Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
11/23.8GFEVR.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO
ELEMENTOS DO TIPO DE ILÍCITO
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A descrição típica do ilícito de violência doméstica, constante do artigo 152.º CP, dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito para além do espartilho que a respetiva inserção sistemática no código indicia, na medida em que o mesmo abrange também, expressis verbis, as limitações à liberdade e as
ofensas sexuais, tutelando igualmente a reserva da intimidade da vida privada e a honra.

II. O bem jurídico protegido reconduz-se à integridade pessoal e física das pessoas, talqualmente a caracteriza a Constituição, nos seus artigos 25.º e 26.º.

III. O crime de violência doméstica visa punir as condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam como um exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a intimidade, a liberdade ou a honra do outro, caracterizado nas mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima. Entretecendo-se este referente axiológico com questões de natureza cultural, de mentalidades e de índole socioeconómica.

IV. O tipo objetivo tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

V. Sendo o elemento subjetivo composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), não se exigindo qualquer elemento subjetivo específico.

VI. Na avaliação das circunstâncias e dos comportamentos do arguido importará sempre atentar na «respetiva situação ambiente e da imagem global do facto».

Decisão Texto Integral: I – Relatório
a. No ….º Juízo (1) Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum, com tribunal singular, de AA, nascido a …/…/1978, residente em …, …, com os demais sinais dos autos, a quem a acusação imputava a autoria, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, als. a) e c), § 2.º, al. a) do Código Penal (CP).

O arguido contestou, alegando entre o mais a exceção do caso julgado relativamente a parte da factologia acusanda, tendo também apresentado provas.

O caso julgado relativamente a parte da matéria de facto alegada na acusação veio a ser declarado por despacho judicial proferido a 10/7/2023, na audiência de julgamento.

Ainda na audiência a Mm.a Juíza suscitou o incidente da alteração da qualificação jurídica dos factos, preconizando que os mesmos poderão integrar a prática de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, als. a) e c) e § 4.º e 5.º CP.

A final o tribunal proferiu sentença condenando o arguido como autor de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, als. a) e c), § 4.º e 5.º CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspendendo a execução da mesma por igual período, com regime de prova e sujeita ao dever de o arguido continuar o tratamento ao consumo excessivo de bebidas alcoólica, bem assim como ao dever de frequentar programa de prevenção da violência doméstica.

Mais condenou o arguido na pena acessórias de afastamento e proibição de contactos com a vítima, durante todo o período da suspensão da execução da pena de prisão, com vigilância eletrónica, por seis meses; afastamento e proibição esses que poderão ceder exclusivamente para cumprimento do regime fixado para o exercício das responsabilidades parentais do filho menor BB.

b. Inconformado com esta decisão recorreu o Ministério Público, rematando a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

«1. Com base no depoimento de CC, registado no ficheiro 20230710145520_1543792_2870787, no trecho de 13m52s a 14m35s, deve concretizar-se que a factualidade provada no ponto 9 da fundamentação da sentença ocorreu em três ocasiões distintas.

2. Os factos provados nos pontos 7 e 9 a 12 não têm gravidade ou intensidade ofensiva suficientes para lesarem o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica – a dignidade humana, a saúde física, psíquica, emocional ou moral no âmbito de determinadas relações interpessoais – e não resulta de qualquer trecho do depoimento da queixosa, registado no ficheiro antes identificado, ter sido lesado o bem jurídico protegido.

3. Assim, por inaptidão lesiva dos factos materiais provados e falta de suporte probatório, a sentença enferma de erro na apreciação da prova na parte em que julgou provado no ponto 12. «….sabia….que a acossava, abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, que lhe provocava grande sofrimento psíquico….».

4. Em conformidade, deve eliminar-se o trecho transcrito da fundamentação de facto da sentença.

5. A sentença recorrida violou o disposto no art. 152.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP, porquanto os factos praticados pelo arguido não são enquadráveis na noção de maus tratos psíquicos típicos do crime, não têm potencialidade ou adequação lesiva e não lesaram o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

6. Os factos provados nos pontos 7 e 9, apenas são passíveis de integrar crimes de injúria, ps. e ps., no art. 181.º, do CP, para cujo procedimento a legitimidade do Ministério Público é dependente de constituição da ofendida como assistente e de dedução de acusação particular - cfr. arts. 188.º, n-º1, do CP, e arts. 48.º a 50.º, n.º 1, do CPP.

