Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS | ||
Descritores: | SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA REVOGAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | A revogação da suspensão da execução da pena não constitui, em caso algum, um efeito automático quer da condenação pela prática de crime no período da suspensão, quer do não cumprimento dos deveres ou regras de conduta e do plano de reinserção social, importando sempre avaliar se o comportamento posterior do condenado demonstrou, de forma irremediável, que as finalidades preventivas que estavam na base da suspensão não puderam ser alcançadas, sendo a decisão de revogação a última ratio (esgotadas as possibilidades conferidas pelo art. 55.º do Cód. Penal). Mas, voltando ao caso em apreço, é manifesto que outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal, inexistindo fundamento que justificasse a prorrogação da suspensão. A conduta posterior do recorrente, que desenvolveu atividade de tráfico durante todo o período da suspensão da pena imposta nestes autos, não tem ocupação laboral e se encontra em cumprimento de pena, evidencia que as finalidades preventivas que suportaram a decisão de suspensão da execução da pena estão irremediavelmente comprometidas. Estamos perante crime grave, incluindo no conceito de criminalidade altamente organizada (art. 1.º, al. m), do Cód. Processo Penal), onde são prementes as necessidades de prevenção geral, praticado durante relevante período temporal. O recorrente, na verdade, encarregou-se de demonstrar, à saciedade, que a expectativa do Tribunal a quo, o juízo de prognose em que assentou a decisão de que a simples censura do facto e ameaça da pena seria suficiente para salvaguardar as finalidades de prevenção, era, na verdade, infundada, deixando claro não ser capaz de manter uma conduta conforme ao direito. Como ressalta da decisão recorrida, o recorrente revela manifesta dificuldade em reconhecer o desvalor da sua conduta e revela ausência de interiorização da pena, ausência de juízo crítico e persistência nos comportamentos ilícitos, desperdiçando a oportunidade que lhe foi concedida aquando da condenação (pese embora os antecedentes criminais, incluindo pela prática de crimes de roubo). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I. RELATÓRIO O arguido AA, foi condenado, por sentença datada de 09/11/2017 e transitada em julgado em 11/12/2017, no que aqui releva, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova a elaborar pela DGRSP, assente em plano de reinserção social, a englobar frequência de curso e ou programa de prevenção de violência doméstica. Em 12/05/2025, foi proferida decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido fora condenado, determinando o efetivo cumprimento da pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão. * Inconformado com a decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela alteração do decidido, com manutenção da suspensão da pena de prisão, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões: «1.ª - A decisão recorrida viola claramente o critério da escolha da pena consagrado no art. 70.º do C.P. 2.ª - A decisão recorrida viola claramente o art. 56.º do C.P. 3.ª - A decisão recorrida padece também do vício de insuficiência para a matéria de facto dada como provada, uma vez que aos factos dados como provados, são insuficientes para revogar a suspensão da pena de prisão (Cfr. art. 410.º n.º 2, al. a) do CPP). 4.ª -A decisão recorrida viola claramente o princípio constitucional da proporcionalidade aflorado no art. 18.º, n.º 2, da C.R.P e expressamente consagrado no art. 2.º da C.R.P. 5.ª - A decisão recorrida enferma do vício de insuficiente fundamentação, o que na prática se reconduz ao vício de falta de fundamentação, sendo por isso nula. 6.ª – Pelo, que a douta sentença recorrida enferma de graves contradições, inexatidões e imprecisões. 7.ª - O Tribunal a quo, violou entre outras, a norma do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP, art.º, 56.º e 70.º do CP e arts. 2.º e n.º 2, do art. 18.º da C.R.P. » * O recurso foi admitido, a subir imediatamente e com efeito suspensivo. * O Ministério Público junto da primeira instância não respondeu ao recurso. * Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, salientando: «(…) AA, por sentença datada de 09.11.2017 e transitada em julgado em 11.12.2017, foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova a elaborar pela DGRSP, assente em plano de reinserção social, a englobar frequência de curso e ou programa de prevenção de violência doméstica. Como bem se pondera na decisão recorrida, cabe ao tribunal, antes de decidir pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão, avaliar em concreto as circunstâncias fácticas e as finalidades preventivas inerentes à suspensão aplicada, de modo a determinar se está, ou não, perante uma situação de não interiorização do desvalor da conduta e de afastamento do raciocínio de prognose feito em sede de decisão de suspensão da pena. E, como bem resulta da decisão recorrida, apesar de o relatório final apresentado pela DGRSP ter feito uma avaliação positiva do desempenho do arguido - não obstante a factualidade dada como provada no processo n.