Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4/21.0T8FAR.E2
Relator: ANA PESSOA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: UNANIMIDADE
Área Temática: CÍVEL
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; CÓDIGO CIVIL
Sumário: A norma do nº1, do artigo 493º, estabelece uma presunção de culpa que é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, em face da ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar, respondendo esta civilmente pelos danos causados, a menos que logre ilidir aquela presunção.
Assim, o ónus da prova de que o facto ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância cabe ao Autor (nº1, do art. 342º, do CC) e mostra-se cumprido com a prova de que o incêndio que destruiu o imóvel começou em prédio detido pelos Réus, não sendo exigível a prova da sub-causa, isto é, do que concretamente originou o incêndio.

Da exclusiva responsabilidade da relatora
Decisão Texto Integral:
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I. RELATÓRIO.
AA e BB propuseram a presente ação declarativa de condenação sob a forma comum, contra CC e DD, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de € 23.956,00, acrescida dos respetivos juros de mora, contados da data de citação dos mesmos réus e até integral pagamento.
Alegaram, em síntese, que são proprietários do prédio misto denominado Quinta da (Local 1), sito na freguesia da Sé, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º …35 e inscrito nas matrizes respetivas, a parte urbana sob o art. …3 e a rústica sob o art. …4, secção P, cfr. documentos juntos aos autos, que cerca das 18.00 horas do dia 27 de junho de 2019, a ora Autora recebeu um telefonema de uma das suas funcionárias, de nome EE, cujo local de trabalho se situa na Quinta (Local1), que a informou que existia um incêndio no prédio que estava quase a chegar ao monte (casa), que os bombeiros foram contactados de imediato e os autores, aflitos, sem saberem se os animais que estavam na Quinta estariam vivos e as reais proporções do incêndio, dirigiram-se para a Quinta (Local1).
Mais alegaram que quando chegaram à Quinta, já a GNR estava no local e impediu a sua entrada, pois o fumo não permitia sequer ver a extensão e dimensão do incêndio e a forma como ele lavrava, nem os autores conseguiam avistar o monte (casa), que a autora desmaiou, perdendo os sentidos por breves momentos, pois desconhecia se o fogo já consumira o monte (casa) e se também matara os animais que estavam na Quinta e que só a intervenção célere do helicóptero utilizado no combate ao incêndio impediu que o fogo “trepasse” pelo monte (casa).
Que ainda assim, o fogo devassou toda a Quinta e chegou à estrada, destruindo todas as cercas, um olival centenário, alguns sobreiros, o pasto do gado e os tubos de água e que, controlado o fogo, os animais (vacas) ficaram na horta toda a noite e, no dia seguinte de manhã, os autores lograram, com o auxilio de um reboque, levar os animais para outra exploração, que a Quinta (Local1) ficou totalmente ardida, à exceção da parte urbana, ficou sem qualquer alimentação/pastagem para os animais (designadamente, vacas), ao contrario do que sucedia antes do incêndio, porquanto, era da pastagem da parte rústica da Quinta que os animais se alimentavam e onde deveriam permanecer até final de setembro.
Referiram que em consequência daquele incêndio, verificaram-se os seguintes danos para os ora autores:
- 12 oliveiras queimadas, cujo prejuízo se computaram em € 500,00;
- 9 sobreiros queimados, cujo prejuízo se computaram em € 2.502,00;
- 2558 m2 de cerca destruída (ardida) que, à razão de € 4,00 por metro quadrado, gerou um dano no valor de € 10.232,00;
- foram destruídos 120 metros de canalização e 103 de pastagem.
Acrescentaram que durante a privação de pastagem, os 18 animais dos autores tiveram de ser alimentados a ração, desde 27 de junho de 2019 a 30 de setembro de 2019, o que totaliza um prejuízo no valor de € 4.275,00, que entre março e abril de 2020, mercê da falta das cercas, os 18 animais dos autores tiveram de ser alimentados a ração, o que se traduziu num prejuízo de € 2.745,00, e que a destruição dos nove sobreiros importou também prejuízos futuros para os autores porquanto cada sobreiro rende 2 arrobas de cortiça a cada 9 anos; considerando que cada arroba tem o preço médio de € 25,00 e que os sobreiros ainda tinham tempo estimado de vida de 50 anos, os autores sofreram ainda um prejuízo de € 278,00/por sobreiro, o que perfaz um prejuízo de € 2.502,00.
Alegaram ainda que no âmbito do processo de inquérito crime n.º …/….GDEVR, que correu termos pelo DIAP de Évora, os autores foram notificados do respetivo despacho de arquivamento (cf. doc. n.º 2 junto com a petição inicial) e que de acordo com o relatório da Polícia Judiciária, realizado no âmbito do identificado processo de inquérito crime, o referido incêndio teve origem num curto circuito causado pela deterioração das estruturas de eletricidade localizadas na propriedade dos ora réus.
