Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54355/21.8YIPRT.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
EXCEPÇÃO DE INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A exceptio non adimpleti contractus constitui uma exceção perentória de direito material, cujo objetivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo – tipicamente – no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso.
II – Resultando da matéria de facto que o empreiteiro executou a obra nos termos acordados, sem a existência de qualquer defeito, não pode o dono da obra recusar o pagamento do preço em falta, com fundamento na exceção de não cumprimento.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 54355/21.8YIPRT.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
J..., Lda. apresentou requerimento de injunção contra BVLH Invest, S.A., pedindo a notificação desta no sentido de lhe ser paga a quantia de € 84.338,22, sendo € 65.074,00 a título de capital, € 19.111,22 de juros de mora, e € 153,00 de taxa de justiça.
Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade comercial forneceu serviços de construção civil (abertura de uma estrada) à Requerida, constantes da fatura nº ...25, de 31.05.2019, no valor de € 135.950,00, emitida e enviada à Requerida, não tendo esta contestado os serviços fornecidos nem o montante da fatura, tendo sido emitida uma nota de débito em 28.08.2019, no valor de € 10.876,00, pelo que ficou em dívida o valor de € 125.074,00, dos quais a Requerida, depois de muito instada, só pagou a quantia de € 60.000.00, em 08.03.2021.
A Requerida deduziu oposição, contrapondo que os serviços prestados pela Requerente apresentam falhas, omissões e inexatidões, de forma a que a os mesmos não correspondem ao que foi contratado e, dessa forma, impossibilitam a utilização dos terrenos correspondentes ao caminho que devia ter sido destruído para os fins visados pela Requerida, sendo que os preços constantes da fatura não correspondem também ao contratado, constando aí material a mais, não sendo, por isso, devida a quantia peticionada na Injunção, constituindo a atuação da Requerente abuso de direito e litigância de má-fé, que visa unicamente prejudicar a própria Requerida, pelo que deve a mesma ser condenada em multa e indemnização à Requerida em quantia a liquidar em execução de sentença.
Os autos foram remetidos para distribuição, tendo passado a ser tramitados como ação comum.
Procedeu-se a audiência prévia, sendo proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou a ré no pedido, tendo ainda absolvido a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformada, a ré apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação de 79 prolixas conclusões, ao longo de 18 páginas, tendo, por isso, sido convidada a sintetizar as conclusões.
Veio então a ré apresentar 54 conclusões, em 12 páginas, as quais continuam a não satisfazer a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no art. 639º, nº 1, do CPC, e, por isso, não serão aqui transcritas.
Das mesmas conclusões consegue, não obstante, respigar-se que as questões submetidas à apreciação deste Tribunal da Relação têm a ver com a alegada nulidade da sentença e o erro de julgamento de facto e de direito. Assim, e porque a autora/recorrida exerceu de forma efetiva o respetivo contraditório, considerando ainda o princípio da proporcionalidade, não deixará de se conhecer do objeto do recurso.

A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se a sentença enferma das nulidades que lhe imputa a recorrente;
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pela recorrente;
- se tem aplicação no caso a exceção de não cumprimento do contrato, por execução deficiente dos trabalhos pela autora/empreiteira;
- se a autora litigou de má-fé.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial, cujo objeto consiste na construção civil, obras públicas e hidráulicas.
2. A ré dedica-se à exploração de patrimónios rústicos próprios ou alheios; aquisição e importação de fatores de produção; compra e venda de produtos agrícolas; compra e venda de imóveis e revenda dos mesmos; produção e comercialização de produtos agrícolas e hortícolas; preparação de produtos para venda; prestação de serviços agrícolas.
3. No decorrer do ano de 2019 a ré contratou à autora serviços relacionados com uns caminhos existente na Herdade ..., da qual é a ré proprietária.
4. Tais serviços reportavam-se a desfazer um caminho existente na herdade da ré, com aproximadamente 4.290 m de comprimento, eliminando o traçado e retirando materiais existentes no percurso, de forma a permitir que naquele local pudesse proceder à plantação de produtos agrícolas.
5. E por outro lado, construir um caminho novo de dimensão menor (extensão aproximada de 2.100m e largura média de 5 metros) e parque (área 1.600m2), com aproveitamento dos materiais recuperados do caminho desfeito – nomeadamente do saibro.