7. Portanto, no que concerne tais factos e crimes, o procedimento criminal é legalmente inadmissível, por ilegitimidade ao Ministério Público para o promover, e deve ser declarado extinto.

8. Da sentença não consta, como não constava da acusação, a adequação dos factos provados nos pontos 9 a 11 para prejudicar a tranquilidade pessoal e/ou a liberdade de determinação da queixosa, que tenham sido lesados tais bens jurídicos tutelados pelo crime de ameaça nem que o arguido tenha agido com consciência e vontade de os atingir.

9. Por isso que, tais factos não são passíveis de constituir o crime de ameaça p. e p. no art. 153.º, n.º 1, do CP nem outro tipo de crime.

10. A sentença recorrida violou as normas dos arts. 152-º, n-º1, als. a) e c), n-º2, al. a), e 188.º, n.º1, do CP, e dos arts. 48.º a 50.º, n.º1, do CPP.

11. Nesta conformidade, deve ser revogada a sentença impugnada, julgando-se a acusação totalmente improcedente e absolvendo-se o arguido.»

c. Admitido o recurso, o arguido respondeu aderindo à posição sustentada pelo recorrente.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição sustentada na 1.ª instância pelo recorrente.

e. No exercício do contraditório nenhuma resposta se apresentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). Em conformidade com esta orientação normativa, a motivação do recurso deverá especificar os fundamentos e enunciar as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir:

i) Erro de julgamento da questão de facto; e, ii) Qualificação jurídica dos factos.

2. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

«1. Em data não concretamente apurada, AA iniciou um relacionamento amoroso com CC, com quem, em novembro de 2000, começou a viver em comunhão de leito, mesa e habitação e com quem, em Abril de 2001, casou.

2. Em fevereiro de 2017, AA e CC fixaram residência na Rua …, em ….

3. Fruto desse relacionamento, AA e CC tiveram três filhos, DD, nascido a … de 2001, EE, nascida a … de 2003, e BB, nascido a … de 2017.

4. Em 2008, no interior da residência onde coabitavam, em …, depois de ter ingerido bebidas com álcool em excesso, AA agarrou e, fazendo força, puxou os cabelos de CC.

5. Ato contínuo, AA desferiu uma bofetada na face de CC.

6. Nessa mesma ocasião, no interior da residência onde coabitavam, AA disse a CC “és uma puta, uma ordinária, andas debaixo de todos, quando vou trabalhar já sei vêm cá homens ter contigo”.

7. Entre janeiro e agosto de 2022, em três ocasiões, no interior da residência onde coabitavam, depois de ingerir bebidas com álcool em excesso, AA disse a CC “és uma puta”, “ordinária”, “andas debaixo de todos”, “não me atendes o telefone, já estás deitada com o teu patrão”.

8. Entre julho e agosto de 2022, CC terminou o relacionamento amoroso que mantinha com AA e saiu da residência onde coabitava com o mesmo.

9. Entre setembro de 2022 e janeiro de 2023, em várias ocasiões, AA disse a CC “és uma puta e não voltas para mim porque já andas com outros” e “um dia vai haver sangue”.

10. Em 19/01/2023 AA enviou mensagens escritas a CC com o seguinte teor: “sabes k eu não desisti de ti assim vais acabar com os dois”, “sabes que para esse dado eu tenho muitos seumes”, “eu não te consigo ver com outra pessoa”, “Tu sabes o quanto eu gosto de ti mas assim”, “Tá a ficar muito complicado para a minha cabeça”, “Ver i saber o k já sei”, “Sabes o que o amor pode fazer”, “I aquele que eu sinto por ti”, “Acho k não é preciso dizer-te mais nada”, “Ainda por cima com a puta da vida k tó a levar”.

