Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
51/23.7GTABF.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: AMNISTIA
ÂMBITO
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O crime de condução de veículo em estado de embriaguez está excluído da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023, de 02/08, independentemente da fase processual em que os autos respetivos se encontrem.
II - O artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, muito embora utilize a expressão “condenados” (“não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei ... os condenados por ... crimes … de condução de veículo em estado de embriaguez”), exclui a aplicação da amnistia em causa a todos os agentes que forem autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tenham, ou não, sido já “condenados”.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO

A –
No âmbito do processo nº 51/23.7GTABF que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 3, por despacho de 08 de Outubro de 2023, foi declarado extinto, por amnistia, o procedimento criminal contra a arguida J, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º nº 1 do Código Penal.

Inconformado com esta decisão o Ministério Público da mesma interpôs recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:
1. O presente recurso é interposto do despacho que aplicou a amnistia ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, na interpretação de que o art. 7º, nº 1, al. d), ponto ii) da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, com a expressão condenados só exclui o perdão de penas, extinguindo o procedimento criminal contra a arguida;
2. A Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto veio instituir o perdão e amnistia de algumas infracções e penas por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, mas como medida excepcional de clemência que é, concedida pelo Estado, visa sempre o respeito pelos princípios do Estado de Direito, aplicando-se apenas a situações que se consideram de menor gravidade;
3. Isso mesmo teve o legislador em consideração, não só quando balizou no tempo os ilícitos, fixando que sua prática até às 00h00 de 19 de Junho de 2023, mas também, a idade do infractor/autor/condenado à data da prática dos factos, 30 anos- cfr. artigo 2º da referida Lei e também quando estabeleceu limites, quer no tocante ao perdão de penas, conforme decorre do artigo 3º, quer no tocante às infracções penais amnistiáveis, fixando o limite máximo da pena em 1 ano de prisão ou 120 dias de multa, previsto no seu artigo 4º;
4. Foram tomadas várias opções legislativas quanto ao tipo de criminalidade visada, considerada de menor gravidade, mas mesmo dentro destas molduras penais mais baixas, foram excluídos determinados ilícitos por se considerar que não obstante a sua moldura penal abstracta ou sanção/pena concreta, atento o tipo de ilícito que subjaz, são mais gravosos e as necessidades de prevenção são muito superiores, não podendo ser objecto de clemência, como é o caso de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal;
5. Corresponde a uma necessidade de política criminal dada a elevada sinistralidade que ocorre na rede viária nacional, sendo premente a prevenção quer geral que especial, sendo de realçar que a condução sob o efeito do álcool, como contra-ordenação e como crime, nunca foi contemplada em qualquer lei de amnistia, o que sem dúvida revela a intenção do legislador em não classificar como de pouca gravidade tal comportamento estradal e uma continuidade na opção e pensamento legislativo;
6. Assim, só podemos entender a utilização da expressão “condenados”, na no art. 7º, nº 1, al. d), ponto ii) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, como imprecisa, uma escolha menos feliz, antes utilizada em sentido lato e genérico, mas cuja exclusão se refere quer a aplicação do instituto da amnistia quer do perdão;
7. O legislador não foi preciso na escolha de linguagem técnico-jurídica, devendo fazer-se uma interpretação declarativa do pensamento legislativo, conforme com o art 9º do Código Civil, atendendo também ao elemento sistémico, teleológico, histórico e de continuidade da Lei;
8. Ademais, seria incongruente e ilógico, proibir-se a sua aplicação aos ilícitos contra-ordenacionais e o perdão de penas e permitir-se a aplicação do instituto da amnistia aos ilícitos que ainda não se encontrem julgados ou condenados;
9. Pelo que, não pode excluir-se a aplicabilidade da referida exclusão/proibição da amnistia aos agentes/autores/arguidos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, sendo que a interpretação levada a cabo no douto despacho recorrido é desconforme à letra da lei, ao pensamento legislativo, a princípios de coerência e, também, ao seu elemento sistémico, teleológico e histórico;
10. Destarte, deverá o presente despacho ser revogado, porquanto com a sua interpretação violou o Tribunal a quo, os critérios contidos nos arts. arts. 2º, nº 1, 4º e 7º, nº 1, al. d), ponto ii) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto e art. 9º do Código Civil;
11. Deve, pois, tal decisão ser revogada e determinar-se o prosseguimento dos autos para julgamento, seguindo os seus ulteriores termos.
Assim decidindo, farão V. Exas a costumada Justiça.


Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto, conforme melhor resulta do seu parecer firmado nos autos.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:
- Impugnação do despacho proferido por violação do artigo 7º, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, determinando-se o prosseguimento dos autos por não haver lugar à aplicação da Lei da Amnistia.

2 - Apreciando e decidindo:
Do despacho proferido em 08-10-2023, ora recorrido, que se transcreve, resulta:
“Através da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto o legislador procedeu ao perdão de diversas penas e à amnistia de algumas infracções criminais.
A amnistia concedida é aplicável a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime (art. 2º nº 1 do diploma legal).
No que importa ao caso dos autos, lê-se no art. 4º da referida lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Segundo o art. 128º nº 2 do Código Penal a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
O presente procedimento criminal corre por conta de um crime de condução em estado de embriaguez, ilícito punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (art. 292º nº 1 do CP).
Os factos em causa nos presentes autos datam de 04-02-2023 (fls. 30).
Nessa data a arguida contava 30 anos de idade.
Por fim, o caso dos autos não se enquadra, a nosso ver, em qualquer das excepções previstas no art. 7º da Lei nº 38-A/2023.
Com efeito, o art. 7º nº 1 al. d) § ii) exclui a aplicação da amnistia concedida naquela Lei 38-A/2023, no que concerne a casos de condução de veículo em estado de embriaguez, nos seguintes termos:
Artigo 7º
Exceções
1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
(...)
d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:
(...)
ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291º e 292º do Código Penal.
Da norma decorre pois (no que importa ao caso) que da amnistia (instituto que, de acordo com o supramencionado art. 128º nº 2 do CP, é aplicável tanto a condenados como a casos em que não houve ainda condenação) fica excluído quem já tenha sido condenado pelo crime em causa — não tendo havido condenação não há exclusão de aplicação da amnistia.
Contra o que acaba de concluir-se antecipamos pelo menos alguns argumentos.
Desde logo, a solução aparenta gerar alguma incongruência lógica, amnistiando-se certos arguidos e outros não consoante, apenas, aquilo que, à revelia da sua actuação foi a marcha processual (ou, até mesmo, podendo beneficiar da amnistia quem tenha um contributo obstaculizante do processo). O argumento não convence.
Com efeito, esta diferença é uma decorrência inerente à natureza dos institutos da amnistia e do perdão em causa. Pense-se, por exemplo, no caso de um arguido que, por causa de uma marcha processual mais célere, já expiou integralmente uma pena de prisão por conta de um crime que depois é amnistiado, e um arguido que por qualquer motivo (estar foragido, por exemplo) não iniciou o cumprimento de uma pena igual a vê, agora, ser apagada do ordenamento em virtude da amnistia.
Parece desigual, mas, dada a sua natureza e o modo como funciona, é consequência inevitável de toda e qualquer amnistia (e, mutatis mutandis, também de qualquer perdão de penas).
Um outro contra-argumento de apelo à congruência lógica nos ocorre: o legislador amnistiou crimes aos quais, aplicando as regras de exclusão do art. 7º, não perdoaria a pena? Fará sentido? Foi essa a solução da lei? A resposta parece ser, numa primeira abordagem, negativa.
Mas a verdade é que o disposto noutras normas da Lei nº 38-A/2023 leva incontroversamente à conclusão que em certos casos esta mesma foi escolha do legislador.
Pense-se, por exemplo, em todos os casos de concurso de vários crimes amnistiados em que o condenado sofre, em cúmulo jurídico, pena de 130 dias (ou mais) de multa, ou prisão superior a um ano.
No primeiro caso (multa), de acordo com a Lei nº 38-A/2023, são amnistiados todos os crimes, e por isso extinguem-se por amnistia todas as penas — mas, se não intercedesse a amnistia, o legislador não permitiria qualquer perdão à pena (art. 3º nº 2 al. a) e nº 4 do diploma).
No segundo caso (prisão), extinguem-se também in totum as consequências penais em virtude da amnistia — mas se não operasse a amnistia a prisão única do concurso de crimes só seria perdoada até um ano.
Ou seja, a conclusão inelutável é precisamente essa: em certos casos a Lei nº 38-A/2023 amnistiou os crimes, mas nem por isso aquela lei permitiria o perdão (integral, no caso da prisão) das respectivas penas. Ou seja, o que à partida seria um argumento convincente, por a solução oposta aparentar levar a um resultado “contraditório”, acaba desarmado pela constatação de que essa mesmo foi, incontroversamente, a linha de raciocínio escolhida pelo legislador para certos casos.
Contra o que se conclui pode arguir-se, por outro lado, que o legislador terá usado a expressão condenados apenas porque usou de “pouco cuidado” no rigor legislativo, pois na verdade quereria referir-se a todos os casos que se reportem aos crimes excluídos independentemente do momento processual da acção penal.
