 7.º da Portaria 280/2013, de 26 de agosto).
Em resposta, as Autoras vieram afirmar que a expressão “incertos” utilizada não pretendia referir que desconhecessem a identificação dos Réus, mas apenas que desconheciam onde os mesmos se encontravam, solicitando, em nome dos princípios da cooperação, da gestão processual e da economia processual, ao tribunal a realização das diligências necessárias para obter os elementos que as Autoras não conseguiam obter através das formas legais, designadamente junto dos serviços de finanças ou de outros meios idóneos.
Foi pelo tribunal a quo proferido novo despacho judicial que determinou o seguinte:
Atento ao supra exposto, e há manifesta desconformidade existente entre a petição inicial e o formulário eletrónico do Citius, numa última e derradeira oportunidade dada às Autoras, notifique as mesmas, na pessoa do ilustre mandatário, para, nos termos do n.º 3 do artigo 7.º da Portaria 280/2013, de 26 de agosto”, e no prazo de 5 dias, preencher o referido formulário, com indicação do nome dos Réus, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial (n.º 3 do artigo 7.º da Portaria 280/2013, de 26 de agosto), com as consequências legais daí advenientes.
*
Caso as Autoras cumpram o acima determinado, efectue as pesquisas devidas para identificação das moradas dos Réus, para efeitos de citação.
Verificando-se o incumprimento do supra vertido, abra conclusão.
Este despacho deu origem a novo requerimento das Autoras, no qual as mesmas vieram informar que, após a entrada da ação em juízo, já não é possível alterar o formulário, solicitando ou a apresentação de nova ação retificada, com o aproveitamento da taxa de justiça já paga, ou, caso seja possível, a retificação do formulário pelos serviços da secretaria.
A este requerimento, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho judicial:
Notifique o ilustre mandatário das Autoras para no prazo de 10 dias vir indicar os elementos de identificação dos Réus a que alude o artigo 552.º, n.º 1, do CPC, sob pena de, não o fazendo, operar a rejeição da petição inicial nos termos do artigo 558.º do CPC.
Em resposta, as Autoras vieram informar que solicitaram junto dos serviços das finanças a identificação completa dos Réus, tendo estes serviços invocado o dever de sigilo fiscal.
Requereram, uma vez mais, que se oficiasse às entidades oficiais para efeitos de juntarem aos presentes autos os elementos necessários para o normal prosseguimento dos autos.
Juntaram aos autos as respostas dos serviços das finanças.
O tribunal a quo proferiu, então, despacho judicial, cujas partes da fundamentação jurídica e da decisão transcrevemos:
[…]
Cumpre decidir.
Nos termos do artigo 552.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C., é requisito obrigatório da petição inicial a indicação, entre outros elementos, do domicílio do réu, isto é, do endereço em que reside habitualmente (artigo 82.º, n.º 1, do C.C.) e em que deve ser citado, sob pena, na falta dessa indicação e nos termos do artigo 558.º, alínea b), do mesmo C.P.C., de rejeição da petição pela secretaria. Assim, é claro que tal ónus impende única e exclusivamente sobre qualquer Autor que pretenda intentar uma acção.
In casu, a secretaria recebeu a petição, distribuída eletronicamente, e por isso que no formulário da apresentação eletrónica da peça, não obstante a ostensiva desconformidade entre ambos. Nesta senda, e não obstante o tribunal tenha diligenciado, ao abrigo do princípio da cooperação, que tal desconformidade entre o formulário Citius e a petição inicial fosse colmatada, o que se operou, insistiu o tribunal junto das Autoras para efeitos de cumprimento no melhor estatuído no artigo 552.º, n.º 1, do C.P.C., atento a que as mesmas não indicaram quaisquer morada para efeitos de identificação da residência dos Réus, ónus que apenas e tão só sobre elas impende, não tendo, contudo, as Autoras após instadas para o efeito, indicado as referidas moradas, e requerendo ao tribunal que proceda ao apuramento das mesmas.
