Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
331/22.9T8ORM.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CONTRATO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RECUSA
Data do Acordão: 09/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O direito de acesso ao serviço público de abastecimento de água é um direito individual e fundamental na medida em que assegura a qualidade de vida fomentando o bem-estar e as condições dignas da existência humana.
II. A concretização prática deste direito, porém, exige mediação legislativa infraconstitucional em ordem a serem estabelecidos os requisitos necessários para a celebração do contrato de abastecimento.
III. Se o utente consumidor não apresenta a documentação necessária e prevista na lei para a celebração do contrato de abastecimento de água, a entidade concessionária não incorre em responsabilidade civil por recusar a celebração do referido contrato.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA

I – RELATÓRIO[1]
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Autor
AA

BE WATER, S.A. – Á...
Pedido
1) Seja a Ré condenada a proceder à instalação do contador de água e ao fornecimento da mesma à casa do Autor, sita na Rua ..., ..., ..., no prazo que vier a ser designado na sentença final, mas que se requer que seja 48 horas após o trânsito em julgado da mesma sentença.
2) E caso não proceda à ligação do fornecimento de água no referido prazo, deverá a Ré ser condenada numa sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do Código Civil (CC), na quantia de €100,00 por dia, a favor do Autor, desde o término do prazo que for determinado na sentença final, até ao dia em que seja efetuada a mesma ligação.
3) Seja condenada a pagar ao Autor, a título de danos patrimoniais, uma indemnização no valor total de €16.416,00 e à qual deve acrescer os juros que se vencerem à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.
4) Seja condenada a pagar ao Autor o valor de €312,00 (€120,00+€192,00) por cada mês que se vencer desde a propositura da presente ação e até à data em que a Ré proceda ao fornecimento de água à casa do Autor, acrescida dos juros calculados à taxa legal.
5) Seja condenada a pagar ao Autor, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, a quantia de €3.000,00, e à qual deve acrescer os juros legais, contados deste a citação até efetivo e integral pagamento.
Causa de pedir
O Autor é o real e legítimo proprietário de um prédio rústico no qual fez construir uma casa em madeira que usada como habitação própria por si e pelo seu filho.
A Ré é uma empresa que detém a concessão da exploração e gestão do sistema de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público do concelho ... e assegura o fornecimento de água.
Porém, na sequência de rescisão do contrato de fornecimento pela sua filha – a proprietária registral do terreno – a Ré procedeu ao corte desse serviço e, pese embora as insistências do Autor e do seu I. Mandatário e o facto de reunir todas as condições para o efeito, tem-se ilicitamente recusado a retomá-lo, o que causa ao Autor prejuízos de ordem patrimonial e não patrimonial que vêm peticionados.
Contestação
No que ora releva, a Ré impugnou a veracidade dos factos alegados pelo Autor dizendo que se recusou a celebrar com o mesmo o contrato de fornecimento de água para a casa de habitação em causa por não estarem reunidos os requisitos legalmente previstos para o efeito.
Concluiu pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
Sentença
Julgou a ação totalmente improcedente absolvendo a Ré de todos os pedidos.
Recurso
Apelou o Autor pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1) Conforme resulta de fls., o Autor intentou a presente ação declarativa, alegando e peticionando o que acima se transcreveu;
2) Citada para o efeito, a Ré contestou, alegando o que consta de fls.;
3) Notificado da contestação, o Autor apresentou a sua resposta nos termos que abaixo se transcreveu;
4) Por Sentença de fls., o Meritíssimo Juiz a quo decidiu o acima transcrito;
5) Conforme resultou provado nos presentes autos, o prédio rústico foi adquirido pelo Autor, e pago pelo mesmo à Sra. BB;
6) Mais, foi o Autor quem construiu e implantou a casa em madeira no prédio, a expensas do mesmo;
7) É o Autor que tem a sua residência no imóvel em discussão nos presentes autos, bem como pratica todos os atos inerentes à manutenção do mesmo;
8) Resulta da prova que o prédio só ficou no nome da filha do Autor para servir de garantia a um empréstimo bancário que aquela pretendia realizar;
9) Tendo inclusive sido produzido prova de que o real proprietário do imóvel não é a filha do Autor, mas sim o Autor, visto que é o mesmo que o negociou, que o comprou, que o pagou, e que zela pelo mesmo, e nele habita e tem a sua residência permanente;
10) Da prova produzida em audiência de julgamento se provou que a posse e propriedade do imóvel é do Autor e não da filha deste;
11) Da prova produzida ilidiu-se a presunção da propriedade do imóvel alegada e descrita a favor da filha do Autor;
12) Bem como se provou que o imóvel já foi em tempos, fornecido de água pela Ré;
13) O acesso à água e ao saneamento integra o conteúdo mínimo do direito à dignidade da pessoa humana, devendo-se respeitar a qualidade, isto é, a água há-de ser potável; a quantidade, seja o suficiente para a sobrevivência; a prioridade de acesso humano, em caso de escassez; e a gratuidade –, ao menos no que diz respeito ao mínimo necessário para a sobrevivência humana;
14) Sem o acesso a uma quantidade mínima de água potável, os outros direitos a ela intrínsecos, tais como os direitos à vida e a um nível adequado para a saúde e bem-estar, tornam-se inatingíveis;
15) O acesso à água e ao saneamento básico é um direito humano fundamental, reconhecido pela ONU como “condição essencial para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos;
16) Declarações de Parte: AA, depoimento gravado na faixa 20221206103422_3005702_2871758, do minuto 00:00:22 ao minuto 00:27:26 da plataforma do Habilus, acima transcrito;
17) Assim, devem ser dados como provados os factos constantes nas als.) F), G), H), I), J), e K) dos factos dados como não provados, com todas as consequências legais daí resultantes, o que, desde já e aqui se requer;
18) Das declarações de parte do Autor, bem como das testemunhas, foi efetuado o fornecimento da água pela Be Water em tempos, tendo sido deixado de fornecer desde o divórcio, pelo facto do contrato estar em nome da ex -mulher;
19) O Autor declarou que tem de se deslocar duas, a três vezes para ir buscar água para o seu consumo, nomeadamente para os banhos, lavar loiça, casas de banho, e todas as lides domésticas;
20) Mais declarou que, nessas viagens utiliza uma carrinha do CC e que despende, em cada deslocação a quantia de quinze a vinte euros;
21) Declarou ainda que o seu agregado familiar é composto pelo Autor e pelo seu filho menor;
22) Dúvidas não existem de que o Autor mora e reside no imóvel em causa, praticando todos os actos inerentes à posse e propriedade, que é nesse imóvel que tema sua habitação permanente;
23) A não concessão pela Ré do fornecimento da água pública, constitui uma violação do Direito à Vida e da Dignidade do Autor, nos termos do artigo 1.° e 24.° da CRP;
24) Deve ser revogada a Sentença recorrida e consequentemente, ser julgada procedente a presente ação, com todas as consequências legais daí resultantes, o que, desde já e aqui se requer;
25) Lendo atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto e juridicamente relevante, suscetível de informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão do Recorrente;
26) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
27) O (Tribunal) com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do Recorrente, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;
28) O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: a prova produzida em Julgamento; Os documentos juntos; Os elementos constantes no processo; Etc.;
29) Deixando o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;
30) Acresce que, mesmo que assim se não entenda, a Sentença recorrida tem de ser revogada por outro motivo;
31) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
32) Cometeu, pois, uma nulidade.
