Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
Descritores: | SENTENÇA ARBITRAL ANULAÇÃO FUNDAMENTOS ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA | ||
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Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
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Sumário: | Sumário: I. Na ação de anulação de sentença arbitral, diferentemente do que sucede se da mesma for interposto recurso, os poderes de sindicância do tribunal estadual, salvo os casos excecionais ressalvados na lei, e porque apenas está em causa a aferição do chamado error in procedendo reportado à relação processual de arbitragem, não abrangem a reapreciação dos fundamentos de facto e de direito da sentença arbitral. II. Os fundamentos para a anulação da sentença arbitral encontram-se taxativamente previstos no n.º 3 do artigo 46.º, alínea a), subalíneas i) a viii), e alínea b), subalíneas i) e ii), da LAV, sendo a sua alegação e prova ónus impostos à parte que intenta a ação de anulação, sob pena de improcedência da ação. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 298/24.9YREVR (Ação de Anulação de Decisão Arbitral)
Autora: AA, Unipessoal, Ld.ª Ré: BB Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora I – RELATÓRIO 1. AA UNIPESSOAL, LDA intentou contra BB ação especial de Anulação de Decisão Arbitral proferida, em 09-10-2024, no processo arbitral n.º 468/2024, que correu termos no Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (doravante, CIMAAL), que declarou anulado o contrato de compra e venda celebrado entre as partes, em 22-09-2023, e, em consequência, condenou a ali Demandada (ora Autora) a restituir à Demandante (ora Ré) o valor de €3.500,00, pagos por esta àquela pela aquisição de um aparelho auditivo, condenando, outrossim, a Demandante a devolver à Demandada o referido aparelho auditivo. 2. Na presente ação, a Autora formulou pedido de anulação daquela sentença arbitral.1 3. Para esse efeito, e em síntese, alegou que a sentença arbitral: (i) conheceu de matéria não invocada pelas partes (publicidade enganosa levada a cabo pela Ré através de uma campanha publicitária com vista à venda de equipamentos auditivos); (ii) conheceu de matéria excluídas da competência do CIMAAL (falta de qualificação dos profissionais que realizaram os exames médicos e prescrição de dispositivos médicos). Em termos jurídicos, e para sustentar a alegação de facto, invocou a violação do artigo 46.º, n.º 3, da LAV, o disposto no artigo 4.º do Regulamento de Arbitragem de Consumo do Algarve e o artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 144/2015, de 08-09 – RAL (Resolução Extrajudicial de Litígios de Consumo). Concluiu, ainda, pela anulação total da sentença arbitral por via do n.º 7 do artigo 46.º da LAV. 4. Citada a Ré veio apresentar oposição pugnando pela improcedência da ação e pela confirmação da sentença arbitral. 5. Alegou, em suma, que a sentença arbitral não padece dos vícios alegados, nem viola as disposições e diplomas invocados, porquanto se cingiu a decidir a invalidação do compra de compra e venda por a vontade da adquirente ter sido formada com base numa mensagem publicitária da Ré, na qual prometia, a quem se apresentasse num determinado local dia e hora, a realização de uma consulta médica gratuita, quando afinal não eram prestados quaisquer serviços de saúde. Ao invés, o que se verificou foi a realização de exames médicos por técnicos (não médicos), exames esses irrelevantes para aferição da audição Ré, tendo apenas como objetivo a venda de parelhos auditivos, sem prescrição médica, a qual apenas lhe foi apresentada posteriormente. 6. Concluída a fase instrutória desta ação de anulação, cumpre fazer o saneamento dos autos, apreciando, porém, previamente, a questão do valor da causa. 1. Valor da causa A Autora ficou à causa o valor de €30.000,01. A Ré nada opôs. A sentença arbitral fixou à causa o valor de €3.540,00, correspondendo €3.500,00 ao valor que a Demandada foi condenada a devolver à Demandante, acrescida de €40,00, correspondente à taxa de arbitragem prevista no n.º 6 do Regulamento e Tabela de Taxas de Arbitragem. No artigo 45.