Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1107/23.1T8PTM.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
PREJUÍZO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – O n.º 1 do artigo 272.º do CPC prevê duas causas de suspensão da instância por determinação do tribunal: a pendência de causa prejudicial e a ocorrência de outro motivo justificado;
II – Sendo as mesmas as partes em ambos os processos, assente que a pretensão deduzida na presente ação pressupõe que o autor tenha a qualidade de sócio da ré e encontrando-se impugnada no processo n.º 1153/24.8T8PTM uma deliberação através da qual foi o mesmo excluído de sócio da sociedade, verifica-se que o objeto desse processo constitui questão prejudicial relativamente ao objeto da presente ação;
III – Se na ação prejudicial foi já proferido despacho saneador e os presentes autos se encontram na fase anterior, mostrando-se findos os articulados, perante a fase processual mais adiantada em que se encontra aquela ação, não se vislumbra que os prejuízos da suspensão da instância superem as vantagens daí decorrentes.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1107/23.1T8PTM.E1
Juízo Central Cível de Portimão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

Na presente ação declarativa, com processo comum, que (…), advogado, move contra (…) – Sociedade de Advogados, SP, RL, o autor, inconformado com o despacho de 20-03-2025, em que se suspendeu a instância até que esteja decidido o processo n.º 1153/24.8T8PTM do Juízo Central Cível de Portimão - Juiz J2, interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por decisão que determine o prosseguimento dos autos, terminando as alegações com a dedução das conclusões que se transcrevem:
«A) A decisão de suspensão da presente instância não tem qualquer fundamento e deve ser substituída por outra que ordene o regular prosseguimento dos autos;
B) Não há qualquer relação de prejudicialidade entre os presentes autos e os que com o n.º 1153/24.8T8PTM, correm termos pelo Juízo Central Cível de Portimão, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro;
C) Nesses autos (n.º 1153/24.8T8PTM) é discutida, entre outros, a validade e eficácia de deliberação expulsiva datada de 5 e 15 de Dezembro de 2022 (e não de 15 de Fevereiro de 2022 como consta da decisão ora recorrida);
D) A decisão a proferir nesses autos poderá consolidar a decisão expulsiva, o que fará sem efeitos retroactivos;
E) Todas as deliberações anteriores à deliberação expulsiva que afectem o património pessoal do ora recorrente e que tenham sido atempadamente impugnadas não perdem efeito, já que o recorrente, quando as impugnou, era inequivocamente, sócio;
F) Acresce que, tais deliberações influem directamente no património pessoal do recorrente por via da aplicação – obrigatória – do regime da transparência fiscal;
G) Não perdendo, pois, relevância as impugnações das deliberações que aprovaram as contas da sociedade dos anos de 2020 (acta número 8) e 2021 (acta número 9), mesmo que o recorrente tivesse já perdido a qualidade de sócio, o que não se verifica;
H) O decisão recorrida viola o disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC e deve ser revogada e substituída por outra que determine o regular prosseguimento dos autos.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão da instância.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Com interesse para a apreciação do objeto da apelação, extraem-se dos autos, além dos elementos indicados no relatório supra, ainda os seguintes:
a) a presente ação foi intentada em 19-03-2023;
b) o autor, invocando a qualidade de sócio da sociedade ré, pede que sejam declaradas nulas ou, subsidiariamente, anuladas as deliberações da assembleia geral da sociedade ré de 23-12-2021 e de 31-03-2022, a que correspondem as atas n.ºs 8 e 9;
c) foi requerida e admitida a ampliação do pedido e da causa de pedir, de forma a abranger a apreciação da legalidade da deliberação de ratificação e/ou de renovação das deliberações inicialmente impugnadas;
d) corre termos sob o n.º 1153/24.8T8PTM no Juízo Central Cível de Portimão uma ação declarativa, com processo comum, intentada em 10-04-2024 pelo ora autor contra a ora ré, na qual peticiona o autor, além do mais, a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, a anulação da deliberação da assembleia geral da sociedade ré de 15 de dezembro de 2022, através da qual foi excluído de sócio da sociedade;
e) na referida ação declarativa, foi proferido despacho saneador em 13-02-2025.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posto em causa na apelação o despacho que ordenou a suspensão da instância até se mostrar decidida a ação declarativa que corre termos sob o n.º 1153/24.8T8PTM no Juízo Central Cível de Portimão, intentada pelo ora autor contra a ora ré.