33) A Sentença recorrida viola:
a) Artigos 154º, alíneas b), c) e d) do artigo 615º do Código do Processo Civil;
b) Artigos 13º, 20º, 21º, 202º, 204º, 205º da C. R. P.»

Resposta ao recurso
A Recorrida defendeu a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.
Admissão do Recurso
Admitido o recurso foi dado cumprimento ao disposto no artigo 617.º, n.º 1, do CPC no sentido da não verificação de qualquer nulidade da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«1- Por escritura de compra e venda celebrada em 13 de Agosto de 2015, no Cartório Notarial ..., a fls. 2, do livro ...36, BB vendeu a DD, casada sob o regime de separação de bens com EE, pelo preço de 6.000 euros, um prédio rústico, sito em ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ...51, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...63, da freguesia ....
2- O prédio referido em 1) encontra-se inscrito na matriz predial rústica do artigo matricial respectivo, ou seja o nº 551, a favor da mencionada DD, que é filha do A.
3- O A. pagou à vendedora o preço de aquisição do imóvel referido em 1), ou seja a quantia de 6.000 euros.
4- O prédio referido em 1) foi colocado em nome da referida DD, a pedido desta para poder servir de garantia a um empréstimo bancário que ela e o seu marido, o referido EE, pretendiam realizar.
5- Após a data da celebração da escritura referida em 1), o A. mandou proceder ao pelo corte das ervas existentes no terreno do prédio mencionado em 1), na parte onde pretendia construir uma casa de habitação.
6- No ano de 2016, o A. mandou proceder à construção no prédio referido em 1), de um piso inferior, com paredes em blocos de cimento e pilares de betão armado, sobre as quais foi colocada uma placa em betão.
7- Após a realização da construção referida em 6), no ano de 2016, o A. diligenciou pela construção e implantação, por cima do piso inferior mencionado em 6), no prédio referido em 1), de uma moradia unifamiliar, tipo T3, em madeira, com dois pisos, sendo o piso inferior destinado a arrumos e o piso superior destinado a habitação, composto de cozinha, casa de banho, sala e três quartos.
8- O piso inferior da casa mencionada em 7) tem a área de 70 m2, e o piso superior tem a área de 100 m2.
9- A casa referida em 7), situa-se actualmente na Rua ....
10- Na altura da construção da casa referida em 7), o A. construiu um muro de vedação do terreno do prédio referido em 1).
11- O A. pagou o custo dos materiais de construção para a realização das edificações mencionadas em 6) e 7), nomeadamente cimento, pedra, blocos de cimento, tijoleiras, ferro, telhas, tintas, vernizes, madeira, portas, janelas, vidros, ladrilhos, soalhos, loiças de casa de banho, redes internas de canalização de água e de luz.
12- O A. solicitou à empresa C..., Ldª, representada por um dos seus sócios gerentes, o referido EE, que é genro do A., actualmente designada pela firma C..., Ldª, com a marca ... – Inovações em Madeira, um orçamento para a construção de um bungalow – 14,50 m x 7,30 m = 105,85 m2, cuja cópia se encontra junta a fls. 21, verso, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, e um orçamento para a construção de uma garagem personalizada – 10 m x 5 m – 2 águas, cuja cópia se encontra junta a fls. 22, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
13- Foi instaurado processo de contra-ordenação contra o A. pelo facto de ter realizado a construção da casa referida em 7), e o muro mencionado em 10), num terreno que estava integrado em área agroflorestal, segundo o PDM para a região do concelho ..., e sem licença de construção.
14- A partir de meados do ano de 2017, o A. passou a residir na casa referida em 7), juntamente com o seu agregado familiar, que era na altura composto pela sua mulher, FF, a sua filha GG, e seu filho menor, HH.
15- Por sentença proferida em 17-6-2019, no âmbito de conferência que teve lugar no processo de divórcio por mútuo consentimento nº 653/19...., que correu termos no ..., do ..., foi decretado o divórcio entre o A. e a sua ex-mulher, a referida FF.