11. Em 21/01/2023 AA enviou mensagens escritas a CC com o seguinte teor: “se me troquares por esse tipo vai aver sengue”, “sangue”, “dás-me cabo da vida mss eu não quero saber”, “tu sabes k eu por ti posso fazer merda”, “é só eu saber ou ver”, “disseste k não precisavas de homem para seres feliz lembraste”, “e agora tas a fazer isso não me tens a mim”.

12. Ao agir da forma descrita, o arguido AA sabia que molestava a saúde física de CC, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e vida, que a acossava, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.

13. O arguido AA atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

14. O arguido admitiu a prática de todos os factos provados com exceção do puxão de cabelos referido em 4.

15. Mostrou-se arrependido e atribuiu os factos em parte ao consumo excessivo de álcool, dependência de que padece, embora com grande redução dos consumos há cerca de 8 meses e em tratamento desde a aplicação das medidas de coação (em 02/03/2023) que tem cumprido.

1. Do seu certificado de registo criminal nada consta.

2. Da ficha de avaliação de registo efetuada pela PSP resulta um risco classificado como Elevado.

3. Do relatório social para eventual determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, em conclusão, consta (3) :

... Presentemente, AA continua a viver com base no rendimento do seu trabalho, no valor base de 940€ mensais. Deste rendimento o arguido assegura o pagamento do valor da prestação do empréstimo bancário de aquisição da habitação, no valor de 159,85€, a prestação de alimentos ao filho menor, no valor de 100€ mensais, acrescido do valor das eventuais despesas de saúde e educação. Assume ainda as despesas domesticas num valor global de cerca de 200€ mensais, a prestação da aquisição de uma viatura no valor de 125,71€ mensais e de cerca de 180€ de combustível, para se deslocar diariamente para o seu local de trabalho, em …. São ainda reportadas prestações, relativas a dividas de comunicações, referentes ao período que antecedeu a separação do casal, de valor acima dos 1.000€, mas cujo plano de pagamento não foi exibido em sede de entrevista. De salientar que há cerca de sete meses AA iniciou uma relação de namoro, que se tem constituído como suporte emocional e suporte na reestruturação da organização quotidiana. No que respeita à presente situação jurídico-penal o arguido manifesta juízo de censura sobre o ilícito, a par de uma atitude, em parte desculpabilizante, por relação com as condutas incorretas que atribuí à vítima. A presente situação jurídico-penal provocou impacto nas condições de vida do arguido, designadamente pelo afastamento da família e em particular, do filho mais novo. Apos a separação do cônjuge AA permaneceu no meio em que sempre se movimentou, manteve o mesmo estilo de vida a que acresce a sua nova relação afetiva. Do apurado, não houve impacto no meio socio residencial, mantendo uma integração positiva a nível social, a par do cumprimento das medidas de coação aplicadas... Salientamos que iniciou o acompanhamento no CRI de …, em contexto de consultas de alcoologia, em 17/05/2023, ao qual vem dando seguimento. Também de acordo com informação apurada, junto da Equipe de Vigilância Eletrónica de Évora, a medida de afastamento tem sido cumprida sem quaisquer perturbações. Simultaneamente os OPC do local de residência informam não existirem novas ocorrências e ou indícios de carater criminal. Numa avaliação global consideramos que o arguido demonstra capacidade para cumprir qualquer medida que, eventualmente lhe venha a ser aplicada. Em termos conclusivos importa referir que AA, cresceu num meio sociofamiliar que lhe transmitiu regras e valores estimulantes face à aquisição de competências profissionais, facilitadoras da sua inserção social e profissional que lhe permitiu seguir um estilo de vida enquadrado e isento de fatores de risco. Porém, identificam-se fragilidades na relação de conjugalidade, que deram azo ao presente processo, pese embora não reconheça a totalidade da presente acusação, que desvaloriza, mas, no entanto, tem noção de dano e da sua responsabilidade pessoal. Tendo em conta a informação apurada, o arguido apresenta competências ao nível da responsabilização, consciencialização e orientação social, não sendo identificados comportamentos sociais de risco, condições facilitadoras para o cumprimento de medidas de carater probatório, caso venha a ser condenado e esse Tribunal assim o entenda.»

