Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
583/23.7T8STC.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: DECISÃO NO SANEADOR
CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Constitui decisão-surpresa por violação do princípio do contraditório, a prolação de saneador-sentença sem ter sido concedida às partes a faculdade de debaterem de facto e de direito a possibilidade da causa ser imediatamente conhecida naquele fase do processo.
II. A decisão assim proferida é nula, impondo-se a remessa dos autos ao tribunal que a proferiu para cumprimento do procedimento omitido e prática dos subsequentes trâmites processuais que podem, ou não, consistir em nova decisão no saneador.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação 583/23.7T8STC.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Instância Local Cível de Santiago do Cacém
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Maria João Sousa e Faro;
2º Adjunto: Elisabete Valente.
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I. RELATÓRIO
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A.
Na presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum que propuseram contra (…) – Actividades Turísticas, Lda., vieram (…) e (…) pedir que se:
a) declare válida e eficaz, a oposição deduzida nos termos e efeitos do artigo 1097.º, n.ºs 1 e 3, do CC, pela senhoria, na data de 2 de Março de 2021, à renovação do contrato de arrendamento celebrado com a Ré na data de 1 de Junho de 2014 sobre o prédio urbano registado sob o n.º (…) da freguesia de (…), concelho de Santiago do Cacém, o prédio misto, sito na Herdade da (…), e inscrito na matriz urbana sob o actual artigo … (anterior …) da mesma freguesia e concelho;
b) declare extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento celebrado na data 11 de Maio de 2022 e melhor identificado na alínea a);
c) condene a Ré, a entregar o locado, livre de pessoas e bens, e as respectivas chaves aos Autores;
d) condene a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas desde o mês de Maio de 2022, somando, à data da propositura da acção, a quantia de € 5.269,66.
e) condene a Ré a pagar aos Autores, desde a data da citação até à entrega do locado, livre de pessoas e bens, o valor mensal de € 619,96 correspondente ao dobro do valor da renda, na data da propositura da acção, em vigor por cada mês de atraso e/ou na proporção.
Alegaram para o efeito ter adquirido por compra, o prédio correspondente ao artigo matricial … (anterior artigo …) que, por contrato de 01.07.2014, fora dado de arrendamento com prazo certo de 1 ano, sucessivamente renovado. A Sociedade Agro-Pecuária da (…), Lda., anterior proprietária, entregou à Ré, por mão própria e na data de 02.03.2021, carta/notificação da qual fez constar que se opunha à renovação do contrato a 01.01.2022 e, a 10.11.2022. A Autora mulher, já na qualidade de proprietária do imóvel urbano, remeteu à Ré carta registada com AR, solicitando a entrega do imóvel no prazo de 15 dias, o que esta não fez, continuando a usar o locado até aos dias de hoje.
B.
Contestou a Ré, alegando que:
- o prédio adquirido pelos Autores é misto, sendo composto de uma parte rústica (inscrita na matriz sob o artigo …, secção …) e de uma parte urbana de dois edifícios de habitação (inscritos na matriz sob os artigos … e …), mas o contrato de arrendamento celebrado com a Ré incidiu apenas sobre o artigo …, actualmente inscrito na matriz urbana sob o artigo … e que é autónomo face ao artigo … (anterior artigo …);
- da carta datada de 02.03.2021, remetida à Ré, continha a oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado sobre o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), distinto do arrendado à Ré, pelo que esta não respondeu e continuou a cumprir o contrato, pagando as respectivas rendas, tendo estas, com excepção das de Junho a Outubro de 2022, sido aceites;
- só com a citação para a presente acção, a Ré tomou conhecimento dos elementos essenciais da aquisição do imóvel pelos Autores, não tendo recebido comunicação do projecto e das cláusulas da venda por parte da vendedora, pelo que não se verificam os pressupostos do direito de preferência declarado na escritura;
- os pedidos formulados em d) e e) encontram-se em contradição com a causa de pedir e alguns dos outros pedidos formulados, designadamente quando os Autores pretendem que se considere válida a oposição à renovação do contrato e respectiva declaração de extinção por caducidade mas, simultaneamente, pretendem receber as suas rendas.
C.
