Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
356/20.9PAVRS.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: PROVA DA CULPA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
LIVRE CONVICÇÃO
DÚVIDA RAZOÁVEL
IN DUBIO PRO REO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O princípio do Estado de Direito Democrático coloca a dignidade da pessoa humana como valor central e princípio fundador do contrato social, no âmbito do qual as pessoas são presumivelmente inocentes até prova em contrário. E é por isso que são julgadas pelo que fizeram e não pelo que são.
II. É também por isso que em processo penal não pode haver condenação sem um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, não sendo suficiente para a condenação um juízo de mera probabilidade – talqualmente decorre do princípio da presunção de inocência.

III. A convicção «para lá da dúvida razoável» e a própria «dúvida razoável» legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do artigo 127.º do CPP.

IV. Sendo, portanto, inadmissível valorar os antecedentes criminais do arguido para efeitos de imputação da prática de quaisquer factos. Valendo aqueles apenas depois de fixada a culpabilidade, em ordem à escolha e medida da pena, como é lógica decorrência dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 29.º e 32.º da Constituição; 6.º, § 2.º Convenção Europeia dos Direitos do Homem; 14.º, § 2.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e artigo 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; passando pelos artigos 70.º e 71.º do CP e 128.º (a contrario), 368.º a 371.º do CPP).

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
a. No 1.º Juízo Local de … , do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, de AA, nascido a …/…/1978, com os demais sinais dos autos, acusado que estava da autoria, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 203.º, § 1.º e 204.º, § 2.º, al. e) do Código Penal (CP).

Realizada a audiência de julgamento veio a final o Tribunal a proferir sentença, na qual absolveu o arguido da prática do crime pelo qual havia sido acusado.

b. Inconformado com esta decisão recorreu o Ministério Público, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (1):

«1. O presente recurso vem interposto da douta sentença que absolveu o arguido AA da prática de um crime de furto qualificado na forma consumada p. e p. pelos arts. 203.°, n.º 1, 202.º, al. d) e 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal;

2. Crê-se que se trata de uma decisão desacertada e ferida de invalidade a vários títulos, designadamente, por errado exame crítico da prova pericial, da prova pessoal maxime na vertente do teor das declarações do arguido) e da prova documental junta, quando conjugada com as regras da experiência comum e da lógica decorrente do normal devir dos acontecimentos da vida - que corporizam um erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no art.° 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal;

3. Em consequência deste erro e da insuficiência na apreciação da prova pericial, pessoal - de modo particularmente intenso em relação ao teor das declarações do arguido - testemunhal e documental, o Tribunal "a quo" não apurou nem analisou todos os factos necessários à conecta decisão da causa, e não incluiu nos factos provados que o arguido manuseou a janela arrombada da residência da ofendida onde ocorreu o furto; e que o fez na tarde em que o crime foi cometido, como devia e se impunha em face dos factos conhecidos através da prova pericial, documental e testemunhal relativa ao depoimento da ofendida, conjugados com as declarações do arguido. E, por esse erro notório na apreciação da prova, não fez uso das presunções judiciais a que havia lugar, e que teriam conduzido o Tribunal recorrido através das regras da experiência comum, a dar como provado que tais factos aconteceram porque o arguido arrombou a janela, partiu o vidro, manuseou a janela com o vidro partido para a abrir e introduziu-se no interior da residência da ofendida, e que aí subtraiu e apropriou-se dos bens que encontrou no quarto e que constam descritos no n.º 4 dos factos provados, como se impunha concluir em face da lógica daquelas regras da experiência comum - as quais não podem deixar de incidir igualmente na prova documental traduzida no teor do Certificado de Registo Criminal do arguido;

(…)

5. Entende-se, com todo o respeito pelo exercício da livre convicção concretizado pelo Tribunal a quo na sentença em crise, que não deu como provado nem como não provado o facto constante do relatório pericial (a impressão palmar da mão direita do arguido no vidro da janela da casa da ofendida que foi partido e que permitiu a abertura da janela e a introdução do agente do crime no interior da residência onde ocorreu o furto), nem o período temporal em que esse facto foi cometido e que está delimitado, de forma conjugada, pelas declarações do arguido: fê-lo já com o vidro partido; e pelo depoimento das testemunhas - quer da ofendida quer dos Agentes da Polícia de Segurança Pública de …: no dia 17 de Outubro de 2020, entre as 14h30 e as 18h00.

6. (…) o arguido prestou declarações e o que disse foi que as suas impressões palmares resultam de ter mexido na janela com o vidro partido.

7. (…) não se compreende qual é a regra da experiência do homem comum a que o Tribunal a qui apelou para se convencer que uma pessoa que foi julgada e condenada sete vezes por crimes contra o património (roubo, furtos qualificados e furtos simples) entre os anos de 2002 e 2019, vê uma janela com o vidro partido e vai lá deixar a sua impressão palmar “só para ver o interior”.