º da p.i. da presente ação, a Autora reconhece que o objeto do litígio é inferior a €5.000,00. As normas sobre a fixação do valor da causa encontram-se previstas nos artigos 292.º a 310.º do CPC, aplicando-se à presente ação, sendo que o Tribunal da Relação funciona, neste caso, como tribunal de 1.ª instância (artigo 59.º, n.º 1, alínea g), da LAV e artigo 214.º do CPC). Veja-se, ademais, o artigo 46.º, n.º 2 da LAV que delineia o pedido de anulação da sentença arbitral como uma forma autónoma de impugnação da decisão arbitral, com tramitação e finalidades próprias. O critério a seguir para fixação do valor da ação é o previsto no artigo 296.º, n.º 1, do CPC, ou seja, o da utilidade económica imediata do pedido, reforçado pelo critério do n.º 1 do artigo 297.º do mesmo Código que prescreve que o valor da ação corresponde à quantia certa em dinheiro que pela ação se pretende obter. Ademais, se igualmente considerarmos que a ação visa a anulação de um ato jurídico (sentença arbitral), o valor a atender também é o previsto no artigo 301.º, n.º 1, do CPC, que se reconduz ao valor do preço estipulado pelas partes em relação ao referido contrato de compra e venda visado com a anulação. Nestes termos, o valor desta ação corresponde ao valor fixado à ação no tribunal arbitral, ou seja, €3.540,00, o que se determina nos termos do artigo 306.º do CPC. 7. Inexistem outras questões a apreciar autonomamente em sede de saneamento da causa 8. Não existe prova a produzir nesta sede. 9. Nos termos do artigo 46.º, n.º 2, alínea e) da LAV, os presentes autos seguem, a partir desta fase, a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações, pelo que foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. DE FACTO 1. Os atos e factos relevantes para apreciação desta ação encontram-se já mencionados no antecedente Relatório, a que se acrescentam os factos que foram dados como provados na sentença arbitral (inexistem ali factos dados como não provados): «1. A demandada tem como objeto social, entre outras atividades o comércio de artigos de audição, próteses auditivas, aparelhos médicos respetivos consumíveis e acessórios e quaisquer outros produtos direta ou indiretamente relacionados. – Provado pela certidão comercial verificada em https://publicacoes.mj.pt/pesquisa.aspx. 2. No dia 22-09-2023, a demandante tinha na sua caixa de correio um folheto publicitário da demandada, com a informação de que poderia realizar uma consulta gratuita, no Real Marina Hotel & Spa, em ..., pelas 19h, desse dia. - Provado pelas declarações do representante da demandante em audiência de julgamento e não impugnado pela demandada. 3. No dia 22-09-2023, a demandante juntamente com o seu esposo, CC, deslocaram-se ao referido Hotel para a realização da consulta gratuita. – Provado pelas declarações do representante da demandante em audiência de julgamento e não impugnado pela demandada. 4. A demandada realizou à demandante, no dia 22-09-2023, um teste de análise cardiovascular e cerebrovascular, um teste de análise à função do fígado, um teste de análise ao sistema nervoso, um teste de análise à densidade mineral óssea e um teste de análise aos ossos e fator reumatoide. – Provado pelos Relatórios juntos aos autos a fls. 14-18. 5. A demandada realizou à demandante um audiograma através de técnico audiologista. - Provado pelas declarações da demandada. 6. Todos os testes realizados foram efetuados por técnicos e não por médicos. -Provado pelas declarações da demandada. 7. No dia 22-09-2023, a demandante celebrou um contrato de compra e venda, com a demandada, para a aquisição de um aparelho auditivo, pelo valor de €3.500,00. – Provado pelos documentos juntos aos autos a fls. 22-28. 8. No dia da celebração do contrato foi entregue, à demandante, o aparelho auditivo adquirido. – Provado pela confissão das partes. 9. A fatura da aquisição do aparelho auditivo foi passada pela demandada, no dia 24-10-2023. – Provado pela fatura junta aos autos a fls. 28. 10. No dia 19-10-2023, um médico especialista em Urgência Geral, Dr. Sanó, a pedido da demandada, passou uma receita médica com a indicação de que a demandante padecia de Hipoacusia Neurosensorial e prescreveu uma prótese auditiva (1 aparelho), sem que para tanto, tenha analisado a demandante. - Provado pela confissão das partes e receita junta aos autos a fls.27. 