Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3109/15.2T8STR.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O procedimento do pedido da exoneração do passivo restante decorre em dois momentos, o despacho inicial e o despacho de exoneração, como preconizam os artigos 239º e 244º do CIRE.
II.- Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, como ocorre se o insolvente auferiu rendimentos que ultrapassam o rendimento indisponível (afeto ao seus sustento) e não procedeu à entrega ao fiduciário, nos termos do nº 4 c) do mesmo preceito e do artigo 243º do mesmo diploma.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 3109/15.2T8STR.E1

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…)
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No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Comércio – Juiz 2, no âmbito do processo de Insolvência de (…), foi proferido despacho de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo nos seguintes termos:
De acordo com as informações juntas aos autos pelo Sr. fiduciário, o Insolvente continua a incumprir com as obrigações impostas pelo art. 239º do CIRE, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Apesar de notificado para o efeito pelo Sr. fiduciário e pelo Tribunal o mesmo, para além de não responder, não faz a cedência de rendimentos, a que está obrigado, para a massa insolvente.
Em 6-11-2018 veio o credor Banco Santander Totta, S.A. requerer a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, com fundamento no incumprimento do dever de ceder rendimentos.
Notificado da última informação do Sr. fiduciário, o insolvente nem apresentou qualquer defesa ou justificação para o incumprimento das obrigações legalmente impostas.
Nos termos do art. 243º/1-a do CIRE «1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência»
O art. 239º/4-c do CIRE, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, e o art. 239º/4-a consagra a obrigação de «Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado».
No caso dos autos o incumprimento tem já 2 anos, tendo o insolvente incumprido, no ano de 2016, com a obrigação de ceder € 12.845,74 de rendimentos; e no ano de 2017 recusado a entrega de € 13.846,45.
Esta conduta omissiva do insolvente, sobretudo depois de ter sido notificado pelo Tribunal e mesmo assim nada ter comunicado, tem de ser enquadrada no contexto do dolo e, por conseguinte, importa recusar a exoneração ao insolvente.
Assim, recuso a exoneração do passivo restante admitida liminarmente nos presentes autos relativamente ao insolvente (…) e declarado encerrado o incidente.
Notifique e publique (art. 247º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Registe.

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Não se conformando com o decidido, o insolvente recorreu da decisão, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do seu recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso:

1. O recorrente não recorre da não concessão da exoneração do passivo.

2. O recorrente recorre sim do despacho que o revogou.

3. Pois foi nesse valor olvidado:

a) Idade do insolvente 65 anos;

b) O facto de ser reformado;

c) O facto de frequentar um lar;

d) O facto de ser doente;

e) O facto de ser merecedor de uma vida digna, a que lhe resta;

4. Ora o despacho recorrido considera que o insolvente não pode querer luxos pois esta num lar;

5. O recorrente não os pretende, apenas pretende ter dignidade na velhice;

6. E isso não deve ser olvidado, pois estão em causa direitos fundamentais de qualquer cidadão;

7. Ser velho já é mau, quanto mais sem meios;

8. O valor e face a prova junta que deveria ser atribuída ao insolvente deveria ser de 1 smn e meio;

9. O que lhe permitiria não viver com luxos, mas morrer com dignidade;

10. Pois cada caso judicial deverá ser analisado na sua individualidade e salvo melhor opinião o não foi feito;

11. Acresce que o recorrente sempre cumpriu as suas obrigações para com o senhor AI;

12. Quer com os demais credores vindo ao processo demonstrar a sua situação económica e social.

13. Não lhe pode nem deve ser revogado o despacho.


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Não foram oferecidas contra-alegações.