Tendo-se motivado esta decisão nos seguintes termos:

«Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados, o Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, respeitando o disposto no artigo 355.º do mesmo Código e os critérios da experiência comum e da lógica, e ainda:

- Auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido

- Autos de notícias, aditamentos e autos de inquirição

- Autos de transcrição de mensagens escritas

- Impressões de mensagens escritas

- Certidões dos assentos de nascimento

- Fotografias

- Auto de apreensão

- Auto de exame direto e avaliação

- Avaliação de risco (PSP)

- Relatório social para eventual determinação de sanção

- Certificado de registo criminal

E nas declarações quase confessórias do arguido, com base nas declarações por si prestadas em sede de 1.º interrogatório perante Juiz de Instrução Criminal, e com base nos esclarecimentos prestados, após, em audiência, sendo que contextualizou os factos com base em desentendimentos mantidos com a ofendida causados em parte pelo seu consumo excessivo do álcool e pelos ciúmes, problemática que julga estar mais controlada desde há cerca de 8 meses e desde o tratamento no CRI após março de 2023, em sequência da medida de coação aplicada.

Numa postura nervosa mas correta, e de arrependimento, é de considerar o reconhecimento do desvalor das condutas, não muito comum em situações como a presente.

O arguido negou apenas ter puxados os cabelos à ofendida, o que esta confirmou de forma absolutamente clara e sincera, tendo sido possível atribuir-lhe integral credibilidade, até pela conjugação de todos os demais factos.

Quanto à data dos factos provados em 4, 5 e 6 (e o não provado), reportámo-nos ao depoimento da ofendida, que lembrava com certeza que a filha tinha à data 5 anos (2008) e o arguido colocava os factos em 2010 mas sem certezas, o que não se estranha até pelo estado de alcoolizado em que se encontrava no momento dos factos.

Concretizou-se ainda as datas do envio das mensagens porque aquelas resultavam de prova documental.»

3. Conhecendo dos fundamentos do recurso

3.1 Do erro de julgamento da questão de facto

O recorrente manifesta a sua discordância relativamente ao julgamento sobre os factos alinhados nos pontos 9. e 12. Relativamente ao primeiro assinala não ter o mesmo sido integralmente confirmado pelo depoimento de CC; e quanto ao segundo por carecer de fundamento probatório! O recorrente não tem razão. Desde logo porque o arguido confessou os factos dos pontos 9. e 12; depois porque a referência da ofendida (quanto ao ponto 9.) - que se lembrou de três ocasiões distintas em que o arguido lhe dirigiu as imprecações ali constantes - não justifica, só por si, que se reduza o âmbito do facto afirmado. Por seu turno, relativamente ao ponto 12. dos factos provados, a mais do que vem dito, importa referir que nesse ponto afirma-se o conhecimento pelo arguido da natureza proibida da atuação que teve e que na prática dos factos respetivos agiu com a intenção de acossar e agredir física e psicologicamente a sua ex-companheira e mãe dos seus filhos. Reportam-se tais ao conhecimento e vontade do arguido em praticar os factos… que confessou. De todo o modo trata-se de factos do foro intelectual e psíquico, respeitantes ao conhecimento, às intenções, à vontade, às representações mentais, as quais não são realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis. Sendo, nessa medida, insuscetíveis de prova direta.

Normalmente a sua prova faz-se através do reconhecimento pelo próprio autor dos atos. Ou então através das técnicas de reconstrução indireta, isto é, «por ilação de indícios ou factos exteriores». (4) Na passagem dos factos conhecidos (afirmados no ponto 9.) para a aquisição do facto desconhecido (ponto 12.), intervêm juízos de avaliação e inferência através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitem, fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade (próxima da certeza), para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. E é o que sempre sucederia na ligação dos factos do ponto 9. aos do ponto 12.

Mas não só o próprio arguido os confessou como se mostrou arrependido de os ter praticado. Sendo nesta medida, pelo menos, surpreendente a razão da impugnação!

