Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
142009/24.1YIPRT.E1
Relator: MARIA EMÍLIA MELO E CASTRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ASSOCIAÇÃO DE REGANTES
CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Atenta a sua natureza de associação pública, a Ré é uma entidade adjudicante e um contraente público, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea h) e 3.º, n.º 1, alínea a), respetivamente, do Código dos Contratos Públicos.
2. Atenta a primeira das referidas qualidades, salvo se o negócio jurídico estiver expressamente excluído pelos artigos 4.º a 6.º-A do Código dos Contratos Públicos, os contratos pela mesma celebrados, independentemente da natureza das respetivas prestações, do ramo do direito aplicável e da informalidade da sua celebração, estão submetidos aos procedimentos da contratação pública previstos nesse diploma.
3. Em função da segunda qualidade, o contrato celebrado pela mesma para prover ao cumprimento da obrigação de conservação de um imóvel, assumida num contrato de concessão celebrado com o Estado Português, é um contrato de empreitada de obras públicas, de acordo com o disposto no artigo 343.º do Código dos Contratos Públicos.
4. Em razão do acima enunciado, a ação pela qual a empresa que realizou os trabalhos de conservação no imóvel, demanda a associação pública, para obter a cobrança coerciva do crédito a que acha com direito, insere-se na previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo da competência material destes Tribunais.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 142009/24.1YIPRT.E1
Forma processual - ação declarativa sob a forma comum de processo
Tribunal Recorrido – Juízo de Competência Genérica de Coruche
Recorrente – (…), Lda.
Recorrida – Associação de Regantes Beneficiários do (…)

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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Relatório
I. Identificação das partes e descrição do objeto da ação.
(…), Lda., apresentou junto do Balcão Nacional, requerimento de injunção, pelo qual peticionou a notificação da Associação de Regantes Beneficiários do (…) para lhe pagar a quantia total de € 33.606,50, sendo € 28.087,60 de capital e o remanescente de juros de mora e taxa de justiça liquidada.
Alegou, em síntese, que por contrato celebrado entre as partes, executou trabalhos de melhoria das condições de segurança da Barragem de (…), cuja administração, conservação e exploração se encontra a cargo da Requerida, não tendo esta pago, apesar de interpelada, a remuneração dos serviços prestados.
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Notificada desse requerimento, a Requerida deduziu oposição, na qual, além do mais, excecionou a incompetência material do Tribunal judicial, afirmando, para tanto, que é uma pessoa coletiva de direito público que recebeu do Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, em 16 de fevereiro de 2011, a concessão do aproveitamento hidroagrícola que abrange aquela barragem, sendo que o trabalho realizado pela Requerente corresponde ao dever, por ela assumido no mesmo contrato, de proceder à reabilitação das infraestruturas desse aproveitamento.
Concluiu, nessa parte, que a relação estabelecida com a Requerente é uma relação de natureza administrativa, pelo que o Tribunal judicial é incompetente para dirimir o litígio.
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Distribuído o requerimento e a oposição ao Juízo de Competência Genérica de Coruche para tramitação como ação declarativa sob a forma comum de processo, por despacho de 28 de janeiro de 2025 foi conferida à Autora a oportunidade de ser pronunciar sobre a matéria de exceção invocada pela Ré, o que a mesma fez, sustentando, no que aqui releva, a improcedência da incompetência material arguida.
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Realizada audiência prévia, foi proferido, nesse ato, despacho que determinou a junção do escrito do contrato celebrado entre as partes, tendo a Autora e a Ré assentido que esse escrito inexiste, uma vez que o acordo não foi formalizado nesses termos.
Veio a ser proferido, em 22 de maio de 2025, despacho em cujo trecho decisório se exarou:
Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, julga-se verificada a exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso da incompetência material do Tribunal em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação e, em consequência, absolve-se a Ré da instância.
Registe e notifique, mais advertindo para o disposto no artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Custas pela Autora (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).”
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II. Objeto do recurso.