16- Após o divórcio referido em 15), o A. continuou a residir na casa referida em 7), ficando junto a si, em fins-de-semana alternados, nas férias escolares e no dia de aniversário do A., o seu referido filho HH.
17- Desde a data referida em 14), o A. tem realizado os seguintes actos na casa mencionada em 7): a) Nela pernoitando; b) Nela recebendo os seus familiares e amigos; c) Nela recebendo a sua correspondência; d) Nela confeccionando e tomando diariamente as suas refeições; e) Nela lavando a loiça e a roupa; f) Nela tomando banho e cuidando da sua higiene pessoal; g) Procedendo ao pagamento da electricidade e do gás que nela consome; h) Procedendo à limpeza da casa e mobilando-a.
18- O A. realizou os actos referidos em 17) à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja ou contra a vontade de terceiro, de forma contínua e ininterrupta, convencido de não prejudicar os interesses de ninguém, que está a exercer o direito de propriedade sobre o imóvel em causa.
19- A ex-mulher do A., FF, apresentou queixa-crime contra o A. pela prática de crimes de violência doméstica contra ela e contra o filho HH.
20- Na sequência das queixas referidas em 19), o A. foi julgado como arguido no processo comum singular nº 103/20...., que correu termos no ... do Tribunal Judicial ..., onde foi proferida sentença que absolveu o A. dos crimes por que vinha acusado.
21- A R. Be Water é a concessionária da exploração e gestão do sistema de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público do concelho ....
22- Em 7-10- 2015, a referida FF celebrou com a R. Be Water o contrato de fornecimento de água para obras a realizar no prédio rústico referido em 1), cuja cópia se encontra junta de fls. 76, verso e 77, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
23- Para instruir a realização do contrato mencionado em 22), a referida FF apresentou nos serviços da R. uma cópia da escritura de compra e venda referida em 1), a caderneta predial do prédio mencionado em 1), e um documento assinado pela proprietária do imóvel, ou seja a referida II, a autorizá-la a contratar.
24- No dia 4-9-2019, a referida FF comunicou à R. que pretendia denunciar o contrato referido em 22).
25- Na sequência da denúncia do contrato referida em 24), a partir da data mencionada em 24), a R. cessou o fornecimento de água ao prédio referido em 1).
26- Em 16-1-2020, o A. compareceu nos serviços da R., solicitando a celebração de um novo contrato de fornecimento de água para uma casa de habitação sita no prédio referido em 1).
27- Na ocasião referida em 26) o A. juntou uma cópia de uma certidão passada pela Câmara Municipal ..., a certificar que o A. estava notificado para instruir um procedimento de controlo prévio, nos termos dos artigos 4º e 102º-A, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.
28- Na sequência, a R. comunicou ao A. que para poder ser celebrado o contrato de fornecimento de água, mencionado em 26), ele tinha de apresentar título de legítima ocupação do imóvel, a caderneta predial urbana da casa, e ainda a licença camarária de obras da casa em causa, e a licença de utilização do imóvel para fins habitacionais, ou a sua isenção.
29- A casa referida em 7) tem uma rede de canalização de água interior para que possa ser ligada à rede de abastecimento público de água.
30- Para abastecer a casa referida em 7), o A. realiza o transporte de água de outros locais, designadamente de uma fonte sita na Zona Industrial, em ..., ..., que dista cerca de 8 quilómetros da casa, uma vez por semana.
31- Para realizar os transportes de água, referidos em 30), o A. utiliza uma carrinha que lhe é emprestada pela testemunha JJ.»
FACTOS NÃO PROVADOS
«A- Após a data da celebração da escritura referida em 1), nesse ano de 2015, o A. diligenciou pela plantação de árvores de jardim no terreno do prédio referido em 1).
B- Após a plantação das árvores referidas em A), ou seja desde o ano de 2015, o A. tem cuidado e podado as árvores existentes no prédio referido em 1), designadamente limoeiros, oliveiras e carvalhos, e colhido os respectivos frutos.
C- O A. adquiriu e pagou à empresa V... todos os materiais necessários à realização da construção mencionada em 6), designadamente areia, cimento, blocos de cimento, ferro, tijoleiras.
D- O A. contratou 4 pedreiros em ..., que procederam à realização da construção referida em 6), a quem pagou os respectivos serviços.
E- Na altura da construção da casa referida em 7), o A. abriu ainda uma fossa séptica, que ficou implantada no prédio mencionado em 1).
F- Após a data da sua construção, o A. tem vindo a proceder à reparação e manutenção da casa referida em 7), suportando os respectivos encargos.
G- Face à alteração do PDM a zona onde foram realizadas as construções da casa e do muro, referida em 13), passou a constituir área urbana.
H- A rede pública de água encontra-se a uma distância de 20 metros do limite do prédio referido em 1).
I- Devido ao corte do fornecimento de água pela R. e falta de acesso à água da rede pública, o A. sentiu-se e sente-se indignado, envergonhado, angustiado, ansioso, triste e revoltado.
J- Para realizar os transportes de água referidos em 30), o A. utiliza igualmente a carrinha de um outro amigo, de nome CC.
K- Por cada viagem que faz para ir buscar água, o A. coloca a quantia de 15 euros em combustível na carrinha que lhe emprestam.
L- Para a realização das viagens de transporte de água, o A. previamente desloca-se, no seu veículo automóvel, às casas dos referidos CC e JJ, que distam 5 quilómetros e 3 quilómetros da sua, respectivamente, voltando a sua casa para buscar os recipientes, depois indo à fonte referida em 30), onde enche os recipientes, regressa a casa para descarregar os mesmos, e depois volta a entregar a carrinha na casa do amigo que lhe emprestou a mesma.
M- A operação referida em L) demora 3 horas no total.»

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso
O objeto do recurso que é delimitado pelas Conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Nulidade da sentença;
- Impugnação da decisão de facto;
- Do mérito da sentença.