Ora, atento a que, não obstante as insistências, as Autoras não satisfazem a exigência do artigo 552.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. (à luz do artigo 82.º, n.º 1, do C.C.), a secretaria deveria ter rejeitado a petição, nos termos do artigo 558.º, alínea b), do mesmo C.P.C., com isso e ao abrigo do artigo 560.º do C.P.C. ficando aberta às Autoras a via da apresentação de uma nova petição, nos moldes devidos – isto é, com a indicação correcta e cabal do domicílio dos réus. Tendo todavia a petição sido daquele indevido jeito recebida pela secretaria, o que sobra é que por aplicação a fortiori do artigo 559.º, n.º 1, do C.P.C., pode ainda o juiz recusá-la – pois é manifesto que se sob eventual reclamação da autora poderia confirmar a hipotética (e devida) recusa pela secretaria, então por maioria de razão pode recusá-la ele mesmo quando a secretaria, induzida em erro, a tenha recebido indevidamente. E tudo com as mesmas consequências, claro está: a possibilidade de recurso (artigo 559.º, n.º 2, do C.P.C.) ou a de apresentação, em dez dias, de nova petição (artigo 560.º ainda do C.P.C.), na qual as Autoras cabalmente façam a indicação do domicílio dos Réus, se for o caso.
Em face do exposto, e nos termos do artigo 559.º, n.º 1, do C.P.C., recuso a petição.
Registe e notifique.
Não se conformando com o despacho judicial proferido, as Autoras vieram recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
1. As A.A. instauraram a presente ação contra “CC” e contra “DD”, cujos dados de identificação desconhecem completamente e por isso no formulário do Citius foi colocado “desconhecidos”, a 4 de maio de 2023.
2. A Sra. Dra. Juíza titular do Processo, a 17 de maio de 2023 despacha no sentido de que as deveriam juntar aos autos as informações necessárias, nos termos dos artigos 552.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e do n.º 3 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.
3. A 29 de Agosto de 2023 e a 22 de setembro de 2023, a Sra. Dra. Juíza insistiu para que A.A. juntassem aos autos os referidos elementos.
4. A 2 de outubro de 2023, as A.A. juntaram aos autos comprovativos de como pediram nos serviços de finanças a informação solicitada pelo tribunal, juntando, inclusive, os despachos do tribunal onde a Sra. Dra. Juíza pedia essa informação, bem como a resposta dos mesmos serviços, onde referem: “Bom dia, não entendo bem o que pretende mas os dados pessoais dos contribuintes estão cobertos pelo dever de sigilo fiscal consagrado no artigo 64.º da Lei Geral Tributária pelo que não podem ser fornecidos quaisquer dados de terceiros.(…)”
5. Vide, V. Exa., que as A.A., ora Recorrentes no formulário da sua Petição Inicial haviam inserido os dados dos R.R. como incertos, precisamente por esse facto – pois desconhecem totalmente os referidos elementos e não têm forma de os obter.
6. Como aconteceu com os serviços de finanças.
7. A 16 de Outubro de 2023, a Sra. Dra. Juíza proferiu uma sentença através do despacho, recusando a petição por esse facto.
8. Ora, Este despacho viola clara e expressamente os princípios da cooperação, previsto no artigo 7.º do Cód. de Proc. Civil, o princípio da gestão processual, previsto no artigo 6.º do Cód. de Proc. Civil, o princípio da Economia processual, previsto em vários artigos que se baseia num equilíbrio entre a garantia do direito à ação e a resposta oferecida pelo ordenamento processual.
9. Para além de ser um despacho inconstitucional, por violar de forma expressa os números 2.º, 4.º e 5.º do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (Acesso ao direito). Viola também o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição R.P. pois trata-se de uma desproporção total entre as circunstâncias e a decisão. Para além de violar as mais elementares regras do bom senso. Inconstitucionalidade que se invoca expressamente.
10. As A.A. não conseguem, efetivamente, obter tais dados. Esses três elementos as A.A., ora Recorrentes não conseguem, até por impossibilidade legal, obter, como se provou. O que se passa relativamente aos dados pessoais das pessoas é o mesmo que se passa relativamente a documentos sujeitos a sigilo.
11. Vide, V. Exa. o que é dito na nota 12 do “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª Edição Revista e Ampliada, de Janeiro de 2014, da Editora Ediforum, Edições Jurídicas, Lda., na página 594:
“Todavia quando se trate de documentos sujeitos a sigilo, v.g. bancário – as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias (artigo 78.º, n.º 2, do RGICSF) – a sua apresentação em juízo só pode ser feita após o levantamento desse sigilo pelo tribunal competente (…)”
12. Claro que o que se diz relativamente a contas bancárias naturalmente se aplicará analogicamente a outras situações como sejam, os elementos de identificação de terceiros, que os serviços de finanças só fornecem mediante levantamento do sigilo pelo tribunal. Que o tribunal se recusou a fazer, após pedido pelas A.A. e devidamente comprovado de que não o conseguiria fazer através dos meios legalmente admissíveis.