Não se conformando com essa decisão, a Autora interpôs o presente recurso, culminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:
“a) Vem o Tribunal a quo julgar a exceção da incompetência do Tribunal em razão da matéria, com a consequente absolvição da instância da Ré/Recorrida considerando que entre as partes está em causa uma relação jurídico-administrativa, o que é da competência dos Tribunais Administrativos.
b) A fundamentação legal apresentada na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, invoca o artigo 211.º/1 e artigo 212.º/3, ambos da CRP, o artigo 64.º do CPC e artigo 1.º/1, do ETAF.
c) Considerou o Tribunal de 1ª Instância que a Ré é uma pessoa de Direito Público, para consequentemente, retirar a ilação de que a “empreitada” dos autos, foi na sequência da celebração de um “contrato primitivo”, sujeito a “concurso público”, o que não pode deixar de se ter por aplicáveis as normas constantes do “Código dos Contratos Públicos”.
d) O Tribunal a quo, refere em sede de Sentença, que a competência em razão da matéria afere-se pela natureza jurídica que serve de fundamento à ação, nos precisos termos configurados pelo autor, o que pressupõe a análise da causa de pedir em confronto com o pedido.
e) Contudo, não fez uma correta interpretação dos factos, dos quais retira ilações, as quais não se enquadram na causa de pedir nem no pedido da ora Recorrente, nomeadamente, quando afirma que a Ré é uma pessoa de direito público e que o contrato celebrado é um contrato de empreitada, na sequência da celebração de um contrato de empreitada primitivo, sujeito a concurso público, questiona-se em que pressupostos se baseou o Tribunal a quo, para afirmar que o contrato celebrado é um contrato de empreitada, na sequência da celebração de um contrato de empreitada primitivo, ou, qual a documentação nos autos de onde se possa retirar a ilação aduzida na sentença.
f) De acordo com o Código dos Contratos Públicos (CCP), as normas previstas no artigo 128.º e alíneas a), c) e d) do artigo 20.º ambas do CCP, são inaplicáveis ao caso sub judice.
g) Acresce ainda que, no dia 08 de abril de 2025, foi realizada audiência prévia, conforme consta da ata de audiência prévia para a qual se remete e se dá por reproduzida para os devidos e legais efeitos. Vindo a confirmar-se a inexistência de um contrato formal, “existindo apenas uma proposta e uma aceitação”.
h) Da interpretação concatenada das normas pertinentes da Constituição e do atual regime do ETAF, resulta que o critério decisivo fulcral para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, não é o cariz de gestão publica ou gestão privada do ato, mas antes depender a decisão do objeto da ação, tal como é delineado pelo autor, da aplicação de normas de natureza público-administrativa e, na ação, o ente publico atue ou invoque poderes de autoridade, de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade.
i) Se, ao invés, a apreciação do pedido depender, exclusiva ou essencialmente, da interpretação e aplicação de normas de índole jurídico-privada e, na ação, o ente publico atue, no processo, despojado de tais poderes, ou seja, em paridade e com igualdade de armas relativamente à outra parte, emerge a competência residual dos tribunais judiciais comuns, o que ocorre in casu.
j) Para apreciar a competência deste Tribunal em razão da matéria há que ter em primeira linha de conta, conforme uniformemente tem sido o entendimento da jurisprudência, ao pedido e a causa de pedir, ou seja, há que atender à natureza da relação jurídica material em apreço segundo a versão apresentada em juízo pelo autor atendendo-se ao direito de que o mesmo se arroga e que pretende ver judicialmente protegido.
k) A causa de pedir do pedido formulado nos autos pela Recorrente assenta no alegado incumprimento por parte da ora Recorrida, por serviços que lhe foram prestados pela ora Recorrente, com o consequente pagamento dos mesmos, mediante uma fatura, que não lhe foi paga.
l) Trata-se de um contrato de natureza e objeto exclusivamente de direito privado, no âmbito ou por referência ao qual as partes não remeteram a subordinação da sua disciplina jurídica para o direito substantivo administrativo.
m) O pedido formulado pela ora Recorrente, não se mostra, pois, enquadrável na esfera de competência material reservada dos Tribunais Administrativos, porquanto a sua atuação, no âmbito da relação contratual estabelecida com a Recorrida, não se mostra revestida de quaisquer poderes de autoridade ou são impostos por motivos de interesse público, não sendo a relação estabelecida entre as partes de natureza jurídica administrativa.