(…) não se compreende com base em que regra da experiência comum é que o Tribunal a quo entendeu provável que o arguido vendo o vidro partido tenha decidido espreitar o interior deixando a impressão palmar da mão direita, sem mais;

8. O douto Tribunal a quo afirmou na fundamentação da sentença em crise que a sua convicção da autoria do crime pelo arguido seria afirmada «se a impressão palmar tivesse sido encontrada no interior da residência», sem contudo esclarecer qual o local da residência em que a sua convicção estaria fundada quanto à autoria do crime pelo arguido, pelo que é legítimo concluir que poderia ser do lado interior do vidro da (mesma) janela arrombada - sem que se compreenda qual a diferença dessa circunstância com os factos apurados em julgamento;

9. As outras duas grandes questões que o Tribunal a quo levanta com a fundamentação que exarou na decisão em crise e às quais também não respondeu, são as seguintes:

1.ª Porque razão é que o arguido escolheu a janela arrombada para deixar a sua impressão palmar, quando podia ter escolhido o vidro do lado da mesma janela que não estava partido ... se era só para espreitar?

Seria porque confiava antecipadamente na credibilidade da sua palavra quando negasse o furto em julgamento?

Consabidamente a condenação não pode assentar decisivamente no Certificado de Registo Criminal do arguido, mas este passado também não pode ser ignorado quando se tem de analisar a atuação de alguém num contexto de um crime de furto em que se pondera a atuação dessa pessoa em face das regras da experiência comum e os seus concretos conhecimentos de vivência pessoal e que são relevantes para determinar que atue num sentido ou em sentido contrário - nesse específico contexto de vida em análise.

(…)

10. O douto Tribunal não fundamentou suficientemente a sua convicção, pelo que a decisão proferida apresenta-se como incompreensível porque contrária às regras da experiência comum, ou seja, contrária às regras que são conhecidas e reconhecias pela generalidade das pessoas como sendo o normal devir dos acontecimentos; e desta forma, é uma decisão cuja fundamentação não pode ser compreendida e consequentemente sindicada;

12. O Tribunal a quo procedeu a insuficiente e errado exame crítico das provas produzidas, máxime da prova pericial, por si própria e conjugadamente com o depoimento das testemunhas, as declarações do arguido e ainda, a prova documental e, por isso, não lançou mão das presunções judiciais que se impunham em ordem ao estabelecimento do nexo de imputação dos factos provados à autoria do furto e, consequentemente, trata-se de uma decisão incompreensível nos seus fundamentos e ferida de erro notório na apreciação da prova (art.º 410.°, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal) que a reconduz numa decisão nula;

13. Assim, e salvo melhor entendimento de V. Exas., a douta sentença do Tribunal a quo deve ser declarada nula, por violação do disposto no n.º 2 do art.° 374.° e da alínea c) do n.º 1 do art.° 379.° do Código de Processo Penal e proferida nova sentença que supra as identificadas insuficiências de fundamentação e, em consequência:

- A) Elimine o facto n.º 21 dos factos não provados;

- B) Considere como provado nos factos provados n.º 1, n.º 2, n.º 6 e n.º 7, que:

1. No dia 14 de outubro de 2020, entre as 14,30 horas e as 19 horas, o arguido, dirigiu-se à residência de BB, sita na Rua …, …, em … [nas traseiras do supermercado …] com o propósito de se apoderar de objetos e valores que aí encontrasse;

2 - Em execução desse plano, o arguido dirigiu-se à janela de um dos quartos e partiu um dos vidros da janela, introduziu a mão pelo espaço obtido, alcançou o fecho da mesma e abriu-a.

6 - Apoderou-se, pois, o arguido de bens no valor global de 205€.

7 - O arguido sabia que entrava na residência de outras pessoas contra a sua vontade, arrombando e galgando uma das janelas, e que daí retirava e se apoderava de bens que não lhe pertenciam, consciente do seu valor aproximado e com o propósito concretizado de os fazer seus.»

c. Admitido o recurso, o arguido respondeu pugnando pela sua improcedência, concluindo as suas alegações do seguinte modo (extrato):

«2. Cabe, desde logo dizer que quanto à matéria de facto impugnada e por referência aos depoimentos referidos e considerados pelo recorrente nas suas alegações, não foi cumprido o disposto no artigo 412.º do CPP a propósito, pelo que não deve ser considerada a impugnação da matéria de facto constante das alegações nos termos peticionados;

3. Quanto à matéria alegada e pretendida ver como provada e referente ao relatório pericial – impressão palmar recolhida no local e correspondente à mão direita do arguido, andou bem o Tribunal “a quo” ao dar como apenas provado que a impressão ali existente era a do arguido, dela não mais se podendo retirar qualquer outra conclusão; nomeadamente que o arguido tenha também partido o vidro, entrado dentro de casa e praticados os factos descritos na acusação.