Nenhuma razão existe para alterar o quadro factológico que se mostra fixado.

3.2 Da qualificação jurídica dos factos

O recorrente considera que os factos provados não são integradores do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º CP, sendo antes e apenas integradores de ilícitos de injúria e de ameaça (previstos nos artigos 181.º e 153.º CP, respetivamente). Importará de introito assinalar que a sentença, depois de julgar provados os factos alinhados em 4., 5. e 6., considerou extinto, por prescrição o procedimento criminal com respeito aos mesmos. Pelo que tais factos estão arredados do acervo factológico a valorar com vista à aferição dos elementos típicos do ilícito em referência. Diga-se já, que ao recorrente lhe falha, e totalmente, a razão. Vejamos. A atual descrição típica do ilícito de violência doméstica (introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro), constante do artigo 152.º CP, dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito para além do espartilho que a respetiva inserção sistemática no código indicia, na medida em que o mesmo passou a abranger também, expressis verbis, as limitações à liberdade e as ofensas sexuais, tutelando igualmente a reserva da intimidade da vida privada e a honra.

O bem jurídico tutelado não se cinge à integridade física das pessoas, mas à sua integridade pessoal, constituindo-se este em bem jurídico autónomo, pluriofensivo, com expressão nos citados artigos 25.º e 26.º da Constituição, (5) Organicamente conexionado com a defesa da pessoa enquanto tal, ligado à sua própria dignidade enquanto pessoa humana, conforme decorre do artigo 1.º da Constituição.

É, pois, por referência à tutela da integridade pessoal, que o crime de violência doméstica visa punir as condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam num exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a intimidade, a liberdade ou a honra do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes tratada como uma mera «coisa»). (6)

A violência doméstica constitui um «fenómeno socialmente muito nocivo» (7), a reclamar uma visão holística e multidisciplinar (8), desde logo em razão de o seu referente axiológico se entretecer com questões de natureza cultural, de mentalidades e de índole socioeconómica.

Daí que a psicologia aporte que tal violência redunda n«uma forma de exercício do poder, mediante o uso da força (física, psicológica, económica, política). Constituindo-se o recurso à força como um método possível de resolução de conflitos interpessoais, procurando o agressor que a vítima se sujeite ao que ele pretende, que concorde com ele ou, pura e simplesmente, que se anule e lhe reforce a sua posição/identidade. No entanto, e contrariamente ao comportamento apenas agressivo, o comportamento violento não giza (apenas) fazer mal à outra pessoa (ainda que habitualmente isso aconteça). O objetivo final do comportamento violento é submeter o outro mediante o uso da força.» (9)

Volvamos à sua dimensão normativa.

O tipo objetivo tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

Sendo o elemento subjetivo composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), «o dolo implicará o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, assim como o conhecimento e vontade da conduta e do resultado, consoante os comportamentos em causa configurem tipos formais ou materiais». (10)

Na avaliação das circunstâncias e comportamentos do arguido importará sempre atentar a «respetiva situação ambiente e da imagem global do facto». (11)

No caso que ora nos ocupa verificamos que os comportamentos ilícitos do arguido, consistiram em ofensas verbais e escritas e ameaças, as quais ele não dirigiu a um desconhecido, a um vizinho ou a um colega de trabalho ou a parceiro da sueca. Caso em que os mesmos constituiriam apenas crimes de injúria e de ameaça.

Antes, nas diferentes ocasiões e modo descritos, foram dirigidas à sua ex-mulher, na consideração de que ela, de certa forma, estava à sua mercê e que não tinha como obstar a esse exercício da sua vontade.

Afigura-se-nos absolutamente claro que as palavras ditas e escritas pelo recorrente e dirigidas à sua ex-cônjuge e mãe dos seus filhos, consistem numa repetição de humilhações, corporizando óbvios maus tratos psíquicos, por atingirem a integridade moral da visada e o seu sentimento de dignidade. A imagem global dos factos remete-os, indubitavelmente, para o perímetro da tutela conferida pelo crime de violência doméstica. Não há, pois, nenhum erro de julgamento na qualificação jurídica dos factos provados, a qual decorre do enfoque correto sobre a circunstância e natureza das agressões psicológicas perpetradas. Nem qualquer outro erro se poderá assacar à sentença recorrida. Razão pena qual o recurso não é merecedor de provimento.

III – Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam em conferência os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, pelas razões expendidas, manter integralmente a douta sentença recorrida.

b) Sem custas (uma vez que o recorrente delas está isento - artigo 523.º, § 1.º CPP); c) Notifique-se.

Évora, 24 de outubro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Jorge Antunes

Maria Margarida Bacelar

.............................................................................................................

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

3 No elenco dos «factos provados» a sentença refere que «do relatório social para eventual determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, em conclusão, consta: (…)», extraindo depois um segmento do aludido relatório social!

Não será (talvez) despiciendo lembrar que o relatório social, conforme preceitua a lei (artigo 1.º, al. g) CPP), constitui uma mera «informação», que visa habilitar o juiz na sua tarefa de escolha e graduação da medida da pena. A qual, está sujeita ao escrutínio judicial, subordinado à livre apreciação do julgador. Só ao Tribunal compete fixar no acervo dos factos provados com relevância para determinação da sanção o que entender ajustado às circunstâncias do caso – não uma qualquer outra entidade (neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007 - anotação ao artigo 370.º), Universidade Católica Portuguesa Editora, p. 915; também Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2019, Almedina, p. 65 - em anotação ao artigo 1.º CPP). Na jurisprudência, por todos, cf. acórdão deste TRÉvora, de 28/6/2023, proc. 149/23.1GBLLE.E1, Desemb. Carlos de Campos Lobo; de 6/6/2023, proc. 15/22.8JDLSB.E1, Desemb. Ana Bacelar; e do STJustiça, acórdão de 14/4/1999, proc. 98P1409; acórdão de 20/10/2010, proc. 845/09.6JDLSB, www.dgsi.pt ).

Se sobre os dados do relatório social o Tribunal não fizer (como lhe compete) o exame crítico do que se narra, desrespeitará o disposto no § 2.º do artigo 374.º CPP, de onde decorre a nulidade prevenida na alínea a) do § 1.º do artigo 379.º do mesmo diploma legal. Neste caso o modo como se justificam os factos extraídos do relatório social mostram-se circunstancialmente equívocos. Consideramos que se quis dizer que o segmento extratado constitui a síntese crítica do que releva. no mais que o referido relatório contém. E só por isso se não verifica a indicada nulidade.

4 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1999, pp. 101

5 Neste sentido cf. André Lamas Leite, A Violência Relacional Íntima: Reflexões Cruzadas entre o Direito penal e a Criminologia, revista JULGAR, n.º 12, 2010, pp. 25 ss.; em sentido não muito distinto Nuno Brandão, A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 9 ss.

6 Neste sentido podem ver-se: Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, UAL, pp. 32, 33 e 42. Maria Também Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, 2005, Almedina; e Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. I, 2017, pp. 569 ss., BFDUC); Sara Margarida das Neves Simões, 2015, UCP, pp. 8 ss.

7 Assim o crisma, desde logo, André Lamas Leite, Violência doméstica e extinção de medidas de coação processual – em louvor da Relação do Porto, Revista do MP, n.º 175 (2023), p. 79. Atente-se ainda, na referência feita pelo citado autor no mesmo escrito, que as Estatísticas da Justiça, apontam, em 2022, para um total de 30 488 casos reportados de violência doméstica, sendo o tipo legal de crime mais denunciado no capítulo dos «crimes contra a integridade física» (55 367), representando 55,1% do total de delitos nesse universo; correspondendo a 8,9% do total de crimes registados.

8 Neste sentido, André Lamas Leite, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia», JULGAR, n.º 12, 2010, pp. 25-66.

9 Madalena Alarcão, (des) Equilíbrios Familiares, Quarteto, 2000, p. 296.

10 Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 2017, Instituto Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra – Studia Iuridica, 1008, p. 583, BFDUC).

11 Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 19.