Mais acrescentaram que por carta enviada ao Réus, solicitaram a estes últimos o ressarcimento dos respetivos prejuízos (cf. doc. n.º 3 junto com a petição inicial), não tendo os mesmos réus assumido a responsabilidade pelo sucedido, obrigando a que os autores procedessem, a suas expensas, às reparações urgentes dos danos atrás descritos, sob pena de majoração dos respetivos prejuízos, que sentiram desespero, angústia e aflição ao verem a sua propriedade ser devorada pelo fogo, temendo a morte de animais, a destruição da parte urbana e de alguns veículos ao serviço da Quinta, assim como sentiram desespero e angústia quando tiveram de decidir e fazer o transporte dos 18 animais (vacas) que estava na Quinta para outra exploração, acrescido do trabalho que os autores tiveram em acomodá-los e lograr quem deles tratasse nesta última exploração e que posteriormente, os autores tiveram de diligenciar pela alimentação dos seus animais e acomodação posterior na Quinta, de novo tudo a suas expensas, e para reparação de danos não patrimoniais, peticionam o montante de € 1.200,00.
Referiram por fim que o Réu assumiu, em declarações prestadas no âmbito do identificado processo crime, que, no dia 27 de junho de 2019, cerca das 18.00 horas, se deslocou à sua propriedade, na Quinta (Local 2), com vista a que fosse realizada uma intervenção técnica que lhe permitisse o fornecimento de energia na propriedade e que, no momento em que se encontravam junto do portão, após terem ligado a instalação elétrica, deflagrou um incêndio numa zona onde se encontravam umas estruturas de cimento que acondicionam cabos elétricos e confirmou que as ligações na sua propriedade eram as mesmas da data da aquisição do terreno, o que demonstra que o réu não se assegurou, como devia, da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia na instalação que se propôs.
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Os Réus foram devidamente citados, tendo o réu CC apresentado contestação onde impugnou parcialmente os factos afirmados pelos autores, e alegou que a parte urbana, os veículos e os animais dos autores nunca estiveram em perigo de destruição, que as instalações elétricas existentes no local encontravam-se em perfeitas condições, conforme resulta das fotografias constantes do aludido relatório da polícia judiciária, bem como devidamente aptas e certificadas tecnicamente e aceites pela EDP, pois, caso contrário, esta entidade não teria procedido à ligação para fornecimento de energia elétrica à propriedade do ora réu.
Pugnou pela improcedência da ação, pedindo ainda a condenação dos autores, como litigantes de má fé, em multa e em indemnização não inferior a € 1.500,00.
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Foram proferidos os despachos saneador e de enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada reclamação.
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Procedeu-se à realização da audiência final, vindo a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julgando a ação procedente, decide-se:
a) condenar os réus a pagar aos autores a quantia de € 2.502,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da data de citação dos réus e até integral pagamento;
b) condenar os réus a pagar aos autores a quantia de € 1.200,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da presente data e até integral pagamento;
c) condenar os réus a pagar aos autores o montante correspondente à destruição/queima de 12 oliveiras, de 9 sobreiros, de 2500 m2 de cerca e ainda de 120 metros de canalização;
d) condenar os réus a pagar aos autores o montante correspondente à alimentação com ração de 18 novilhas nos períodos de 27 de junho de 2019 a 30 de setembro de 2019 e entre março e abril de 2020;
e) o total dos montantes referidos em c) e d) não pode exceder a quantia de € 20.254,00;
f) condenar os réus a pagar aos autores os juros de mora à taxa legal, contados sobre os montantes a apurar em posterior liquidação e desde a data de citação dos réus e até integral pagamento;
g) condenar os réus no pagamento das custas, com eventual correção no incidente de liquidação.
Notifique.”
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Inconformado com tal decisão, dela apelou o Réu, tendo sido proferida decisão por este Tribunal da Relação. Em cujo dispositivo pode ler-se:
“Pelo exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, decide-se
- anular a sentença recorrida;
- determinar a reabertura da audiência com vista a que sejam ouvidas as indicadas testemunhas (Sr. FF, a identificar totalmente e GG, identificado nos autos de inquérito) a fim de esclarecerem as circunstâncias relativas às tarefas de que o Réu os incumbiu no que respeita à certificação do sistema elétrico da propriedade e à ligação da electricidade e eventual relação destas atividades com o curto circuito, caso se apure que o mesmo efetivamente ocorreu e esteve na origem do incêndio, sendo de seguida proferida nova sentença.”
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Após reabertura da audiência, foi proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julgando a ação procedente, decide-se:

a) condenar os réus a pagar aos autores a quantia de € 2.502,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da data de citação dos réus até integral pagamento;

b) condenar os réus a pagar aos autores a quantia de € 1.200,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da presente data e até integral pagamento;

c) condenar os réus a pagar aos autores o montante correspondente à destruição/queima de 12 oliveiras, de 9 sobreiros, de 2500 m2 de cerca e ainda de 120 metros de canalização;

d) condenar os réus a pagar aos autores o montante correspondente à alimentação com ração de 18 novilhas nos períodos de 27 de junho de 2019 a 30 de setembro de 2019 e entre março e abril de 2020;

e) o total dos montantes referidos em c) e d) não pode exceder a quantia de € 20.254,00;

f) condenar os réus a pagar aos autores os juros de mora à taxa legal, contados sobre os montantes a apurar em posterior liquidação e desde a data de citação dos réus até integral pagamento;

g) condenar os réus no pagamento das custas, com eventual correção no incidente de liquidação.

Notifique.”

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De novo, inconformado, apelou o Réu, formulando, após alegações, as seguintes conclusões:
1. Entende o Recorrente que da prova documental carreada para os autos, designadamente o relatório da Polícia Judiciária e as declarações prestadas pelo ora Recorrente e os depoimentos das testemunhas inquiridas impunham outra decisão no que toca à matéria de facto.
2. Ao considerar no ponto 26. da factualidade provada que “O réu não se assegurou da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia na instalação que se propôs, designadamente, não mandou vistoriar por eletricista as referidas estruturas de cimento que acondicionam cabos elétricos, que, apesar de se situarem a céu aberto, não são estanques;” que quanto a nós é um facto de fundamental importância e que está em causa nos presentes autos, ocorreu um erro de julgamento bem como erro na apreciação da prova.
3. No ponto 26 da matéria provada, relacionado com a questão de o Réu não se ter assegurado da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia, impunha-se quanto a nós que o Mmo. Juiz "a quo" não o tivesse feito, pois entendemos que o Réu diligenciou no sentido de se assegurar da referida capacidade.
4. Conforme se constata em várias passagens dos pontos da matéria provada, o Réu contratou um eletricista para aquele fim de capacitar o seu terreno rústico com o fornecimento de energia elétrica.
5. Embora não o tendo feito direta e pessoalmente, mas por intermédio da testemunha HH, o que é certo é que a sua preocupação em contratar o eletricista foi assegurar e fazer tudo o que era preciso fazer para o fim em vista.
6. Nas declarações prestadas em julgamento quer pelo Réu, CC, na sessão de 27-09-2022, das 11:30:45 até às 12:19:01, quer pela testemunha HH, na mesma sessão, das 15:43:50 até às 16:09:23, ambos confirmaram essa contratação do eletricista e JJ com a finalidade de permitir que o Réu pudesse junto da EDP requerer, nos termos regulamentares o fornecimento de energia elétrica.
7. E o Réu mais convencido ficou de que estava a bem diligenciar no sentido de assegurar a capacidade do seu terreno e instalações para aquele fim, uma vez que inclusivamente pagou ao referido eletricista o trabalho alegadamente efetuado.
8. Assim forçoso é reconhecer que o Réu diligenciou no sentido de assegurar a capacidade das instalações do seu terreno para levar a cabo o fornecimento de energia elétrica à sua quinta, ao seu imóvel.
9. Entendemos, pois, que deveria o Mmo. Juiz "a quo" ter considerado como provado que o Réu se preocupou em assegurar aquela referida capacidade.
10.No que se refere à matéria respeitante aos pontos 4. e 5. dos não provados, cumpre-nos dizer que igualmente consideramos que o Mmo. Juiz "a quo" deveria ter considerado tal matéria como provada.
11.No que toca à fundamentação do Mmo. Juiz "a quo" relativamente a tais factos, do ponto de vista do homem comum, sem conhecimentos técnicos na área, para o Réu tais instalações elétricas que haviam ali sido montadas há vários anos, com os adequados cabos elétricos subterrâneos e que até à data da ocorrência do incêndio, nunca tinham entrado em funcionamento, estavam virgens; ora para o Réu isso equivalia a estarem em perfeitas condições e aptas para o fim a que se destinavam.