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Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

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A questão que importa decidir é a de saber se estão reunidos os pressupostos de facto e de direito, para que seja cessada antecipada do procedimento de exoneração do passivo nos termos decididos.
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A matéria de facto que resulta dos autos é a seguinte:
1.- Em 17 de Novembro de 2015 (…) requereu a declaração de insolvência, bem como a exoneração do pagamento do passivo restante.
2.- Em 19-11-2015 foi proferida sentença que declarou a insolvência do requerente.
3.- Por decisão de 12 de Janeiro de 2016 foi deferido o pedido de exoneração do passivo e fixada a quantia correspondente a um salário mínimo nacional o rendimento mensal.
4.- Em 26 de Outubro de 2018, o senhor fiduciário apresentou relatório onde conta que, descontado o rendimento indisponível correspondente a 1 salário mínimo mensal, nos anos de 2016 e 2017, o devedor insolvente não entregou ao senhor fiduciário as quantias de € 12.845,74 e € 13.846,45, respetivamente.
5.- Notificado para o efeito, o insolvente nada disse acerca da não entrega das referidas quantias.
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O Direito.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) prevê um regime de exoneração do passivo restante, aplicável à insolvência das pessoas singulares, regime que visa permitir aos devedores o perdão das suas dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência, após a liquidação do seu património ou nos 5 anos posteriores ao encerramento do processo.
Assim se permite um fresh start ao devedor insolvente com o perdão das suas dívidas.
Este é um risco económico que é pedido aos credores com a finalidade de conceder uma segunda oportunidade social e económica ao devedor insolvente.
Como é evidente, se não ocorresse a declaração de insolvência o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa – Assunção Cristas, Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edi­ção especial, pág. 166-167.
Mas esta oportunidade tem que obedecer a exigentes requisitos que são enumerados no artº 237º da Lei 39/2003, 22-08 (CIRE).
No caso dos autos, da matéria de facto provada resulta que não existiam motivos para indeferimento liminar, pelo que foi proferido despacho inicial nos termos preconizados pelo artº 239º, o que teve como consequência que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário nomeado nos autos.
Tendo sido fixado como rendimento indisponível para sustento do insolvente o valor correspondente a um salário mínimo nacional, todos os rendimentos auferidos anualmente e que ultrapassassem este valor deveriam ser entregues ao fiduciário para posterior satisfação dos créditos sobre a insolvência (artº 239º/4, c)).
Ora, também da matéria de facto provada resulta que nos anos de 2016 e 2017, o devedor insolvente não entregou ao senhor fiduciário as quantias de € 12.845,74 e € 13.846,45, respetivamente, quantias que excediam o rendimento indisponível fixado pelo tribunal.
Por esse motivo, o tribunal a quo, a requerimento de um dos credores, pronunciou-se sobre o cumprimento das obrigações a que o devedor insolvente estava adstrito como contrapartida do encargo económico que estava a ser suportado pelos credores.
E chegou à conclusão que o insolvente, ora recorrente, durante o período da cessão não havia entregado ao fiduciário, nem imediatamente nem posteriormente, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, ou seja as quantias acima referidas.
O que implicou a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos preconizados pelo artº 243º/1, a), do CIRE.
De onde se conclui que o silogismo judiciário se mostra corretamente efetuado, pelo que bem andou o tribunal a quo ao decidir a dita cessão antecipada.

Sobre esta questão a jurisprudência vem decidindo de igual forma:
Ac TRE de 10.-05-2018, Canelas Brás, Procº 454/10.7TBGLG.E1:
É do interesse dos credores e causa-lhes óbvios prejuízos, o insolvente nada vir esclarecer sobre a evolução dos seus rendimentos no período da cessão, ficando os mesmos sem saber se se poderiam, ou não, ressarcir com algum do rendimento entretanto auferido.

