Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
111/07-2
Relator: SILVA RATO
Descritores: APLICAÇÃO DE LEI ESTRANGEIRA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para julgar uma acção intentada por uma empresa com sede num estado estrangeiro da Comunidade Europeia, contra uma empresa com sede em Portugal, se o lugar do cumprimento da obrigação for em Portugal, salvo se as partes contratantes tiverem acordado em sentido diverso dentro dos limites legalmente permitidos.

II – O direito de qualquer Estado Membro da Comunidade Europeia pode ser aplicado pelos Tribunais Portugueses desde que tenha sido convencionado entre as partes.
Decisão Texto Integral:
*
PROCESSO Nº 111/07

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. “A” veio intentar a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra “B”, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 338.938,33 a título de indemnização pelos prejuízos que teve por incumprimento dos contratos celebrados entre as partes.
Citada a Ré veio, para além do mais, deduzir a excepção de incompetência absoluta do Tribunal "a quo", invocando a cláusula l4a dos contratos já citados.
A A. deduziu Réplica onde, para além do mais, concluiu pela improcedência da arguida excepção de incompetência absoluta.

Por despacho cuja certidão está junta a fls. 77 e 78, foi declarada improcedente a arguida excepção de incompetência absoluta do Tribunal "a quo" .

Inconformada veio a Ré a interpor recurso de tal despacho, cujas alegações, de fls. 90 a 100 destes autos, concluiu nos seguintes termos:
A) "Ao ter omitido a aplicação da cláusula de aforamento, livremente acordada entre a Agravante e a Agravada, o despacho em apreço violou o princípio da autonomia da vontade na determinação do Direito aplicável às obrigações contratuais, consagrado no nº 1 do Art.ºs 3 da Convenção de Roma, os Art.ºs 41 e 42 do Código Civil, violando ainda os art. 900 e 158 n° 1 do CPC, o que desde logo implica a nulidade da mesmo nos termos do art. 668 n" 1, alíneas b) c) e d) do CPC.
B) A decisão em recurso viola ainda os art. 205 n° 1 e 208º da Constituição da República Portuguesa que obriga a que" as decisões dos tribunais são sempre fundamentadas nos casos e nos termos da lei "
C)Existe erro na determinação da norma aplicável, por ter sido preterido a aplicação dos Art." 1º, 17°, 23°, 25º e 66° do Regulamento (C E) n° 44/2001 do Conselho, relativo à Competência Judiciária, ao reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, uma vez que as partes acordaram inserir nos contratos em crise, uma cláusula que atribui a competência para julgar os litígios decorrentes da relação contratual em causa, a uma ordem jurídica estrangeira, o que só por si viola o art. 690 nº 1 alínea c) do CPC. Ao não considerar verificada a excepção dilatória a qual determina, sem mais, a absolvição da instância, por ter sido preterido o Direito Holandês, nos termos e para os efeitos do Art.º 494 alínea a) do CPC, o juiz a quo deixou de se pronunciar sobre questão que devia apreciar assim violando frontalmente o art. 668 n° 1 alínea d),
D)A decisão em recurso, fez" tábua rasa" sobre a regra de competência estabelecida em pacto atributivo de jurisdição o qual privou de tal competência os tribunais portugueses, assim violando os Art.ºs 101, n.º 1 a contrario e 108 do C.P.C. bem como, os Art.ºs n° 1, 17°, 23º nº 1, 25° e 66 do Regulamento n.º 44/2001,
Termos em que, invocando-se o douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser reparado o agravo e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue procedente a excepção dilatória de incompetência territorial invocada pela Agravante,."

A Agravada deduziu contra-alegações em que pugna pela manutenção do decidido, embora com fundamento diverso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. Nos termos dos artºs 684°, n.º 3, e 690°, n.º 1. do C.P.Civil, o obiecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.° 2 do art. ° 660° do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se a saber se a sentença é nula por virtude de padecer de algumas das nulidades arguidas pela Agravante, e se o Tribunal "a quo" é competente ou não para decidir o presente litígio.

Quanto às arguidas nulidades da sentença (alíneas b), c) e d), do art.º 668°, do CPC), diremos desde já que a Ré não tem qualquer razão.
Na verdade a decisão sob recurso especificou devidamente os fundamentos em que se alicerça, não padece de qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, e não se pronunciou sobre qualquer matéria cujo conhecimento lhe estivesse vedado, ou deixou de apreciar qualquer questão sobre que se devesse pronunciar.
Especificando, a decisão recorrida, interpretando a cláusula 14° dos contratos em apreço, considerou que não se trata de um pacto de jurisdição, e por conseguinte, invocando o direito que considerou aplicável, decidiu que o Tribunal "a quo" é competente para decidir o pleito e consequentemente declarou improcedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal.
Convém recordar, no que respeita à oposição entre os fundamentos e a decisão, que, como ensina A1berto dos Reis (CPC Anotado vol. V, em nota ao art.o 668°), "quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete." ... "a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas ao resultado oposto. "
"Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante uma oposição geradora de nulidade;" (Lebre de Freitas in CPC Anotado, Vol. 2°, na nota 3 ao art.º 668°).
Ora no caso, o que pode haver, como adiante referiremos, é um erro de eleição do direito aplicável, o que não consubstancia uma nulidade da sentença, mas um erro de julgamento.
Daí que improcedam as arguidas nulidades da sentença.