12.Na fundamentação desta matéria refere o Mmo. Juiz "a quo" que as testemunhas JJ e LL que prestaram declarações na sessão de julgamento de 12-12-2023, o primeiro das 09:33:08 até às 10:27:46, e o segundo das 10:29:03 até às 10:48:22, confirmaram “… que tais estruturas não eram estanques; a provisoriedade dos indicados ‘pontos de luz’ resultou do facto de, … a Câmara Municipal de Évora não ter aprovado a construção ali projetada erigir pelo anterior proprietário”.
13.Temos de referir que nos seus depoimentos, estas mesmas testemunhas, quer uma quer outra, referiram não ter ido dentro do terreno do Réu, ou seja nem sequer lá entraram, pelo que ficamos sem saber qual é a sua razão de ciência.
14.A testemunha LL terá feito tais considerações depois de lhe serem exibidas as fotos que constam de fls. 47 a 49, da certidão junta aos autos em 26-04-2021, com o relatório da Polícia Judiciária.
15.Tais fotografias foram obtidas pela P.J. já depois do incêndio ter passado por tais estruturas e, obviamente, as chamas alteraram por completo o estado em que se encontravam as aludidas “estruturas em cimento da instalação elétrica” ali por vezes designadas ‘pontos de luz’.
16.Quanto ao ponto 5. da matéria não provada, pensamos que o Mmo. Juiz "a quo" deveria ter dado tal matéria como provada.
17.O Réu defende que a EDP ao ter deferido o seu pedido de ligação à rede para fornecimento de energia eléctrica, aceitou as instalações existentes no terreno, no imóvel do Réu.
18.Aliás tal deferimento e aceitação por parte da EDP, só foi possível depois de ter confirmado que havia certificação das instalações do Réu e o próprio estar convencido de que os eletricistas JJ e LL não terem levantado qualquer problema, concretizando a ligação das referidas instalações à rede eléctrica da EDP.
19.Outro tipo de considerações que se suscitam ao Réu neste processo são o facto de se admitir na decisão que a causa da deflagração do incêndio, na oportunidade, sem qualquer peritagem que em concreto determine qual ou quais as causas, se mantém indeterminada podendo ter ocorrido por lesão anterior no cabo elétrico ou lesão provocada quando da ligação a rede elétrica.
20.O dever de cuidado e vigilância do Réu em relação ao estado da instalação limita-se ao que lhe é dado verificar segundo o saber comum e não o saber técnico para o qual ele não está habilitado.
21.Por outro lado as consequências dos alegados prejuízos sofridos pelos AA. e cuja gravidade e culpa atribuem ao Réu, foram claramente potenciados pela extensão dos efeitos, para os quais os próprios autores contribuíram com a carga de combustível correspondente a pasto acumulado na sua propriedade, negligenciando o risco inerente e a necessidade de meios de proteção dos seus próprios bens.
22.Se a causa da deflagração do incêndio tivesse tido origem em fenómenos naturais como v.g. um raio ou uma faísca que tivesse caído na extrema da propriedade do Réu e se tivesse transmitido à propriedade dos AA. o pasto acumulado e a falta de meios de proteção dos bens da sua propriedade, teriam sido idênticos aos que referem ter sofrido.
23.Na decisão do Mmo. Juiz "a quo" ocorreu quanto a nós um erro de julgamento bem como erro na apreciação da prova.
24.Face a tais características da decisão aqui sub judice e ao aqui alegado os Réus deveriam ter sido absolvidos dos pedidos formulados pelos Autores.
25.Foram violadas as normas dos artºs 493º, n.º 1, 342º, 562º, 563º e 564º, 496º, n.º1 e 4 e 805º, n.º 3, todos do Cód. Civil.
26.No caso em apreço, o Mmo. Juiz “à quo” deveria ter considerado que os Réus não poderiam ser responsabilizados pelos prejuízos alegadamente sofridos pelos Autores.
Deve, por isso, ser revogada a sentença recorrida e ser substituída por outra que julgue improcedente a ação e absolva os Réus do pedido, assim se fazendo a costumada J U S T I Ç A !
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Os Autores não contra-alegaram.