º 21/19.0… - tendo o mesmo, após lhe ter sido concedida nova oportunidade, concluído o programa destinado a agressores de violência doméstica, tal circunstância não é suficiente para se excluir a revogação da suspensão da pena de prisão. Tendo cometido dois crimes no decurso do período de suspensão de natureza diversa daquele pelo qual foi condenado nos presentes autos, um crime de tráfico de estupefacientes foi cometido pelo arguido durante o decurso daquele período, crime de assinalável gravidade e punido com pena de prisão efetiva. Tendo presente o teor do registo criminal do arguido, o mesmo revela não ter capacidade de autocensura e de reger a sua vida em conformidade com as regras do direito, nem sensibilidade para reconhecer a validade das normas penais incriminadoras, infirmando o prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e à sua capacidade de interiorização dos valores ético-jurídicos. O que igualmente resultou da postura que assumiu durante a sua audição, desvalorizando as condenações sofridas. Tudo ponderado, demonstrado resulta que no caso as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam ser alcançadas, infirmando o juízo de prognose favorável que ditou a suspensão da execução da pena de prisão, mostrando-se postergada a satisfação das exigências de prevenção geral e especial, que determinaram a suspensão da execução da pena de prisão. Termos em que, acompanhando os fundamentos do despacho recorrido, entendemos verificarem-se in casu os pressupostos de revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, devendo o recurso ser, assim, julgado improcedente.» * Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta. Teve lugar a Conferência. * II. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, nº 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995). Atendendo às conclusões apresentadas, e não se detetando outras questões de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se estão reunidas, no caso concreto, as condições que devem determinar a revogação da suspensão de execução da pena de prisão e o imediato cumprimento efetivo da mesma. * III – DA DECISÃO RECORRIDA: «O arguido AA, por sentença datada de 09.11.2017 e transitada em julgado em 11.12.2017 (referências eletrónicas n.º … e …) foi condenado, no que aqui releva, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita, a regime de prova a elaborar pela DGRSP, assente em plano de reinserção social, a englobar frequência de curso e ou programa de prevenção de violência doméstica. * A 30.07.2020 (referência eletrónica n.º …) foi junto relatório final pela DGRSP, no qual se fez constar que do total das 20 sessões que constituem o módulo psico-educacional, o condenado assistiu a 13, sendo considerado não concluído na totalidade este módulo pelo absentismo manifestado. Concluiu-se naquele relatório que durante o período da suspensão de execução de pena, o condenado manteve um esforço de reorganização em termos laborais e pessoais conforme objetivos delineados, revelando, no entanto, dificuldade no cumprimento dos mesmos (a nível profissional manteve uma situação instável alternando períodos de desemprego com ocupação laboral diversificada, de curta duração). * Após ter sido concedida ao arguido uma oportunidade para concluir o Programa para Agressores de Violência Doméstica (embora não tenha havido uma decisão de prorrogação do prazo de suspensão), por ofício datado de 01.07.2022 (referência eletrónica n.º …) veio a DGRSP informar que no dia 09.03.2022 o arguido concluiu o Programa Psicoeducativo “Custos e Benefícios da Agressividade”, dirigido a agressores de violência doméstica (e não antes, por dificuldades relacionadas com a pandemia Covid-19). O seu comportamento foi descrito como colaborante e recetivo face às atividades propostas, reconhecendo o comportamento manifestado e descrito nos presentes autos como violento, expressando sentido crítico sobre o mesmo. * Por acórdão transitado em julgado em 18.12.2023, no âmbito do processo n.º 21/19.0… (referência eletrónica n.