n) O artigo 64.º do CPC dispõe que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
o) O artigo 26.º, n.º 1, da LOFTJ, estabelece também a respeito da competência em razão da matéria que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. A competência residual é, pois, dos tribunais judiciais. Estes só não serão competentes se a lei atribuir competência a outros tribunais.
p) Com base na norma constitucional prevista no n.º 3 do artigo 212.º, pode afirmar-se que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, exceto nos casos que, excecionalmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição.
q) O tribunal competente em razão da matéria é, pois, o tribunal comum, in casu, o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica de Coruche.
r) A Sentença a quo, ao determinar julgar verificada a incompetência em razão da matéria e absolvição da Ré ora Recorrida da instância, violou, o disposto no n.º 1 do artigo 211.º e no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, no n.º 1 do artigo 1.º e nas alíneas e) e f) do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF, no artigo 26.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e no artigo 64.º do Código de Processo Civil.
Concluiu pedindo a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento da ação.
A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais concluiu pela improcedência do recurso com manutenção da decisão recorrida.
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III. Questão a solucionar
A questão a solucionar neste acórdão é única e circunscreve-se a saber se o objeto da ação integra a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou, não se incluindo na especificidade dessa jurisdição, deve ter-se por atribuído aos Tribunais Judiciais, que detêm a competência residual do sistema judiciário.
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Fundamentação

I. Factos provados
Além dos factos que resultam do relatório (na parte relativa à identificação do objeto da ação, para a qual se remete) resultam demonstrados, por acordo das partes e documentos não impugnados, os seguintes factos com interesse para a decisão do recurso:
1. A Autora é uma empresa que tem por objeto projetos, serviços e manutenção de equipamentos hídricos e industriais, empreiteiro de obras públicas e industrial de construção civil.
2. A Autora é responsável pela administração, conservação e exploração da Obra de Rega do (…), na qual se integra a Barragem de (…).
3. Dos estatutos da Ré, reformulados em escritura pública, outorgada no dia 7 de fevereiro de 2003, no 7º Cartório Notarial de Lisboa, consta, nomeadamente, o seguinte:
A Associação é uma pessoa colectiva de direito público, sujeita a reconhecimento formal do Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas (MADRP) e a sua duração é por tempo ilimitado”.
(…)
Compete à Associação:
1 – (…)
2 – Assegurar a exploração e conservação da obra de fomento hidroagrícola ou das partes desta que lhe forem entregues”.
4. A Ré, intitulando-se “concessionária” e o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, designando-se como “concedente”, assinaram um acordo escrito, datado de 16 de fevereiro de 2011, a que foi dado o título “Contrato de Concessão para a Gestão dos Aproveitamentos Hidroagrícolas do (…)”, do qual fizeram nomeadamente constar o seguinte:
Cláusula I
Objeto da concessão
1. O contrato de concessão tem por objeto, em regime de exclusividade, a gestão do (…) e do (…).
2. A actividade de concessão compreende uma ou mais das seguintes actividades:
(…)
b) A exploração, conservação e reabilitação das infra-estruturas do (…) e do (…) necessárias ao seu funcionamento;
(…)
Cláusula VIII
Constituem obrigações gerais da concessionária no âmbito da gestão do (…) e do (…):
(…)
e) Zelar pela protecção, vigilância e conservação dos bens do domínio público e, em especial, das infra-estruturas, objecto da concessão;
(…)”
5. Autora e Ré acordaram a realização, pela primeira, de trabalhos de melhoria das condições de segurança da Barragem de (…), nomeadamente Reparação da Comporta e Peças Fixas da RI.
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II. Aplicação do Direito.
No cerne deste recurso está a divergência de entendimentos entre o Tribunal recorrido e a Autora da ação, aqui nas vestes de Recorrente, sobre o tribunal materialmente competente para preparar e julgar o litígio, na alternativa entre o Tribunal Administrativo e Fiscal e o Tribunal Judicial, dito comum.
Para fundamentar a sua decisão de declaração de incompetência, o Tribunal recorrido teceu as seguintes considerações:
“A Ré Associação de Regantes e Beneficiários do (…) é, pois, uma pessoa de direito público – conclusão que não se mostra controvertida entre as partes e que resulta, ademais, dos seus Estatutos –.
O contrato celebrado entre as partes reportar-se-á, assim, a um contrato de empreitada, na sequência da celebração de um contrato de empreitada primitivo, sujeito a concurso público – matéria que talqualmente não foi colocada em crise pela Autora –.