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II. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, importa, no caso, apreciar e decidir:
- da impugnação da matéria de facto;
- se devem os Réus ser absolvidos do pedido formulado pelos Autores.
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III. FUNDAMENTAÇÃO.
III.1. Na decisão recorrida foram considerados com interesse para a decisão da questão em apreço, provados os seguintes factos:
1.- Os ora Autores são proprietários do prédio misto denominado Quinta da (Local 1), sito na freguesia da Sé, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º …5 e inscrito nas matrizes respetivas, a parte urbana sob o art. …3 e a rústica sob o art. …4, secção P, cfr. documentos juntos aos autos (cópia certificada dos registos prediais respeitantes ao identificado prédio e cópia das respetivas cadernetas prediais);
2.- Cerca das 18.00 horas do dia 27 de junho de 2019, a ora Autora recebeu um telefonema de uma das suas funcionárias, de nome EE, cujo local de trabalho se situa na Quinta (Local 2), que a informou que existia um incêndio na Quinta (Local 1) que estava quase a chegar ao monte (casa);
3.- Os bombeiros foram contactados de imediato e os Autores, aflitos, sem saberem se os animais que estavam na Quinta estariam vivos e as reais proporções do incêndio, dirigiram-se para a Quinta (Local 1).
4.- Quando os Autores chegaram à Quinta, já a GNR estava no local e impediu a sua entrada, pois o fumo não permitia sequer ver a extensão e dimensão do incêndio e a forma como ele lavrava, nem os autores conseguiam avistar o monte (casa);
5.- A Autora, quando chegou à Quinta (Local 1), sentiu-se mal disposta por breves momentos, pois desconhecia se o fogo já consumira o monte (casa) e se também matara os animais que estavam na Quinta, tendo ainda visualizado o helicóptero utilizado no combate ao incêndio;
6.- O incêndio, após atravessar a Quinta dos ora Autores, “galgou” a estrada e ainda foi queimar uma Quinta vizinha;
7.- O fogo atingiu quase toda a Quinta e chegou à estrada, destruindo quase todas as cercas, um olival centenário, alguns sobreiros, o pasto do gado e os tubos de água;
8.- Nas cercas ardidas tinham estado a pastar os animais (nove novilhas) dos ora Autores que se encontravam na Quinta (Local 1) e que se salvaram porque o Senhor que tinha uma horta na Quinta e que tinha acabado de a regar, após ver todo este cenário, juntamente com o Sr. MM, que morava na Quinta nessa data, fizeram com que os animais fossem para a zona da horta;
9.- Uma vez na horta, ambos, com mangueiras, procuraram afastar o fogo e salvar os animais;
10.- Controlado o fogo, os animais (novilhas) ficaram na horta toda a noite e, no dia seguinte de manhã, os Autores lograram, com o auxílio de um reboque, levar os animais para outra exploração;
11.- Nessa manhã, os animais ainda davam mostras de estarem nervosos e com os olhos vermelhos;
12.- A Quinta (Local 1) ficou quase totalmente ardida, à exceção da parte urbana;
13.- A Quinta (Local 1) ficou sem qualquer alimentação/pastagem para os animais (novilhas), ao contrário do que sucedia antes do incêndio, porquanto, era da pastagem da parte rústica da Quinta que os animais se alimentavam e onde deveriam permanecer até final de setembro;
14.- Em consequência daquele incêndio, verificaram-se os seguintes danos para os ora Autores:
- 12 oliveiras queimadas, cujo prejuízo não foi concretamente apurado no seu montante;
- 9 sobreiros queimados, cujo prejuízo não foi concretamente apurado no seu montante;
- 2500 m2 de cerca destruída (ardida), cujo prejuízo não foi concretamente apurado no seu montante;
- foram destruídos 120 metros de canalização e 10,3 hectares de pastagem.
15.- Durante a privação de pastagem, os 18 animais dos autores tiveram de ser alimentados a ração, desde 27 de junho de 2019 a 30 de setembro de 2019, o que totaliza um prejuízo cujo montante não foi concretamente apurado;
16.- Entre março e abril de 2020, mercê da falta das cercas, os 18 animais dos Autores tiveram de ser alimentados a ração, o que se traduziu num prejuízo cujo montante não foi concretamente apurado;
17.- A destruição dos nove sobreiros importou também prejuízos futuros para os Autores porquanto cada sobreiro rende 2 arrobas de cortiça a cada 9 anos; considerando que cada arroba tem o preço médio de € 25,00 e que os sobreiros ainda tinham tempo estimado de vida de 50 anos, os autores sofreram ainda um prejuízo de € 278,00/por sobreiro, o que perfaz um prejuízo de € 2.502,00;
