Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1085/23.7T9ABT.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
RECURSO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A lei - art. 63.º, n.º 2 e 73.º, ambos do R.G.C.O.C.- apenas admite recurso para o Tribunal da Relação da sentença e do despacho judicial que, na 1.ª instância, tiverem conhecido da impugnação da decisão da autoridade administrativa [verificado que seja uma das situações incluídas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art.º 73.º] e do despacho liminar que tiver rejeitado o recurso por ser extemporâneo ou por não respeitar exigências de forma.
Não tendo a decisão administrativa impugnada conhecido de qualquer contraordenação, nem tendo no procedimento administrativo autónomo em causa sido aplicada qualquer coima ou qualquer sanção acessória, não se enquadrando, por isso, a decisão recorrida em qualquer das previsões das diversas alíneas do nº1, do art.º 73º do RGCO, o recurso interposto da decisão que manteve a decisão administrativa de cassação do título de condução não é admissível face à irrecorribilidade do despacho impugnado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
No âmbito do processo de cassação n.º145/2023, que correu termos na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi determinada, a AA, com os demais sinais de identificação nos autos, a cassação do título de condução nº …, nos termos do preceituado no art.º 148.º do Código da Estrada.

AA impugnou judicialmente essa decisão, tendo o Tribunal Judicial Comarca de …- Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida a 08/02/2024, julgado improcedente a impugnação, mantendo, em consequência, a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (doravante ANSR).

Por não se conformar com tal decisão, AA dela interpôs o presente recurso, rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“1 Por decisão da A.N.S.R., foi o arguido, notificado da cassação da sua carta de condução.

2 Não se conformando de tal decisão apresentou a respectiva impugnação judicial.

3 Apreciada a impugnação foi a mesma considerada improcedente.

4 Tal improcedência assenta no facto do recorrente ter naquela data 0 pontos.

5 Porquanto no Processo de contraordenação nº … perdeu de 5 (cinco) pontos, no processo. de contraordenação nº … perdeu 2 (dois) pontos e no processo de contraordenação nº… perda de 5 (cinco) pontos.

6 Segundo a alínea b) nº 4 do artigo 148 do Código da Estrada, sempre que o Arguido, tenha 3 (três) ou menos pontos terá de realizar a prova teórica de exame de condução.

7 Ora desde o dia 12/02/2020 que o Arguido ficou com menos 3 (três) pontos (perdeu 5 em 13/09/2022, mais 2 pontos em 12/09/2022 e 5 pontos em 12/02/2020) de um total de 15 pontos que o arguido teria (12 pontos iniciais e mais três acumulados, perfazendo os 15 pontos).

8 O Arguido poderia e deveria ter sujeito a novo exame de condução teórica, tendo deste modo sido evitada a presente situação de cassação da sua carta de condução.

9 Situação para a qual está disponível.

10 Considerando deste modo estar a ser-lhe aplicada a sanção mais gravosa, devido a inércia da A.N.S. Rodoviária.

11 Tem absoluta necessidade de se deslocar diariamente, pois como …, tem de angariar o seu sustento e da sua família.

Termos estes os expostos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente ser a decisão ora recorrida substituída por outra que reconheça a pretensão do recorrente plasmada na sua impugnação da decisão proferida pela Autoridade Administrativa.

Vossas Excelências Senhores Desembargadores, ao decidirem como peticionado, farão como sempre JUSTIÇA.”

O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentadas pelo Arguido Recorrente, pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

A DECISÃO RECORRIDA

A decisão do Mmº Juiz do Tribunal Judicial Comarca de … - Juízo Local Criminal de … objecto do presente recurso é do seguinte teor:

“O Tribunal decidiu proferir decisão do recurso, por despacho, nos termos do disposto no art.º 64º, n.º 2 do DL 433/82.

O Ministério Público e o arguido não se opuseram à decisão do recurso mediante despacho.

II Saneamento

1. O tribunal é absolutamente competente.

2. Inexistem questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa e que importe, a nosso ver, conhecer aqui.

III Fundamentação

A) Factos Provados

1. O arguido é titular da carta de condução n. 0 ….

2. O arguido apresenta um total de zero pontos, em virtude de ter sido condenado pela prática das infrações abaixo descritas e que se encontram averbadas no seu Registo Individual do Condutor.