Não somos insensíveis a tal argumento, mas em nosso entender o mesmo também não colhe.
Ab initio, a palavra condenados nem sequer é aquela que nos parece a mais natural, em termos de linguagem, que seria usada se fosse essa a intenção do legislador.
Querendo-se excluir da amnistia os autores de todos crimes do art. 7º parece-nos que seria uma escolha de linguagem mais natural ter-se usado, precisamente, a palavra autores; ou querendo-se excluir todos os crimes mencionados no art. 7º parece-nos que seria mais natural o legislador ter consagrado algo de semelhante a “O perdão a amnistia previstos na presente lei não têm aplicação aos crimes de...”.
Todavia, parece-nos que para interpretar a letra da lei é desnecessário recorrer a estas considerações, que tanto de subjectivo têm. E assim porque se o legislador em várias das alíneas do art. 7º usou a expressão condenados noutras não usou essa expressão: as alíneas j), k) e l) daquele art. 7º não mencionam condenados. Mais, na al. l) o legislador escolheu precisamente a palavra autores (em vez de condenados) para esclarecer quem fica excluído do perdão e amnistia.
Deste contraponto extrai-se que, tanto quanto resulta do teor do art. 7º, a opção do legislador pela palavra condenados foi consciente e intencional.
Ainda um outro argumento contrário se suscita: fará sentido que o legislador tenha expressamente excluído da amnistia os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo (al. l) do art. 7º) e não exclua os autores de um crime com contornos semelhantes?
Amnistia-se a infracção maior (o crime) mas não a menor (a contraordenação)?
Também não somos insensíveis ao argumento e diremos mesmo que, não fosse o que se assinala em seguida, o subscreveríamos.
Sucede que a opção de se amnistiar o crime e não a contraordenação é, no caso da Lei 38-A/2023, a regra: em todos os casos de crimes que foram amnistiados em que exista comportamento relacionado ou semelhante (mas menos grave) punido como mera contra-ordenação que tutele os mesmos bens jurídicos, o legislador amnistiou o crime mas não a contraordenação.
Com efeito, a Lei 38-A/2023 amnistiou todas as infracções penais (salvo as excluídas no art. 7º) cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa e não amnistiou nenhuma contraordenação (apenas perdoou sanções acessórias de certas contraordenações).
Em decorrência, pense-se em casos de infracções de regras de segurança rodoviária: o crime (comportamento mais grave) de condução sem habilitação legal do art. 3º nº 1 do Decreto-lei nº 2/98 foi amnistiado, mas uma mera contraordenação leve (comportamento menos grave) correspondente, por exemplo, a um excesso de velocidade já não o foi.
E (entrando já no campo de abrangência do perdão concedido na lei em causa) resultados semelhantes a esta regra não se verificam apenas no contraponto entre contraordenações e crimes.
O mesmo sucede com crimes, mais graves, que exigiram a aplicação de prisão substituída ou suspensa, cujas penas são perdoadas quando não são perdoadas multas, aplicadas por infracções menos graves, caso a multa seja superior a 120 dias (art. 3º nº 2 da Lei 38-A/2023).
Do que se conclui o seguinte: o argumento de que não fará sentido lógico ter-se amnistiado o crime, mas não uma contraordenação relacionada ou semelhante seria, em circunstâncias habituais, um argumento forte contra o entendimento que perfilhamos.
Todavia, na economia da Lei 38-A/2023 esse argumento não nos convence, uma vez que esta lei adoptou precisamente, e propositadamente, essa solução como regra.
Não nos cabe, evidentemente, dizer se a escolha do legislador foi melhor ou pior, mas parece-nos que a constatação seguinte será insofismável: dentro dos pressupostos dos seus arts. 4º e 7º, a Lei 38-A/2023 amnistiou todos os crimes e não amnistiou nenhuma contraordenação que tutele os mesmos bens jurídicos.
Assim sendo, não nos parece que a teleologia inerente àquela lei leve à conclusão de que deve também considerar-se excluído do perdão quem não é excluído pela letra da lei. Ou seja, uma vez que a teleologia que perpassa a lei é no sentido de amnistiar crimes e não amnistiar contraordenações, entendemos que não pode concluir-se no sentido de que, ao contrário dessa solução geral, afinal está excluído da amnistia quem a letra da lei não exclui.
Em conclusão.
O art. 4º da Lei 38-A/2023 estatui que são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
O crime em causa nos autos é punido com pena não superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.