º …), que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Central Criminal de … – Juiz …, foi o arguido condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, a cumprir efetivamente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C. Foi a seguinte a factualidade dada como provada: “7 -O ARGUIDO AA 194. Pelo menos desde o ano de 2017 até Dezembro de 2020 o arguido AA, também conhecido pelas alcunhas de "…" e "…", vende canábis e cocaína a indivíduos consumidores, e pelo menos desde o dia 11 de Março de 2020 tem vindo a fornecer, pelo menos, canábis ao arguido BB e a outros indivíduos, o qual, por sua vez, revende tais substâncias, a troco de dinheiro, a indivíduos consumidores. 200. No dia 2 de Outubro de 2020, pelas 11:41h, através de contacto telefónico, o arguido AA deslocou-se ao interior da residência do arguido BB e abasteceu este com 100 gramas de canábis, ao preço de 3,50€ por cada grama. 203. Em datas não concretamente apuradas, desde o ano de 2017 até ao início do ano de 2020, CC adquiriu cocaína ao arguido AA todas as semanas, pelo menos por quatro vezes por mês, pagando 40,00€ (quarenta euros) por um grama. 204. Quando pretendia adquirir produto estupefaciente CC enviava SMS Ou através do Messenger para telemóvel do arguido AA, aquele indicava o local de encontro junto ao …, em …, …, ou junto da capela da … 205. Em datas não concretamente apuradas, desde o ano de 2017 até ao ano de 2019, DD adquiriu canábis ao arguido AA, cerca de uma vez por mês, pagando nessas ocasiões entre 20,00€ (vinte curos) a 60,00€ (sessenta euros). 206. Por seis vezes, em datas não concretamente apuradas, DD adquiriu uma placa de haxixe. 207. Quando pretendia adquirir produto estupefaciente DD enviava SMS ou ligava para o telemóvel do arguido AA, e aquele indicava o local de encontro, ou se não o fizesse sabia que se encontravam junto ao centro de lavagem de automóveis, em …. 208. A par da entrega de dinheiro, como forma de pagamento pelo produto estupefaciente adquirido, DD entregou artigos de pesca, de valor não apurado, ao arguido AA. 219. No dia 2 de Dezembro de 2020, pelas 08:30h, o arguido AA tinha em sua posse, no interior da sua residência, nomeadamente na sala onde aquele dorme, localizada na Rua …, em …, o seguinte: - Na mesa de apoio: canábis (resina), com 16,324g, com 23,5% de grau de pureza, suficiente para 76 doses. - Em cima da mesa de jantar: uma balança digital com a inscrição (B05) e dois telemóveis da marca «…». 220. Desde o mês de Agosto de 2018 e até ao ano de 2020 (data dos factos da acusação) que não é conhecido ao arguido AA o exercicio de qualquer atividade profissional.”. * Por sentença em julgado em 10.09.2021, no âmbito do processo n.º 132/19.1… (referência eletrónica n.º …), que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de … – Juiz …, foi o arguido condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e acompanhada de regime de prova, pela prática em 03.05.2019, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, alíneas b), do Código Penal. Foi a seguinte a factualidade dada como provada: “1 – No dia 3 de maio de 2019, pelas 14h45m, a ofendida EE, circulava pela EN 256, no sentido …-…, ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, marca “…”, modelo “…”, transportando como passageiros, no banco da retaguarda, os seus dois filhos, menores de idade. 2 – Ao circular pela referida via de trânsito, a ofendida deparou-se com uma rotunda, conhecida pela “Rotunda do …”, aonde ingressou, para o seu interior, prosseguindo a sua marcha para o lado direito da mesma; 3 – Quando assim circulava, surgiu-lhe de frente, em sentido contrário àquele prosseguido pela ofendida, um veículo ligeiro de passageiros conduzido pelo arguido; 4 – O arguido atravessou o veículo por si conduzido na via de trânsito, mais propriamente no interior da referida rotunda, imobilizando o mesmo e impedindo a passagem de qualquer outro veículo; 5 – Em consequência da atuação do arguido descrita em 3) e 4), a ofendida travou bruscamente o veículo automóvel por si conduzido, evitando assim um embate entre os dois veículos, e teve ainda que imobilizar o veículo por si conduzido, ficando impedida de prosseguir a sua marcha; 6 – Tal também sucedeu com um outro veículo automóvel que apareceu de seguida a circular na sua retaguarda e cuja identificação não foi possível determinar; 7 – Após, o arguido saiu para o exterior da sua viatura, dirigiu-se até junto da porta do condutor do veículo da ofendida, permanecendo esta no interior, e pelo vidro que estava aberto proferiu-lhe, entre outras, as seguintes expressões “O nome FF diz-lhe alguma coisa? Você deve dinheiro à minha mulher. Os problemas da minha mulher sou eu que os resolvo”.”. * Designada data para audição do arguido, no âmbito da qual foi confrontado com as condenações que sofreu por factos praticados durante o período de suspensão da pena de prisão aplicada nos presentes autos, o arguido adotou um discurso desculpabilizante e desresponsabilizador, afirmando inclusivamente que no âmbito do processo n.