3. No âmbito do Processo de Contraordenação nº .., o arguido praticou, em 19/03/2021 a infração prevista e punida nos termos do artigo 81º nº 1 e nº 6, al. b) do Código da Estrada, qualificada como contraordenação muito grave, de acordo com o previsto na alínea j) do artigo 146. 0 do Código da Estrada e por decisão proferida em 05/08/2022 e notificada ao arguido em 23/08/2022 e tornada definitiva (transitada em julgado) em 13/09/2022, foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 135 (cento e trinta e cinco) dias, e implicou a perda de cinco pontos nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

4. No âmbito do Processo de Contraordenação nº … o arguido praticou em 19.03.2021, a infração prevista e punida nos termos do artigo 55º, nº 1 e nº 6 do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea p) do nº 1 do artigo 145. 0 do Código da Estrada, praticada em 19/03/2021 e por decisão proferida em 05/08/2022, notificada ao arguido em 22/08/2022 e tornada definitiva (transitada em julgado) em 12/09/2022, foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 75 (setenta e cinco) dias e implicou a perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n. 0 1 do artigo 148. 0 do Código da Estrada.

5.No âmbito do Processo de Contraordenação nº … o arguido praticou em 11.12.2018, a infração prevista e punida nos termos do artigo 81º, nº 1 e nº 6, al. b) do Código da Estrada, qualificada como contraordenação muito grave, de acordo com o previsto na alínea j) do artigo 146. 0 do Código da Estrada e por decisão proferida em 18/12/2019, notificada ao arguido em 22/01/2020 e tornada definitiva (transitada em julgado) em 12/02/2020 foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 (noventa) dias e implicou a perda de cinco pontos nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

6.No âmbito do Processo de Contraordenação nº …, o arguido praticou em 23.11.2017, a infração prevista e punida nos termos do artigo 27º, nº 1 e nº 2, al. a), 2º do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º do Código da Estrada e por decisão proferida em 14/02/2019, notificada ao arguido em 16/05/2019 e tornada definitiva (transitada em julgado) em 06/06/2019 foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, suspensa na sua execução pelo período de 180 (cento e oitenta) dias, a qual implicou a perda de dois pontos nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

7. No âmbito do Processo crime nº 16/19.3…, que correu termos no Juízo Local Criminal de . do Tribunal Judicial da Comarca de …, por sentença datada de 23.01.2020 e transitada em julgado em 24.02.2020, o arguido foi condenado pela prática 06.03.2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no nº 1 do artigo 292ºdo Código Penal na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 7 (sete) meses, o que implicou a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148º nº 2 do Código da Estrada.

8. Posteriormente, no âmbito do Processo crime n. 0 267/22.3…, que correu termos no Juízo Local Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, por sentença datada de 05.12.2022 e transitada em julgado em 04.01.2023, o arguido foi condenado, por factos reportados a 22.10.2022, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao nº 1 do artigo 292. 0 do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 1 1 (onze) meses o que implicou a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148º, nº 2 do Código da Estrada.

B) Factos NÃO Provados

Não se provaram factos relevantes à boa decisão da causa.

C) Motivação da matéria de facto

Para formar a sua convicção, o Tribunal baseou-se na prova produzida nos autos e na sua análise crítica, tendo ainda em conta o que, sobre esta matéria, se dispõe no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Nestes termos, a convicção positiva do tribunal fundou-se na análise seu Registo Individual do Condutor, o que permitiu dar como provado os factos 1 a 8.

D) O Direito

A cassação do título de condução é, hoje, estabelecida administrativamente mediante um sistema de pontos (doze, com a aquisição da licença de condução - cfr. art. 121.ºA do CE) que, sendo sucessivamente subtraídos por força de decisões definitivas sancionatórias de desobediência do agente a comandos de Direito Estradal, uma vez esgotados dão lugar à perda da autorização administrativa para conduzir veículos rodoviários em estradas públicas e, bem assim, a impedimento legal para obter nova licença durante um período de dois anos (cfr. art. 148.º/4, al. c), 10 e 11 do CE).