6. Para a construção do caminho novo e do parque a autora necessitou de adquirir saibro novo e tout-venant para a respetiva cobertura e acabamentos, conforme já se encontrava previsto no orçamento previamente apresentado pela autora.
7. Após a prestação de serviços à ré, a autora emitiu a fatura nº ...25 de 31/05/2019, no valor de €135.950,00.
8. Sobre esta fatura foi emitida a nota de crédito nº ...23, de 28/08/2019, no valor de € 10.876,00.
9. A ré, quando confrontada com a fatura emitida pela autora, procurou esclarecer junto da mesma os valores cobrados, designadamente referentes a saibro novo, tendo em 2 de agosto de 2019 solicitado à autora uma cópia do orçamento e guias de transporte dos materiais utilizados na obra.
10. A autora, após uma reunião ocorrida entre as partes, ainda em agosto de 2019, emitiu a Nota de Crédito acima referida em 8. a favor da ré.
11. No entanto, a ré em 1 de outubro de 2019 continuou a insistir na receção dos elementos que havia solicitado à autora em 2 de agosto.
12. No dia 7 de novembro de 2019 ocorreu uma nova reunião entre as partes, na qual não houve consenso acerca dos valores em dívida pela ré.
13. A ré foi interpelada para pagar o valor remanescente de € 125.074,00, mas apenas pagou à autora a quantia de € 60 000.00, em 08 de março de 2021.
14. Em 24/02/2021 a autora instaurou um procedimento cautelar de arresto contra a ré, onde foi determinado, por decisão de 04/03/2021, o arresto de bens móveis da mesma, até perfazerem o valor da dívida para com aquela.
15. Na sequência do que, em 8 de março de 2021, foram arrestadas à ré um total de 06 (seis) máquinas, a saber:
- 1 (uma) telescópica Class 7035 Scorpion;
- 1 (um) protótipo Class Axion;
- 1 (um) tractor John Deere 8420T;
- 1 (um) tractor John Deere 7800;
- 1 (um) tractor John Deere 8520T;
- 1 (um) tractor John Deere 6530.
16. Foi na sequência de tal arresto que a ré efetuou o pagamento do montante de € 60.000,00, acima referido em 13.
17. Através da empresa de recuperação de créditos “C..., Lda.”, foi ainda exigido à ré mais duas entregas, uma no valor de € 25.397,06 no dia 12 de março de 2021 e uma outra de € 10.000,00 no dia 25 de março de 2021.
18. Tendo a ré efetuado a entrega, por transferência bancária para a conta da sociedade C..., Lda. daqueles montantes, nas datas por esta exigidas, acima referidas.
19. No dia 15.03.2021 foram devolvidos à ré:
- 1 (um) tractor John Deere 6530;
- Telescópica Class Scorpion
E no dia 26.03.2021, foi devolvido à ré:
- 1 (um) tractor John Deere 7800.
20. Em data próxima da que deu entrada a Injunção, a autora – representada pelo mesmo Mandatário – deu também entrada de ação de insolvência contra a ré, da qual veio depois desistir em 07/09/2021.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
1. No local onde se situava o caminho antigo a autora não removeu o saibro em quantidade que possibilite a utilização de todo aquele espaço para a exploração agrícola.
2. Sendo ainda visível no local o caminho que existia na herdade e que deveria ter sido desmantelado pela autora.
3. A autora faturou a totalidade de saibro necessário aos caminhos novos, ou seja, 3150m3 de saibro.

Da nulidade da sentença
Começa a recorrente por dizer que a sentença é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão, estribando este seu entendimento na seguinte alegação:
- existe uma contradição entre os pontos 13., 16., 17. e 18. da matéria de facto dada como provada e a fundamentação de Direito da sentença, nomeadamente quando refere “A Ré não aceitou (…), têm de se considerar como não pagos à A”»;
- tal contradição é manifesta, pois se o pagamento de € 60.000,00 se encontra provado documentalmente (no Doc. 16 junto pela Recorrente na sua Oposição à Injunção), também não podem deixar de estar provados os restantes pagamentos constantes dos Docs. 17 e18 da referida peça processual;
- cotejando aqueles três documentos, resulta que os mesmos foram realizados através da mesma conta bancária, para o mesmo IBAN de destino, com referência expressa ao pagamento a que se referiam: Pagamento a J... e para o mesmo IBAN titulado pela empresa envolvida no Arresto (Apenso A dos autos), a ...;
- a própria Recorrida, em sede de Depoimento/Declarações de Parte (…), através do seu Representante Legal, confessou que tais pagamentos foram feitos pela Recorrente por conta da alegada dívida em causa;
- o mesmo também resulta do depoimento da Testemunha da Recorrida AA;
- e resulta também das regras de experiência comum (vd. conclusões C a J);
E conclui dizendo que a sentença, «ao condenar a Recorrente no montante do “pedido”, e considerando apenas provado o 1.º pagamento, enferma inevitavelmente de nulidade, na medida em que os seus fundamentos encontram-se em oposição com a decisão, gerando a ambiguidade e obscuridade da mesma, tornando-se assim ininteligível (…) – vd. conclusão J).