4. O certificado de registo criminal também não pode só por si e desacompanhado de qualquer outra prova ser suficiente para considerar o arguido culpado e autor dos factos porque vem acusado;

5. Não se pode condicionar a Liberdade das pessoas e a sua condenação a um pré-juízo e preconceito, mas sim com provas objetivas e concretas!

6. Por outro lado, refere o Ministério Público que não configura regra da experiência comum o facto de a impressão palmar encontrar-se por fora do vidro e não por dentro do mesmo, e qual o peso na sua convicção, devendo ser igual, o que o Tribunal “a quo” não considerou, e bem!

7. Naturalmente se a impressão palmar fosse colhida no interior da janela, dentro de casa, a sua valoração teria que ser bastante diferente daquela que tem a valoração da recolha da impressão palmar ter sido recolhida da janela, do lado de fora;

8. Assim, valorou e bem o douto Tribunal “a quo” toda a prova produzida.

9. Não há qualquer contradição entre os factos e a prova produzida, pelo que andou bem o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, não se encontrando a douta Sentença proferida ferida de qualquer nulidade, tendo efetuado uma correta análise dos factos, dos depoimentos de todas as testemunhas ali prestados e a devida fundamentação, pelo que deverá ser mantida na sua totalidade.»

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição sustentada no recurso, pronunciando-se no sentido da sua procedência.

e. No exercício do contraditório o recorrido reiterou a posição já assumida na resposta ao recurso.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Âmbito do recurso

O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.º CPP. E, nessa sequência, as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes: i) nulidade por omissão de pronúncia; ii) nulidade da sentença por ausência de exame crítico da prova; iii) erro de julgamento da questão de facto; iv) vício da decisão recorrida (erro notório na apreciação da prova).

B. Na sentença recorrida o Tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factual:

«Factos provados:

1 – No dia 14 de outubro de 2020, entre as 14,30 horas e as 19 horas, alguém, cuja identidade não se logrou apurar, dirigiu-se à residência de BB, sita na Rua …, …, em … [nas traseiras do supermercado …) com o propósito de se apoderar de objetos e valores que aí encontrasse.

2 - Em execução desse plano, tal indivíduo dirigiu-se à janela de um dos quartos e partiu um dos vidros da janela, introduziu a mão pelo espaço obtido, alcançou o fecho da mesma e abriu-a.

3 - Após, galgou a janela e, dessa forma, e contra a vontade da proprietária, entrou na respetiva residência.

4 – De seguida, percorreu a habitação em busca de objetos de valor, e retirou do interior de várias caixas de bijutaria que se encontravam no móvel do quarto da filha da referida proprietária:

4.1 – 1 anel em prata e ouro branco, no valor de 75€;

4.2 – 1 colar da marca …, com um brilhante incrustado, no valor de 100€; e

4.3 – 1 pulseira da marca …, no valor de 30€.

5 - Após, abandonou o local.

6 - Apoderou-se, pois, tal indivíduo de bens no valor global de 205€.

7 - O referido indivíduo sabia que entrava na residência de outras pessoas contra a sua vontade, arrombando e galgando uma das janelas, e que daí retirava e se apoderava de bens que não lhe pertenciam, consciente do seu valor aproximado e com o propósito concretizado de os fazer seus.

8 - Agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de se apoderar dos descritos objetos, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.

9 – O arguido vive com os seus pais.

10- Trabalha atualmente como empregado de mesa e aufere mensalmente cerca de 500€.

11- Tem um filho com 13 anos que vive com a progenitora.

12- Faz voluntariado.

13- Tem o 5.º ano de escolaridade.

14- O arguido já foi condenado, por sentença transitada em julgado a 19/12/2002, pela prática, em 5/5/2001, de um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 210.º, n.º 1, 22.º e 23.º, todos do CP, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução e subordinada ao cumprimento de condições.

15- O arguido já foi condenado, por sentença transitada em julgado a 26/7/2007, pela prática, em 10/10/2000, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs. 203.º e 204.º, n.º 2, al. e), ambos do CP, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

16- O arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado a 7/7/2011, pela prática, em 6/5/2007, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 203.º, 204.º, n.º2, al. e), 22.º e 23.º, todos do CP, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a cumprimento de condições.

17- O arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado a 17/09/2013, pela prática, em 9/3/2012, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º e 204.º, n.º 2, al. e), ambos do CP, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

18- O arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado a 17/1/2014, pela prática, em 9/9/2012, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º do CP, na pena de 8 meses de prisão, substituída por 240 horas de trabalho a favor da comunidade.

19- O arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado a 4/4/2016, pela prática, em 9/1/2015, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º do CP, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 horas de trabalho a favor da comunidade.

20- O arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado a 7/2/2019, pela prática, em 4/11/2017, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º do CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao cumprimento de condições.

Factos não provados

21- Que tenha sido o arguido a praticar, por si só ou em conjugação de esforços com outro ou outros indivíduos, os factos supra sob os n.ºs 1) a 8).