Consta da decisão recorrida que a suspensão da instância foi determinada com fundamento no seguinte:
(…) na presente situação, assemelhasse-nos que existe essa relação de prejudicialidade entre os presentes autos por um lado e o Proc. n.º 1153/24.8T8PTM do Juízo Central Cível de Portimão - Juiz J2.
Isto porquanto no âmbito do Proc. n.º 1153/24.8T8PTM, para além de outras deliberações terem sido igualmente impugnadas, também é discutida a validade da deliberação referente à exclusão do autor da condição de sócio da demandada (deliberação datada de 15.02.2022).
E caso se conclua pela existência de fundamento para tal exclusão, dai decorre a quebra ou destruição da relação societária.
Deixando o proponente – em caso de confirmação da perda de tal condição – de ter legitimidade ou qualquer interesse legitimo em impugnar deliberações da sociedade ré.
Tanto mais, que os vícios invocados no âmbito destes autos têm natureza formal e em nada contendem com aspetos de natureza substantiva que sejam independentes da mencionada condição de sócio do autor.
Sendo que é da manutenção de tal condição de que dependeria a utilidade ou mesma a necessidade da emissão de uma pronúncia judicial e até a própria legitimidade do proponente para agir em juízo com intuito de impugnar deliberações da demandada.
Pelo que face às considerações tecidas e ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, suspendo a presente instância até que esteja decidido o Proc. n.º 1153/24.8T8PTM do Juízo Central Cível de Portimão - Juiz J2.
Discordando deste entendimento, sustenta o recorrente, em síntese, que o presente litígio não se encontra dependente da decisão a proferir na ação que corre termos sob o n.º 1153/24.8T8PTM no Juízo Central Cível de Portimão, a qual não constitui causa prejudicial, o que se impõe reapreciar.
Decorre da decisão proferida que a suspensão da instância foi determinada com fundamento no disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, preceito que permite ao tribunal ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Prevê o n.º 1 do citado preceito duas causas de suspensão da instância por determinação do tribunal: a pendência de causa prejudicial e a ocorrência de outro motivo justificado. Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
Extrai-se do supra transcrito excerto da decisão recorrida que a suspensão da instância foi ordenada com fundamento na existência de causa prejudicial, por se ter entendido o seguinte: i) no processo n.º 1153/24.8T8PTM, o autor peticiona a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, a anulação da deliberação da assembleia geral da sociedade ré de 15 de dezembro de 2022, através da qual foi excluído de sócio da sociedade; ii) a perda da qualidade de sócio da sociedade ré conduz à falta de legitimidade do autor e à falta de interesse legítimo em impugnar deliberações da sociedade ré.
Face ao objeto da apelação, cumpre aferir se a ação que corre termos sob o n.º 1153/24.8T8PTM constitui causa prejudicial relativamente à presente ação.
Em anotação ao preceito, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 550), reportando-se à indicada causa de suspensão da instância, afirmam que o «n.º 1 concede ao tribunal o poder de ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando penda causa prejudicial», explicando que se entende «por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada». Acrescentam os autores (ob. cit., pág. 551) que «nos termos do n.º 2, o tribunal não pode ordenar a suspensão: se a propositura da ação prejudicial tiver tido exclusivamente em vista obter a suspensão; se o adiantamento da causa for tal que, considerando o tempo previsível de duração da ação prejudicial, os prejuízos da suspensão superem as vantagens». Mais afirmam (ob. cit., pág. 553) que o «tribunal pode também ordenar, discricionariamente, a suspensão da instância quando ocorra outro motivo justificado e não se verifique nenhuma das circunstâncias do n.º 2».
Quanto ao que se entende por «nexo de prejudicialidade ou de dependência», para efeitos da suspensão da instância por determinação do tribunal, explicava Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, volume I, 3.ª edição – reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, pág. 384) que «estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra. Aquela acção terá o carácter de prejudicial em relação a esta».