13. No que diz respeito ao dever de colaboração, o artigo 417.º, n.º 1, estabelece que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, praticando os atos que forem determinados.
14. É por isso que, por exemplo, uma das partes pode requerer a entrega de documentos que estejam na posse da contraparte (artigo 429.º, n.º 1). É uma obrigação que incide sobre quem esteja em condições de prestar as informações necessárias sobre a existência ou o conteúdo de um direito ou de um facto. É um dever que coincide com a obrigação de informação que é imposta pelo artigo 573.º do Cód. Civil.
15. No que diz respeito ao tribunal trata-se de um poder-dever ou de um dever funcional, que se destina a incrementar a eficiência de um processo, a assegurar a igualdade de oportunidades das partes, a promover a descoberta da verdade, e a garantir um processo equitativo – João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa – Manual de Processo Civil - Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, páginas 96 e seguintes.
16. O tribunal, nas palavras dos referidos autores, não só dirige ativamente o processo e providência pelo seu andamento célere (artigo 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição e da discussão da matéria de facto e do direito relevante para o provimento da decisão.
17. Incumbe ao tribunal suscitar questões que se relacionam com algo que a parte, de forma deficiente ou incompleta, tenha exposto ou pedido. A cooperação do tribunal situa-se no plano processual, cuidando das insuficiências processuais.
18. O tribunal, nas palavras dos referidos dois autores, tem o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (artigo 7.º, n.º 4).
19. Encontra-se uma concretização deste dever de auxílio no artigo 418.º, n.º 1, quanto à obtenção de informações na posse de serviços administrativos.
20. O tribunal tem o dever de exercer esses poderes para cumprir a sua função assistencial perante as partes. A omissão dos deveres inerentes ao dever de cooperação traduz-se até numa nulidade processual porque o tribunal deixa de praticar um ato que não pode omitir (artigo 195.º, n.º 1)
21. Este despacho viola também Princípio da Gestão processual, que refere que o Juiz tem o dever de dirigir ativamente o processo e de providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias, ao normal prosseguimento da ação, adotando, depois de ouvir as partes, mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição de litígio em prazo razoável (artigo 6.º, n.º 1).
22. A gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento e traduz-se num aspeto substancial – a condução do processo – e num aspeto instrumental – a adequação formal (artigo 547.º).
23. Cumpre ao Juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo.
O Juiz deve:
C) Promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação;
D) Providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância – trata-se da concessão de um poder de sanação da inadmissibilidade do processo.
24. O dever de condução do processo que recai sobre o juiz serve-se, como instrumento, do poder de simplificar e de agilizar o processo, o poder de adequar o procedimento à pequena ou grande complexidade da causa. O Juiz dispõe do poder de adequação formal.
25. O Juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (artigo 547.º).
26. Por fim, viola o princípio da Economia processual, que é aquele princípio segundo o qual o processo não deve implicar custos desnecessários e não proporcionais à prossecução da sua finalidade.
27. Os meios disponíveis devem ser utilizados de molde a otimizar o fim do processo, evitando a perda de tempo e os custos escusáveis. O Princípio da Economia Processual orienta-se por um critico de eficiência, ou seja, pelo equilíbrio entre a garantia do direito à ação e a resposta fornecida pelo ordenamento processual.
28. De maneira que se entende que o tribunal não decidiu de forma correta ao negar fazer as diligências que entendesse necessárias para obter os elementos que solicitou, uma vez tendo ficado provado de que as A.A. não os conseguem obter através das formas legais.
29. Deve assim o despacho em causa ser revogado e deve o tribunal providenciar pelas diligências que entenda necessárias para obter os elementos que as A.A. não consegue obter, e a ação seguir os seus termos normais até final.