11. A demandante não utiliza o aparelho adquirido, porque não se sente confortável com o mesmo. – Provado pelas declarações da demandante. 12. A demandante tem 80 anos. – Provado pelas declarações da demandante.» 2. As questões decidendas são as seguintes: Se a sentença arbitral deve ser anulada por ter conhecido de matérias não alegadas pelas partes e por ter apreciado matérias excluídas das competência do tribunal arbitral. 2. DE DIREITO 1. Enunciadas as questões decidendas, e antes da sua apreciação em concreto, impõe que se trace, ainda que genericamente, o regime legal em aplicação. Estamos perante um litígio que foi decidido por meio de uma sentença arbitral no âmbito de um litígio de consumo, tratando-se de uma arbitragem necessária na aceção do n.º 2 do artigo 14.º da Lei n.º 24/96, de 31-07 (Lei de Defesa do Consumidor – LDC).2 Esta arbitragem deriva da intervenção comunitária que veio a ser consagrada Lei n.º 144/2015, de 08-09 e alterações subsequentes (RAL), sendo a última introduzida pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29/01(Resolução Extrajudicial de Litígios de Consumo), que transpôs a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelecendo o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo. Relevando em especial a previsão do artigo 2.º desta lei que regula o seu âmbito de aplicação, prescrevendo (no que ora releva para esta ação): «1 - A presente lei é aplicável aos procedimentos de resolução extrajudicial de litígios nacionais e transfronteiriços promovidos por uma entidade de resolução alternativa de litígios (RAL), quando os mesmos sejam iniciados por um consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, celebrados entre fornecedor de bens ou prestador de serviços estabelecidos e consumidores residentes em Portugal e na União Europeia. 2 - Encontram-se excluídos do âmbito de aplicação da presente lei: (…) (…).» Aplica-se ainda ao caso presente, o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL)3 que define no seu artigo 4.º, n.º 2, que «Consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados ao uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou coletiva, que exerça com caráter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios», estando excluída da sua competência, como prescreve o n.º 4 do mesmo preceito, os «(…)litígios em que estejam indicados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos da aplicação da Lei RAL.» Finalmente, cabe referir a aplicação ao caso da Lei n.º 63/2011, de 14-12 – (LAV - Lei de Arbitragem Voluntária), mormente o artigo 46.º que regula especificamente a impugnação da sentença arbitral (cfr, artigo 19.º, n.º 3, do Regulamento do CIMAAL), sendo que a arbitragem institucionalizada implica uma adesão às suas regras regulamentares (artigo 6.º da LAV). É ainda se sublinhar que o artigo 30.º da LAV estabelece que o processo arbitral segue os princípios fundamentais que elenca (cfr. alíneas a) a c) do n.º 1 do preceito), esclarecendo que, nesse processo arbitral, em princípio, não são aplicáveis subsidiariamente as regras do CPC (n.º 3 do preceito). 2. Delineadas as coordenadas normativas, e porque para o caso em apreciação tal é deveras relevante, importa tecer breves considerações sobre a delimitação do âmbito da impugnação da sentença arbitral por via da ação especial de anulação daquela decisão especialmente no seu confronto com o recurso da sentença arbitral. A competência dos tribunais do Estado para intervir na sindicabilidade das decisões arbitrais segue uma regra de tipicidade fechada4 (artigo 19.º da LAV). Ou seja, só intervêm nas situações prevista na Lei da Arbitragem. O meio normal de impugnação da sentença arbitral é a ação de anulação prevista no artigo 46.º da LAV, concebido na lei como um direito irrenunciável (n.º 5 deste preceito, salva a exceção prevista no seu n.º 4). Para além disso, a sentença arbitral pode ser objeto de recurso, mas com as condicionantes previstas no n.º 4 do artigo 39.º da LAV ao estipular: «A sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável». Norma que deve ser conjugada com o prescrito no Regulamento do CIMAAL que prevê no seu artigo 15.