Relativamente a esta invocada nulidade, dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC que a sentença é nula quando «[o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis[1], esta nulidade verifica-se quando «a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)», quando «a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto».
Ou, nas palavras do acórdão do STJ de 02.12.2013[2]:
«(…), quando ocorre um vício real no raciocínio expresso na decisão, consubstanciado na circunstância da fundamentação explicitada na mesma apontar num determinado sentido, e, por seu turno, a decisão que foi proferida seguir caminho oposto, ou, pelo menos, diferente.
Dito de outro modo, quando a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente (de sentido contrário).
Não se confunde com o erro de julgamento, seja quanto à apreciação dos factos feita pelas instâncias, seja quanto às consequências jurídicas deles extraídas, por inadequada ter sido a sua subsunção à regra ou regras de direito pertinentes à situação concreta a julgar.
Trata-se, pois, de uma irregularidade lógico-formal e não lógico-jurídica.»
Ora, a esta luz, lendo com a devida atenção a decisão recorrida, verificamos que os fundamentos nela invocados estão em concordância com a decisão proferida, ou dito de outro modo, tal decisão tem o devido respaldo nos fundamentos nela invocados.
O que sucede é que a ré não se conforma com o decidido, por entender que os factos deveriam conduzir à sua absolvição do pedido, trazendo à colação as declarações de parte do legal represente da autora/recorrida e de uma testemunha, o que tem o seu lugar próprio de discussão na impugnação da matéria de facto, por poder configurar um eventual erro de julgamento de facto, mas nunca nulidade da decisão.
Veja-se o que a este propósito se escreveu na sentença recorrida:
«Note-se que os valores de €25.397,06 e de €10.000,00, transferidos para a conta da firma “C..., Lda.” nos dias 12 de março de 2021 e 25 de março de 2021, respetivamente, não se mostram devidamente comprovados como se tendo destinado ao pagamento da quantia em dívida à A., sendo certo que esta nega ter recebido alguma vez tais montantes, quer da Ré quer da firma “C..., Lda.”, pelo que e porque era à Ré que cabia o ónus da prova de ter pago esses montantes à A.»
Sendo este o entendimento do tribunal recorrido, é evidente que não se verifica a invocada contradição, pois não tendo sido julgados provados os referidos pagamentos – bem ou mal é o que veremos adiante -, não podia a ré/recorrente deixar de ser condenada a pagar o valor peticionado, como efetivamente foi.
O mesmo se diga, aliás, relativamente à alegação da recorrente de que a sentença, ao dar como provado o ponto 6 do elenco de factos dados como provados, «incorreu na nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 al. c) do CPC, tornando-se ininteligível face a todos os elementos probatórios constantes do processo que provam precisamente o contrário», designadamente as declarações de parte do legal representante da recorrente e o relatório pericial junto aos autos [vd. conclusões L a U].
Uma vez mais confunde a recorrente erro de julgamento com nulidade da sentença, resultando totalmente incompreensível a alegação da recorrente a este propósito, pois é de meridiana clareza que a discussão sobre se determinado facto dado como provado devia ser considerado não provado, tem o seu local próprio em sede de impugnação da matéria de facto.
De igual modo não se antolha qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Da lição de BB, resulta que uma sentença (ou um despacho) «é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes: Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos»[3].
O mesmo sentido e interpretação daquele normativo é formulado por CC[4], que acrescenta apenas, quanto à ambiguidade, a expressão «podem razoavelmente atribuir-se dois sentidos diferentes».
Ora, a esta luz, não pode deixar de improceder a alegação da recorrente visto a decisão recorrida ser de uma clareza total.