º 132/19.1… foi “mal julgado”, e justificando a conduta que determinou a sua condenação no processo n.º 21/19.0… com dificuldades económicas provocadas pela pandemia Covid-19. * O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido e, consequentemente, que seja determinado o cumprimento da pena de 2 anos e 4 meses de prisão, por se verificar que as finalidades da punição que estiveram na base da sentença proferida neste processo, não puderam, de forma alguma, ser alcançadas pela via da referida suspensão, tendo o arguido revelado ser uma pessoa com carácter criminógeno, insensível à advertência e oportunidade que lhe foi dada nos presentes autos. * O arguido pugnou pela inexistência de fundamentos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão. Cumpre decidir. Comunicada ao tribunal a falta de cumprimento dos deveres, regras de conduta, ou outras obrigações impostas ao condenado, o tribunal decide por despacho se haverá lugar, ou não, à revogação da suspensão da pena de prisão, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado, conforme o artigo 495.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal. Resulta do disposto no artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que no seu decurso o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social ou, em alternativa, cometa crime pelo qual venha a ser condenado e que revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. Constata-se assim que a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não é automática, exigindo-se além do elemento objetivo da violação do dever, da regra de conduta ou do plano de reinserção social, um elemento subjetivo, traduzido na culpa grosseira, assim entendida como a imputação ao agente de um juízo de censura ético-jurídica por ter atuado de forma indesculpável, quando podia e devia ter agido de modo diverso (do mesmo modo que agiria o comum dos cidadãos), atentas as concretas circunstâncias que tenham ficado demonstradas, motivo pelo qual a sua atuação não pode ser tolerada. Caso a culpa pelo incumprimento de qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou pela não correspondência ao plano de reinserção, não seja grosseira, o Tribunal pode aplicar uma das medidas previstas no artigo 55.º do Código Penal, consoante a que se revele eficaz no caso concreto (isto é, fazer uma solene advertência, exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão, impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção ou prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º). Já o incumprimento repetido será um comportamento persistente no tempo ou de tal forma renovado ou reiterado que se revele também intolerável e inadmissível para o comum dos cidadãos. Por outro lado, caso o condenado cometa novos crimes, impõe-se a formulação de um juízo de valor à conduta do condenado em termos de se revelar que, se a infração das regras impostas no período da suspensão infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão e a esperança de, por meio desta manter o arguido afastado da prática de condutas jurídico-penalmente ilícitas, a suspensão deverá ser revogada . Cabe assim ao tribunal, antes de decidir pela reclusão, avaliar em concreto as circunstâncias em que ocorreram os condicionalismos da revogação, ajuizando a culpa reportada aos factos e as finalidades preventivas inerentes à suspensão aplicada, de modo a determinar se estamos perante uma situação de não interiorização do desvalor das suas condutas. Em suma, opera essa revogação sempre que o raciocínio de prognose feito em sede de decisão de suspensão da pena não encontrou reflexos na realidade dos atos do delinquente. No caso em apreço, o período da suspensão decorreu entre 11.12.2017 e 11.04.2020. Apesar de o relatório final apresentado pela DGRSP ter feito uma avaliação positiva do desempenho do arguido (embora a afirmação de que este manteve um esforço de reorganização em termos pessoais, à luz da factualidade dada como provada no processo n.