Assim, ainda que não se imponha discernir, nesta sede, se o acordo que subjaz ao pedido de condenação da Ré corresponde à celebração de um novo contrato de empreitada ou, ao invés, da execução de trabalhos a mais, o certo é que resulta estar em causa nestes autos, em síntese útil, um contrato de empreitada celebrado entre uma pessoa coletiva direito público (a Ré) e uma pessoa coletiva de direito privado (a Autora), com vista à execução de uma obra pública, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 343.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos.
Tratar-se-á, assim, de um litígio emergente de uma relação contratual, pois a Autora pretende acionar a responsabilidade civil da Ré, tendo por base o invocado incumprimento do contrato (por falta de pagamento do preço), ao qual não poderão, segundo crê este Tribunal, deixar de se ter por aplicáveis as normas constantes do Código dos Contratos Públicos (cfr. artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.º 1, alínea h), 3.º, n.º 1, alínea a), 4.º, n.º 1, a contrario, 16.º, n.ºs 1 e 2.º, alínea a), deste diploma legal).
Isto posto, não poderá deixar de concluir que assiste razão à Ré. “
Entende a Recorrente, divergindo, que o Tribunal Judicial é o materialmente competente, porquanto, em síntese, as normas dos artigos 128.º e 20.º, alíneas a), c) e d), do Código dos Contratos Públicos não são aplicáveis ao caso e o contrato celebrado entre as partes tem natureza e objeto exclusivamente privados, não tendo aquelas subordinado o mesmo ao direito substantivo administrativo.
Preambularmente e apesar de serem notas muito repetidas (mas inescapáveis), se adiantará que a competência é um pressuposto processual relativo ao Tribunal, que se define como “a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal” (Manuel de Processo Civil, Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 195).
Quando encarado o pressuposto processual sob o critério da matéria, como é o caso, a lei comete ao tribunal judicial a competência residual, por lhe confiar todas as causas não atribuídas a qualquer outra jurisdição, como resulta expresso do artigo 64.º do Código de Processo Civil.
Assim, na medida em que o Tribunal Judicial tem a competência que não esteja, por lei, especificamente atribuída a outra ordem jurisdicional, apenas se alcançará o juízo de incompetência em razão da matéria se for afirmativa a integração do objeto da ação numa das previsões normativas de atribuição de competência material à jurisdição especial ou não comum.
Para o efeito, considera-se o objeto da ação, circunscrito pelo respetivo pedido e pela causa de pedir que o Autor apresenta para substanciar a sua pretensão e atende-se ao momento em que a ação foi proposta (quanto à 1ª afirmação, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 162; relativamente à 2ª, o artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Nesta ação a Recorrente pede a condenação da Recorrida no pagamento da contrapartida a que se acha com direito, em virtude de ter realizado para aquela outra “(…) trabalhos de melhoria das condições de segurança da Barragem de (…), nomeadamente Reparação da Comporta e Peças Fixas da RI” (cfr. requerimento de injunção).
A ação foi proposta em 26 de novembro de 2024, data em que deu entrada o requerimento de injunção.
Inicia-se aqui o périplo pela competência material dos Tribunais Administrativos, a que atrás se fez referência.
A Constituição da República Portuguesa, no respetivo artigo 212.º, n.º 3, elege como critério determinante da competência material dos Tribunais Administrativos, o conceito de relação jurídica administrativa, estatuindo que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
O conceito de relação jurídica administrativa é problemático, podendo ser entendido em diversos sentidos (subjetivo, objetivo ou funcional), advogando-se mesmo a necessidade de uma intervenção legislativa para o aclarar (no sentido exposto e explicando os vários critérios, José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 20.ª Edição, Almedina, pág. 52).
Assim, sustenta-se que “(…) na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de «relação jurídica administrativa» no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração – sobretudo na medida em que se considere, como defendemos, que esta definição substancial se refere apenas ao âmbito nuclear ou de princípio da jurisdição administrativa, não excluindo soluções expressas justificadas de alargamento ou de compressão da respetiva competência por parte do legislador” (A. e Ob. Cit, pág. 53).