º, n.º 4: «A sentença arbitral tem o mesmo caráter obrigatório e a mesma força executiva de uma sentença de um tribunal judicial, sendo apenas suscetível de recurso se o valor do processo for superior ao da alçada do tribunal judicial de primeira instância e tiver sido decidida segundo o direito». Para além do já referido no que concerne à regra geral (embora supletiva) da irrecorribilidade das sentenças arbitrais para os tribunais estaduais e da regra geral imperativa aplicável em matéria se impugnabilidade por via da ação de anulação, a distinção entre impugnação da sentença arbitral por via de recurso e por via da ação de anulação também tem relevância por outras razões que se encontram relacionadas com o âmbito dos poderes cognitivos do tribunal estadual. No recurso «(…) é o próprio mérito da sentença arbitral, o seu sentido ou efeito, que é posto em causa, por os árbitros terem cometido um error in judicando, um erro de julgamento (de facto ou de direito), independentemente de ele respeitar ao fundo da causa, às leis substantivas aí (des)aplicadas ou, antes, aos respectivos pressupostos processuais (às leis adjectivas) – pretendendo o recorrente portanto que, em vez da sentença “condeno”, o tribunal decida “absolvo”, que, em vez de declarar prescrito o direito accionado, o julgue ainda susceptível de exercício, que, em vez de considerar a acção extemporânea e inadmissível, a dê como tempestiva e admissível.»5 Por sua vez, na impugnação por via da ação de anulação, «(…) pelo contrário, não se discute (senão indirectamente, claro) o sentido da sentença – se a condenação é devida, a prescrição verificada, a propositura da acção tempestiva -, discutem-se, sim, os vícios de percurso, do processo, que levou os árbitros até à sentença; é um error in procedendo que está agora em causa, isto é, por exemplo, se o litígio era arbitrável, se as regras do contraditório foram observadas, se a sentença vem assinada pelos árbitros cujo voto contribuiu para formar a maioria que a aprovou (ou pela maioria dos árbitros (…)». Só não é assim nos casos excepcionais previstos na subalínea v) da alínea a) [do] art. 46/3 – de condenação por excesso ou defeito – e da subalínea ii) da sua alínea b) – de ofensa imputável ao conteúdo da sentença de princípio de ordem pública».6 A assinalada diferença de regimes encontra-se consensualizada na doutrina e na jurisprudência. Na doutrina, refere MENEZES CORDEIRO reportando-se aos recursos: «Grosso modo, o recurso permite à parte recorrente a reapreciação por um tribunal superior ou ad quem. Essa reapreciação pode estar limitada a questões-de-direito ou, pelo contrário, abarcar, também os factos com reponderação da prova disponibilizada. Pelo sistema germânico, vigente entre nós, o tribunal ad quem pode substituir a decisão do tribunal recorrido ou a quo por outra, que dele divirja nos factos e no Direito ou apenas no Direito, considerada mais adequada».7 Já na ação de anulação da sentença, refere o mesmo autor, «a impugnação tem um regime estrito e limitativo, menos amplo do que o recurso»8, sendo que os fundamentos previsto no artigo 46.º, n.º 3, da LAV são taxativos e a «sindicância do Estado sobre juízos arbitrais é-o de legalidade: não de mérito, salvo o resultado do 46.º/, b), ii)».9 No mesmo sentido, escreve MANUEL PEREIRA BARROCAS em anotação ao artigo 46.º da LAV, «(…) face aos fundamentos tipificados da ação de anulação e ao facto de não existir recurso da sentença arbitral para os tribunais estaduais salvo quando as partes nisso tenham acordado expressamente (artigo 39.º, número 4), que a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constituiu, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Esse efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46.º, número 3, e apenas estes».10 No mesmo sentido se pronunciam ARMINDO RIBEIRO MENDES et al., em anotação ao referido artigo 46.º da LAV, quando referem que, ressalvando o caso previsto no artigo 46.º, n.º 3, alínea b), subalínea ii) – violação de ordem pública como fundamento da anulação da sentença arbitral – em que os tribunais estaduais podem analisar «as questões de fundo das sentenças como se de um processo de recurso ou de cassação se tratasse», nas demais situações prevista no artigo 46.