º 21/19.0…, seja discutível), tendo este, após lhe ter sido concedida nova oportunidade, concluído o programa destinado a agressores de violência doméstica, adotando uma postura elogiável, tal circunstância não é suficiente para se excluir a revogação da suspensão da pena de prisão. É verdade que os dois crimes praticados no decurso do período de suspensão têm natureza diversa daquele pelo qual o arguido foi condenado nos presentes autos. Sucede que o crime de tráfico de estupefacientes foi cometido durante todo o decurso daquele período, tendo o arguido se dedicado à venda de canábis e cocaína a consumidores (veja-se, inclusivamente, que um dos consumidores adquiriu cocaína ao arguido durante todas as semanas, desde o ano de 2017 até ao início do ano de 2020). E o argumento trazido pelo arguido de que apenas se dedicou a tal atividade devido a dificuldades económicas relacionadas com a pandemia covid-19 é totalmente falso, pois as restrições associadas à pandemia, com o consequente impacto financeiro em várias famílias, apenas se iniciaram em meados de março de 2020. No período da suspensão, o arguido praticou dois crimes, um deles de assinalável gravidade e punido com pena de prisão efetiva, revelando que não tem capacidade de autocensura, nem sensibilidade para reconhecer a validade das normas penais incriminadoras. Os antecedentes criminais do arguido, perante a prática de outros crimes cometidos no decurso do período da suspensão, também se mostram pertinentes para aferir do eventual fracasso do prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e da sua capacidade de interiorização dos valores ético-jurídicos. E analisando o registo criminal do arguido (referência eletrónica n.º …) verifica-se que este conta também com antecedentes criminais pela prática de variados ilícitos, desde condução sem habilitação legal, ofensa à integridade física, até crimes de roubo. O arguido, com apenas 35 anos de idade, já sofreu múltiplas condenações, nas quais se incluíram outras penas de prisão suspensas na sua execução. Revela o arguido uma personalidade tendencialmente criminosa, não sendo capaz de reger a sua vida de modo conforme ao direito. E isso mesmo resultou também da postura que assumiu durante a sua audição, desvalorizando as condenações sofridas. Se ambas as condenações se reportassem a atos isolados, talvez o desfecho deste processo pudesse ser diferente. Mas quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, não é, de todo, isso que se verifica. Todo o cenário descrito demonstra que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam ser alcançadas, invalidando definitivamente o juízo de prognose favorável que ditou a suspensão da execução da pena de prisão. Encontra-se assim frustrada a satisfação das exigências de prevenção geral e especial, que determinaram a suspensão da execução da pena de prisão. Extinguir a pena de prisão em que o arguido foi condenado seria incutir-lhe a convicção de que há sempre mais uma oportunidade para delinquir, suscitando-lhe um sentimento de impunidade que obstaria ao comportamento que se pretende que o arguido venha a adotar no futuro, o de respeito e cumprimento pelas regras jurídicas que regem a sociedade. Em face destas considerações, é convicção do Tribunal que existe motivo para revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido e determinar o seu efetivo cumprimento. “A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado” – cfr artigo 56.º, n.º 2 do Código Penal. A pena de prisão efetiva não superior a dois anos pode ser executada em regime de permanência na habitação, com recurso a meios técnicos de controlo à distância, quando o tribunal conclua que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, como resulta do artigo 43.º, n.º 1 do Código Penal. Entendeu o Tribunal da Relação de Évora, no seu Acórdão de 24.09.2019 que “revogada a suspensão da pena de prisão em medida não superior a 2 anos, o tribunal deve ponderar a aplicação do RPHVE”. In casu, a pena de prisão aplicada foi de 2 anos e 4 de prisão, pelo que nem há que ponderar pela possibilidade da sua execução em regime de permanência na habitação. Pelo exposto, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão aplicada ao condenado AA e, consequentemente, determina-se o seu cumprimento efetivo. (…) * No dia 1 de setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, estando abrangidas as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. artigo 1.º e 2.º, n.º 1 daquele diploma). Relativamente ao perdão, prevê o artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto que: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. 2 - São ainda perdoadas: a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova. 3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena. 4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. 5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação. 6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores”. O perdão não terá lugar se estivermos perante as exceções previstas no artigo 7.