22- Que tenha sido necessário forçar a persiana da janela.»

E motivou essa decisão nos termos seguintes:

«A apreciação crítica do Tribunal incidiu sobre as declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas, do Relatório de Apreciação Técnica de Vestígios Lofoscópicos, de fls. 32-34 e fls. 39-42, do Relatório de Gestão do Local do Crime, de fls. 18-19, do Relatório de Inspecção Judiciária, de fls. 22-25 e da Reportagem fotográfica, de fls. 22-28.

O arguido, em sede de declarações, afirmou que na data em causa nos autos, de tarde, esteve nas imediações do local referido, designadamente junto ao imóvel identificado. Constatou, nessa altura, que a persiana estava aberta (subida) e o vidro da janela partido. Afirmou, ainda, não ter sido ele que partiu tal vidro e, além disso, negou que tivesse entrado no interior da residência e, assim, que se tivesse apoderado de qualquer objeto / bem / valor.

A testemunha BB, proprietária do imóvel em questão, afirmou ter saído cerca das 14,30 horas. Não soube precisar com exatidão se a persiana em causa ficou totalmente subida ou apenas parcialmente. Quando regressou, já no final da tarde, verificou que o vidro da janela estava partido e o que, na sua ótica, teria possibilitado a introdução de uma mão e, dessa forma, manipular o trico da janela, abrindo-o e acedendo, pois, ao interior da sua residência. Confirmou o desaparecimento dos objetos descritos na acusação, pertencentes à sua filha, bem como os correspetivos valores, nada tendo sido jamais recuperado.

A testemunha CC, agente da PSP, que na altura se encontrava em serviço de patrulha, deslocou-se ao local por determinação superior, entre as 17 ou 18 horas, tendo constatado, já na presença da queixosa, a existência de um vidro de janela partido, estando a persiana subida, verificando o desaparecimento de diversas peças e que muito havia sido remexido no interior da residência.

A testemunha DD, agente da PSP, esteve no local após a testemunha CC, constataram, basicamente, o mesmo que este já havia visto (e afirmado) e accionaram a UPT para recolha de vestígios lofoscópicos.

Posto isto, temos que o arguido negou os factos e nenhum dos depoimentos é apto ou idóneo a colocar o arguido no interior da residência ou sequer como tendo alguma vez estado na posse das peças retiradas do interior da residência. A questão, então, que se coloca é a de saber se a impressão palmar do arguido na parte exterior da janela da residência é prova suficiente para a imputação àquele de ato conducente ao desaparecimento das peças.

Parece-nos claro que não.

Não é possível formular uma qualquer presunção (judicial) nesse sentido. Presunção é, nos termos da lei, uma ilação que se tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. Ou seja, parte-se de um facto conhecido para, fazendo funcionar as regras da experiência comum e dentro de um quadro lógico, dar como certo um facto desconhecido. No caso dos autos, o facto conhecido é que o arguido esteve, no dia dos factos e da parte de tarde (por sua afirmação), no lado exterior da residência e a dado momento colocou a sua palma da mão junto do vidro / caixilharia da janela servente da dependência. Podemos (como facto desconhecido) sequer colocar o arguido dentro da residência, em termos lógicos e de acordo com as regras normais da experiência? Não. É igualmente verosímil que o arguido tenha estado junto da residência com o intuito de a assaltar, não o tendo consumado por ter visto já o vidro partido, como verosímil é, ainda, que o arguido tenha efetivamente praticado os factos descritos na acusação. Mas seria, ainda, verosímil que o arguido apenas tivesse colocado, a dado momento, a sua palma da mão no vidro em causa apenas para espreitar para o seu interior. Ou, ainda, caso o arguido tivesse dito que tinha ali estado no dia anterior, essa verosimilhança também se podia acolher para uma qualquer outra possibilidade – recorde-se que se o arguido se tivesse remetido ao silêncio este não o poderia prejudicar.

Ou seja, todas as hipóteses são plausíveis e nenhuma delas ganha preponderância relativamente às outras em termos de regras de experiência comum. Diferentemente seria se a impressão palmar tivesse sido encontrada no interior da residência. Mas o certo é que não foi, razão pela qual, como deflui do ora exposto, não é possível firmar o facto desconhecido nos termos apontados pela acusação; isto é, como tendo sido o arguido o autor do furto. Poderá ter sido o arguido como poderá ter sido outro indivíduo qualquer.

E não é sequer questão de funcionamento do principio in dubio pro reo; é sim uma questão de falta de prova relativamente à autoria dos factos.

No mais, o Tribunal atendeu às declarações do arguido no que respeita às apuradas condições sociais, económicas e familiares, que reputou por credíveis.

Foi, ainda, tido em conta o CRC junto aos autos.»

C. Dos fundamentos do recurso

C.1 Da nulidade por omissão de pronúncia

Alega o recorrente que «a douta sentença do Tribunal a quo deve ser declarada nula, por violação do disposto na (…) al. c) do n.º 1 do art.° 379.° do Código de Processo Penal.»