A cassação da carta de condução e a proibição de a obter por um período fixo de dois anos não constitui um sancionamento contraordenacional em sentido próprio (a resposta sancionatória à violação de uma norma de mera ordenação, fundada no facto e inerente juízo de censura, ilicitude e necessidades de prevenção a ele associadas), mas a preclusão de uma autorização administrativa para o desenvolvimento de uma atividade perigosa.

Não existe estatuto constitucional para entender o direito a conduzir como integrado no catálogo de direitos fundamentais: o direito a conduzir é um privilégio administrativo que se concede a todos aqueles que se disponham adotar as medidas que dirimem o perigo que essa atividade representa para a comunidade. Noutro prisma, logo que um individuo se mostra indigno desta confiança perde a autorização administrativa para efetuar a condução - art. 148.º do CE.

Dito de outro modo, a cassação constitui a limitação a uma prerrogativa legal (a condução estradal) que depende de homologação administrativa (carta ou outro título de condução), por essa prerrogativa representar um perigo para terceiros e para a comunidade (atendendo a que qualquer veículo é um centro de perigo) e que, obviamente, pode ser restringida ou eliminada quando o agente recuse obedecer às regras disciplinadoras do tráfico viário que erosivas dos riscos inerentes ao trânsito.

Finalmente, diga-se que, a falta de idoneidade para conduzir, para efeitos jurídicos, afere-se em função do histórico de infrações de cada automobilista (cfr. art. 148.º do CE), não de acordo com uma casuística subjetiva que reporte a algum tipo de atributos pessoais subjetivos e endógenos a cada indivíduo.

O recorrente insurge-se que desde o dia 12/02/2020 que o Arguido ficou com pelo menos 3 (três) pontos (perdeu 5 em 13/09/2022, perdeu 2 em 12/09/22 e 5 em 12/02/2020), restando-lhe três dos quinze, não tendo sido convocado ou sequer notificado para a realização do exame de condução teórica a que alude a alínea b), nº 1, do artº 148 do C.E.-

Ou seja, insurge-se quanto à consideração dos processos dados como provados em 1 a 8 para o sistema de desconto de pontos, sem ter sido dada a oportunidade de efetuar novos exames teóricos e práticos de condução.

Sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, diz o art.º 148º do Cód. da Estrada que “1- A Prática de contraordenação grave ou muito grave prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:

a) A prática de contra ordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra ordenações graves;

b) A prática de contra ordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra ordenações muito graves.

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.

Ou seja, resulta claramente das normas citadas que é a prática de contra ordenações graves ou muito graves que determina a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, a que alude o nº 4, al. c), do mesmo artigo.

Por isso só também com o carácter definitivo da decisão condenatória ou o trânsito em julgado da sentença é que esse efeito de perda de pontos ocorre.

Assim, conforme decorre da lei, o efeito de perda de pontos, decorre diretamente da verificação, num plano jurídico-substantivo, de uma determinada contraordenação, isto é, da prática de um facto ilícito típico, censurável no qual se comine uma coima - art.º 1º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27/10, independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado. Esta conclusão encontra-se harmonizada com o nº 2 do mesmo artigo, quando refere que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

Analisados os autos constata-se que, os factos foram praticados 23.11.2017 e 22.10.2022, sem que tenham decorridos três anos sem que existisse registo de contra ordenações graves, muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações do condutor.

As condenações pela prática das infrações supra elencadas, todas praticadas após a data da entrada em vigor da Lei nº 116/2015, de 28 de agosto, ou seja, 01 /06/2016, determinaram a subtração automática de pontos por cada uma das infrações, no total de quinze pontos.

No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, nos termos do n.º 5 do artigo 148.º do C.E.