º daquele diploma. Ora, no caso em apreço o arguido foi condenado por um dos crimes elencados nas exceções ao benefício do perdão e da amnistia – crime de violência doméstica – previsto na subalínea ii), da alínea a), do n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. Pelo exposto, decide-se não conceder o perdão da pena de 2 anos e 4 meses de prisão, aplicada ao arguido AA. Notifique.» * IV. FUNDAMENTAÇÃO Como acima se referiu, a questão que vem colocada no recurso é a de saber se o Tribunal a quo, ao ponderar a revogação da suspensão de execução da pena de prisão em que o arguido fora condenado, avaliou devidamente todos os elementos em presença ou se incorreu em erro de julgamento, ao decidir como decidiu. Preliminarmente, nota-se que invoca o recorrente a nulidade da decisão, por falta de fundamentação (sem enquadramento legal), assim como o vício da “insuficiência para a matéria de facto dada como provada” previsto na alínea a), do n.º 2, do art. 410.º, Cód. Processo Penal. Não obstante, limita-se a invocar vícios e preceitos sem tratar de aduzir razões em que estes possam encontrar efetivo enquadramento. Da motivação resulta que está em causa a discordância do recorrente quanto aos factos e circunstâncias mencionadas na decisão e em que o Tribunal a quo fundou a revogação da suspensão da pena. Trata-se de questão de direito, a que é estranha a invocação dos vícios elencados no art. 410.º, do Cód. Processo Penal, referentes ao juízo da decisão final quanto à matéria de facto. E devendo a decisão que revoga a suspensão de execução da pena, obviamente, ser fundamentada, não se descortina o motivo pelo qual o recorrente entende padecer a proferida nos autos de insuficiência que gere nulidade. A decisão recorrida permite conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos). O recorrente percecionou os fundamentos e sentido da decisão, de que discorda. Mas dizer-se que a revogação da suspensão não encontra suficiente enquadramento nas circunstâncias que a decisão invoca não é o mesmo que dizer que aquela padece de nulidade por falta de fundamentação! Nem se perceciona quais sejam as graves contradições, inexatidões e imprecisões de que a decisão padece, o que, mais uma vez, vem alegado e não deviamente fundamentado. O recorrente, claramente, confunde vícios e conceitos legais. Vejamos, na parte relevante. Sustenta o recorrente, em suma, não ter infringido o plano de reinserção social, ter sido condenado por crimes de distinta natureza e não poder o Tribunal a quo atender a circunstâncias que já se verificavam no momento da condenação (antecedentes criminais registados). No que se reporta à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o art. 56.º do Código Penal, que: “1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. 2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.” A execução deste regime é processualmente regulamentada nos arts. 494.º e 495.º do Cód. Processo Penal. Está em causa, nos presentes autos, o facto – não contestado em recurso e comprovado nos autos – de o arguido ter cometido, no período da suspensão da execução da pena, novos crimes, pelos quais veio a ser condenado, por decisões transitadas em julgado, nomeadamente em pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de crime de tráfico p. e p. pelo art. 21.º, do D.L. 15/93, de 22/1. Podemos admitir, como parece fazer o Tribunal a quo, que o recorrente cumpriu o regime de prova determinado na decisão de suspensão, concluindo o programa dirigido a agressores de violência doméstica, ainda que o tenha feito após o prazo de suspensão (que terminava em 11/4/2020). Atendendo às dificuldades inerentes às restrições impostas pela situação de Pandemia Covid-19 e à circunstância de o Tribunal conceder ao recorrente a oportunidade para concluir aquele programa, na prática foi prorrogado o prazo de suspensão, concluindo o programa com avaliação positiva. Mas neste período, como ressalta da decisão, o arguido não se limitou ao ato isolado que determinou a condenação pela prática de crime de condução sem habilitação legal, mas dedicou-se à atividade de tráfico entre 2017 e até dezembro de 2020, pela qual também veio a ser condenado e em pena de prisão efetiva. Ou seja, no período de suspensão e acompanhado pela DGRSP, o recorrente mantinha prática ilícita de relevante desvalor. Podendo, com benevolência, dar por cumprido o regime de prova determinado como requisito da suspensão, há que ponderar se o cometimento dos crimes, em particular o de tráfico de estupefacientes, no decurso do período de suspensão é reveladora de que as finalidades que estavam na base da escolha de medida não detentiva não puderam, por meio dela, ser alcançadas (n.º 1, al. b) do art. 56.