Diz ainda a recorrente que a sentença «não se pronuncia sobre questões essenciais que devia ter apreciado (artigo 615.º, n.º 1 al. d)), não apresentando fundamentos de facto e de direito que sustentem a absolvição da Recorrida quanto ao pedido de condenação como litigante de má fé face aos elementos probatórios constantes do processo (artigo 615.º, n.º 1 al. b)), impondo-se assim a condenação da Recorrida como litigante de má-fé, conforme peticionado pela Recorrente.»
Carece de total razão a recorrente.
O art. 615º, nº 1, al. b), do CPC prevê a nulidade da sentença que “[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade prevista na citada al. b), tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente[5].
Constitui também jurisprudência absolutamente dominante que a falta de motivação, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC (anterior artigo 668º), é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, e não a sua motivação deficiente, errada ou incompleta, sendo certo, outrossim, que uma fundamentação, apenas, incompleta ou insuficiente, não afeta o valor legal da sentença ou do acórdão[6].
Ora, bastaria uma leitura minimamente atenta da sentença recorrida para se ver que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de absolver a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé estão devidamente especificados, como se colhe do seguinte trecho:
«(…), no caso dos autos e atentos os factos provados, não se afigura que se mostre comprovada a existência de má-fé da parte da A., não se podendo concluir que a mesma assumiu, com dolo ou negligência grave, qualquer um dos comportamentos previstos nas várias alíneas do nº 2 do artº 542º do CPC, acima citado.
Antes pelo contrário, veio até a verificar-se a razão da sua pretensão deduzida nos autos, sendo a ação inteiramente procedente.
Conclui-se, por isso, pela improcedência do pedido de condenação da A. como litigante de má-fé.»
A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito. Uma sentença é nula, por falta de fundamentação, quando a decisão concretamente tomada – e não aquela que as partes entendam que deveria ter sido tomada – não se encontra assente em factos apresentados pela própria decisão, diretamente ou por remissão.
Pode a recorrente discordar da decisão proferida, o que não pode é, razoavelmente, dizer que está em causa uma nulidade da sentença por falta de fundamentação, de todo inexistente.
Em suma, a sentença recorrida não enferma de nenhuma das nulidades que lhe imputa a recorrente.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, prova pericial e depoimentos das testemunhas e declarações de parte dos legais representantes da autora e da ré, registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, referiu a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e indicou as passagens da gravação em que funda o recurso, que transcreveu em parte, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das alegações/conclusões da recorrente que esta discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente ao ponto 6 do elenco dos factos provados, e os pontos 1 e 2 dos factos não provados.
Vejamos, pois, se a prova produzida impõe decisão diversa da proferida quanto aos pontos em causa.
Deu-se como provado no ponto 6 que «[p]ara a construção do caminho novo e do parque a autora necessitou de adquirir saibro novo e tout-venant para a respetiva cobertura e acabamentos, conforme já se encontrava previsto no orçamento previamente apresentado pela autora».
Entende a recorrente que este facto devia ter sido julgado não provado, tendo em conta as declarações de parte do legal representante da recorrente, os esclarecimentos da Sra. Perita prestados em audiência de julgamento, e o depoimento da testemunha AA.
O Tribunal a quo fundamentou a decisão relativamente a este ponto da matéria de facto na prova documental, nas declarações de parte do legal representante da Autora, DD, nos depoimentos das testemunhas EE, FF, GG e HH, e no relatório pericial junto aos autos.
Escreveu-se a este propósito na sentença recorrida:
«(…), socorremo-nos para formar a convicção, sobretudo da conjugação do teor do orçamento junto aos autos em 17/09/2021 (fls. 77 vº e 78), da fatura e da nota de crédito acima referidas (docs. 1 e 13 juntos com a oposição da R. e de novo pela A. – fls. 82 e vº e 90 e vª), assim como dos documentos juntos pela A. em 23/05/2022 (refª 6521152) e em 23/03/2023 (refª 7144171 a 7144195), relativos aos trabalhos realizados pela mesma na obra em causa e respetiva faturação à R., em conjugação com o depoimento da testemunha AA, que se referiu a tais documentos e trabalhos correspondentes, e as declarações de parte do legal representante da A., DD, que explicou de forma consistente o tipo de trabalhos efetuados na herdade da Ré, designadamente a construção de um caminho novo e um parque ao fim desse caminho, com o aproveitamento do saibro do caminho agrícola antigo, que desfizeram, tendo procedido à abertura de caixa e aplicado saibro novo por cima do proveniente do caminho velho e uma camada de tout-venant em toda a extensão do caminho novo e do parque, para ficar mais resistente e aguentar com o peso dos camiões que iriam passar por aquele local, materiais esses que já estavam previstos no orçamento que a A. havia apresentado à Ré e também foi pedido pelo Engº II, da parte da R., para a estrada ficar mais consistente, “o que é normal fazer em qualquer estrada”. Mais acrescentou que quer o Engº II, quer os responsáveis franceses JJ e KK, que acompanharam o desenrolar dos trabalhos, nunca reclamaram dos mesmos, nem alguma vez puseram em causa que a A. colocasse saibro novo na parte superior da estrada, sendo que só depois do arresto de bens da Ré é que começaram a dizer que “aquilo não estava em condições”.