Passando ao fundo da questão, cumpre averiguar se o Tribunal "a quo" é competente para decidir o presente litígio.
Com vista a agilizar a resolução de conflitos entre partes domiciliadas em Estados-Membros diversos, e assim contribuir para o bom funcionamento do mercado interno, o Conselho da União Europeia aprovou o Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (art.º 1º do Regulamento), que sobre a matéria substituiu a Convenção de Bruxelas (art.º 68°, n.º 1 do Regulamento).
Tal Regulamento vigora na ordem jurídica portuguesa por força do disposto no art.° 8°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e prevalece sobre o direito interno (art.° 8°, n.º 2, da CRP).
O Regulamento entrou em vigor em 01 de Março de 2002 (art.º 70° do Regulamento) e aplica-se a todas acções que caibam no seu âmbito, que tenham sido intentadas após a sua entrada em vigor, como é o caso da acção em apreço (entrou em juízo em 08.07.2002).
No que respeita ao Tribunal competente para decidir os litígios entre pessoas, singulares ou colectivas, domiciliadas em Estados-Membros diferentes, estabelece o Regulamento uma norma geral de que o tribunal competente é o tribunal do domicílio do Réu (art.º 2°, n.º 1 do Regulamento).
Para além desta norma geral, contém o Regulamento várias normas especiais para diversos tipos de litígios, nomeadamente sobre a competência quando o litígio tem subjacente matéria contratual estabelecida entre as partes, em que é atribuída competência ao tribunal do lugar de cumprimento da obrigação (art.º 5°, n.º 1, a) do Regulamento).
Tal competência em matéria contratual, abarca diversas vertentes, nomeadamente a relativa ao incumprimento dos contratos (vide Ac. do TCE de 06.10.1976, caso De Bloos).
No entanto, o Regulamento, fora dos casos em que estipula a competência exclusiva de determinados tribunais (vide art.º 22° do Regulamento), permite que as partes estabeleçam, por acordo, qual o tribunal ou tribunais de um Estado-Membro que têm competência para decidir determinado litígio (Pacto de Jurisdição - art.º 23°, n.º 1 do Regulamento).

Feito este enquadramento da situação, apreciemos o caso objecto deste recurso.
Estamos perante dois contratos, estabelecidos entre a A e a Ré, relativos à contratação de alojamentos em apartamentos turísticos da Ré, sitos em …, …, Portugal, fundando-se o pedido de indemnização formulado pela A no incumprimento de tais contratos pela Ré.
Tendo as partes domicílios na Holanda (a A) e em Portugal (a Ré) e sendo a matéria do litígio matéria de natureza contratual, estipula o Regulamento 44/2001, que o Tribunal competente para dirimir o litígio é o tribunal do lugar de cumprimento da obrigação, ou seja, o Tribunal "a quo" (art.º 5°, n.º 1, a) do Regulamento).
Isto a menos que as partes, dentro dos poderes que lhe são conferidos pelo art.° 23° do Regulamento, tenham estipulado em sentido diverso.
Invoca a Ré que assim acontece, dado o disposto na cláusula 14a dos citados contratos, que dispõe que "Será aplicado o direito holandês no que se refira a conflitos que surjam em consequência do presente acordo ou em consequência de contratos que possam vir a decorrer do presente contrato" .
Mas será que esta cláusula estipula um pacto de jurisdição para dirimir o presente litígio?
Tal como decidiu o Sr. Juiz "a quo", afigura-se-nos que não se trata de uma cláusula atributiva de jurisdição, mas apenas uma convenção sobre o direito ­substantivo aplicável no caso de litígio.
Na verdade, a fórmula usada para redigir tal cláusula, diverge da normalmente utilizada para o efeito da fixação convencional da jurisdição competente para decidir um litígio (por ex. "as partes acordam que o tribunal competente para decidir os litígios atinentes ao presente contrato é ... "), sendo mais própria de uma convenção sobre o direito substantivo que regula o contrato, em caso de litígio.
E o direito holandês pode ser aplicado pelos tribunais portugueses aos litígios que aqui sejam intentados, desde que essa seja a convenção das partes (art.º 3°, n.º 1 da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, aplicável a Portugal pela Convenção do Funchal de 1992), isto sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.° 3° da citada Convenção.
Pelo que consideramos tal cláusula como estabelecendo uma convenção sobre o direito substantivo aplicável, no caso de litígio, e não um pacto de jurisdição.
Dito isto, e em face do exposto, é de considerar competente o Tribunal Judicial de … para dirimir o presente conflito. Nega-se assim provimento ao agravo, embora por fundamento diverso do acolhido no despacho sob recurso.
***
III. Pelo acima exposto, decide-se negar provimento ao recurso, embora com fundamento diverso do que sustentou a decisão recorrida.
Custas pela Agravante.
Registe e notifique.
Évora, 29 de Março de 2007