Por despacho de 11.03.2024 foi designada data de realização da audiência prévia com as seguintes finalidades:
a) Proceder à tentativa de conciliação, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil;
b) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação do litígio e suprir insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto;
c) Proferir despacho-saneador;
d) Identificar o objecto do litígio e enunciar os temas de prova;
e) Programar os actos a realizar em audiência final.
D.
A audiência prévia realizou-se a 16.05.2024, constando da respectiva acta, entre outras coisas, que:
«(…)
Estando as pessoas presentes para o acto, a Mm.ª Juiz de Direito declarou aberta a presente audiência quando eram 11:05 horas, que vão ser gravadas em sistema H@bilus Media Studio disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.
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Iniciada a diligência foi pela tentada a conciliação, sendo que a mesma não foi possível obter atenta as posições vertidas nos articulados.
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Nessa sequência avançou-se com a diligência em conformidade com o objectivos da presente diligência, finda a mesma a Mm.ª Juiz proferiu o seguinte
DESPACHO
(entre as 11h59m36segs e as 12h04m34segs)
“Resultou da ampla discussão de direito com os ilustres mandatários das partes e que o Tribunal não se apercebeu anteriormente que o pedido formulado pelos Autores poderá conter pedidos substancialmente incompatíveis, o que nos termos do artigo 186.º do C.P.C., determinará a ineptidão da Petição Inicial.
Porque tal eventual vício apenas neste momento foi objecto de discussão e face á sua gravidade notifica-se e concede-se o prazo de 10 dias aos autores para querendo se pronunciarem sobre o mesmo.
Notifique.”
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Do despacho que antecede foram os presentes devidamente notificados. (…)”
E.
Por requerimento de 27.05.2024 (ref.ª 8037817) os Autores declararam desistir do pedido formulado em d) da petição inicial.
F.
Com data de 04.02.2025 foi proferido despacho saneador-sentença que:
- julgou extinto, por desistência, o direito que a Autora pretendia fazer valer através da alínea d) do pedido;
- julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial;
- declarou válida e eficaz, a oposição deduzida pela senhoria à renovação do contrato de arrendamento celebrado com a Ré;
- declarou extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento celebrado em 1 de Junho de 2014;
- condenou a Ré a entregar à Autores, o locado, livre de pessoas e bens e as respectivas chaves;
- condenou a Ré a pagar à Autores, desde a data da citação até à entrega do locado, livre de pessoas e bens, o valor mensal de € 619,96 correspondente ao dobro do valor da renda, por cada mês de atraso e/ou na proporção.
G.
Inconformada, a Ré recorreu, concluindo as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito da origem):
“I. Vem o presente recurso interposto da sentença de 04/02/2025 que, no despacho saneador, decidiu conhecer imediatamente do mérito da causa.
II. Findos os articulados da petição inicial e da contestação, a Exma. Sra. Juiz (…), por despacho de 11/03/2024, convocou audiência prévia para 16/05/2024 com as seguintes finalidades, como nele consta: (…)
III. Ora, como se vê da respectiva acta, a audiência prévia de 16/05/2024 foi presidida por outra Exma. Magistrada, Juiz (…), sendo que nela apenas se tentou e não obteve a conciliação das partes e foi proferido despacho concedendo aos Autores o prazo de dez dias para querendo se pronunciarem sobre o eventual vício não anteriormente apercebido pelo Tribunal.
IV. Ao fim de oito pacientes meses, foi a Ré surpreendida com a decisão surpresa de 04/02/2025, em saneador sentença.
V. Porque a Meritíssima Juiz entendeu, ao invés da precedente, que o processo continha já todos os elementos necessários à prolação da decisão e permitia que conhecesse desde já do pedido.
VI. A Recorrente não vai, nesta sede e neste momento (e espera não o fazer posteriormente), alongar-se sobre o mérito do entendimento da Mma. Juiz, embora, obviamente, considere que entendeu mal.
VII. O que está exclusivamente em causa é que, tendo decidido, como decidiu, conhecer imediatamente do mérito da causa, se esqueceu de facultar às partes a discussão de facto e de direito sobre a matéria de que iria conhecer, a que estava obrigada, de forma imperativa, pelo disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
VIII. Tal omissão constitui nulidade processual geral (artigo 195.º do Código de Processo Civil) e mesmo que tivesse sido dispensada a audiência prévia (que não o foi nem poderia ser nos termos do artigo 593.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) sempre deveria ouvir as partes de acordo com o disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 3.º, n.º 3, do mesmo diploma.