O que também foi confirmado pelas testemunhas EE, FF, GG e HH, trabalhadores da A. que realizaram trabalhos no local, para “desfazer um caminho e fazer um outro”, dizendo que os trabalhos foram executados com máquinas da A., uma alugada e um cilindro, tendo sido carregados vários camiões de saibro novo para colocar por cima do saibro proveniente do caminho velho, que era compactado e por cima colocaram tout-venant para o caminho novo e o parque ficarem mais consistentes e aguentarem o peso dos camiões, já que o terreno onde estão implantados é arenoso, referindo ainda estas testemunhas que o Engº II, trabalhador da Ré, estava no local a acompanhar os trabalhos e era quem lhes dava as ordens de execução dos mesmos, nunca tendo sido recebida nenhuma reclamação da parte da Ré.
Também no relatório pericial constante dos autos (fls. 162 a 171 - refª 6913190) se refere que “foi aplicada em toda a extensão do caminho novo, uma espessura média de 20 cm de saibro compactado, proveniente de caminho antigo. Sobre a camada atrás referida, foi aplicado saibro novo compactado, com uma espessura média de 10 cm, a que se sobrepôs uma camada de tout-venant, de espessura não inferior a 10 cm.” E que, “a altura média da camada de saibro aplicada no caminho novo é de, aproximadamente, 30 cm (20 cm de saibro compactado proveniente de caminho antigo, a que se sobrepõe uma camada de saibro novo, com uma altura média de 10 cm).»
Revemo-nos inteiramente nesta fundamentação, a qual reflete uma apreciação crítica, conjugada e concatenada de toda a prova produzida a respeito da matéria em causa.
Com efeito, os depoimentos das aludidas testemunhas, apreciados no seu conjunto e em conjugação com a prova documental e pericial, suportam cabalmente a decisão proferida quanto a este concreto ponto da matéria de facto.
As declarações de parte do legal representante da ré, LL, o depoimento da testemunha AA e os esclarecimentos da Sra. Perita, não têm a virtualidade de, no caso, imporem decisão diversa da proferida quanto ao facto em causa.
Mantém-se, pois, intocado o ponto 6 dos factos provados.

Na sentença recorrida foi dada como não provada a factualidade constante dos pontos 1 e 2 dos factos não provados, que é a seguinte:
«1. No local onde se situava o caminho antigo a A. não removeu o saibro em quantidade que possibilite a utilização de todo aquele espaço para a exploração agrícola.
2. Sendo ainda visível no local o caminho que existia na herdade e que deveria ter sido desmantelado pela A.»
Defende a recorrente que os factos em causa deviam ter sido julgados provados, com base em documentos que juntou, em excertos do relatório pericial e nos esclarecimentos prestados pela Sra. Perita, nas declarações do legal representante da ré, bem como nos depoimentos que transcreve das testemunhas MM e NN, os quais, segundo afirma, não foram devidamente valorados pelo Tribunal a quo.
A este respeito importa dizer que não basta à recorrente transcrever excertos dos depoimentos das testemunhas nas partes que lhe são favoráveis, e daí, sem mais, pretender uma alteração da decisão sobre a matéria de facto, pois os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
Escreveu-se na decisão recorrida:
«A perita que realizou a perícia no âmbito dos autos (Engª OO) esclareceu em audiência que os vestígios do saibro no caminho antigo, desfeito pela A., não são facilmente visíveis a olho nu. “Olhando para a área do terreno não se consegue identificar onde estava o caminho e foi necessário que lhe dissessem onde tinha havido um caminho”, tendo a A. retirado a maior parte do saibro do local, pensando que só seria possível utilizar cerca de 50% do saibro da estrada velha para a estrada nova e parque.