Do art. 7º nº 1 do diploma decorre que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos naquela lei (...) no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por (...) crimes de (...) condução de veículo em estado de embriaguez.
A arguida não foi julgada nem condenada pelo crime em causa nos autos.
Em decorrência, o caso dos autos não está excluído, na letra da lei, da amnistia concedida.
Do mesmo modo, não vemos que, considerando o restante teor e a teleologia da lei em questão, o caso dos autos deva, sem apoio na letra da lei (letra essa que aparenta ter sido escolhida propositadamente) considerar-se excluído da amnistia.
Pelo que supra fica exposto, declaro extinto, por amnistia, o procedimento criminal dos presentes autos”.

O despacho proferido e ora recorrido reporta-se à interpretação do artigo 7º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, no sentido da exclusão ou não no âmbito da amnistia e perdão, dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou, dos arguidos condenados pela prática de tal tipo legal de crime.
A questão neste Tribunal da Relação de Évora, tem sido, tanto quanto é do nosso conhecimento pessoal, de jurisprudência consolidada, no sentido dos Acórdãos proferidos nos Processos nº 330/22.0GTABF.E1, em que foi relatora a Juiz Desembargadora Laura Maurício e nº 131/23.9GTABF.E1, em foi relator o Juiz Desembargador Renato Barroso, ambos publicados em http://www.dgsi.pt.
Por tal, nos termos que se acolhem na íntegra e que, por isso, com a devida vénia, agora se reproduzem (transcrição do Acórdão proferido no Processos nº 330/22.0GTABF.E1):
“Em sede de interpretação de normas há que ter em conta o dispõe o artigo 9º do Código Civil:
“1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
A letra do artigo 7º, da Lei nº 38-A/2023, de 02 de Agosto não é suficiente para resolver os problemas de interpretação.
Assim sendo, é necessário recorrer aos demais elementos de interpretação mencionados no artigo 9º, do Código Civil.
Assim, além do teor verbal, hão de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3ª ed., p. 111.
Nesta sequência, entendemos que releva o facto de o legislador ter decidido sistematicamente prever nos artigos nos artigos 3º a 6º os casos em que podia ser aplicada a amnistia e o perdão e, de seguida, sob a epigrafe “Excepções”, estabelecer no artigo 7º os casos em que não podem ser aplicadas qualquer daquelas medidas de clemência.
No nº 1, da citada disposição legal, o legislador elenca os casos que “não beneficiam do perdão e da amnistia” previstos naquela lei, pretendendo claramente com tal expressão excepcionar a amnistia em todos esses casos, apesar de utilizar a expressão “condenados” em vez de, por exemplo, “autores” ou de simplesmente enumerar os crimes em causa.
No nº 2 o legislador diz que as “medidas previstas” na presente lei (amnistia e perdão) “não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções”.
E, por sua vez, no nº 3, refere que “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos”. O legislador pretendeu excluir os crimes elencados no artigo 7º, ressalvando que tal prejudica a aplicação da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes.
É também ter necessário em consideração os crimes excluídos no artigo 7º, que acima enumeramos (em particular quanto à amnistia), donde resulta a intenção clara de excluir a aplicação da amnistia mesmo a crimes puníveis com prisão não superior a um ano quando estão em causa necessidades de prevenção elevadas (por ex., crime de condução de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, crime de dano contra natureza, crime de poluição, respectivamente previstos nos artigos 292º, nºs 1 e 2, 278º, nº 3, 279º, nº 5, do Código Penal, crimes praticados contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções), crimes informáticos (acesso ilegítimo, previsto no artigo 6º, nºs 1 e 2, da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro), crimes ligados ao fenómeno desportivo (crime de participação em rixa no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, crime de invasão da área do espetáculo desportivo, previstos nos artigos 30º e 32º, nº 2, da Lei nº 39/2009, de 30 de Julho) ou crimes em praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis (crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável e crime de aliciamento de menores para fins sexuais, previstos nos artigos 172º, nº 2 e 176º-A, do Código Penal).
No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.