IX. O que a Recorrente pretende essencialmente é que lhe seja reconhecido o direito de ter exercido previamente à decisão de mérito de 04/02/2025 o contraditório que lhe assiste e é conferido pelo disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil e nunca em fase posterior ao precoce conhecimento do mérito na decisão-surpresa da sentença no saneador.
X. A sobredita decisão, tomada pela Mma. Juiz sem ter facultado às partes a discussão de facto e de direito que lhe era imperativamente imposta pelo artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Civil, proferida numa altura em que se encontrava expressamente vedada a possibilidade de o fazer, está assim ferida de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil.
XI. A Recorrente sustenta nomeada e fundamentadamente a sua posição na Jurisprudência contida nos Acórdãos da Relação do Porto de 24/09/2015, do STJ de 17/12/2024 e de 16/12/2021, conforme referidos e parcialmente transcritos nos pontos 15, 16, 17, e 18 da Alegação.
XII. A Recorrente tem o prazer de se rever no exemplar Acórdão do STJ de 16/12/2021, processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, cujo sumário dá aqui por integralmente reproduzido, sem prejuízo de consagrar em letras de oiro próprias da sublime Justiça o respectivo número VIII: “ O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante”.
H.
A Autora / Recorrida respondeu ao recurso da Ré, concluindo:
“a) O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa (n.º 2 do artigo 691.º do CPC).
b) A audiência prévia não foi dispensada e foi realizada, tendo sido consignado na respetiva ata, que existiu uma ampla discussão de direito com os mandatários das partes.
c) A ata dos atos judiciais constitui um documento autêntico e, como tal, faz prova plena dos referidos atos, pelo que tal força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigos 371.º e 372.º do CC), neste sentido, vide o Acórdão desse TRE de 14/04/2005, proferido no processo n.º 2596/04-3, op. cit.
d) Foi facultada às partes em sede de audiência prévia, a discussão de direito antes do Tribunal conhecer do mérito da causa, e se não existiu discussão de facto, foi porque nada havia para discutir, conforme resulta da douta Sentença recorrida, estando o Tribunal impedido de realizar atos inúteis por a sua prática ser ilícita, pelo que, salvo melhor entendimento, inexistiu violação do princípio do contraditório (artigos 3.º e 130.º do CPC).
e) O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (artigo 574.º do CPC).
f) Pelo que, salvo melhor entendimento, não se verificou nulidade processual para efeitos do preceituado no artigo 195.º, nem tão pouco, a douta Sentença recorrida conheceu de questão de que não poderia conhecer, não sendo nula por excesso de pronúncia, de acordo com o disposto na segunda parte da alínea d) do artigo 615.º, ambos do CPC.
g) Assim, a douta Sentença recorrida preconizou um correto julgamento da matéria de facto e uma adequada interpretação das normas jurídicas aplicáveis, não se verificando as nulidades arguidas, não merecendo qualquer censura, devendo permanecer na ordem jurídica”.
I.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
J.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:
1. Se ocorreu incumprimento do princípio do contraditório antes de proferido o despacho saneador-sentença dos presentes autos.
2. Qual, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, a consequência processual da referida omissão.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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Da omissão do contraditório
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Alega a Recorrente que: foi cometida nulidade processual geral (artigo 195.º do Código de Processo Civil) porque a sra. Juíza de 1ª instância conheceu imediatamente do mérito da causa no saneador, esquecendo-se de facultar às partes a discussão de facto e de direito sobre a matéria de que iria conhecer quando a tanto estava obrigada pelo disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil; não tendo sido cumprido o contraditório, estamos perante uma decisão-surpresa.
Em causa está a violação do princípio do contraditório com acolhimento na lei ordinária sob o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, decorrência do direito de acesso aos tribunais consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Sobre a essencialidade do direito ao contraditório na garantia do acesso ao direito, acolhemos as palavras do Juiz Conselheiro Messias Bento, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2000: [1]
«Como este Tribunal tem repetidamente sublinhado (…), o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório (…).
O processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica: ele reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), sendo o juiz uma instância passiva. Nele – insiste-se –, o juiz não pode tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja ouvida. E mais: essa audição tem, em regra, que preceder o decretamento da providência. (…).» (sublinhado nosso).
O aludido n.º 3 do artigo 3.º do CPC, concretiza o princípio do contraditório, impondo que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre todas as questões de facto ou de direito que se coloquem no decurso e na decisão do processo.
Devemos, porém, ter presente que o processo civil está regulado de modo a que, no seu decurso, vários momentos assegurem o exercício do contraditório.
Entre outros: a contestação tem por objectivo facultar o contraditório relativamente à argumentação factual e jurídica da petição inicial (artigo 571.º, n.º 2 e 573.º, n.º 1, ambos do CPC); a réplica destina-se a deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção ou, em acção de simples apreciação negativa, a impugnar os factos constitutivos e a alegar factos impeditivos ou extintivos do direito do réu (artigo 584.º do CPC); a audiência prévia serve também para “…facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artigo 591.º, alínea b), do CPC).
Durante a tramitação do processo, o réu toma conhecimento do pedido do autor e dos seus fundamentos, ficando com o ónus de exercer atempadamente o contraditório na contestação. Nesta, o réu pode e deve apresentar todos os argumentos de facto e de direito relevantes à defesa do seu interesse processual.
Por sua vez, o autor pode e deve também contraditar eventual defesa por excepção deduzida na contestação do réu, o que terá lugar na audiência prévia ou na audiência final nos casos em que audiência prévia se não realize, ou ainda mediante escrito de resposta à contestação quando o tribunal lho consinta (artigo 3.º, n.º 4, do CPC).
Isto significa que há um conjunto de questões de facto e de direito que as partes têm, ao longo do processado, oportunidade de debater, ainda que a sua decisão ocorra no despacho-saneador.
A necessidade de proporcionar o contraditório só se justificará, por isso, relativamente às questões novas que as partes não tinham razões para debater antes.
Aqui chegados, compreendemos que a “decisão-surpresa” está não só relacionada com a ausência de um momento processual para as partes exercerem o contraditório, mas também com os limites da autorresponsabilização das partes, na medida em que estas, assessoradas que estão por mandatário forense, têm o dever de conhecer o direito aplicável aos factos e, consequentemente, de equacionar as possíveis soluções jurídicas quando são convocadas a exercer aquela prerrogativa processual.
Sobre o papel da autorresponsabilização das partes no exercício do direito do contraditório, a nossa jurisprudência constitucional vem considerando que “…recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…).” Cabe-lhes, assim, “…a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (neste sentido, vide o acórdão n.º 173/2016 do Tribunal Constitucional, relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, citando Carlos Lopes do Rego, in “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, págs. 81-82)”[2] (sublinhados nossos).
Lebre de Freitas, apresenta-nos, no domínio processual civil, uma perspectiva, algo diversa, ao sustentar que o tribunal deve informar previamente as partes sempre que, concordando com a qualificação jurídica que estas atribuíram a um contrato, “se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respectivo regime (…) que as partes durante o processo não tiveram em conta”. Para este autor, não assegura o exercício do contraditório que “às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito (…)”, sendo ainda exigível que “mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, isto é, ainda não discutidas no processo” (in “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código”, 4ª edição, Gestlegal, 2017, págs. 135 e ss.).
Parece-nos, todavia, mais equilibrada a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque no processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1,[3] por não abdicar tão extensivamente da responsabilidade das partes na análise técnico-jurídica das incidências do caso, quando considera que a “…decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram esperadas. (…) A decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter perspectivado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento” (sublinhados nossos).
Conhecidas estas perspectivas, não inteiramente convergentes, sobre o que devemos considerar ser uma “decisão surpresa”, as particularidades do caso em análise não justificam maior aprofundamento de cada uma delas, já que a decisão contida no despacho saneador-sentença proferido em 1ª instância se inscreve na argumentação trocada entre as partes nos seus articulados.
Na verdade, os fundamentos da decisão versam a validade e os efeitos produzidos pela comunicação, enviada pela senhoria à inquilina, de oposição à renovação do contrato de arrendamento vigente entre ambas, devido a uma diferença entre o artigo matricial da mesma constante e o do contrato de arrendamento, questão que havia sido suscitada na contestação pela própria Ré / Recorrente.