Daí que e na ausência de outras provas convincentes, se tenham considerado não provados os factos acima enumerados de 1 a 3 dos factos não provados, sendo certo que as testemunhas da Ré ouvidas sobre essa matéria prestaram depoimentos vagos e pouco credíveis, contrariados pela demais prova produzida, designadamente as testemunhas acima mencionadas.»
Elucidativo a este respeito é também o relatório pericial.
No quesito 8º, formulado pela ré/recorrente perguntava-se:
«Na área devidamente assinalada para a operação “desfazer caminho existente” foi integralmente retirado todo o saibro e tout venant ali existente, de forma a permitir que nessa área fosse realizada a atividade agrícola?»
A resposta da Sr.ª Perita foi:
«Conforme declarações dos presentes, o caminho ora inexistente possuía uma camada única de saibro compactado, com uma espessura média de 30 cm, tendo sido referida a inexistência de tout-venant.
No decurso da peritagem foram observados vários pontos do trajeto onde existia o caminho, visualizando-se esporadicamente elementos físicos indiciários da presença de saibro em pequenas quantidades. Contudo, a confirmação da presença deste material só poderá ser aferida através da recolha de amostras e análise laboratorial, em comparação com amostras recolhidas nas proximidades onde não existia caminho.
O solo onde existia o caminho foi regularizado, nos sítios onde há vegetação herbácea, esta apresenta um crescimento diferenciado, já nas zonas com mobilização de terra para preparação/receção de culturas, não se verificaram evidências de saibro, em especial pela ausência de diferenças significativas de tonalidades.»
Esta resposta encontra-se, aliás, ilustrada por várias fotografias.
Também os esclarecimentos a propósito prestados pela Sr.ª Perita são deveras esclarecedores, encontrando-se fielmente reproduzidos na transcrição feita pela recorrida nas contra-alegações.
Em sentido concordante depuseram também as já aludidas testemunhas EE, FF e HH, as quais, com conhecimento direto dos factos, afirmaram inequivocamente que o saibro foi removido, já misturado com outros materiais, existente no “caminho velho”, e que o trabalho nunca foi objeto de qualquer reclamação da parte do Eng.º II, responsável da ré/recorrente que acompanhou diariamente a realização da empreitada.
O facto de o saibro ter sido retirado, como explicou a testemunha HH, não significa que o terreno que era caminho até então tenha de imediato a mesma aptidão agrícola dos terrenos circundantes, dado que a terra necessita de algum tempo para recuperar a sua matéria orgânica, o que é, aliás, razoável e compreensível à luz das regras da experiência.
E, na verdade, decorridos 3 anos sobre a data da execução da obra, a Sr.ª Perita referiu que «olhando para a área do terreno não se consegue identificar onde estava o caminho e foi necessário que lhe dissessem onde tinha havido um caminho», o que permite concluir com segurança que o terreno de onde foi retirado o saibro, já se encontra recuperado em termos agrícolas.
Resta, assim, manter inalterados os pontos 1 e 2 dos factos não provados.

Sustenta ainda a recorrente que deviam constar do elenco de factos provados os factos essenciais correspondentes aos pontos 1 e 2 dos factos não provados, o que constitui, salvo o devido respeito, um puro absurdo, pois tais factos foram objeto de impugnação pela recorrente, a qual foi julgada improcedente nos termos acima expostas, com a consequência óbvia de tais factos permanecerem no elenco dos factos não provados.

Defende também a recorrente que outro facto essencial devia ser considerado: «[à] data da entrada da Injunção que deu origem aos presentes autos a Ré havia já pago à Autora as quantias de €60.000,00 no dia 8/3/2021, de €25.397,06 no dia 12/03/2021 e €10.000,00 no dia 25/03/2021».
Quanto a estes pagamentos há que referir, desde logo, que se encontra provada a matéria de facto do ponto 13 dos factos provados: «[a] Ré foi interpelada para pagar o valor remanescente de € 125.074,00, mas apenas pagou à A. a quantia de € 60 000.00, em 08 de março de 2021».
Ora, este ponto da matéria de facto não foi objeto de impugnação por parte da recorrente, pelo que teria forçosamente de se dar como não provado que a ré havia já pago à autora as quantias de € 25.397,06 no dia 12.03.2021 e € 10.000,00 no dia 25.03.2021, sendo irrelevantes todas as considerações tecidas pela recorrente a este propósito, e ademais não foram alegados, nem demonstrados, quaisquer factos concretos de onde se possa extrair, com o mínimo de certeza, que a ré/recorrente tenha efetuado os pagamentos que refere, e que os mesmos se destinaram a liquidar o valor da fatura em causa.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Da exceção de não cumprimento do contrato
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito. Senão vejamos.
Não existe dissídio entre as partes quanto à qualificação da relação jurídico-contratual a que se vincularam.
Entre ambas foi celebrado um contrato de empreitada, que é uma modalidade de contrato de prestação de serviços – art.1155º do Código Civil[7].
Nos termos do art. 1207º do CC, «[e]mpreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação a outra a realizar certa obra, mediante um preço
O contrato de empreitada é, pois, bilateral, oneroso e sinalagmático.
O sinalagma, no contrato de empreitada, é genético e funcional.
Como assinala Antunes Varela,[8] «[o] vínculo que, segundo a intenção dos contraentes, acompanha as obrigações típicas do contrato desde o nascimento deste (sinalagma genético) continua a reflectir-se no regime da relação contratual, durante todo o período de execução do negócio e em todas as vicissitudes registadas ao longo da existência das obrigações (sinalagma funcional)».
Enquanto o sinalagma genético significa que, na génese ou raiz do contrato, a obrigação assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação contraída pelo outro, o «sinalagma funcional aponta essencialmente para a ideia de que as obrigações têm de ser exercidas em paralelo (visto que a execução de cada uma delas constitui, na intenção dos contraentes, o pressuposto lógico do cumprimento da outra) e ainda para o pensamento de que todo o acidente ocorrido na vida de uma delas repercute necessariamente no ciclo vital da outra»[9].
Um dos aspetos em que se exprime o sinalagma contratual – corolário do princípio geral da pontualidade [art. 406º do CC] – é, do lado do empreiteiro, a execução da obra nos termos convencionados: «[o] empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato» - art. 1208º do CC e, do lado do dono dela, a obrigação de, caso a aceite, pagar o preço: «[o] preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no ato de aceitação da obra.» - nº 2 do art. 1211º do citado diploma.
Resulta da matéria de facto provada, designadamente dos pontos 4 a 6, que em cumprimento do contrato de empreitada, a autora procedeu à destruição de um caminho existente na herdade da ré, com aproximadamente 4.500 m de extensão, eliminando o traçado e retirando materiais existentes no percurso, e construiu um caminho novo de dimensão menor e um parque, com o aproveitamento dos materiais recuperados do caminho desfeito, mormente do saibro.
Para a construção do caminho novo e do parque a autora necessitou de adquirir saibro novo e tout-venant para a respetiva cobertura e acabamentos, cujo montante foi incluído na fatura acima referida.
Mais se provou que a ré não aceitou o montante faturado pela autora relativamente a tais serviços, tendo-se seguido pedidos de esclarecimento por parte da ré e duas reuniões entre as partes, sem qualquer resultado prático, pelo que quando foi interpelada pela autora para pagar o remanescente da fatura em dívida, no montante de € 125.074,00, a ré só pagou a quantia de € 60.000,00, no dia 08.03.2021, nada mais tendo pago [pontos 7 a 13 dos factos provados].
Reconhecendo a ré/recorrente que não procedeu ao pagamento integral do preço, sustenta, porém, que lhe é lícito recusar o pagamento uma vez que entende não ter a autora cumprido com todas as suas obrigações contratuais.
A exceptio non adimpleti contractus constitui uma exceção perentória de direito material, cujo objetivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo – tipicamente – no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso.
Ensinam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[10]:
«A exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.
Por isso ela vigora, não só quando a outra parte não efectua a sua prestação porque não quer, mas também quando ela a não realiza ou a não oferece porque não pode (cfr., quanto ao caso de falência de um dos contraentes, o disposto no art. 1196.° do Cód. Proc. Civil).
E vale tanto para o caso de falta inte­gral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consa­grado nos artigos 227.° e 762.°, n.° 2 (vide, a este respeito, na RLJ., ano 119.°, págs. 137 e segs., o acórdão do S. T. J., de 11 de Dezem­bro de 1984, com anotação de Almeida Costa).» (sublinhado nosso).
Decorre do art. 1221º do CC, que inexistindo cláusula em contrário, o preço deve ser pago no “acto de aceitação da obra” pelo que, aparentemente, a exceptio só funcionaria quando ambas as partes fossem obrigadas a cumprir, simultaneamente, as obrigações emergentes do sinalagma contratual.
Contudo, segundo o Prof. Vaz Serra[11], não é esse o entendimento mais correto do regime do art. 428º, nº1, uma vez que «[a] fórmula legal não é inteiramente rigorosa, pois o que a excepção supõe é que um dos contraentes não esteja obrigado, pela lei ou pelo contrato, a cumprir a sua obrigação antes do outro; se não o estiver pode ele, sendo-lhe exigida a prestação, recusá-la, enquanto não for efectuada a contraprestação...Por conseguinte, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes...apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro...».
No caso em apreço, os factos provados não dão razão à recorrente, pois dos mesmos não resulta a existência de defeitos na realização da obra, ou sequer que a autora tenha exigido da ré um valor superior ao dos trabalhos realizados, conforme o previamente acordado entre as partes, sendo certo que era à ré que cabia o respetivo ónus da prova.
Considerou-se na sentença recorrida, «que os factos provados não permitem concluir que existam defeitos nos trabalhos realizados pela A. ou que tenham sido cobrados por esta valores que não lhe sejam devidos, em face dos trabalhos realizados e conforme o previamente acordado entre as partes, sendo certo que era à Ré que cabia o respetivo ónus da prova, o que não fez.
Além disso, também não se mostra comprovado que a Ré tenha denunciado os alegados defeitos dentro do prazo legalmente previsto para o efeito.
Estabelece o artº. 1220º, nº.1 do Cód. Civil que “o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos 30 dias seguintes ao seu descobrimento”.
Tem, por isso, que se concluir que, sem a denuncia tempestiva dos referidos defeitos pela Ré, caducaram os direitos conferidos pelos artigos 1221º a 1223º do Código Civil.
Não resulta demonstrado, por isso, quaisquer circunstâncias que autorizassem a R. a excecionar o não cumprimento do contrato, para se recusar a pagar o remanescente da fatura cujo pagamento a A. veio exigir nos autos, nem que exista abuso de direito da A. em vir reclamar o respetivo pagamento.»
Revemo-nos inteiramente nesta fundamentação, reiterando que a ré não logrou demonstrar a existência de qualquer defeito na obra realizada pela autora, pelo que bem andou a sentença recorrida ao julgar improcedente a exceptio non adimpleti contractus.

Por último, carece de total fundamento e resulta algo incompreensível a invocação pela recorrente do art. 795º do CC [conclusão CCC].
Este preceito resolve o problema do risco da impossibilidade de cumprimento fortuita ou casual nos contratos sinalagmáticos. O desaparecimento de uma das obrigações arrasta a extinção da contra-obrigação, dado o sinalagma que as liga. Não é manifestamente esta a situação dos autos.

Da má-fé da autora
Quanto à alegada má-fé da autora, porque é de todo evidente a falta de razão da recorrente, limitar-nos-emos a transcrever o que a esse respeito se escreveu sentença recorrida:
«(…), no caso dos autos e atentos os factos provados, não se afigura que se mostre comprovada a existência de má-fé da parte da A., não se podendo concluir que a mesma assumiu, com dolo ou negligência grave, qualquer um dos comportamentos previstos nas várias alíneas do nº 2 do artº 542º do CPC, acima citado.
Antes pelo contrário, veio até a verificar-se a razão da sua pretensão deduzida nos autos, sendo a ação inteiramente procedente.»
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

*
Évora, 23 de maio de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Código de Processo Civil anotado, Volume V (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra – 1984, p. 141.
[2] Proc. 110/2000.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Ibidem, p. 151.
[4] Notas ao Código de Processo Civil, III, Lisboa, 1972, p. 249.
[5] CC, Notas ao Código de Processo Civil, em anotação ao art. 668º do CPC revogado.
[6] Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 04.05.2010, proc. 2990/06.0TBACB.C1.S1 e de 02.06.2016, proc. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Doravante CC.
[8] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, pp. 396-397.
[9] Ibidem, p. 397.
[10] Código Civil Anotado, Vol. I, p. 406.
[11] In RLJ, Ano 105º, p. 238, nota 2, citado no acórdão do STJ de 20.11.2012, proc. 114/09.1TBMTR.P1.S1, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.