º, n.º 3, da LAV «Consagra-se aqui a proibição de o tribunal estadual proceder ao reexame do mérito da sentença arbitral. Conferir ao tribunal estadual o poder de reexaminar o mérito de uma decisão arbitral equivaleria a negar a definitividade da própria decisão arbitral. O tribunal estadual deve analisar os fundamentos dos diversos tipos de pedido de anulação tendo presente esta proibição genérica. À luz dessa proibição, o tribunal estadual não poderá por exemplo reavaliar o julgamento dos factos pelo tribunal arbitral e decidir de forma diversa, mesmo que esteja em causa um fundamento de anulação em que o conteúdo da decisão arbitral seja fundamento do pedido de anulação. Por outro lado, e por força do mesmo princípio, o tribunal estadual nunca poderá, depois de anular a totalidade ou parte da sentença arbitral, decidir ele próprio todo ou parte do objecto do litígio».11 Na jurisprudência também se encontram publicados vários acórdãos que, tendo presente o sistema dualista de impugnação da sentença arbitral (recurso e ação de anulação), se pronunciam no sentido de, na ação de anulação, estar vedado ao tribunal estadual a apreciação da sentença arbitral quanto à decisão de facto e à decisão de mérito. Veja-se, exemplificativamente, o Ac. STJ de 13-07-201712, embora reportando-se à anterior LAV, o regime é o mesmo na LAV vigente, lendo-se no seu sumário: «VI – Assim, no caso de recurso é o próprio mérito da sentença arbitral, o seu sentido ou efeito, que é questionado, por os árbitros terem cometido um error in judicando, erro de julgamento de facto ou de direito, independentemente de respeitar ao fundo da causa, às leis substantivas aí (des)apilicadas ou, antes, aos respectivos pressupostos processuais (às leis adjectivas). VII – Na impugnação, pelo contrário, não se discute (senão indirectamente) o sentido da sentença arbitral (se a condenação ou a absolvição são devidas), discutem-se, sim, os vícios do percurso processual que levou os árbitros até à sentença. Nela, está em causa o chamado erro in procedendo, reportado à relação processual de arbitragem (e não à relação substantiva aí pleiteada) podendo, nessa medida e de acordo com o artº 27º da LAV (Lei nº 31/86 de 29 de Agosto), ter somente os fundamentos aí enunciados.» E, ainda, Ac. STJ, de 22-02-2024 (proc. n.º 111/23.4YRPRT.S1); Ac. RE de 30-06-2022 (proc. n.º 83/22.2YREVR); Ac. RL de 15-03-2016 (proc. n.º 871/15.6YRLSB); Ac. RL, de 07-11-2024 (proc. n.º 1692/24.0YRLSB-6); RC, de 07-11-2023 (proc. n.º 152/23.1YRCBR); Ac. RP de 05-02-2024 (proc. n.º 319/23.3YRPRT); Ac. RG, de 23-11-2023 (proc. n.º 122/23.0YRGMR); Ac. RG, de 24-10-2024 (proc. n.º 169/24.9YRGMR), todos disponíveis em www.dgsi.pt. 3. Ora a distinção acima explicitada no concernente aos poderes do tribunal estadual quando é chamado a decidir um recurso de uma sentença arbitral ou quando, ao invés, tem de apreciar o pedido formulado na ação de anulação da sentença arbitral, é particularmente curial no caso em preço porque a sentença arbitral proferida não é suscetível de recurso (o valor fixado ao processo arbitral corresponde a €3.540,00, ou seja, inferior ao da alçada da 1.ª instância que se encontra fixado em €5.000,00 (artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08 -Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), tendo sido interposta ação de anulação cujos fundamentos têm de se reconduzir aos taxativamente previstos no n.º 3 do artigo 46.º, alínea a), subalíneas i) a vii), e alínea b), subalíneas i) e ii). Assim, importa agora analisar a fundamentação da presente ação de anulação para se ponderar termos foram os mesmos alegados e se os mesmos correspondem a algum dos previstos no referido n.º 3 do artigo 46.º, alínea a), subalíneas i) a vii), e alínea b), subalíneas i) e ii). Alegou a Autora que a sentença arbitral conheceu matéria não invocada pelas partes e que tal matéria foi considerada na decisão tomada. Essa matéria, de acordo com os artigos 23.º a 29.º da p.i., relaciona-se com o facto da sentença arbitral ter formado a sua convicção quanto à invalidade do contrato com base numa campanha publicitária levada a cabo pela ora Autora, que não existiu, não tendo tal facto sido posto em crise pelas partes, nem a Ré o invocou no processo arbitral. Na p.i., no segmento referente ao Direito, refere a Autora no artigo 44.