Deste modo, ao total de quinze pontos detidos pelo condutor, foram automaticamente subtraídos cinco pontos pelas decisões administrativas condenatórias proferidas nos processos de contraordenação n.ºs … e …, dois pontos pelas decisões administrativas condenatórias proferidas nos processos de contraordenação n. 0s … e … e seis pontos por cada condenação em pena acessória de proibição de conduzir, em cumprimento do estabelecido nos nºs 1 e 2 do artigo 148. 0 do Código da Estrada, tendo o condutor ficado com zero pontos.

Pelo que, atenta a sucessiva prática de contraordenações e crimes de natureza rodoviária e consecutiva perda de pontos que alcançou o valor de dois pontos (e não três), afastou a possibilidade de o mesmo ser convidado a efetuar novos exames de condução, como alega.

Face ao que antecede, e verificados que estão os pressupostos da cassação nos termos da alínea c) do n.º 4, 8 e 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, decido manter a decisão administrativa de cassação do título de condução n.º … pertencente a AA.”

Quid juris?

No caso em análise AA recorre da sentença proferida pelo Tribunal Judicial Comarca de …- Juízo Local Criminal de … nos termos previstos no artigo 64.º do RGC, ex vi artigo 148.º, § 13.º do Cód. da Estrada, na qual se conheceu do mérito da impugnação referente à decisão administrativa determinativa da cassação da carta de condução do recorrente.

Preceitua o artigo 186.º do Cód. da Estrada que, «as decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas admitem recurso nos termos da lei geral aplicável às contraordenações.»

Ora, o processo de contra-ordenação é «regulado em legislação específica, prevista no D. L. 433/82 de 27/10 e ao qual só subsidiariamente se aplicam as normas reguladoras do processo criminal, (cfr. artº 41º do RGCOC - Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas). Em matéria de recursos, o legislador consagrou no artigo 73° do RGCOC o respectivo regime e dele decorre aquilo que podermos denominar de princípio de tipicidade das decisões judiciais que admitem recurso, ao dispor que:

“1. Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64º quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a € 249,40;

b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) O arguido for absolvido ou o processo arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;

d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

2. Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do Ministério Público aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

3. Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites”.

2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

Em primeiro lugar, parece-nos inquestionável que apenas da sentença final é admissível recurso; em segundo, mesmo da sentença, o legislador tipificou as situações em que o mesmo é admissível, sendo aliás reconhecido pela jurisprudência o princípio da irrecorribilidade das decisões ou despachos interlocutórios - Cfr. Neste sentido, Oliveira Mendes e Santos Cabral in “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2004, pág. 192.; Ac. Rel. Lisboa de 02.03.2004; Ac. Rel. Porto de 30.09.98; Ac. Rel. Porto de 06.06.2007, todos disponíveis in www.dgsi.pt» (Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.04.2011, proferido no Proc. nº 1.724.09.27FLSB e relatado pelo Desembargador A. Augusto Lourenço)

É que «se bem vemos, a lei (cf. art. 63.º, n.º 2 e 73.º, ambos do R.G.C.O.C.) apenas admite recurso para o Tribunal da Relação da sentença e do despacho judicial que, na 1.ª instância, tiverem conhecido da impugnação da decisão da autoridade administrativa [verificado que seja uma das situações incluídas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art.º 73.º] e do despacho liminar que tiver rejeitado o recurso por ser extemporâneo ou por não respeitar exigências de forma.

Com efeito, como acima deixámos expresso, no R.G.C.O.C., o legislador entendeu atribuir competência para o processamento das Contra-Ordenações e aplicação de coimas e sanções acessórias às competentes autoridades administrativas (artºs. 33.º e 34.º), mas submeteu a sua decisão a impugnação judicial (artºs. 55.º e 59.º). Além disso, estabeleceu no art.º 73.º, de forma positiva, as decisões de que cabe recurso para a Relação e que correspondem a decisões finais.» (Decisão Sumária de 23/03/2011, proferida no Proc. nº 187/11.7TBCLD.L1 da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, relator Desembargador Rui Gonçalves)

Revertendo ao caso sub judicio verificamos que, nem a decisão administrativa impugnada conheceu de qualquer contraordenação, nem no procedimento administrativo autónomo em causa foi aplicada qualquer coima ou qualquer sanção acessória, não se enquadrando, por isso, a decisão recorrida em qualquer das previsões das diversas alíneas do nº1, do art.º 73º do RGCO.