Entendido o conceito de “relação jurídica administrativa” adotado pela Constituição da República Portuguesa, apenas como o núcleo da competência material da jurisdição administrativa, o respetivo desenvolvimento está plasmado no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, na sua 16ª versão, dada pelo Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto, aqui aplicável e adiante referida salvo outra menção).
Interessa, no caso, a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º.
É o seguinte o texto da lei:
1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
Dispõe o artigo 1.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos (versão do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, considerada a data da emissão da fatura junta aos autos e a assunção de que os trabalhos estavam concluídos nessa data) o seguinte:
o regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação”.
Segundo Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, sob a referida previsão acolhem-se “os contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público, esteja ele previsto no CCP ou resulte de legislação avulsa: esta categoria compreende os contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP, mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objeto” (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5ª Edição, Almedina, pág. 29, sublinhado aditado ao original).
Numa outra perspetiva e mais detalhadamente, lê-se noutro ensinamento: “(…) respeitando a orientação europeia e privilegiando uma delimitação subjetiva do âmbito de aplicação do regime de contratação pública, o n.º 2 do artigo 1.º do CCP define «contratos públicos» como aqueles «que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente código e que não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação». Dito de outro modo, salvaguardando as (relevantes) excepções que são posteriormente enumeradas nos artigos 4.º a 6.º-A, para que um contrato esteja submetido ao regime da contratação pública basta que tenha sido celebrado por uma entidade adjudicante.
(…)
Daí resultam quatro conclusões imediatas quanto à inutilidade dos artifícios que poderiam ser utilizados pela Administração para subtracção dos seus contratos ao regime da contratação pública:
a) Em primeiro lugar, como se acaba de notar, para a aplicação do regime da contratação pública é indiferente a determinação da natureza (pública ou privada) de um contrato, do ramo de direito ou do regime substantivo a que a sua execução se submete ou da função (prossecução de necessidades de interesse geral ou de necessidades de interesse privado) em que se inscreve.
b) (…)
c) Em terceiro lugar, pelo mesmo motivo, embora seja razoável esperar que a conduta administrativa atributiva de um benefício económico dependa de um procedimento formal e se não limite a uma actuação informal, é seguro que uma eventual informalidade da sua conduta não pode constituir um método de defraudar obrigações procedimentais de natureza concorrencial. Portanto, a natureza formal do contrato não constitui requisito necessário para a aplicação do regime de contratação pública (podendo, quanto muito, revelar a ilegalidade procedimental em que a entidade adjudicante terá incorrido” (Pedro Fernández Sánchez, Direito da Contratação Pública, Volume I, 2ª Edição, AAFDL Editora, págs. 169 a 171, sublinhados aditados ao original)
A Ré é estatutariamente, como resulta dos factos assentes, uma associação pública, sendo a sua atividade disciplinada pelo Regulamento das Associações de Beneficiários, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 84/82, de 4 de novembro.
A mesma recebeu do Estado a concessão da exploração do aproveitamento hidroagrícola do (…), sendo sua obrigação, entre outras “zelar pela protecção, vigilância e conservação dos bens do domínio público e, em especial, das infra-estruturas, objecto da concessão”.
Enquanto associação pública, a mesma qualifica-se, de acordo com a alínea h) do n.º 1 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, como entidade adjudicante.
Essa qualificação permite concluir que, salvo se o contrato submetido à ação estiver a coberto das exceções dos artigos 4.º a 6.º-A do Código dos Contratos Públicos, a disciplina da formação dos contratos desse diploma ser-lhe-á a aplicável.
Percorrendo o elenco dos contratos que se encontram excluídos do regime da contratação pública, tal como resulta dos artigos 4.º, 5.º, 5.º-A e 6.º-A, verifica-se que o contrato sob o escrutínio desta ação não faz parte do mesmo.
Podem, então, alinhar-se as seguintes conclusões intercalares: a Ré é uma entidade adjudicante nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos; atenta essa qualidade e salvo se o negócio jurídico estiver expressamente excluído, os contratos pela mesma celebrados, independentemente da natureza das respetivas prestações, do ramo do direito aplicável e da informalidade da sua celebração, estão submetidos aos procedimentos da contratação pública, de acordo com o n.º 2 do artigo 1.º do referido diploma.