Dispõe o normativo citado que «é nula a sentença: (…) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.» Vejamos.

Respeita o inciso citado à «omissão de pronúncia» e ao seu excesso. Da citada disposição legal, conjugada com o disposto nos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, § 2.º, todos do CPP, decorre que o Tribunal da Relação antes de se debruçar sobre as questões de mérito da decisão recorrida deverá conhecer das questões formais que obstem a esse conhecimento. Uma dessas situações é justamente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevenida na alínea c), do § 1.º, do artigo 379.º CPP (2).

Cabe de introito assinalar que a sentença só tem que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa. Isto é, a omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o tribunal não se pronunciar sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. Melhor explicitando: o tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras). Todavia, como vem sendo dominantemente entendido, «só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento lhe era imposto por lei apreciar ou que lhe tenham sido submetidas pelos sujeitos processuais, sendo que, quanto à matéria submetida pelos sujeitos processuais, a nulidade só ocorre quando não há pronúncia sobre as questões, e já não sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão». Ora, o recorrente não invoca que o tribunal tenha deixado de conhecer de qualquer questão cujo conhecimento lhe seja imposto por lei ou que tenha sido apresentada pelos sujeitos processuais! O que o recorrente invoca são dúvidas argumentativas, que ele próprio tem! Mas que deveras não integram nenhuma das categorias referidas.

Termos em que este fundamento de recurso se mostra manifestamente improcedente.

C.2 Da nulidade da sentença por preterição do exame crítico das provas

Alega o recorrente que o tribunal a quo não procedeu ao exame crítico da prova, pelo menos de modo «suficiente» e definitivamente «errado», porquanto não atendou n«as provas produzidas, maxime da prova pericial, por si própria e conjugadamente com o depoimento das testemunhas, as declarações do arguido e ainda, a prova documental e, por isso, não lançou mão das presunções judiciais que se impunham em ordem ao estabelecimento do nexo de imputação dos factos provados à autoria do furto»! Pois bem. A respeito dos requisitos da sentença dispõe-se no § 2.º do artigo 374.º CPP que ao relatório se segue a fundamentação, a qual consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

A preterição da fundamentação com análise crítica das provas constitui nulidade, conforme prevê o artigo 379.º, § 1.º, al. a) CPP. Trata-se de consequência jurídica derivada do dever geral de fundamentação das decisões judiciais tem esteio no texto da Lei Fundamental (artigo 205.º, § 1) e constitutivo do princípio do processo equitativo, a que se reporta o § 4.º do artigo 20.º da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (um e outro inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). «A exigência da fundamentação é, simultaneamente, um ato de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das diversas garantias constitucionais da motivação decisória, com destaque para os direito da defesa, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.» (3) O exame crítico das provas na sentença (4) exige, não apenas que se indiquem os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos ou apresentados em audiência. O cumprimento deste dever pressupõe que se motive, de modo sucinto embora, mas claro, o modo como se formou a convicção do julgador, de molde a permitir «ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária» (5).

Compulsando as páginas da sentença recorrida nela se evidencia uma fundamentação do decidido, que se não cinge à mera referência das bases probatórias, colocando em evidência como se conjugaram os meios de prova disponíveis e por que razão elas não logram sustentar uma convicção positiva acerca de alguns os factos mais relevantes, mormente os respeitantes à autoria. Os raciocínios empreendidos estão ali explicitados com meridiana clareza. É certo que é sempre possível fazer uma interpretação e avaliação das provas diversa da que foi realizada pelo tribunal recorrido, valorizando mais umas provas (ou alguns pormenores) em detrimento de outras. Ou até, como faz o recorrente (como melhor se explicitará adiante), valorizar provas insuscetíveis de valoração em sede de formação da convicção do tribunal (como é o caso dos antecedentes criminais do arguido). Inequívoco é que se não pode dizer que o tribunal recorrido não fundamentou a sua convicção, explicando as razões pelas quais no escrutínio da prova (validamente) produzida, se (não) convenceu da verificação dos factos relativos à autoria.

Pelo que também este fundamento de recurso se mostra improcedente.

D.3 Do erro de julgamento (da questão de facto)

O recurso suscita de modo algo confuso a «impugnação ampla da matéria de facto» (artigo 412.º, § 3.º CPP), por nele se não indicar com clareza quais são os factos que pretende impugnar e, quanto a cada um deles, que provas impõem decisão diversa daquela que se impugna – como exige aquele normativo. Essa confusão estende-se à chamada «revista alargada», prevista no artigo 410.º do mesmo código. Clarifiquemos.

No direito processual penal rege o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º CPP, onde se dispõe que: «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.» Isto é, o tribunal é livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.

Tal liberdade de apreciação não significa, porém, arbitrariedade ou discricionariedade, sendo pressuposto que a valoração se faça mediante critérios legais (por exemplo os relativos às proibições de prova) e se atenda à experiência comum e às regras da lógica.