Em anotação do citado artigo 272.º, afirma Miguel Teixeira de Sousa [CPC online: artigos 130.º a 361.º (versão 2024/12), Blog do IPPC, in: https://drive.google.com/file/d/1REL4D8gdisAcNY6oY8Ip7f6vfLRFy2S3/view] o que segue: «O tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa depender da decisão proferida numa outra causa que também se encontre pendente (n.º 1), ou seja, numa causa prejudicial. (b) A prejudicialidade entre acções verifica-se quando o que é decidido numa delas (a acção prejudicial) condiciona o que pode ser decidido na outra (a acção dependente)». Acrescenta o autor (loc. cit.): «(a) O caso julgado da decisão da acção prejudicial tem de ser vinculativo na acção dependente. (b) Em regra, isto pressupõe que as partes das duas acções sejam as mesmas ou, pelo menos, parcialmente as mesmas (…). Atendendo à regra da eficácia relativa do caso julgado às partes, pelo menos uma das partes tem de ser comum à acção prejudicial e à acção dependente».
Está em causa, na ação declarativa que corre termos sob o n.º 1153/24.8T8PTM no Juízo Central Cível de Portimão, intentada em 10-04-2024 pelo ora autor contra a ora ré, entre outras pretensões, o pedido de declaração de nulidade ou, subsidiariamente, de anulação da deliberação da assembleia geral da sociedade ré de 15 de dezembro de 2022, através da qual foi o autor excluído de sócio da sociedade.
Na presente ação, intentada em 19-03-2023 – data posterior à da deliberação de exclusão de sócio que se encontra impugnada no processo n.º 1153/24.8T8PTM –, o autor, invocando a qualidade de sócio da sociedade ré, pede que sejam declaradas nulas ou, subsidiariamente, anuladas as deliberações da assembleia geral da sociedade ré de 23-12-2021 e de 31-03-2022, a que correspondem as atas n.ºs 8 e 9.
Face à forma como o autor estruturou a presente ação, em que baseia a respetiva legitimidade na qualidade de sócio da sociedade ré, verifica-se que a decisão a proferir no processo n.º 1153/24.8T8PTM, no que respeita à nulidade ou à anulabilidade da deliberação da assembleia geral da sociedade ré de 15 de dezembro de 2022, através da qual foi o autor excluído de sócio da sociedade, condiciona a decisão a proferir nos presentes autos, em que o mesmo baseia a pretensão que formula, entre outros elementos, na invocação da qualidade de sócio daquela sociedade.
Como tal, mostra-se ajustado o entendimento da 1.ª instância, face à autoridade do caso julgado.
Transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC .
O caso julgado vincula as partes da ação, não apenas no processo onde foi proferida a decisão, mas também no âmbito de outros processos, exercendo uma função negativa, ao impedir a repetição da causa decidida com trânsito em julgado (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i), 580.º e 581.º do CPC), e uma função positiva, ao fazer valer a sua autoridade, impondo a decisão tomada, numa relação de prejudicialidade relativamente a decisões a proferir em novas ações com outro objeto[1].
A autoridade do caso julgado impõe que as questões decididas vinculem as partes em ações posteriores, seja a título principal ou a título prejudicial, desde que verificada a identidade subjetiva, atento o princípio do contraditório (artigo 3.º do CPC), que impede quem não interveio no processo de ser afetado pela decisão nele proferida.
Sendo as mesmas as partes em ambos os processos e verificando-se que a pretensão deduzida na presente ação pressupõe que o autor tenha a qualidade de sócio da ré, encontrando-se impugnada no processo n.º 1153/24.8T8PTM uma deliberação através da qual foi o mesmo excluído de sócio da sociedade, o objeto desse processo constitui questão prejudicial relativamente ao objeto da presente ação.
Assim sendo, mostra-se acertada a decisão recorrida, ao considerar verificada a pendência de causa prejudicial.
Acresce que no processo n.º 1153/24.8T8PTM foi já proferido despacho saneador, sendo que os presentes autos se encontram na fase processual anterior, mostrando-se findos os articulados.
Tendo em conta a fase processual em que se encontra cada um dos processos, estando a ação prejudicial mais adiantada, não se vislumbra que os prejuízos da suspensão superem as vantagens daí decorrentes, nada impedindo a suspensão determinada pela 1.ª instância.
Nesta conformidade, cumpre concluir que se encontram preenchidos os pressupostos de suspensão da instância por determinação do tribunal, o que impõe a confirmação da decisão recorrida.
Improcede, assim, a apelação.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida;
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 10-07-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2ª Adjunta)


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[1] Sobre o caso julgado e seus limites, cfr. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume (revisto e atualizado), apontamentos das lições redigidas com a colaboração de um grupo de Assistentes, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1987, págs. 768-792; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lisboa, Lex, 1997, págs. 567-597.