Nesta sequência, e no que concerne ao crime de condução em estado de embriaguez que aqui nos ocupa, já anteriormente, nomeadamente aquando a aplicação da Lei nº 29/99, de 12-05 (Amnistia 1999), o legislador excluiu a aplicação da amnistia e do perdão aos infractores “ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes”
Por outro lado, não faria sentido que, no âmbito da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, o legislador excluísse da amnistia a contra-ordenação relativa à condução sob o efeito do álcool (com uma taxa compreendida entre 0,5 g/l e 1,19 g/l de álcool no sangue) e o perdão da pena aplicada pela prática deste crime, punido com uma pena de até 1 ano de prisão ou 120 dias de multa, cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-06-1999, processo 9941072: “O crime do artigo 292º do Código Penal (condução de veículo automóvel sob a influência do álcool) não se encontra abrangido pela Lei da amnistia nº 29/99, de 12 de Maio”. E, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-12-1999, Processo 2752/99: “1. Do texto da al. c), do nº 1, do art. 2º, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, decorre claramente que o legislador excluiu os benefícios concedidos (amnistia e perdão) aos infractores do Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena. 2. Certo é que o crime do art. 292º, do Código Penal, é inquestionavelmente um crime rodoviário, na medida em que visa tutelar ou proteger a segurança rodoviária, contra factos e estados de perigosidade relativos ao exercício da condução de veículo rodoviário, como aliás, claramente resulta da respectiva epígrafe - condução de veículo em estado de embriaguez - sendo que a circunstância de se encontrar inserido na lei substantiva penal não lhe retira a natureza de infracção rodoviária, consabido que o legislador tendo optado por sancionar a generalidade das infracções de trânsito nos quadros do direito de mera ordenação social, qualificando como contra-ordenações as infracções que anteriormente constituíam transgressões, remeteu para o Código Penal e legislação avulsa os comportamentos merecedores de qualificação de crime. 3. Assim, é evidente que o arguido, enquanto autor material de um crime rodoviário, excluído está dos benefícios concedidos pela Lei n.º 29/99 (amnistia e perdão).”
Apenas mais duas ou três notas em complemento do que, muito acertadamente, se afirmou no aresto atrás transcrito.
A primeira, para relembrar que a Lei nº 38-A/2023 de 02/08, como qualquer lei de amnistia é uma decisão de clemência do próprio Estado e que, visando sempre o respeito pelos princípios do Estado de Direito, apenas se aplica a situações que se consideram de menor gravidade, como se vê, desde logo, pelos limites temporais fixados à sua aplicação e, principalmente, à idade do infractor e aos reduzidas molduras penais que dela podem beneficiar.
Depois, para notar que mesmo dentro das penas mais reduzidas, foram excluídos determinados ilícitos por se considerar que, ainda assim, as exigências de prevenção geral que deles decorrem demandam a sua exclusão do âmbito de aplicação da lei, como é caso, evidentemente, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo Artº 292º do CP, atenta a elevada sinistralidade que grassa nas nossas estradas.
Na esteira desse entendimento, correspondente a situações que demandam fortes exigências de prevenção geral, assim se satisfazendo o tecido social, é que o ilícito de condução sob o efeito do álcool, seja como contraordenação, seja como crime, nunca foi contemplado em qualquer lei de amnistia, o que, sem qualquer dúvida, é bem revelador da intenção do legislador em não qualificar tal crime como de pouca gravidade e merecedor de ser enquadrado em diplomas de clemência como é uma lei de amnistia.
Por outro lado, e sendo evidente – atenta a habitualidade com que tal acontece – que o legislador, uma vez mais, não foi cuidadoso e, muito menos, rigoroso, na linguagem técnico-jurídico que utilizou na elaboração do diploma em causa, não deve o julgar ficar preso a uma interpretação literal da norma, sob pena de aplicar a lei no sentido contrário ao que com ela se prendia, respeitando, assim, uma continuidade no pensamento legislativo, bem revelador de uma clara continuidade no tratamento da questão em causa quando se trata de crimes estradais.
A isso nos obriga o disposto no art. 9º do C. Civil, para que da interpretação acolhida não se extraem situações lesivas daquilo que se pensa ser o pensamento do legislador, mas que não soube ser traduzido na letra da lei, assim se evitando soluções contraditórias e irrazoáveis, como seria o de se proibir a aplicação da amnistia aos ilícitos contraordenacionais e o perdão das penas e permitir-se a aplicação deste instituto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, desde que o arguido ainda não tivesse sido condenado.
(…)
Assim sendo, entende-se que a interpretação levada a cabo no despacho recorrido é desconforme à letra da lei e contrário aos elementos sistemático, teológico e histórico que devem revestir qualquer interpretação legislativa e que impõem a aplicabilidade da exclusão/proibição da amnistia aos agentes/autores/arguidos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art. 292ª do Código Penal”.

Por tudo o exposto, procede o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas, pela procedência do recurso.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, a substituir por outro que determine o prosseguimento dos autos, seguindo os seus ulteriores termos.

Sem custas, pela procedência do recurso.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 21-05-2024
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges
Filipa Costa Lourenço