«O ato de julgar é do tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.» (6)

Já Alberto dos Reis (7) ensinava sobre este temário no contexto do processo civil que «o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, no entanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (….) O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica». (8)

Trata-se, deveras, d’«um trabalho d’intelligencia d’uma ordem mais elevada», por «carece[r] de maior somma de regras» para chegar à verdade. (9)

Não se trata, pois, de um qualquer processo «mecânico», com automatismos não escrutinados. Sendo, antes, um processo racional e lógico, só limitado pelos critérios legais (p. ex. em matéria de proibições de prova) e passível de motivação e de controlo, na medida em que a convicção formada só é válida se for fundamentada e desse modo for capaz de se impor aos outros, através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável.

Apreciar e conjugar a prova é, em verdade, um dever que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1.º e 2.º da Constituição). Sendo, em suma, um processo judicioso. Isto é, uma «liberdade de acordo com um dever» (10).

Por seu turno o que se demanda num tribunal de segunda instância não é uma nova convicção, antes e apenas uma reavaliação daquele processo, com vista aquilatar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte naquilo que foram as provas produzidas.

Podendo a impugnação do julgamento de facto fazer-se por duas vias distintas: a impugnação ampla (artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP); e uma via restrita, que em verdade é uma revista alargada (artigo 410.º, § 2.º, al. a), b) e c) CPP).

A primeira delas consiste na reapreciação da prova produzida, documentada nos autos ou gravada, a qual tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre ele os ónus de especificação previstos nos § 3.º e 4.º do artigo 412.º CPP. Já a segunda consiste na invocação dos vícios previstos nas als. a), b) e c) do § 2.º do artigo 410.º CPP, cujo conhecimento é também oficioso.

Se bem que de modo algo desordenado o recorrente usa das duas vias.

Cinjamo-nos em primeiro lugar à impugnação ampla (artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP).

De acordo com o que se dispõe nos artigos 412.º, § 3.º, al. b) ex vi artigo 431.º, al. b) CPP, o tribunal superior só pode alterar a matéria se as provas impuserem conclusão diversa da tirada pelo tribunal recorrido.

Conforme o Supremo Tribunal de Justiça ajuizou e fixou no Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 3/2012, n.º 3/2012, de 8mar2012 (11): «visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações.» No alinhavo de razões sustentadoras daquela orientação o Supremo acrescenta, que «o erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que [as provas] conduzam a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente. [Porquanto] a reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam.»

Não basta, pois, sustentar que a valoração das provas pelo tribunal não é a mais adequada, com o que se supõe que a mesma é possível; sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consente a conclusão tirada.

Quando nos referíamos ao modo «desordenado» de impugnação queríamos significar (por exemplo) que ao contrário do que impõem as regras da lógica expositiva, o recorrente só na ponta final do seu recurso indica os factos que deveras pretende impugnar! São eles os pontos 1., 2., 6., e 7. da matéria de facto julgada provada.

Pretende que que tais factos devam adicionalmente incluir a componente da imputação subjetiva dos mesmos ao arguido. Mas para isso, que provas indica o recorrente?

Prescrutando consegue perceber-se que é uma só: o juízo sobre a imputação subjetiva deveria, ao contrário do considerado pelo tribunal a quo, integrar os antecedentes criminais do arguido!

Porque é que dizemos que é apenas essa a prova assinalada pelo recorrente? Porque as demais referenciadas, designadamente as presunções judiciais, foram objeto de ponderação pelo tribunal, conforme ilustra a motivação da decisão recorrida. E na apreciação delas o tribunal recorrido considerou, detalhando razões, por que razão não considerou possível concluir, para além de dúvida razoável, que o autor do assalto à residência da BB, na Rua … em …, no dia 14 de outubro de 2020, entre as 14,30 h. e as 19 h., foi o arguido.

Em tal juízo assumiu-se, com lídima clareza, a dificuldade suscitada pela conjugação das provas (das verdadeiras provas) produzidas e analisadas na audiência, mormente a conjugação do resultado do exame lofoscópico, com as declarações da ofendida (que situou no tempo o intervalo em esteve ausente da sua residência) e as do arguido (que declarou ter estado no local nesse período e se ter abeirado da casa assaltada justamente em razão da curiosidade suscitada pelo vidro partido). Certo é que o arguido tocou em vidro dessa janela do lado exterior da janela daquela casa.

Mas o que dessa conjugação resulta – concluiu o tribunal - não vai além da mera probabilidade - ainda que elevada - de o autor do furto ter sido o arguido.

Refere a sentença:

«o facto conhecido é que o arguido esteve, no dia dos factos e da parte de tarde (por sua afirmação), no lado exterior da residência e a dado momento colocou a sua palma da mão junto do vidro/caixilharia da janela servente da dependência.

Podemos (como facto desconhecido) sequer colocar o arguido dentro da residência, em termos lógicos e de acordo com as regras normais da experiência?