As demais razões jurídicas da decisão proferida, estão em linha com a causa de pedir claramente indicada na p.i.. Nomeadamente, quanto à extinção do contrato de arrendamento como decorrência da oposição à renovação (artigo 1097.º do CC) e à ausência de fundamento para a persistência da presença da Ré no imóvel da Autora.
A decisão recorrida não contém, por isso, a ponderação de argumentos jurídicos novos para as partes.
Todavia, tendo sido deduzida defesa por excepção da Ré na contestação, necessário se mostrava dar o contraditório à parte contrária para sobre a mesma se pronunciar no início da audiência prévia, o que é tanto mais necessário quanto o conhecimento do mérito pressupôs também a análise da excepção invocada (cfr. n.º 4 do artigo 3.º do CPC).
Acresce que, em ordem ao conhecimento do mérito no despacho-saneador impunha-se, por respeito à alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, convocar audiência prévia com expressa menção desse objectivo e dar às partes, durante a diligência, a possibilidade de o discutirem de facto e de direito.
No caso vertente, nem do despacho que designa data para realização da audiência prévia, nem da acta desta diligência processual, consta qualquer referência à discussão de facto e de direito das incidências da lide com vista ao imediato conhecimento do mérito.
A única alusão que encontramos na acta da audiência prévia do dia 16.05.2024, feita no despacho proferido pela sra. Juíza de 1ª instância, é a uma “…ampla discussão de direito com os ilustres mandatários das partes…”, no decurso da qual o tribunal se apercebeu “…que o pedido formulado pelos Autores poderá conter pedidos substancialmente incompatíveis, o que nos termos do artigo 186.º do C.P.C. determinará a ineptidão da petição inicial.”
A vaga referência à “ampla discussão de direitos” feita na acta da diligência em apreço, não permite concluir que tal troca de argumentos versou sobre a possibilidade de conhecer o mérito da causa no despacho-saneador.
Muito pelo contrário: a circunstância da convocatória da audiência prévia omitir qualquer referência à alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC e conter as das alíneas c), d) e f) da mesma norma, num conjunto de passos processuais conducentes à realização da audiência de julgamento para produção da prova, inculca a ideia de que não estaria no espírito do juiz do processo nem, consequentemente, das partes, a prolação de uma decisão de mérito naquela fase processual.
O que em tudo se coaduna com a ausência de qualquer referência expressa na acta da diligência, à pronúncia das partes sobre o imediato conhecimento do mérito da causa.
Por isso, apesar da decisão proferida se ter fundado em argumentos jurídicos conhecidos das partes, foi omitida a concessão da faculdade, expressamente prevista pela alínea b) do n.º 1 do artigo 593.º do CPC, de debaterem de facto e de direito a possibilidade da causa ser imediatamente conhecida no saneador sem se realizar a fase processual do julgamento, o que constitui violação do princípio do contraditório.
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Da nulidade processual
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Para uma parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, o incumprimento de um preceito destinado a assegurar o direito das partes se pronunciarem sobre se estão, numa fase intermédia do processo, reunidas as condições para se proferir sentença decisória, no todo ou em parte, do pedido, constitui uma nulidade por poder influir no exame ou na decisão da causa. A sua declaração implica a anulação do ulterior processado, no qual se inclui a eventual decisão do mérito, nos termos previstos pelo n.º 1 do artigo 195.º do CPC.
Neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.2024, relatado pelo Cons. Emídio Santos no processo n.º 19406/19.5T8LSB.L1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.05.2024, relatado pelo Desembargador Arlindo Crua no processo n.º 16858/22.0T8SNT-A.L1-2 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.05.2021, relatado pelo Juiz Desembargador Moreira do Carmo no processo n.º 1250/20.9T8VIS.C1, com o entendimento de que o acto processual omitido, gerador da invalidade, é anterior à prolação da decisão que conheceu de mérito. A irregularidade acontece no momento em que se verifica o desvio ao formalismo processualmente previsto. Já a anulação da decisão será uma consequência / efeito da declaração da nulidade decorrente da preterição daquela obrigação processual.[4]
De acordo com outra corrente jurisprudencial que é actualmente maioritária, suportada na doutrina por Miguel Teixeira de Sousa, a omissão do contraditório produz uma decisão-surpresa que é intrinsecamente nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1 e 685.º, todos do CPC).[5]
Neste sentido, vide, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2016, 13.10.2020 e 07.06.2022, relatados, respectivamente, pelos Conselheiros Abrantes Geraldes, António Magalhães e Luís Espírito Santo nos processos 1937/15.8T8BCL.S1, 392/14.4T8CHV-A.G1.S1 e 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.05.2023, relatado pela Desembargadora Maria João Areias no processo n.º 5576/17.0T8CBR-B.C1 e do Tribunal da Relação de Évora de 28.09.2023, relatado pela Juíza Desembargadora Elisabete Valente no proc. 433/22.1T8PTM-B.E1. [6]
Uma terceira via, assumida no acórdão do Tribunal da Relação Porto de 05.02.2024 pelo Desembargador José Eusébio de Almeida no processo 489/22.7T8VCD-A.P1, [7] sustenta que a invocação da violação do contraditório, depois de proferida a sentença ou o despacho que consubstancia essa (invocada) violação, suscita-se em via de recurso, por se estar perante “…um princípio jurídico fundamental e estrutural de qualquer processo judicial moderno, impondo a garantia, com assento constitucional, de ninguém poder ser atingido pelos efeitos de uma decisão judicial sem ter tido a possibilidade de intervir na sua formação (…).” E, citando Rui Pinto[8], “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195.º, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cfr. artigo 378.º). A decisão não pode deixar de ser nula.”
Feita a resenha da jurisprudência existente sobre a natureza do vício resultante da omissão do contraditório em momento anterior à decisão, revemo-nos no entendimento que considera estar-se perante um vício que afecta a decisão proferida, ditando a sua própria nulidade e, como tal, deve ser suscitado em recurso da mesma junto do tribunal superior.
Assim, impõe-se declarar a nulidade da decisão recorrida e determinar a remessa dos autos à primeira instância para cumprimento do procedimento omitido e subsequente tramitação dos autos que pode, ou não, consistir em nova decisão no saneador.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, a Ré / Recorrente obteve vencimento no recurso.
Assim, devem as custas do presente recurso ser suportadas pela Autora / Recorrida.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar procedente a apelação, declarando nula a decisão recorrida e determinando que o tribunal de 1ª instância dê às partes a faculdade de debaterem de facto e de direito a possibilidade do mérito da causa ser imediatamente conhecido no saneador, seguindo-se a ulterior tramitação processual.
2. Condenar a Recorrida nas custas do presente recurso.
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Notifique.
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Évora, 10 de Julho de 2025
Os Juízes Desembargadores:
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Maria João Sousa e Faro (1ª Adjunta)
Elisabete Valente (2ª Adjunta)

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[1] Prolatado no processo n.º 102/2001 da 3ª Secção. Disponível na ligação: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc//acordaos/20010330.html
[2] Disponível na ligação:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160173.html
[3] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/809cb57bb10252de802582cc003293f7?OpenDocument
[4] Respectivamente, disponíveis nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b10b26afba5d333380258b1f003bc312?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/74636aa001dc107980258ad20060d733?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/32520c45f7db7358802586f90030b303?OpenDocument
[5] Miguel Teixeira de Sousa vem considerando que o vício decorrente da falta da audição prévia das partes é o proferimento de uma decisão-surpresa e que esta é um vício único e próprio, não havendo dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa) (cfr. comentário publicado no Blog do IPPC, a 22.09.2020). Disponível na ligação:
https://blogippc.blogspot.com/search?updated-max=2020-10-01T07:00:00%2B01:00&max-results=12&start=89&by-date=false
[6] Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d15a21700afd6d5580257fdb0049c8db?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d18335d09ab8ee8c8025863e00545616?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1911a76a869c1fc1802587ad0055ed8d?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f496553e51a0d1be802589c100528360?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0c4fb7119b1a937e80258a4a002b1346?OpenDocument
[7] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/11ee446d93d3756a80258af900514d15?OpenDocument
[8] In “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º)”, Julgar Online, Maio de 2020, pág. 31.