Assim sendo, o recurso interposto pelo recorrente AA não é admissível face à irrecorribilidade do despacho impugnado.

Como se salientou no Ac. desta Relação, proferido no Proc.nº124/22.3T8SSB.E1 e relatado pelo Desembargador J. F. Moreira das Neves, no qual a presente Relatora foi Adjunta -, « Contrariamente ao que é regra geral no processo penal (artigo 399.º CPP), sendo aí permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, no âmbito do RGC - aqui aplicável por força do disposto no já citado artigo 186.º CE - o regime regra é o da irrecorribilidade das decisões, sendo excecionais as normas habilitadoras de recurso das decisões, não comportando estas analogia (artigo 11.º Código Civil).

Nos termos do que dispõe o artigo 186.º CE, «as decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas admitem recurso nos termos da lei geral aplicável às contraordenações.»

E, como assim, preceitua o artigo 73.º do RGC, que:

«1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 49,40;

b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;

d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.»

Se bem se vir a decisão administrativa impugnada não foi sequer tomada no âmbito de qualquer procedimento contraordenacional, porquanto o procedimento para cassação da carta de condução, conforme expressamente o refere a lei, é um procedimento administrativo autónomo (cf. artigo 148.º, § 10.º CE), aberto só após o trânsito das decisões das quais resulta a perda de pontos na carta de condução.

Com efeito, em tal retábulo prevê-se a possibilidade de cassação do título de condução, no âmbito do «sistema de pontos e cassação do título de condução», agregado à licença de condução de veículos na via pública.

Tal sistema, conhecido e praticado em diversas latitudes do nosso entorno cultural, assenta na conceção de que a licença de conduzir é um direito que, mediante certas condições, se atribui aos cidadãos interessados em conduzir veículos na via pública, condicionado a certas circunstâncias ligadas ao comportamento rodoviário, estabelecendo-se quais é que poderão determinar a perda de pontos e, por consequência, a (eventual) perda da licença de conduzir (a sua cassação), sendo a cassação da carta de condução uma decisão administrativa autónoma, decorrente da perda dos pontos de os condutores partem quando obtêm a licença de condução.

Sendo ademais óbvio não constituir uma sanção acessória, por como tal não estar prevista em lei anterior, nomeadamente nas normas sancionatórias dos comportamentos que dão origem à perda de pontos. Nem poderia logicamente haver uma «sanção acessória» sem que houvesse uma principal de que aquela dependesse! Mas qual seria ela?

Parecendo-nos, em remate, incontroverso que não poderia haver uma «sanção acessória» do jaez que o reclamante arvora, sem como tal estar prevista na lei. Pois uma qualquer (!) «sanção acessória» não prevista em lei prévia sempre seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade das penas - artigo 29.º, § 3.º da Constituição).

O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se em matéria cogente, a propósito do § 11.º do artigo 148.º CE , no sentido em que ali se estabelece um período fixo da medida de cassação do título de condução, tendo considerado o seguinte: «este sistema implica a possibilidade de cassação do título legal de condução em caso de diminuição dos pontos decorrente de condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias bem como o estabelecimento de uma condição negativa para a sua aquisição. O decurso do tempo e a conduta do condutor condicionam, porém, os efeitos das infrações cometidas no cômputo dos pontos.

Efetivamente, aos 12 pontos de que dispõe à partida cada condutor poderão acrescer três, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária, até atingir o limite de 15 pontos. Também é possível adicionar um ponto mais em cada período de revalidação da carta sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, com o limite de 16 pontos, sempre que o condutor voluntariamente frequente ação de formação com as regras regulamentares.»

E prossegue afirmando que o regime instituído tem «um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.»

Importa atentar que a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado.

Rematando aquele aresto em termos para aqui integralmente transponíveis: «foram as referidas condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que desencadearam a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do CE. Neste quadro, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir.

Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. O mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.»