Não. É igualmente verosímil que o arguido tenha estado junto da residência com o intuito de a assaltar, não o tendo consumado por ter visto já o vidro partido, como verosímil é, ainda, que o arguido tenha efetivamente praticado os factos descritos na acusação.

Mas seria, ainda, verosímil que o arguido apenas tivesse colocado, a dado momento, a sua palma da mão no vidro em causa apenas para espreitar para o seu interior. Ou, ainda, caso o arguido tivesse dito que tinha ali estado no dia anterior, essa verosimilhança também se podia acolher para uma qualquer outra possibilidade – recorde-se que se o arguido se tivesse remetido ao silêncio este não o poderia prejudicar.

Ou seja, todas as hipóteses são plausíveis e nenhuma delas ganha preponderância relativamente às outras em termos de regras de experiência comum. Diferentemente seria se a impressão palmar tivesse sido encontrada no interior da residência. Mas o certo é que não foi.»

Como ficou dito a livre apreciação da prova pelo juiz constitui um esforço para alcançar a verdade material, sendo deveras uma tensão de objetividade, que assenta em pressupostos valorativos e obedece a critérios da experiência comum e da lógica da pessoa média suposta pela ordem jurídica, estando ainda vinculado aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.

E, no concernente às presunções legais vagamente esgrimidas pelo recorrente, dir-se-á o que é consabido neste temário: que na formação da sua convicção o juiz não está impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Mas «a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Há de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiencia, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitraria ou dominada por impressões». (12) A doutrina qualificada alerta que o indício, sem mais, é insuficiente para se considerar provada a autoria do facto criminoso.(13) Apontando Susana Aires de Sousa (14) que «a prova indireta de um facto consiste em dar esse facto como provado sem que sobre ele exista qualquer meio (direto) de prova. O factum probandum presume-se e dá-se como provado. Sendo o facto presumido contrário ao arguido, é dever do juiz objetivar o juízo de inferência por si realizado, superando, por essa via, a presunção de inocência de que é titular um arguido em processo penal (…) Na medida em que o facto conhecido (base da presunção) não prova mas antes indicia o facto presumido, a convicção probatória do julgador, admitida pelo artigo 127.º está sujeita ao dever acrescido de fundamentação nos termos do artigo 374.º, n.º 2.» A presunção com base no facto provado permite, pois, a ligação ao facto a provar se a presunção se basear num juízo lógico, seguro, causal, sequencial, preciso, direto e unívoco. Sendo através da motivação que o julgador torna clara a razão pela qual se convenceu da verificação do factum probandum através do juízo de inferência realizado, para além de qualquer dúvida razoável, só desse modo legitimando a sua decisão (artigo 295.º da Constituição). Nas circunstâncias do presente caso, tal como afirmado na sentença recorrida, é possível, podendo até considerar-se bastante provável que tenha sido o arguido a assaltar a casa da ofendida. Mas não é menos certo que também poderá não ter sido.

Significativo neste raciocínio é a probabilidade real de a autoria não ser do arguido. Ser abelhudo (isto é, ser pessoa que se intromete indiscretamente nos atos alheios; ser bisbilhoteira, impertinente ou mesmo intrometida (15)) não é coisa de outro mundo, mas deste onde todos vivemos. A possibilidade de a curiosidade própria dos abelhudos o ter impelido a ir ver mais de perto a janela partida, pondo-lhe a mão (no vidro exterior) para espreitar não é coisa impensável. E por isso mesmo tal possibilidade é inarredável. Até porque – relembre-se - o arguido também reside também na mesma localidade onde se situa a casa assaltada (…).

O tribunal recorrido expôs com meridiana clareza o non liquet a que chegou, emergente da circunstância de após a produção da prova persistir dúvida razoável (inultrapassável). E neste quadro não podia senão decidir em sentido favorável ao arguido, como decorre do direito fundamental da presunção de inocência e da sua dimensão processual in dubio pro reo. (16)

É indisputável que em processo penal não pode haver condenação sem um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável (e não um juízo de mera probabilidade), o que é desde logo imposto pelo princípio da presunção de inocência dos arguidos (artigo 32.º, § 2.º da Constituição; artigo 6.º, § 2.º Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 14.º, § 2.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e artigo 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), tal implicando que não possam considerar-se provados os factos que, em decorrência da prova produzida, não arredem qualquer «dúvida razoável» do tribunal.

Este princípio de origem anglo saxónica «a doubt for which reasons can be given» (17), está umbilicalmente ligado ao in dubio pro reo e reporta-se a uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Ora, a convicção «para lá da dúvida razoável» e a própria «dúvida razoável» legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do artigo 127.º do CPP. «Mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é idêntico, constituindo o cerne da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável.» (18)

Rematando dir-se-á que contrariamente ao que (de certo modo) vem pressuposto no raciocínio do recorrente, temos por certo que num Estado de Direito Democrático, que coloca a dignidade da pessoa humana como valor central e princípio fundador do contrato social, as pessoas são presumivelmente inocentes até prova em contrário. E é por isso que são julgadas apenas pelo que fizeram e não pelo que são.