º da p.i que a sentença considerou inválido o contrato de compra e venda baseado na alegada campanha publicitária e na falta de qualificação dos técnicos que realizaram os testes que foram efetuados à ora Ré, infringindo o artigo 46.º, n.º 3, da LAV, decidindo a sentença «fora do objecto da convenção de arbitragem, incluindo quando funda a sua decisão em factos que não foram alegados ou discutidos pelas partes». Na apreciação desta questão, assinala-se, em primeiro lugar, que a Autora não invoca que a situação seja subsumível a qualquer das alíneas e subalíneas do n.º 3 do artigo 46.º da LAV. Sendo que o referido n.º 3 prescreve a anulação da sentença mas apenas se estiver preenchida algumas das situações previstas na alínea a), subalíneas i) a viii), ou na alínea b), subalíneas i) e ii). Não basta, pois, a invocação do n.º 3 do artigo 46.º da LAV porque do mesmo nada se retira a não ser a afirmação genérica da possibilidade da sentença arbitral ser anulada. A concretização da anulação depende da alegação e prova do circunstancialismo previsto em qualquer das alíneas e subalíneas do referido n.º 3. Ónus esse a cargo de quem invoca o fundamento da anulação (artigo 342.º, n.º 1, do CPC). Ora, no caso, e como se disse supra, estando em apreciação uma ação de anulação de sentença arbitral e não um recurso interposto da mesma, a sindicabilidade do tribunal estadual não abrange os fundamentos de facto e de direito plasmados na sentença. Por conseguinte, toda a alegação referente à não alegação da factualidade relacionada com a campanha publicitária (se existiu ou não) e se a mesma foi (ou não) determinante para a formação da vontade da Demandante de adquirir os aparelhos auditivos, incluindo se essa vontade se formou com base num «engano», bem como a alegação referente à qualificação dos técnicos que fizeram os exames à ora Ré, é irrelevante para a sorte da presente ação de anulação. O que se impõe saber é se os alegados fundamentos são passíveis de serem subsumidos ao n.º 3 do artigo 46.º, alínea a), subalíneas i) a viii), e alínea b), subalíneas i) e ii), da LAV. Ora, analisando cada uma das referidas alíneas e subalíneas e considerando que a Autora alega que o objeto da sentença se encontra fora do objeto da convenção de arbitragem, poderá estar em causa a aplicação da subalínea iii) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º, na medida em que a sentença arbitral pode ser anulada se «A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassem o âmbito desta.» Como acima referido, a sentença arbitral dirimiu um litígio de consumo (compra e venda de um determinado equipamento auditivo), conflito esse que se encontra abrangido por uma arbitragem necessária, sendo-lhe aplicáveis o artigo 14.º, n.º 2, da Lei n.º 24/96, de 31-07, artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 144/2015, de 08-09, e artigo 4.º, n.º 2, do Regulamento do CIMAAL. Considerando a previsão normativa destes precitos acima transcrita, facilmente se conclui que a apreciação da (in)validade do contrato de compra e venda em causa nos autos se encontra abrangido pela convenção de arbitragem. Aliás, a sentença arbitral enunciou o objeto do litígio precisamente com esse alcance, ou seja, estava em causa a «apreciação da regularidade e legalidade do contrato de compra e venda celebrado entre a demandante e a demandada», concluindo que o mesmo tinha de ser declarado anulado pelos fundamentos de facto e de direito que plasmou na sentença arbitral e que não são suscetíveis de ser sindicados na presente ação de anulação. Donde não se pode concluir que a sentença se tenha pronunciado sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou que a mesma tenha ultrapassado o objeto da mesma. Todavia, a Autora prosseguindo na mesma linha argumentativa, vem invocar que as matérias que o tribunal arbitral apreciou estão excluídas da competência do CIMAAL reportando-se, agora, mais concretamente às qualificações profissionais para a realização de exames médicos ou prescrição de dispositivos médicos, reportando-se especificamente ao disposto no artigo 4.