º do Código Penal). A nosso ver, a resposta não pode deixar de ser positiva. Os crimes pelos quais o recorrente foi condenado foram cometidos no período de suspensão da pena e foi-lhe aplicada, pela prática do crime de tráfico, pena de prisão efetiva, que cumpre. A circunstância realçada pelo recorrente – de os crimes cometidos no período de suspensão não serem da mesma natureza – reveste escassa importância. Na base da opção pela suspensão provisória do processo está um juízo de prognose de comportamento normativo, ou seja, de atuação conforme ao direito e não apenas de não repetição da conduta pelo qual foi condenado. Após a condenação e durante o período de suspensão, o recorrente tratou de demonstrar que aquele juízo não era fundado, pois voltou reiteradamente a delinquir, vindo a ser condenado em pena de prisão efetiva. A revogação da suspensão da execução da pena não constitui, em caso algum, um efeito automático quer da condenação pela prática de crime no período da suspensão, quer do não cumprimento dos deveres ou regras de conduta e do plano de reinserção social, importando sempre avaliar se o comportamento posterior do condenado demonstrou, de forma irremediável, que as finalidades preventivas que estavam na base da suspensão não puderam ser alcançadas, sendo a decisão de revogação a última ratio (esgotadas as possibilidades conferidas pelo art. 55.º do Cód. Penal). Mas, voltando ao caso em apreço, é manifesto que outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal, inexistindo fundamento que justificasse a prorrogação da suspensão. A conduta posterior do recorrente, que desenvolveu atividade de tráfico durante todo o período da suspensão da pena imposta nestes autos, não tem ocupação laboral e se encontra em cumprimento de pena, evidencia que as finalidades preventivas que suportaram a decisão de suspensão da execução da pena estão irremediavelmente comprometidas. Estamos perante crime grave, incluindo no conceito de criminalidade altamente organizada (art. 1.º, al. m), do Cód. Processo Penal), onde são prementes as necessidades de prevenção geral, praticado durante relevante período temporal. O recorrente, na verdade, encarregou-se de demonstrar, à saciedade, que a expectativa do Tribunal a quo, o juízo de prognose em que assentou a decisão de que a simples censura do facto e ameaça da pena seria suficiente para salvaguardar as finalidades de prevenção, era, na verdade, infundada, deixando claro não ser capaz de manter uma conduta conforme ao direito. Como ressalta da decisão recorrida, o recorrente revela manifesta dificuldade em reconhecer o desvalor da sua conduta e revela ausência de interiorização da pena, ausência de juízo crítico e persistência nos comportamentos ilícitos, desperdiçando a oportunidade que lhe foi concedida aquando da condenação (pese embora os antecedentes criminais, incluindo pela prática de crimes de roubo). É patente nas declarações prestadas, que o recorrente não tem real noção das imposições decorrentes da pena em que foi condenado nos presentes autos, nem tem consciência da gravidade da atividade de tráfico que manteve (dizendo “não ser nada de mais” e justificando-a com as dificuldade decorrente da Pandemia que apenas surgiu em 2020). Não mostra qualquer sensibilidade, ao contrário do alegado, pelas penas impostas e não se percebe de onde retira a conclusão que manteve um percurso positivo após a reclusão (sem prejuízo de a mesma pode estar a surtir efeito ressocializador). Nem explica o recorrente, que cumpre pena de prisão, quais sejam as profundas implicações na vida familiar e social, que possam advir do cumprimento da pena efetiva imposta nos presentes autos. Posto isto, é manifesto que só a reclusão do recorrente permitirá o seu acompanhamento e a salvaguarda do cometimento de outras situações criminais, pois não ocorrem razões ponderosas aptas a afastar as prementes necessidades de prevenção geral e especial que apontam para o cumprimento de pena de prisão efetiva. Em suma, não há razões para considerar que a expectativa de que o arguido seria capaz de, em liberdade, manter um comportamento conforme ao direito e aos valores que regem a convivência em sociedade, não esteja irremediavelmente comprometida. Antes temos como certa a falência da prognose de que o arguido beneficiou, atentas as circunstâncias que se deixaram descritas e que demonstram ter o recorrente desbaratado a oportunidade que lhe foi concedida pela pena de substituição, que manifestamente não interiorizou. Em conclusão, estando plenamente verificado o circunstancialismo previsto no art. 56.º, n.º 1, al. b) do Cód. Penal, não merece censura o despacho recorrido ao decidir a revogação da suspensão da execução da pena de prisão decretada ao recorrente. * Por último, não se alcança motivo pelo qual possa ter sido violado o art. 18.º da CRP, o que, afirmado, não vem fundamentado. Assim, sem necessidade de mais considerações, é de concluir pela improcedência do recurso. * V. DECISÃO: Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso do arguido AA, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc’s. * Évora, 16 setembro de 2025 Mafalda Sequinho dos Santos Jorge Antunes Edgar Gouveia Valente |