Assim,
Termos em que requer a V. Exa. concedam provimento ao presente Recurso, revogando o despacho recorrido que extingue o presente processo, nos termos das presentes Alegações, devendo o tribunal providenciar pelas diligências que entenda necessárias para obter os elementos que as A.A., ora Recorrentes, não conseguem obter, através dos meios legais, devendo o processo seguir os seus termos até final, bem como que sejam reconhecidas as inconstitucionalidades alegadas que violam os números 2.º, 4.º e 5.º do artigo 20.º da C.R.P. e o n.º 2 do artigo 18.º do mesmo diploma legal, nos termos também supra descritos,
Fazendo a necessária e inteira JUSTIÇA!
Após ter sido, em 21-11-2023, rejeitado o presente recurso, as Autoras vieram reclamar, reclamação essa à qual foi dado provimento, conforme decisão deste Tribunal proferida em 27-02-2024.
O tribunal de 1.ª instância admitiu, então, o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das recorrentes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importam decidir são:
1) Ilegalidade do despacho recorrido; e
2) Inconstitucionalidade do despacho recorrido.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do presente relatório.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso são as questões supra elencadas.
1 – Ilegalidade do despacho recorrido
Consideram as Autoras que a juíza do tribunal da 1.ª instância não podia recusar a petição inicial por as Autoras não terem indicado as moradas dos Réus, uma vez que aquelas tentaram obter tal informação junto dos serviços das finanças, tendo estes lhes recusado prestar tais informações, o que comprova que as Autoras não têm qualquer forma para obter os elementos identificativos dos Réus, designadamente a respetiva morada.
Mais referiram que o despacho de recusa do recebimento da petição inicial viola os princípios da cooperação, previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil, o princípio da gestão processual, previsto no artigo 6.º do Código de Processo Civil e o princípio da economia processual que está previsto em vários artigos do mesmo Diploma Legal.
Dispõe o artigo 552.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, que:
1 - Na petição, com que propõe a ação, deve o autor:
a) Designar o tribunal e respetivo juízo em que a ação é proposta e identificar as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e, obrigatoriamente, no que respeita ao autor, e sempre que possível, relativamente às demais partes, números de identificação civil e de identificação fiscal, profissões e locais de trabalho;

Estipula, por sua vez, o artigo 558.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, que:
Art. 558.º
Recusa da petição pela secretaria
1 - São fundamentos de rejeição da petição inicial os seguintes factos:
[…]
b) Omita a identificação das partes e dos elementos a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 552.º que dela devam obrigatoriamente constar;

Da conjugação destes dois artigos parece resultar que a omissão da identificação das partes na petição inicial e dos elementos constantes da alínea a) do n.º 1 do artigo 552.º, que dela devam constar obrigatoriamente, levam sempre à rejeição da petição inicial pela secretaria.
Ora, basta atentar ao que dispõe o artigo 22.º, n.º 1, do mesmo Diploma Legal para facilmente se compreender que o disposto nos citados artigos 552.º, n.º 1, alínea a) e 558.º, n.º 1, alínea b), comporta exceções.
Efetivamente, a ação pode ser proposta contra incertos, desde que o Autor não tenha possibilidade de identificar os interessados diretos em contradizer, sendo estes representados pelo Ministério Público. Incertos neste artigo deve ser entendido como se reportando a pessoas cuja identificação, ou seja, o nome, se desconhece.
Assim, e desde já, a posição adotada pelo despacho recorrido levar-nos-ia a uma solução de difícil compreensão. Na realidade, admitia-se a ação contra pessoas cujo nome se desconhecia, claro que desde que o Autor fizesse prova da sua impossibilidade em as identificar, e não se admitia a ação contra pessoas cujo nome se conhecia, desconhecendo-se apenas a sua residência.
Acresce que resulta de tal despacho que é obrigação das Autoras (requisito obrigatório) indicar o endereço onde os Réus residem habitualmente, nos termos do artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil, sendo que não o conhecendo, nem tendo como o obter, apesar de até terem conhecimento do nome dos Autores, ser-lhes-ia vedado o recurso aos tribunais. Ou seja, de acordo com o despacho recorrido, nem sequer a indicação da última residência conhecida dos Réus seria suficiente para a admissão da respetiva petição inicial.