º do Regulamento do CIMAAL e artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 144/2015, de 08-2015. Também em relação a esta alegação a Autora não integra a situação em qualquer das alíneas e subalíneas do n.º 3 do artigo 46.º da LAV. Assente que está a natureza do litígio como de consumo nos termos supra referidos, a competência material do CIMAAL encontra-se definida no artigo 4.º, n.º 1 e 2 do respetivo Regulamento abrangendo a aquisição de bens por parte do consumidor e vendidos por um profissional que disse faça a sua atividade económica, como sucede com a ora Autora. O n.º 4 do mesmo artigo 4.º não tem aplicação ao caso, porquanto não está em causa qualquer litígio de natureza criminal ou que esteja excluído do âmbito de aplicação do mesmo Regulamento. Por outro lado, por via do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 144/2015, de 08-09, os litígios referentes ao consumo encontram-se a coberto desse diploma legal. E não se verifica, no caso, a exclusão prevista no n.º 2, alínea b), do mesmo artigo 2.º, porquanto o litígio das partes não se reporta, como ali se estipula, aos «serviços de saúde prestados aos doentes por profissionais do sector para avaliar, manter ou reabilitar o seu estado de saúde, incluindo a prescrição, a dispensa e o fornecimento de medicamentos e dispositivos médicos». O que está em causa neste litígio, como bem se refere a sentença, não é a prestação de serviços de saúde ou a prescrição de medicamentos e dispositivos médicos. O que está em causa é a comercialização de aparelhos auditivos vendidos através do modus operandi gizado pela ora Autora nos termos que se encontram espelhados nos factos apurados no processo arbitral. Relembrando-se à Autora que o seu objeto social é a comercialização desse tipo de dispositivos ou outros produtos com eles relacionados e não o de realização de serviços de saúde ou prescrição de medicamentos e dispositivos médicos a que alude a alínea b), do n.º 2, do artigo 2.º da Lei n.º 144/2015, de 08-09. Por essa razão, o litígio em causa nos autos não se reconduz à exclusão prevista no artigo 2.º, n.º 2, alínea a), da citada lei. Em suma, e considerando que estamos no âmbito de uma ação de anulação de uma sentença arbitral que dirimiu um conflito de consumo, relacionado com a compra e venda de um dispositivo auditivo, e em face da alegação da Autora e dos contornos desse tipo de litígio, não se apurou que haja fundamento legal para a anulação da sentença arbitral, pois a Autora não logrou alegar e provar que a verificação da previsão do n.º 3 do artigo 46.º, alínea a), subalíneas i) a viii), e alínea b), subalíneas i) e ii), da LAV. Nestes termos, improcede a presente ação de anulação de sentença arbitral. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Autora (artigo 527.º do CPC). III- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente o pedido de anulação a sentença arbitral. Valor da ação: €3.540,00. Custas pela Autora. Évora, 09-04-2025 Maria Adelaide Domingos (Relatora) Ana Pessoa (1.ª Adjunta) Sónia Moura (2.ª Adjunta)
______________________________ 1. Não se refere nesta fase o pedido de prestação de caução, porquanto esta questão já se encontra decidida por despacho singular proferido em 10-02-2025, já transitado em julgado.↩︎ 2. Estipulando o preceito do seguinte modo: «2 - Os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.»↩︎ 3. Consultável em https://consumoalgarve.pt/images/Estatutos%20e%20Regulamentos/Regulamento_de_Arbitragem_do_Centro_de_Arbitragem_de_Conflitos_de_Consumo_do_Algarve.pdf↩︎ 4. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado da Arbitragem, Comentário à Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, Almedina, 2016, p. 214.↩︎ 5. Lei da Arbitragem Voluntária, coord., de MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Almedina, 2014, p. 546.↩︎ 6. Idem, pp. 546-547.↩︎ 7. Ob cit. p. 436.↩︎ 8. Ob. cit., 437.↩︎ 9. Ob. cit., p. 440.↩︎ 10. Lei da Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, p. 171.↩︎ 11. Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, Almedina, 2012, p. 94 a 96.↩︎ 12. Proferido no proc. n.º Proc. 2455/13.4YYLSB-A.L1.S1 (António Piçarra), disponível em www.dgsi.pt.↩︎ |