É a Autora que configura, no requerimento inicial, o objeto do contrato celebrado com a Ré como a “elaboração de trabalhos de melhoria das condições de segurança da Barragem de (…), nomeadamente, Reparação da Comporta e Peças Fixas de RI” (do que a Ré não divergiu, estando esse objeto assente por acordo, nos sobreditos termos).
Dispõe o artigo 280.º, n.º 1, alínea a), do Código dos Contratos Públicos que “a parte iii aplica-se aos contratos administrativos, entendendo-se como tal aqueles em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que se integrem em qualquer uma das seguintes categorias:
a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público”.
A Ré é um contraente público (artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Código dos Contratos Públicos).
Do artigo 343.º, n.º 1, do mesmo diploma, extrai-se o conceito de empreitada de obras públicas com o contrato oneroso que tenha por objeto quer a execução quer, conjuntamente, a conceção e a execução de uma obra pública que se enquadre nas subcategorias previstas no regime de ingresso e permanência na atividade de construção”.
O n.º 2 fornece a noção de obra pública nos seguintes termos:
Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se obra pública o resultado de quaisquer trabalhos de construção, reconstrução, ampliação, alteração ou adaptação, conservação, restauro, reparação, reabilitação, beneficiação e demolição de bens imóveis executados por conta de um contraente público”.
Voltando à Lição de Pedro Fernández Sánchez, nela se lê: “(…) nesta visão ampliativa da empreitada, ela abrange um contrato:
i) De natureza onerosa, bastando para tal a presença de algum método de remuneração do adjudicatário (…)
ii) Cujo objeto inclua prestações que incidam sobre um bem imóvel, desde que elas se encontrem abrangidas por alguma das subcategorias descritas, actualmente, na Lei n.º 41/2015, de 3 de Junho;
iii) A obra seja realizada por conta de uma entidade adjudicante, bastando-se para tanto que uma entidade adjudicante revele um interesse económico na realização da obra, ainda que não seja titular de qualquer direito real sobre o imóvel” (Ob. Cit.).
O contrato submetido à ação congrega essas características essenciais, tendo a prestação da Autora recaído sobre um bem imóvel e correspondido ao dever de conservação do mesmo que foi cometido à Ré pelo Estado.
Conclui-se, assim, que o contrato submetido à ação é um contrato administrativo típico, em concreto, uma empreitada de obras públicas.
Nas suas alegações a Recorrente argumenta com a inaplicabilidade a esse negócio das normas dos arts. 128.º e 20.º, alíneas a), c) e d), do Código dos Contratos Públicos.
Concluindo-se que o contrato da ação é uma empreitada, o artigo 20.º não lhe é efetivamente aplicável, sendo, antes, o artigo 19.º, de cuja alínea d) se extrai a legalidade do ajuste direto para contratos de valor inferior a € 30.000,00, como será o caso do negócio jurídico versado nesta ação.
Já o artigo 128.º rege sobre ajuste direto simplificado, prevendo-o, nomeadamente, para empreitadas de obras públicas cujo preço não seja superior a € 10.000,00, o que também não se aplica ao caso.
Não se compreende, porém, nem a Recorrente cura de explicar, em que medida essas duas exclusões afastam o regime jurídico da contratação pública e dos contratos administrativos, previsto no diploma.
Afirma-se, assim, que o contrato submetido à ação, independentemente da informalidade de que eventualmente se tenha revestido a sua formação, é um contrato submetido à legislação sobre contratação pública e é ainda um contrato administrativo.
Nessa mesma medida, a preparação e julgamento da ação que tem por objeto a sua execução – como é a presente – está subtraída à jurisdição dos tribunais comuns, pertencendo, por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, à jurisdição administrativa.
Finalizando, resta apenas concluir que a decisão recorrida não merece censura, devendo ser mantida, desse modo se negando procedência ao recurso.
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III. Responsabilidade tributária
Decaindo a Recorrente, é a mesma responsável pelas respetivas custas, de acordo com o disposto no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sendo o termo “custas” polissémico, o mesmo significaria, no caso, custas de parte.
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Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora (…), Lda. e manter a decisão de declaração de incompetência material recorrida.
Custas pela Recorrente, na vertente custas de parte.

Évora, 30 de outubro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Maria Isabel Calheiros
Maria Domingas Simões
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SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
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