2. Nulidade da sentença
O Apelante vem arguir a nulidade da sentença por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC, alegando, em suma, que na «decisão recorrida (…) não se indica nela um único facto concreto e juridicamente relevante, suscetível de informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão do Recorrente (…); «o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão»; «O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: a prova produzida em Julgamento; Os documentos juntos; Os elementos constantes no processo; Etc.;», «Deixando o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;».
Vejamos, então.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
Assim, a sentença é nula quando:
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».
A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP) e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
No caso em apreciação, a sentença elenca os factos provados e não provados em resultado do julgamento, fundamenta a decisão de facto assente nos meios de prova produzidos e convoca o regime legal que julgou aplicável, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto, que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto (que o Apelante impugnou), ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido (que o Apelante também invocou).
Em suma, em face do modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão de facto e direito, e considerando a fundamentação da arguição da nulidade da sentença, não incorreu na arguida nulidade, pelo que improcede este segmento do recurso.
Estipula o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, primeira parte, que a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Já a segunda parte prescreve que a sentença é nula quando for ambígua ou obscura de tal modo que a torne ininteligível.
Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão.[2] Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (“error in judicando”), mas não nulidade da decisão.[3]
Já a ambiguidade ou obscuridade da sentença reporta-se à sua parte decisória e apenas ocorre quando um gera ininteligibilidade, ou seja, quando um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.[4]
No caso em apreço, apesar do Apelante invocar a violação desta alínea c) do normativo supra citado, não descortinamos na fundamentação de suporte alegação concretizada em relação à previsão normativa, o que, só por si, determina a improcedência da arguição da nulidade da sentença com base nesta alínea.
De todo o modo, sempre se dirá que não suscita qualquer dúvida, dada a linearidade do dispositivo da sentença, qual a decisão tomada (improcedência total da ação), o que afasta a aplicação da segunda parte do preceito.
E em relação à primeira parte, lida a sentença também não descortinamos qualquer ilogismo no raciocínio do julgador, ou seja, as premissas de facto e de direito enunciadas na sentença apenas poderiam conduzir à improcedência da causa.
Efetivamente, em face dos factos provados, tendo o tribunal recorrido considerado que não se tinham provados os pressupostos de facto e de direito em relação aos pedidos formulados em 1) e 2) do petitório (condenação a Ré a instalar e a fornecer água ao Autor e condenação numa sanção pecuniária compulsória pelo não cumprimento do que viesse a ser decidido em sentido favorável ao Autor), teriam de ser, como foram, julgados tais pedidos improcedentes e absolvido a Ré desses pedidos. Não existindo aqui qualquer contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão tomada.
Também em relação aos pedidos formulados sob os n.ºs 3) a 5) do petitório (condenação em danos patrimoniais e não patrimoniais) não se tendo provado os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual em que os mesmos assentavam, outra não poderia ser a decisão que não a absolvição da Ré desses pedidos, como de facto sucedeu, sem que haja, assim, qualquer oposição ou contradição entre os fundamentos e a decisão.
Nestes termos, também improcede a arguição de nulidade baseada na violação da alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
Por sua vez, a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (aquela que o Apelante invoca), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões[5]) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[6].
Diz o Apelante que a sentença apenas apreciou de forma simples e sintética «algumas» questões e que se deixou de pronunciar sobre «algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa».
Ora, basta ler a sentença para se afastar tal alegação. A sentença, como já acima referido, elencou os factos provados e não provados, fundamentou a decisão de facto e de direito e proferiu uma decisão em conformidade.
As questões jurídicas que apreciou de forma, aliás, profusa e abundante, foram aquelas que enunciou nos temas da prova e que se impunha analisar e decidir em face dos articulados, sendo que a discordância do Apelante em relação ao modo como foram decididas não determina a nulidade da sentença.
Assim sendo, também improcede a arguição de nulidade da sentença com base na violação da alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.

3. Impugnação da decisão de facto
Compete à Relação no âmbitos dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do mesmo Código quando a prova tenha sido gravada, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, aferindo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pelas impugnantes.
Por se encontrarem minimamente preenchidos os requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, passa-se à sua apreciação tendo em conta a finalidade supra referida.
Pretende o Apelante que a matéria que constam das alíneas F), G), H), I), J) e K) dos factos provados seja dada como provada, contrariando a fundamentação do tribunal recorrido onde expressou que os factos não provados resultaram da ausência total de prova ou da inexistência de prova convincente.
Estas alíneas têm o seguinte teor:
«F- Após a data da sua construção, o A. tem vindo a proceder à reparação e manutenção da casa referida em 7), suportando os respectivos encargos.
G- Face à alteração do PDM a zona onde foram realizadas as construções da casa e do muro, referida em 13), passou a constituir área urbana.
H- A rede pública de água encontra-se a uma distância de 20 metros do limite do prédio referido em 1).
I- Devido ao corte do fornecimento de água pela R. e falta de acesso à água da rede pública, o A. sentiu-se e sente-se indignado, envergonhado, angustiado, ansioso, triste e revoltado.
J- Para realizar os transportes de água referidos em 30), o A. utiliza igualmente a carrinha de um outro amigo, de nome CC.
K- Por cada viagem que faz para ir buscar água, o A. coloca a quantia de 15 euros em combustível na carrinha que lhe emprestam.»
O Apelante não discriminou alínea por alínea impugnada os correspondentes meios de prova em que funda a impugnação, enveredando, antes, por invocar para toda a factualidade o mesmo meio de prova, ou seja, as suas declarações de parte parcialmente transcritas, limitando-se, ademais, a aludir genericamente aos depoimentos «das testemunhas» sem sequer as identificar, e a concluir que a matéria em causa devia ter sido dada como provada.
Não obstante a forma genérica como é impugnada a decisão de facto, analisaram-se as declarações de parte do Autor, mormente os segmentos transcritos, e o que se constatou é que a matéria sobre a qual depôs foi objeto de inclusão nos factos provados como decorre dos pontos 22 a 31, inclusivamente com base nas declarações de parte do ora Apelante.
Efetivamente, declarou o Autor que atualmente a casa não tem fornecimento de água da rede pública por lhe ter sido negada celebração do respetivo contrato, apesar de antes lá ter sido instalado um contador de obra, que foi retirado quando foi dado baixa do mesmo por quem o tinha pedido (ex-mulher do Autor após se terem divorciado) e que se abastece de água através de garrafões que transporta numa carrinha pagando os custos.
O que tais declarações não comprovam é a matéria que foi dada como não provada, ou seja, que teve encargos com a reparação e manutenção da casa em causa nos autos (o que exigia uma comprovação documental desses encargos); nem a alteração da qualificação da zona em face de alterações do PDM (que exigia prova documental donde resultasse que a zona onde foi construída a casa tinha ficado abrangida pela alegada alteração); nem a distância a que se encontra a rede pública do limite do prédio (que também carecia de prova documental); nem o estado de animo do Autor por causa do corte de abastecimento e da falta de acesso à água da rede pública (que exigia, no mínimo, prova testemunhal credível com conhecimento direto sobre essa matéria, que não foi produzida); nem que utilizava a carrinha de CC para além da carrinha de JJ (tendo faltado produzir prova concludente sobre esse aspeto); nem qual seja o custo do combustível de cada viagem para ir buscar água (sendo que nenhuma prova foi feita sobre esta matéria).
Não tendo sido apresentada a prova necessária e adequada à prova destes factos, bem andou o tribunal a quo ao considerá-los como não provados, pelo que nenhuma censura nos merece a decisão de facto impugnada, improcedendo a correspondente impugnação.

4. Do mérito da sentença
O Apelante alega que a sentença recorrida ao julgar improcedente a sua pretensão de condenar a Ré a instalar um contador de água e a fornecer água à habitação onde reside, viola o direito fundamental - direito à vida e à dignidade do Autor – consagrado nos artigos 1.º e 24.º da CRP.
Aduz, ainda, que se encontram preenchidos os requisitos legais para a celebração do contrato de fornecimento daquele serviço, porquanto provou que tem a posse e propriedade do imóvel, ilidindo a presunção registral a favor da titular inscrita (sua filha) e que a Ré já anteriormente tinha fornecido água à habitação em causa e que apenas o deixou de fazer, após o seu divórcio, por o contrato estar em nome da sua ex-mulher.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
A presente ação tem como causa de pedir uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial – o fornecimento de água para consumo humano, consubstanciando-se a causa de pedir e pedidos formulados na omissão da celebração de um contrato de direito privado para fornecimento de água.[7]
Sendo inquestionável que a Ré é uma sociedade comercial concessionária da exploração do serviço público de abastecimento de água para consumo humano do Município ..., encontrando-se sujeita ao cumprimento da legislação ordinária referente à prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente, como previsto na Lei n.º 23/96, de 26-07 (Lei dos Serviços Públicos), estabelecendo o artigo o artigo 1.º, n.º 2, alínea a) deste diploma, na definição do objeto e âmbito do mesmo, que os serviços de fornecimento de água encontram-se abrangidos pelos serviços públicos essenciais a prestar aos utentes.
Para além disso, encontra-se a Ré sujeita às regras previstas no Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, Saneamento e Resíduos (Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20-08), ao Regulamento do S...[8], e, ainda, ao disposto no Regulamento n.º 594/2018, de 04-09 (que regula as Relações Comerciais dos Serviços de Águas e Resíduos[9]), para além, de outras normas legais e regulamentares aplicáveis à atividade em causa, como sejam, os n.ºs 1 e 2 do artigo 125.º do IMI[10] (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis) e Portaria n.º 119-A/2015, de 30-04.[11]
Por força destes diplomas, e nos termos infra melhor explicitados, a Ré encontra-se obrigada às atividades previstas no 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20-08, entre elas e no que ora releva, «o abastecimento público de água», de acordo com os princípios enunciados no artigo 5.º, n.º1, alínea a), ou seja, de modo a assegurar a «promoção tendencial da sua universalidade e a garantia da igualdade no acesso» de todos os utentes.
Efetivamente, o abastecimento de água através de uma rede pública (para além do saneamento de águas residuais urbanas e a gestão de resíduos urbanos) é, como já dito, um serviço público essencial que visa a promoção da qualidade de vida dos cidadãos encontrando-se, por essa razão, sujeito a requisitos específicos.
Como refere o STA no Acórdão proferido em 02-07-2020[12]:
«I - O direito de acesso físico e económico ao serviço de abastecimento de água é um direito individual que, mesmo consubstanciando uma dimensão do direito fundamental à qualidade de vida, carece de mediação legislativa para a sua efectivação, seja por razões de segurança da rede de abastecimento, seja para definição das condições em que pode ou deve existir um apoio económico-financeiro no respectivo custeio.»
Lendo-se na fundamentação deste aresto:
«Com efeito, o que está aqui em causa é a prestação de um serviço público essencial, o qual não integra qualquer dimensão do “direito fundamental à vida” entendido como direito, liberdade e garantia, ou seja, como dimensão normativa imediatamente operativa (artigo 18.º, n.º 1 da CRP) do artigo 24.º da CRP, materializada na diferenciação e singularidade da pessoa humana (princípio fundante da dignidade da pessoa humana), capaz de afastar a aplicação das regras legais em matéria de aptidão e segurança das condições materiais de prestação de um serviço público essencial (…).
Em outras palavras, mesmo que o direito de acesso ao serviço público de abastecimento de água pudesse ser qualificado como um serviço essencial à vida humana e não apenas como um serviço que assegura a qualidade de vida (direito ao bem-estar e condições dignas de existência), ainda assim tal não seria suficiente para “afastar” (derrogar) a necessidade de cumprimento das regras que garantem a segurança do funcionamento deste serviço. Importa não esquecer que estamos perante um serviço público em rede, ou seja, em que todos os utilizadores estão ligados a uma infra-estrutura comum, pelo que as condições de segurança e correcto funcionamento dessa infra-estrutura constituem não só um interesse público geral, mas também um interesse da comunidade dos utentes desse serviço, que a entidade gestora está legalmente obrigada a tutelar através da actividade de fiscalização e controlo, seja no âmbito do licenciamento das obras (seja pela emissão do parecer no âmbito do procedimento de licenciamento da operação urbanística quando a entidade gestora do serviço não seja a Câmara Municipal), seja posteriormente através da fiscalização das operações realizadas.
Estamos, pois, perante um direito individual que, mesmo consubstanciando uma dimensão do direito fundamental à qualidade de vida, carece de mediação legislativa para a sua efectivação, cabendo ao julgador verificar se essa mediação legislativa se revela desproporcionada ou desrazoável.»
Acrescentando o mesmo aresto, que, apesar as tendências europeias no sentido do estabelecimento de direito à água como direito humano[13], na nossa CRP tal direito individual melhor se acomoda no âmbito dos direitos económicos e sociais, nos seguintes termos:
«Com efeito, a garantia fundamental do direito à água inscreve-se no quadro dos direitos económicos e sociais da saúde (artigo 64.º da CRP), da habitação (artigo 65.º da CRP) e do ambiente e qualidade de vida (66.º da CRP), como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de sublinhar no acórdão n.º 685/2004. Decisão que é, de resto, acompanhada de declarações de voto que não consideram que o acesso a este serviço possa, sequer, considerar-se fundamental na acepção de derrogar as normas respeitantes à sua onerosidade e, em último termo, sustentabilidade financeira.
Trata-se de um serviço cuja prestação tem de ser garantida pelo Estado, mas essa garantia em nada contende com a regulação legislativa do modo como esse direito deve ser assegurado, seja técnica, seja sanitária, seja economicamente. Pelo contrário, a efectivação dos direitos fundamentais ao qual o serviço de abastecimento de água e saneamento surge ligado depende, precisamente, da existência e do cumprimento de um quadro legislativo e regulamentar que assegure a sua efectivação na prática, seja na dimensão do acesso económico – em especial no âmbito da Lei dos Serviços Público (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho), que cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais – seja na dimensão do acesso físico ao mesmo – disciplinando as regras a que devem obedecer os sistemas públicos e prediais de distribuição de água e drenagem de águas residuais (Decreto-Lei n.º 207/94) – seja ainda no quadro das políticas e dos objectivos de saúde pública.»

Aderindo-se à fundamentação supra transcrita, conclui-se que o direito de acesso ao serviço público de abastecimento de água é um direito individual e fundamental na medida em que assegura a qualidade de vida fomentando o bem-estar e as condições dignas da existência humana.
Porém, a concretização prática deste direito exige mediação legislativa infraconstitucional em ordem a serem estabelecidos os requisitos necessários para a celebração do contrato de abastecimento.
No caso sub judice, e tendo em conta a causa de pedir e pedidos formulados nesta ação, o direito que o Autor vem peticionar nestes autos – direito ao acesso a uma rede de serviço público de fornecimento de água, impendendo tal obrigação sobre a Ré – e o subsequente litígio com a Ré ao recusar a celebração do contrato de abastecimento de água, não pode obter resolução apenas pela invocação do direito de acesso a esse serviço público enquanto direito com dimensão constitucional (ainda que não nos termos invocados pelo Apelante, mas nos termos acima referidos), porquanto sempre se impõe analisar se estão preenchidos os requisitos legais previstos nos diplomas que regulam esta matéria e que determinam as condições que têm de se verificar para que possa ser celebrado o contrato de abastecimento público de água.
Avultando nesta análise, essencialmente, os seguintes normativos:
Artigo 3.º, n.º 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20-08, sob a epígrafe «Contratos de fornecimento e de recolha»:
«1 - Os utilizadores que disponham de título válido para a ocupação do imóvel podem solicitar a contratualização dos serviços de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais sempre que os mesmos se encontrem disponíveis.»
«8 - Os contratos de fornecimento e de recolha respeitam obrigatoriamente o disposto no regulamento de serviço, sendo o contrato tipo aprovado pela entidade titular.»

Artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, do Regulamento Municipal do S..., sob a epígrafe «Modalidades do fornecimento de água»:
«1- Qualquer indivíduo ou entidade que pretenda ser abastecido em água deverá preencher junto da entidade concessionária uma requisição de contrato de fornecimento, em impresso próprio (…).»
«4- (…)
Serão os detentores de título legítimo e válido de posse do local a abastecer que deverão requerer o respectivo ramal de ligação à rede.»

Artigo 6.º, n.º 1 e 2, do Regulamento Municipal do S..., sob a epígrafe «Contratos»:
«1- Os contratos de fornecimento de água poderão ser estabelecidos com os proprietários dos prédios, usufrutuários, ou inquilinos. Nos contratos deverá constar:
Identificação do proprietário ou usufrutuário;
Identificação fiscal do proprietário ou usufrutuário;
Domicílio;
Artigo matricial do prédio, fracção ou parte, ou, tratando-se de prédio omisso, a indicação da data da entrega da declaração para a sua inscrição na matriz;
O valor da caução inicial;
Número da licença de utilização, quando se trate da primeira ligação à instalação.
2- A entidade concessionária obriga-se a fornecer água a todo o requerente que reúna as condições exigidas no presente Regulamento (…).»

A sentença recorrida analisou os requisitos supra mencionados e decidiu que nenhum deles se mostrava probatoriamente demonstrado nos autos, ou seja:
(i) Não ficou provado que o Autor, por via da aquisição originária (usucapião) era o proprietário sobre o prédio referido no ponto 1) dos factos provados (prédio rústico) onde edificou a construção referida nos pontos 6) a 8) dos factos provados (moradia unifamiliar tipo 3, com dois pisos), apesar de ser o possuidor da moradia, mas por tempo inferior ao legalmente previsto para operar a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio rústico onde foi implantada;
(ii) Não ficou provado que a referida habitação é um prédio urbano e autónomo em relação ao prédio rústico onde foi implantada, nem que se encontre inscrito na matriz predial e descrito na respetiva conservatória do registo predial;
(iii) Não ficou provado que a construção da habitação esteja autorizada, nem que tenha sido emitida licença de utilização ou declaração da isenção da mesma.

O Apelante discorda do que ficou decidido em relação ao primeiro requisito (aquisição originária do direito de propriedade do imóvel referido no ponto 19 dos factos provados) por considerar ilidida a presunção registral dado ter ficado provado que foi ele quem pagou a aquisição do imóvel rústico onde foi edificada a habitação, também a expensas suas.
Porém, o Apelante não tem razão.
Desde logo, a causa de pedir desta ação e os pedidos formulados não comportam sequer a análise e decisão em relação à aquisição do direito de propriedade por via da usucapião.
Apesar da usucapião ser uma das forma previstas na lei para a aquisição do direito de propriedade como decorre da previsão do artigo 1287.º do CC, a declaração e reconhecimento dessa forma de aquisição exige a insaturação de uma ação de reivindicação (ação real), a formulação da correspondente causa de pedir e pedido e que seja demandado quem tem interesse direto em contradizer, no caso, o titular inscrito no registo predial (a filha do Autor), que goza da presunção prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial.
Ora, nem a presente ação tem essa configuração nem se encontra demandado o sujeito que ficaria afetado com a procedência de tal declaração e reconhecimento de aquisição originária. Donde, nesta ação, nunca poderia ser reconhecido ao Autor o direito de propriedade sobre o imóvel referido no ponto 1) dos factos provados com base na aquisição originária (usucapião).
Ademais, mesmo tenho o tribunal recorrido conhecido de tal questão, sempre concluiu pela falta de prova dos requisitos legais da usucapião. E nem poderia ser de outro modo, pois ficou provado que, em 2015, foi realizada a escritura de compra e venda do prédio rústico e que a habitação foi construída nesse imóvel em 2016, ou seja, não decorreu o tempo previsto na lei (cfr. artigo 1296.º do CC) para poder operar a aquisição aquisitiva (ou usucapião) do direito de propriedade em virtude de não ter decorrido o tempo considerado relevante pela lei.
Cabendo, ainda, referir que o pagamento do preço na compra e venda, ainda que seja um efeito obrigacional da compra e venda (obrigação de entregar a coisa contra a obrigação de pagamento do preço), o efeito real respeitante à transmissão do direito de propriedade ou da titularidade do direito ocorre por mero efeito do contrato (contrato real quoad effectum), ou seja, salvo as exceções previstas na lei, a transferência do direito real, objeto do negócio jurídico, produz-se por via da celebração do contrato (artigos 408.º, n.º 1, e 879.º do CC), isto é, aquando da celebração do contrato e independentemente da entrega da coisa e do pagamento do preço.
Assim, mesmo tendo ficado provado que o preço foi pago com dinheiro de um terceiro (o Autor), que não interveio na celebração do contrato, o efeito translativo do direito de propriedade produziu efeitos na esfera jurídica da compradora interveniente naquele negócio, pelo que, também por esta razão, não se pode concluir que o Autor, por ter suportado o custo da aquisição, ilidiu a presunção registral a favor da compradora.
Resulta, assim, que não se encontra preenchido o primeiro requisito dos previstos no artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Municipal do S... o que, só por si, desobrigou a Ré da celebração do contrato de fornecimento de água à habitação do Autor.
Mas também os demais requisitos previstos neste normativo não ficaram provados, porquanto a habitação do Autor não constitui um prédio autónomo (urbano) em relação ao prédio rustico onde foi construída, não se encontrando inscrito na matriz predial nem descrito na conservatória do registo predial, o que determina o não preenchimento do segundo requisito previsto no normativo supra citado.
E também não se verifica o terceiro requisito desse mesmo preceito legal, porquanto também a construção não se encontra licenciada, nem foi emitida licença de utilização ou a declaração da sua isenção.
E ainda que possa estar em curso um procedimento de controlo prévio nos termos dos artigos 4.º e 102.º-A do Regime de Jurídico da Urbanização e da Edificação em ordem à legalização da das operações urbanísticas (o que, aliás, não se encontra documentado nestes autos), o certo é que não está dado como provado que esse procedimento tenha terminado e alcançado o seu objetivo. E mesmo que assim fosse, a verdade é que os requisitos do artigo 6.º, n.º 1 e 2, do Regulamento Municipal do S... são cumulativos e, como acima referido, os demais não se encontram preenchidos.
Contrapõe o Apelante que a habitação já foi abastecida com a rede pública de água e que apenas o deixou de ser por ter sido extinto o respetivo contrato a pedido da sua ex-mulher.
Sucede, porém, que o abastecimento de água à habitação foi feita por ali ter sido instalado um contador provisório destinado a fornecer água à obra (cfr. pontos provados 22, 23, 24 e 25 dos factos provados).
O contrato de fornecimento de água a uma obra é um contrato provisório, temporário, e com um fim específico, cessando o contrato quando o fim a que se destinava deixou de existir.
Sendo que a instalação de um contador e abastecimento de água após o fim da obra encontra-se sujeito aos requisitos supra enunciados, que, como visto, não se encontram preenchidos.
Em face do exposto, nenhuma censura merece a sentença recorrida quanto à improcedência dos pedidos formulados sob os n.ºs 1) e 2).
O que determina, por sua vez, que também os pedidos formulados sob os n.ºs 3) a 5) não possam ter melhor sorte, porquanto a sua fundamentação assenta nos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e não se provou um dos elementos essenciais da previsão do artigo 483.º do CC, ou seja, que a Ré tenha recusado de forma ilícita contratar com o Autor a instalação de um contador de água e fornecer água à casa onde reside.
Improcede, pois, o recurso, por não se encontrarem violados os preceitos legais invocados pelo Recorrente, ou outros, mormente os preceitos constitucionais que invoca, porquanto a recusa da celebração do contrato de fornecimento de água radica na inexistência dos requisitos legais e procedimentais para a realização de tal contrato, que não se afiguram arbitrários, nem desproporcionais, nem desrazoáveis, considerando que se trata de um serviço publico essencial sujeito a regras específicas, aplicáveis a todos os utentes, radicando a recusa apenas e tão só na falta do preenchimento dos requisitos legais e não em qualquer fator ou fundamento discriminatório que impeça o Autor de ter acesso a um bem essencial e fundamental como é o de ser abastecido pela rede pública de águas da localidade onde se encontra a sua habitação.

5. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 26-09-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
(Ana Pessoa -1.ª Adjunta)
(Mário Branco Coelho - 2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Mencionando-se apenas o processado estritamente necessário para apreciação do objeto do recurso.
[2] Cfr. Ac. STJ, de 02/03/1999, proc. nº 709-1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[3] Cfr. Ac. STJ, de 03/02/1999, proc. n.º 1216/98- 1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[4] Idem, p. 735 (2).
[5] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[6] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt
[7] Foi exatamente nestes termos que a causa de pedir desta ação foi caracterizada no Acórdão do Tribunal de Conflitos (Conflito 12/23) proferido em 15-11-2023, nestes autos a propósito do conflito negativo de competência entre o Juízo local Cível de Ourém e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, e que se encontra junto ao processo (3.º vol., pp. 286-288).
[8] Cfr. Apêndice n.º 49, do DR II Série, n.º 100, de 29-04-1999, pp. 91-97.
[9] Publicado no DR n.º 170/2018, Série II de 2018-09-04, pp.24788 – 24809, emitido pela ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos)
[10] Estipula este preceito a propósito das obrigação de fiscalização das entidades fornecedores de serviços de água, energia e telecomunicações: «1 - As entidades fornecedoras de água, energia e do serviço fixo de telefones devem, até ao dia 15 de abril, 15 de julho, 15 de outubro e 15 de janeiro, comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira os contratos celebrados com os seus clientes, bem como as suas alterações, que se tenham verificado no trimestre anterior.
2 - Da comunicação referida no número anterior deve constar a identificação fiscal do proprietário, usufrutuário ou superficiário e respectivo domicílio, bem como a do artigo matricial do prédio, fracção ou parte ou, tratando-se de prédio omisso, a indicação da data da entrega da declaração para a sua inscrição na matriz.»
[11] Aprova o modelo de declaração de contratos de fornecimento (modelo 2 do IMI), bem como as respetivas instruções de preenchimento e encontra-se publicada no DR n.º 84/2015, 2º Suplemento, Série I de 2015-04-30, pp. 56 – 57.
[12] Proc. n.º 026/09.9BECTB 0250/18, disponível em www.dgsi.pt
[13] Lendo-se no referido Acórdão a este propósito: «Não se ignora que o recente movimento internacional que veio reconhecer o direito à água como direito humano (‘Human Right to Water and Sanitation’) - referimo-nos à Resolução 64/292 das Nações Unidas, de 28 de Julho de 2010 (Esta Resolução teve como sequência, primeiro, a Resolução A/HRC/RES18/1, de 28 de Setembro de 2011, relativa à necessidade de os Estados assegurarem financiamento suficiente para os serviços de abastecimento de água e de recolha de águas residuais poderem cumprir a sua missão, designadamente, a garantia da qualidade da água para o consumo humano, e, mais tarde, na Agenda 2030 como objectivo fundamental do milénio, centrado no acesso de todos a água potável e eficiência e governança no uso do recurso.), emitida na sequência do ‘General Comment’ N.º 15 do Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de Novembro de 2002, no qual se tinha definido o direito humano à água como o direito de cada ser humano a dispor, para uso pessoal e doméstico, de água em quantidade suficiente, com qualidade (segurança) para consumo humano (beber), em condições aceitáveis para uso doméstico, bem como física e economicamente acessível - enfatiza, precisamente, a dimensão económica deste direito no quadro do desenvolvimento de políticas públicas de efectivação dos ‘objectivos de desenvolvimento do milénio’.
Uma orientação política que teria transposição para o direito europeu através de diversos documentos, de entre os quais destacamos a Directiva-Quadro da Água (Cf. Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2000, na sua redacção actualizada.) e a Directiva sobre a qualidade da água (Cf. Directiva 98/83/CE do Conselho, de 3 de Novembro de 1998, alterada pela Directiva (UE) n.º 2015/1787 da Comissão, de 6 de Outubro de 2015.), transpostas entre nós, respectivamente, pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (entretanto alterada e republicada pelo Decreto-Lei n.º 130/2012, de 22 de Junho) e pelo Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de Agosto (alterado pelo Decreto -Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho).
Em todos estes documentos e diplomas normativos encontramos, essencialmente, o direito económico à água e a sua relação com a saúde pública.»