Efetivamente, até à revisão operada pelo D.L n.º 329-A/95, de 12-12, no artigo 244.º do anterior Código de Processo Civil (Código de Processo Civil de 1961), apesar de se admitir a interposição da ação contra Réu ausente em parte incerta, impunha-se ao Autor o ónus de indicar a última residência conhecida, o que, como já referimos, o despacho recorrido nem sequer parece aceitar. Esta exigência, no entanto, levava a situações absurdas. Se o Autor não identificasse a última residência conhecida do Réu, por não a conhecer, via a sua petição inicial rejeitada; porém, se indicasse uma última residência ao acaso, exatamente por não a conhecer, a sua petição inicial já seria recebida, permitindo, nesse caso, que a secretaria efetuasse diligências para obter a residência atual do Réu.
Felizmente, o DL n.º 329-A/95, de 12-12, resolveu a questão, mantendo o atual Código de Processo Civil, no seu artigo 236.º, tal solução.
Dispõe o atual artigo 236.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital, junto das autoridades policiais.
2 - Estão obrigados a fornecer prontamente ao tribunal os elementos de que dispuserem sobre a residência, o local de trabalho ou a sede dos citandos quaisquer serviços que tenham averbado tais dados.
3 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos casos em que o autor tenha indicado o réu como ausente em parte incerta.

Assim, em face do aludido artigo, se na petição inicial o Autor indicar o Réu como ausente em parte incerta, compete à secretaria diligenciar para obter informação, não só sobre a residência conhecida do Réu (a sua atual residência), como também sobre o seu último paradeiro, pelo que deixou de ser obrigatório ao Autor, nas situações de Réu ausente em parte incerta, indicar o seu último paradeiro.
Veja-se sobre o assunto José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º[2]
O artigo 236.º do Código de Processo Civil constitui, por isso, uma outra exceção ao disposto nos artigos 552.º, n.º 1, alínea a) e 558.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Posto isto, vejamos o caso concreto.
É verdade que no formulário apresentado pelas Autores, os Réus foram indicados como incertos, porém, na petição inicial fizeram constar o nome dos Réus e a área da sua residência, indicando expressamente que desconheciam todos os restantes dados dos Réus.
O tribunal a quo, após ter determinado às Autoras a retificação do formulário eletrónico do Citius, perante a impossibilidade prática de estas o fazerem, aceitou o lapso, passando a encarar o processo como de uma situação de desconhecimento da morada dos Réus, e não da identidade destes, razão pela qual proferiu o despacho recorrido.
Assim, por não fazer parte do objeto do presente recurso, não nos iremos pronunciar sobre a referida desconformidade.
De qualquer modo, sempre se dirá que aquilo que as Autoras deveriam ter feito constar no formulário eletrónico do Citius era o nome dos Réus e na morada “ausente em parte incerta”.
E, conforme já referimos supra, tratando-se de uma situação de Réus ausentes em parte incerta, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 236.º do Código de Processo Civil, a referida petição inicial deveria ter sido recebida, competindo à secretaria efetuar as diligências necessárias para obter informação sobre a atual residência dos Réus ou, sendo tal impossível, sobre o último paradeiro destes, com ou sem despacho prévio, dependendo das diligências escolhidas.
E, deste modo, a pretensão das recorrentes merece provimento, devendo o despacho recorrido ser revogado por outro que determine a realização pela secretaria das diligências que considere convenientes para obter o atual paradeiro dos Réus, solicitando, caso necessário, prévio despacho judicial ou, se não for possível obter o atual paradeiro dos Réus, efetuar as diligências que considere convenientes para apurar do último paradeiro dos Réus, com ou sem despacho judicial prévio, dependendo das diligências escolhidas.
Relativamente à segunda questão colocada pelas recorrentes, em face do provimento do recurso interposto, mostra-se a mesma prejudicada, pelo que não procederemos à sua apreciação.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso e, em consequência, determinam a revogação do despacho recorrido, o qual é substituído pelo seguinte despacho:
- Determina-se a realização pela secretaria das diligências que considere convenientes para obter o atual paradeiro dos Réus, solicitando, caso necessário, prévio despacho judicial ou, se não for possível obter o atual paradeiro dos Réus, efetuar as diligências que considere convenientes para apurar do último paradeiro dos Réus, com ou sem despacho judicial prévio, dependendo das diligências escolhidas.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 9 de maio de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Anabela Luna de Carvalho

Cristina Dá Mesquita

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Anabela Luna de Carvalho; 2.ª Adjunta: Cristina Dá Mesquita.

[2] 4.ª edição, Almedina, 2018, págs. 474-476.