No segundo dos arestos citados (e mais recente) do Tribunal Constitucional sublinha-se o equilíbrio entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, em termos que integralmente subscrevemos, concluindo: «a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.»

E é por tudo isto que com referência à decisão de que se recorre se constata não ocorrer nenhuma das circunstâncias habilitadoras do recurso, designadamente a prevista na al. b) do § 1.º do artigo 73.º do RGC (agora invocada pelo recorrente/reclamante) ou qualquer das outras previstas no mesmo retábulo, porquanto nem a decisão administrativa impugnada conheceu de qualquer contraordenação; nem no procedimento administrativo autónomo em causa foi aplicada qualquer coima ou qualquer sanção acessória.

Acresce o procedimento administrativo cuja decisão se impugnou judicialmente não tinha por objeto qualquer pluralidade de infrações, porquanto as que habilitam o processo administrativo autónomo de cassação da carta estão desde há muito transitadas e arquivadas. Nem se verifica qualquer das hipóteses previstas no § 2.º do mesmo artigo - desde logo por ausência de menção expressa ou implícita nesse sentido pelo recorrente ou pelo Ministério Público; nem ainda, por outro lado, no processo em causa tem intervenção qualquer outro arguido - circunstâncias estas necessárias à integração das hipóteses previstas no § 3.º do artigo 73.º RGC, em referência.

Pensamos que a esta argumentação não obsta o argumento, de uma dada má técnica legislativa com referência ao artigo 55.º do RGC, a que se refere acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27 maio 2020 (que não prevê especificamente o recurso de sanções acessórias). Menos ainda que o mesmo possa estender-se ao artigo 73.º do mesmo RGC, para nele considerar algo que lá não está - e muito bem -, por já não estar em causa a tutela jurisdicional efetiva.

Vejamos o argumento: no artigo 55.º do RGC não se prevê o recurso das sanções acessórias aplicadas pelas autoridades administrativas; mas nem por isso as decisões que as aplicam deixam de ser recorríveis para os tribunais de 1.ª instância - até porque a lei prevê o recurso das tomadas por estes para os Tribunais da Relação (artigo 73.º, 4 1.º, al. b) RGC).

Sucede que o referido artigo 55.º refere expressamente no seu parágrafo 1.º que: «as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa a quem se dirigem.» Nesta previsão se devendo, naturalmente, considerar incluídas as decisões que apliquem coimas (sanção principal do direito contraordenacional) e as sanções acessórias.

Mas se alguma dúvida a exegese do preceito suscitasse, uma sua leitura em conformidade com a Constituição, com referência aos artigos 18.º, § 2.º, 20.º, § 4.º e ao artigo 6.º da CEDH, logo tudo esclareceria. Porquanto direito ao juiz (à tutela jurisdicional efetiva), id est, o direito a ver o seu caso apreciado jurisdicionalmente, visando o controlo jurisdicional da decisão da autoridade administrativa, é impostergável. Sendo a previsão de recurso de tais decisões confirmatórias no artigo 73.º RGC, apenas a confirmação disso mesmo.

Coisa diversa é o recurso aos Tribunais da Relação de decisões de 1.ª instância confirmatórias da regularidade formal da cassação da carta de condução, dadas as características desse procedimento e respetiva sanção, nos termos já referidas supra.

Ora, o artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, isto é, as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação, das que o não são. E, como visto, nele se não prevê o recurso das decisões judiciais confirmatórias da regularidade formal da cassação da carta de condução».

Na sequência do que acaba de se exarar, impõe-se, pois, a rejeição do recurso no caso sub judicio por se verificar causa que devia ter determinado a sua não admissão (cfr. art.º 420°, n.º l, alínea b) do C. P. Penal).

Até porque o despacho de admissão do mesmo, afirmando, implicitamente, a sua recorribilidade, não vincula este tribunal (cfr. art.º 414°, n.º 3 do C. P. Penal).

DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em rejeitar o recurso interposto pelo recorrente AA.

Condena-se ainda o ora recorrente no pagamento de 3 (Três) UC’s, nos termos do art.º 420º, nº 3, do CPP.

Évora, 04 / 06 / 2024