Sendo, pois, inadmissível valorar os antecedentes criminais do arguido para efeitos de imputação da prática de quaisquer factos. Aqueles só podem ser valorados depois de fixada a culpabilidade, em ordem à escolha e medida da pena (como decorre da conjugação de inúmeros dispositivos legais, desde os artigos 1.º, 2.º, 18.º, 29.º e 32.º da Constituição, passando pelos artigos 70.º e 71.º CP e 128.º a contrario, 368.º a 371.º CPP).

É, pois, totalmente improcedente este fundamento do recurso.

D.4 Do erro notório na apreciação da prova

Não obstante o recorrente imputar à decisão recorrida o vício formal do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410.º, § 2.º CPP, não precisa a razão pela qual assim considera, limitando-se a utilizar esse conceito para sublinhar o seu inconformismo sobre o modo como o tribunal recorrido apreciou e valorou os meios de prova produzidos e decidiu a causa. O que seria expectável era que a impugnação incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário e não no chamado erro de julgamento, na injustiça ou na desadequação da decisão proferida. Com efeito, o vício de erro notório na apreciação da prova só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.

O erro é notório quando for ostensivo, evidente de tal modo que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta. (19) Tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das legis artis, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe, assim, quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. (20)

Analisando a sentença recorrida, na mesma não se deteta qualquer erro notório na apreciação da prova. E ante todo o exposto resta concluir que o recurso não merece provimento, devendo em conformidade confirmar-se a decisão recorrida.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a douta sentença recorrida;

b) Sem custas por o recorrente estar delas isento (artigo 522.º, § 1.º CPP).

Évora, 7 de fevereiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 As «conclusões» não são o que o recorrente entende que deverão ser! São, antes, o que a lei preconiza que sejam: uma síntese dos fundamentos do recurso, como vincadamente e una voce assinalam a doutrina e a jurisprudência: as «Conclusões» são «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14.); «Devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335; e não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23). No mesmo sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Des. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Des. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Des. Filipa Costa Lourenço; e desse mesmo Tribunal, de 15/2/2013. Proc. 827/09.3PDAMD.L1-5, Des. Vieira Lamim. Por tal razão transcrevem-se, apenas, as proposições que de algum modo sintetizam as questões alegadas na motivação do recurso.

2 Acórdão STJ, de 9/2/2012, proc. 131/11.1YFLSB, Cons. Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt ; Ac. do STJ de 30/4/2020, proc. n.º 286/17.1JDLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt . No mesmo sentido cf. Código de Processo Penal Comentado, 2021, 3.ª Edição Revista, Almedina, pp. 1157; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., 2011, Universidade Católica Editora, pp. 982/983.; José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, vol. IV, 2022, Almedina, pp. 800/801.

3 Joaquim Correia Gomes, A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, revista JULGAR, n.º 6, 2008.

4 Por todos, Ac. STJ proc 733/17.2JAPRT.G1.S1 .

5 Cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 47/2005.

6 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24mar2004, Cons. Rui Moura Ramos, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

7 CPC Anot., vol. III, ed. 1981, p. 245.

8 Neste mesmo sentido pode ver-se Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1981, pp. 297 ss.); e também Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1993, pp. 111 ss.). O mesmo tem vindo igualmente a ser sublinhado pela jurisprudência (cf. acórdão STJ, de 18/1/2001, proc. 3105/00 – www.dgsi.pt).

9 Francisco Augusto das Neves e Castro, Theoria das provas e sua aplicação aos actos civis, Livraria Internacional, de Ernesto Chardron, Porto, 1880, pp. 47.

10 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, Coimbra Editora, pp. 202/2003. Processo: 356/20.9PAVRS.E1

11 Publicado no DR-I nº 77, de 18abr2012.

12 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/3/2004 (Processo n.° 265/03), publicado www.dgsi.pt/jstj

13 Roxin/Schünmann, cit. por Susana Aires de Sousa, Prova Indireta e Dever Acrescido de Fundamentação da Sentença Penal, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Universidade Católica Editora, Vol. IV, pp. 2753 ss.

14 Ob. cit. pp. 2772.

15 Cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, VERBO.

16 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, Coimbra Editora, pp. 211 ss. Também Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, 2019, Almedina, pp. 59 ss.

17 Veja-se mais detidamente em: James Q. Whitman, The origins of reasonable doubt, Yale University Press, New Haven, London, 2008, pp. 186 ss.

18 Cf. Acórdão do TRCoimbra, de 27fev2019, proc. 107/17.5PBCVL.C1, Desemb. Belmiro Andrade.

19 Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2014, Universidade Católica Editora, pp. 326. No mesmo sentido cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp. 61 e ss.).

20 Germano Marques da Silva, op. cit