Onde se escreveu ainda “que o insolvente deveria ter cedido, entre o início do período da cessão e o mês de Dezembro de 2016 o montante de € 2.187,92, nada tendo cedido ao senhor fiduciário, nada tendo justificado a esse conspecto. Que também por intermédio dos despachos proferidos em 20 de Junho, 16 de Novembro e 4 de Dezembro de 2017 foi o insolvente notificado para exercer o direito ao contraditório, sendo expressamente advertido para a consequência a que alude o n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E., e que a esses despachos também o insolvente não veio a responder.
E foi assim enquadrada que decidiu a 1ª instância, acabando por tomar a decisão que se lhe impunha tomar, a qual não deixou de levar em linha de conta todas essas circunstâncias envolventes – como o faz, também, esta 2ª instância.”

É o caso dos autos.

Também no acórdão do TRL de 06-03-2018, Carlos Oliveira, Procº 24377/11.3T2SNT-B.L1-7 se decidiu:
O comportamento passivo do devedor insolvente, que ao longo dos 5 anos previstos no n.º 2 do Art. 239.º do CIRE não demonstra qualquer interesse no procedimento destinado à exoneração do passivo restante; não cumprindo despachos que lhe são notificados; não dando conta que mudou de residência; de nada informando o fiduciário durante todo o tempo, apesar de notificado por este para esse efeito; não provando que diligenciou ativamente pela procura de emprego e apenas se inscrevendo no Serviço de Emprego do IEFP depois de notificado para justificar o motivo pelo qual não entregou qualquer valor durante o período de cessão, é sintomático do manifesto desinteresse do requerente e constitui motivo bastante para ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do Art. 243.º n.º 1 al. a) do CIRE, por negligência grave resultante do incumprimento dos deveres legais impostos pelo Art. 239.º n.º 4 al.s b) e d) do CIRE.

No caso dos autos a situação é ainda mais expressiva.
Tal como no primeiro caso acima referido, está demonstrado que o insolvente integrou na sua esfera jurídica patrimonial quantias monetárias que em muito excediam o rendimento destinado ao seu sustento e nada entregou ao fiduciário, pelo que o incumprimento da obrigação de entrega imediata a que estava adstrito é evidente e de uma clareza meridiana.
Tendo este incumprimento como consequência a cessação da exoneração, nenhuma outra decisão poderia ser proferida.
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O Ac. do TRC de 30 de Junho de 2015, Sílvia Pires, Procº 1140/11.6TBLRA.C1, delineou também a questão em toda a sua dimensão:

I – O procedimento do pedido da exoneração do passivo restante tem dois momentos fundamentais: o despa­cho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o nº 1 do art.º 239º do CIRE.
II - Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em compor­tamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram.
III - No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.
IV - Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
V - A cessação antecipada da exoneração ocorre:
- logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, n.º 4, do CIRE – sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, e
- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
VI - Esta última situação ocorrerá, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no n.º 1 do art.º 243º do CIRE:
a) se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência incumprido algumas das obrigações que lhe incumbem em relação à cessão do rendimento disponível – art.º 243º, n.º 1, a) e 239º;
b) se vier a ser apurado supervenientemente algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos nas alíneas b), e) e f), do art.º 238º - art.º 243º, n.º 1, b);
c) quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência – art.º 243º, n.º 1, c).
VII - Nos termos do disposto no n.º 2 do preceito citado, o requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
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O recorrente alega que a quantia mensal destinada ao seu sustento não é suficiente para fazer face às despesas exigidas para lograr um nível de vida respeitador da dignidade da pessoa humana.
Contudo, a fixação do montante necessário ao seu sustento não se mostra impugnada (foi interposto recurso fora de prazo e, por isso, não admitido) pelo que esta questão se mostra definitivamente fixada, não podendo agora o Tribunal da Relação apreciar a mesma sob pena de se pronunciar sobre questão de que não pode tomar conhecimento, decisão que estaria ferida de nulidade (artº 615º/1, d), in fine).
Assim sendo, a decisão deve manter-se com o que improcede a apelação.
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Sumário:

(…)

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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga improcedente a apelação e confirma a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário – Artº 527º CPC.

Notifique.

Évora, 12-06-2019

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura