Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2332/22.8T8PTM.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando em causa, face ao objeto do recurso, aferir da existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir, conforme imputado pela 1.ª instância à petição inicial, há que verificar se a pretensão deduzida não constitui uma decorrência lógica dos fundamentos invocados pela autora, isto é, se a causa de pedir invocada conduz a pretensão diversa daquela que veio a ser deduzida.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2332/22.8T8PTM.E1
Juízo Central Cível de Portimão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro

Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

(…), Unipessoal, Lda. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Condomínio do Edifício (…), sito na Rua (…) à Av. (…), (…), Portimão, representado pela respetiva administração, (…) – Gestão de Condomínios, Lda., pedindo:
a) se decrete a anulação, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1433.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil, da deliberação ora impugnada da assembleia de condóminos de 27 de agosto de 2022;
b) se declare que o uso do acesso à fração autónoma pertencente à autora, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício (…), sito em (…), na Rua (…) à Av. (…), pertencente à freguesia de Portimão, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), a que corresponde o artigo matricial (…), da referida freguesia, está afeto exclusivamente à fração autónoma designada pela letra "B" e que tal afetação exclusiva seja inscrita no registo predial.
Alega, para o efeito, que é dona da fração autónoma designada pela letra B, correspondente à cave 3, do aludido prédio urbano, denominado Edifício (…), constituído em propriedade horizontal por escritura de 05-04-1985; que foi realizada no dia 27-08-2022 assembleia extraordinária de condóminos do condomínio réu, de cuja ordem de trabalhos constava, entre outros, o ponto 9, com a redação seguinte: «Esclarecimentos, discussão e deliberação quanto ao acesso à fração B»; que, no âmbito do mencionado ponto 9 da ordem de trabalhos, foi colocada à deliberação pela assembleia a seguinte proposta: «deliberar no acesso à fração “B” como espaço destinado a cargas e descargas de veículos, exclusivamente para os condóminos da cave três, pelo período máximo de 15 minutos», proposta que foi aprovada por maioria dos condóminos presentes, com o voto contra da autora.
Mais alega que as frações autónomas designadas pelas letras A e B são servidas por um acesso comum à via pública; que, no limite do acesso exterior à fração A, destinada a garagem, está instalado um portão automatizado, servindo, em exclusivo, os comproprietários desta fração; que o acesso à fração B é realizado por um corredor estreito, com cerca de três metros de largura, onde apenas pode circular uma viatura automóvel, sendo que no limite do acesso exterior à fração B para o acesso comum à via pública está instalado um portão automatizado, servindo, em exclusivo, a autora, acesso este que é utilizado apenas pela condómina autora como passagem para os seus veículos automóveis para a via pública, consistindo no único meio de passagem de veículos da fração para a via pública.
Sustenta ainda que, desde a data da aludida deliberação, diversas viaturas automóveis, cujos proprietários desconhece, têm estado estacionadas por longos períodos no espaço de acesso à fração B, o que impede o acesso de veículos à fração autónoma pertencente à autora, situação que lhe causa os prejuízos que descreve; acrescenta que a deliberação em causa viola o seu direito de propriedade e que não assiste à assembleia de condóminos poderes para restringir o direito de propriedade ou de compropriedade dos condóminos; sustenta, ainda, que o acesso tem de ser considerado de uso exclusivo da fração B, pelos motivos que expõe, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citado, o réu contestou, defendendo-se por exceção – invocando a ilegitimidade passiva – e por impugnação.
Notificada para o efeito, a autora apresentou articulado no qual se pronuncia sobre a exceção deduzida na contestação.
Por despacho de 19-09-2023, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, no qual se indeferiu liminarmente o pedido deduzido sob a alínea b) e se considerou não verificada a exceção de ilegitimidade passiva, após o que se concedeu contraditório às partes para se pronunciarem, querendo, sobre a existência de ineptidão da petição inicial, com fundamento em incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido formulado sob a alínea a), e respetivas consequências.
Notificadas, as partes não se pronunciaram.
Por despacho de 28-11-2023, considerou-se verificada a existência de incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido formulado sob a alínea a), decidindo-se o seguinte:
Por isso, verifica-se uma incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido, o que gera a ineptidão da petição inicial e, por consequência a nulidade do processo, com a absolvição do réu Condomínio Edifício (…) da instância, o que decido – artigos 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea b), e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Custas a cargo da autora – artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Valor: o fixado.
Registe e notifique.
Inconformada, a autora recorreu desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1º- Vem o presente Recurso interposto da douta Sentença de fls., que julgou verificar uma incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido, o que determinou a ineptidão da petição inicial e, por consequência a nulidade do processo, com a absolvição do Réu.
2º- Entende a Recorrente, sempre com a devida vénia por douto entendimento, verifica-se erros na aplicação do Direito.
3º- Cabendo, por isso, a este Venerando Tribunal da Relação, determinar a revogação da Decisão recorrida, devendo ser reaberta a fase de saneamento para definição dos temas da prova e posterior julgamento, sem prejuízo da Primeira Instância optar por uma decisão aperfeiçoamento, caso entenda que, por carência de factos, a descrição efectuada na petição inicial se mostra incompleta ou ocorre qualquer outra imperfeição.
4º- Salvo melhor e douta opinião, a Recorrente entende que não se verifica qualquer excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, sendo certo que o Recorrido nunca alegou a existência de qualquer incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado pela Recorrente.
5º- O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, nomeadamente, o decretar-se a anulação, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1433.º, nºs 1 e 4, do Código Civil, da deliberação impugnada da assembleia de condóminos de 27 de agosto de 2022;
6º- Com efeito, o facto descrito no artigo 25º da p.i.: «(…) estacionaram por longo períodos de tempo no acesso à fração “B”, diversas viaturas automóveis que se desconhece os proprietários.» é precisamente um facto decorrente da deliberação condominial, que no entender da Autora é ilegal, sendo por isso, fatualidade que legitima a Recorrente a propor a presente ação.
7º- Contrariamente ao sustentando pelo Tribunal a quo, obviamente que parece claro que os comproprietários da fração “A” não tem interesse no uso do espaço (ainda que seja considerado zona comum) em particular no único acesso à fração “B” (propriedade da Recorrente), quando existe a possibilidade física de estacionamento/parqueamento para cargas e descargas/estacionamento de viaturas no interior da fração “A”, destinada exclusivamente garagem.
8º- Deste modo, não se verifica qualquer excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, não se verificando qualquer incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado pela Recorrente.
Sem conceder, somente por mero dever de patrocínio, ainda se dirá:
9º- A contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, só pode ocorrer quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente.
10º- É consensual a nível jurisprudencial e doutrinário que é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada.
11º- Dito isto, cabe ao juiz indicar, interpretar e aplicar os factos, os quais constituem o antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado e, na situação vertente, é possível concluir em sentido diverso daquele que foi sentenciado em Primeira Instância. Todavia, para além de isto estar claramente na disponibilidade da parte, a existir algum vício o mesmo seria sanável.
12º- «Como regime regra, no actual cenário normativo, numa lógica da prevalência de decisões de mérito sobre veredictos de natureza meramente formal, ao juiz cabe providenciar, por iniciativa oficiosa se as partes não o requererem, o suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação ou de nulidades dos actos praticados, pois a existência do vício deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância. Esta sanção processual só tem lugar quando a sanação for impossível, bem como nos casos em que, dependendo de acto de vontade da parte, esta se mantiver inactiva. No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de mérito».
13º- De tal forma que, mesmo que hipoteticamente os factos contidos na petição inicial não tivessem essa virtualidade, a existência de um quadro de contradição do objecto do processo por incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir seria sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no n.º 2 do artigo 6.º e nos n.º 2 e 3 do artigo 590.º do Código de Processo Civil.
14º- Do exposto supra, a Recorrente faz apelo a factos que se inscrevem na esfera de protecção dos pressupostos constitutivos da ilegalidade da Deliberação condominial impugnada, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 1433.º do Código Civil e o artigo 280.º, n.º 2, do mesmo Código.
15º- No entanto, repete-se, mesmo que assim não entendesse, caso se verificasse um cenário de incompletude do pedido ou da descrição fáctica de apoio à pretensão deduzida, através do recurso aos poderes de gestão processual, ao invés de optar por decisão de declaração da nulidade do processo, por se tratar de um vício suprível, o Tribunal a quo estava vinculado a proferir um despacho de aperfeiçoamento e apenas na hipótese de não ocorrer a devida correcção dos articulados é que estava legitimada a decisão de absolvição da instância.
16º- Deste modo, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea b), e 278.º, n.º 1, alínea b), n.º 2 do artigo 6.º e nos n.º 2 e 3 do artigo 590.º, todos do Código de Processo Civil.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se se verifica ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Fundamentos de facto
Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório supra.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
A apelante põe em causa a parte do despacho saneador em que se considerou verificada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e, em consequência, se absolveu o réu da instância, condenando-se a autora nas custas.
A 1.ª instância considerou verificada a ineptidão da petição inicial com fundamento em contradição entre o pedido e a causa de pedir, pelos motivos seguintes:
A autora formulou o pedido de anulação da deliberação da assembleia de condóminos do edifício Acrópole, de 27 de agosto de 2022, na parte em que foi deliberado no acesso à fração “B” como espaço destinado a cargas e descargas de veículos, exclusivamente para os condóminos da cave três, pelo período máximo de 15 minutos.
Para tanto, alegou que, na sequência dessa deliberação tem havido veículos estacionados por longos períodos, prejudicando o funcionamento da empresa, pois está impedida de entrar e sair da sua fração de e para a via pública, respetivamente.
Na contestação, o réu alegou, por seu turno, que a deliberação quis apenas regular o uso de uma zona comum para o que tinha legitimidade.
Compulsada a ata entretanto junta a fls. 49 v, verifica-se que, a assembleia deliberou sobre o assunto, nos seguintes termos:
(…) foi posta à votação a possibilidade de ocupação condicionada do espaço comum (entre o portão exterior e o portão da fração B), para que este ficasse condicionado à utilização máxima de 15 minutos para cargas e descargas, por qualquer proprietário da fração “A” ou “B”. Ficou ainda deliberado e aprovado que será de aplicar uma penalidade de € 50 por cada 5 minutos de parqueamento que ultrapasse os 15 minutos anteriormente referidos. Colocada esta situação a votação, foi a mesma aprovada por maioria dos presentes com votos contra da fração “B”.
Parece claro que quer os proprietários da fração “A” quer os da fração “B” teriam interesse no uso do espaço que é considerado zona comum. Daí a deliberação com tal teor.
Ora, esta deliberação não legitima nem fundamenta o facto que a autora refere trazer-lhe prejuízo, a circunstância de diversas viaturas automóveis estacionarem por longos períodos de tempo no local de que se desconhece os proprietários (artigo 25º da petição inicial).
Por isso, verifica-se uma incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido, o que gera a ineptidão da petição inicial e, por consequência a nulidade do processo, com a absolvição do réu Condomínio Edifício (…) da instância, o que decido – artigos 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea b), e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Discordando deste entendimento, a apelante alega que o réu não invocou a existência de incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado, bem como que tal vício se não verifica; defende a apelante que o alegado no artigo 25.º da petição inicial – (…) desde a data da deliberação, ora impugnada, já estacionaram por longo períodos de tempo no acesso à fração “B”, diversas viaturas automóveis que se desconhece os proprietários – configura um facto decorrente da deliberação da assembleia de condóminos impugnada, deliberação que a autora considera ilegal, pelos motivos que expôs, pelo que peticionou a respetiva anulação. Subsidiariamente, defende que, caso se considere verificado o aludido vício, o mesmo sempre seria sanável, o que impunha lhe fosse dirigido convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
Vejamos se lhe assiste razão.
É sabido que a contradição entre o pedido e a causa de pedir gera a ineptidão da petição inicial, o que constitui fundamento de nulidade de todo o processo, exceção dilatória que conduz à absolvição da instância e que se mostra de conhecimento oficioso, conforme decorre dos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 278.º, n.º 1, alínea b), 577.º, alínea b), e 578.º do Código de Processo Civil.
A apelante afirma que o aludido vício não foi invocado pelo réu, o que efetivamente corresponde à realidade; porém, tratando-se de uma exceção de conhecimento oficioso, verifica-se que a lei impõe, no citado artigo 578.º, o respetivo conhecimento, sem o fazer depender de arguição por qualquer das partes.
Estando em causa a prolação de decisão baseada em fundamento não considerado pelas partes e que conduz à aplicação de regime jurídico diverso do que fora por estas equacionado, impõe o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a audiência prévia das mesmas, devendo ser alertadas para a eventualidade de vir a decisão a ser proferida no âmbito daquele quadro normativo e ser-lhes facultada a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão de direito nova.
Dispõe o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, o seguinte: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Consagra este preceito o princípio do contraditório, proibindo a chamada decisão-surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 31), “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Esclarecem os autores (ob. cit., pág. 32) que “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)”, acrescentando que “a omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos gerais do artigo 195.º”.
No caso presente, a 1.ª instância conheceu oficiosamente do aludido vício, tendo apreciado e decidido questão de direito não anteriormente colocada nos autos. No entanto, foi concedido contraditório prévio às partes, mediante a prolação de despacho que as alertou para a eventualidade de vir a ser proferida decisão no âmbito do aludido quadro normativo e as convidou a pronunciar-se quanto à enunciada questão de direito.
Assim sendo, verificando que o Tribunal auscultou as partes previamente à prolação da decisão recorrida, na qual foi o réu absolvido da instância com base em regime jurídico por aquelas não anteriormente equacionado, e tratando-se de questão de conhecimento oficioso, inexiste qualquer impedimento à resolução da questão em causa.
A aferição da verificação do vício de contradição entre o pedido e a causa de pedir, imputado pela 1.ª instância à petição inicial, impõe a análise da fundamentação em que se baseia a pretensão deduzida pela autora na presente ação.
Elencando os requisitos da petição inicial, dispõe o n.º 1 do artigo 552.º do CPC, além do mais, o seguinte: 1 - Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: (…) d) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação; e) Formular o pedido; (…).
O n.º 4 do artigo 581.º do mesmo código, por seu turno, dispõe o seguinte: Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Reportando-se à fundamentação da pretensão, explicam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, pág. 21) o seguinte: «O autor, além de formular um pedido de tutela de uma determinada situação subjectiva, tem de designar o facto de que faz decorrer esta situação subjectiva, ou seja, a via da investigação através de qual (e só dela) o tribunal irá apreciar a procedência do seu pedido». Acrescentam os autores (ob. cit., pág. 411): «O pedido formulado pela parte tem de ser fundamentado, ou seja, tem de assentar numa causa de pedir. A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material ou o direito potestativo alegado pelo autor. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico: é a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. Portanto, a causa de pedir é um conceito processual que é construído com base na previsão de regras de direito substantivo.»
Esclarece José Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, 4.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2017, pág. 69) o seguinte: «A nossa lei define a causa de pedir como o facto jurídico constitutivo do efeito pretendido pelo autor (artigo 581.º-4), como tal contraposto aos factos impeditivos, modificativos e extintivos desse mesmo efeito. (…) Esta definição aponta, como referência fundamental do conceito, para as normas de direito substantivo em cuja previsão se contém o facto para o qual estatuem o efeito jurídico pretendido.»
Está em causa a pretensão formulada pela autora sob a alínea a), na qual, invocando o artigo 1433.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil, pede se decrete a anulação da deliberação ora impugnada da assembleia de condóminos de 27 de agosto de 2022.
O artigo 1433.º do CC concede, no n.º 1, a qualquer condómino que as não tenha aprovado, o direito de anulação de deliberações da assembleia de condóminos contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados.
Extrai-se da petição inicial, além do mais, o seguinte:
i) a autora pede:
- a anulação da deliberação, aprovada pela assembleia extraordinária de condóminos do condomínio réu realizada no dia 27-08-2022, seguinte: «deliberar no acesso à fração “B” como espaço destinado a cargas e descargas de veículos, exclusivamente para os condóminos da cave três, pelo período máximo de 15 minutos»;
ii) a autora invoca o artigo 1433.º, n.ºs 1 e 4, do CC e alega, além do mais, o seguinte:
- que é condómina do condomínio réu, proprietária da fração autónoma designada pela letra B, correspondente à cave 3 do prédio denominado Edifício (…), melhor identificado nos autos;
- que a indicada deliberação foi aprovada por maioria dos condóminos presentes na assembleia extraordinária realizada no dia 27-08-2022, com o voto contra da autora;
- que, desde a data da referida deliberação, têm estado estacionadas no acesso à fração B, por longos períodos de tempo, diversas viaturas automóveis cujos proprietários desconhece;
- que tal situação impede o acesso de veículos à fração autónoma pertencente à autora, o que lhe causa dificuldades várias;
- que a deliberação deu causa à situação exposta, que limita o exercício pela autora dos poderes correspondentes ao seu direito de propriedade;
- que a deliberação impugnada é contrária à lei, por causar limitação ao exercício pela autora de tais poderes, sendo, como tal, anulável.
Estando em causa, face ao objeto do recurso, aferir da existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir, conforme imputado pela 1.ª instância à petição inicial, há que verificar se a pretensão deduzida não constitui uma decorrência lógica dos fundamentos invocados pela autora, isto é, se a causa de pedir invocada conduz a pretensão diversa daquela que veio a ser deduzida.
Não se trata de apreciar a viabilidade da ação, o respetivo mérito, visando detetar uma eventual inconcludência jurídica, designadamente por não preenchimento da previsão normativa invocada como fundamento da pretensão deduzida. O que está em causa é a aferição da ausência de nexo lógico entre a causa de pedir e o pedido formulado.
Em anotação ao citado artigo 186.º, explicam António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 220) que há ineptidão da petição inicial entre outros casos, no seguinte: (…) c) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir: se o pedido deve ser a consequência ou o corolário lógico da causa de pedir, numa ideia de silogismo, a contradição entre esses dois elementos implica a impossibilidade de a petição cumprir a sua função; em rigor, este motivo de ineptidão resulta de um verdadeiro antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, e não se uma mera desadequação entre uma coisa e outra (…). A petição inicial, assim como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão; em tal silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é integrada pelas razões de facto e o pedido corresponderá à conclusão. Por isso mesmo, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, o que não se confunde com a simples desarmonia entre pedido e causa de pedir. (…)».
Analisando a decisão recorrida, verifica-se que a 1.ª instância entendeu que a deliberação impugnada não legitima nem fundamenta o facto que a autora refere trazer-lhe prejuízo, a circunstância de diversas viaturas automóveis estacionarem por longos períodos de tempo no local de que se desconhece os proprietários e, por esse motivo, considerou verificada uma incompatibilidade entre o fundamento da ação e o pedido.
No entanto, esta apreciação respeita à conexão entre a deliberação impugnada e a situação fáctica que a autora alega dela decorrer, não se reportando à conexão entre os fundamentos da ação e a pretensão formulada, pelo que não pode manter-se.
No caso presente, a autora invocou o regime de impugnação das deliberações da assembleia dos condóminos estabelecido no artigo 1433.º do CC, bem como a qualidade de condómina do condomínio réu e a ilegalidade de determinada deliberação da assembleia de condóminos, que alega não ter aprovado, após o que concluiu, pedindo a anulação da deliberação impugnada, não se vislumbrando que esta pretensão esteja em contradição com aquela fundamentação, antes configurando uma consequência lógica da mesma.
Tendo-se concluído que não ocorre a contradição entre o pedido e a causa de pedir imputada pela 1.ª instância à petição inicial, impõe-se julgar não verificada a exceção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, com fundamento no aludido vício, e revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos, caso não deva a instância extinguir-se por outro motivo.
Procede, assim, a apelação.
As custas do recurso recaem sobre o recorrido, na vertente de custas de parte (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se decide:
a) julgar não verificada a exceção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, com fundamento em contradição entre o pedido e a causa de pedir;
b) revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, caso não deva a instância extinguir-se por outro motivo.
Custas do recurso pelo apelado, na vertente de custas de parte.
Notifique.
Évora, 09-05-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1.ª Adjunta)
Francisco Matos (2.º Adjunto)