18.- No âmbito do processo de inquérito crime n.º ……./………GDEVR, que correu termos pelo DIAP de Évora, os autores foram notificados do respetivo despacho de arquivamento, cfr. doc. n.º 2 junto com a p.i.;
19.- Conforme certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021, refere-se, sucessivamente no relatório da polícia judiciária e depois no despacho final (de arquivamento), que:
- “tudo indicia que a causa do incêndio que veio a ocorrer no dia 27/06/2019, teve origem num curto circuito causado pelas estruturas de electricidade localizadas na propriedade de BB, muito provavelmente, pela deterioração dos cabos eléctricos que compunham a dita instalação eléctrica, não se afigurando, de momento, que tenha existido qualquer dolo subjacente ao resultado.”; e
- “Da conjugação dos elementos recolhidos não resulta que o fogo tenha tido origem numa ação humana intencional.
No tocante a sua causa, no seguimento do relatório realizado pela Polícia Judiciária, existe a possibilidade que o fogo tenha tido origem num curto circuito causado pela eventual deterioração das estruturas de eletricidade localizadas na propriedade de BB.
A considerar-se esta causa de início do fogo, poderia colocar-se, em abstracto, uma atuação negligente na sua utilização como fornecimento de energia naquela instalação. Porém a conduta negligente tem como elemento estrutural e estruturante a violação do dever objetivo de cuidado.
No caso em apreço, atendendo à forma como os factos decorreram, não se verifica que exista uma violação do cuidado a que o agente está obrigado, de acordo com os conhecimentos e capacidades do homem médio, nomeadamente que tivesse conhecimento que existiria um risco de curto circuito nas instalações presentes no terreno no momento em que tivesse início o fornecimento de energia.”;
20.- Os Autores, por carta enviada aos Réus, solicitaram a estes últimos o ressarcimento dos respetivos prejuízos, cfr. doc. n.º 3 junto com a p.i., não tendo os mesmos Réus assumido a responsabilidade pelo sucedido, obrigando a que os Autores procedessem, a suas expensas, às reparações urgentes dos danos atrás descritos, sob pena de majoração dos respetivos prejuízos;
21.- Os Autores sentiram desespero, angústia e aflição ao verem a sua propriedade ser devorada pelo fogo, temendo a morte de animais, a destruição da parte urbana e de alguns veículos ao serviço da Quinta.
22.- Os Autores tiveram um trabalho acrescido no transporte dos 9 animais (novilhas) que estavam na Quinta (Local 1) para outra exploração (Quinta Local 3), acrescido do trabalho que os autores tiveram em acomodá-los e lograr quem deles tratasse nesta última exploração;
23.- Posteriormente, os Autores tiveram de diligenciar pela alimentação dos seus animais e acomodação posterior na Quinta (Local 3), de novo tudo a suas expensas;
24.- O Réu assumiu, em declarações prestadas no âmbito do identificado processo crime, que, no dia 27 de junho de 2019, cerca das 18.00 horas, se deslocou à sua propriedade, na Quinta (Local 2), com vista a que fosse realizada uma intervenção técnica que lhe permitisse o fornecimento de energia na propriedade e que, no momento em que se encontravam junto do portão, após terem ligado a instalação elétrica, deflagrou um incêndio numa zona onde se encontravam umas estruturas de cimento que acondicionam cabos elétricos;
25.- O réu confirmou que as ligações elétricas na sua propriedade eram as mesmas da data da aquisição do terreno;
26.- O réu não se assegurou da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia na instalação que se propôs, designadamente, não mandou vistoriar por eletricista as referidas estruturas de cimento que acondicionam cabos elétricos, que, apesar de se situarem a céu aberto, não são estanques; os aludidos quatro pontos de energia estão colocados no solo em estruturas de betão com cerca de 15 cm de altura, estando estas estruturas cobertas, de forma provisória, com pequenas lajes, conforme se observa pelas fotografias que constam de fls. 47 a 49 da certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 (integram o relatório da Policia Judiciária).
27.- A parte urbana e os veículos dos autores nunca estiveram em perigo de destruição;
28.- Relativamente às instalações elétricas existentes no prédio dos réus, a que corresponde o Ponto de Entrega de Eletricidade ………3VX, a CERTIEL, à altura entidade competente para a certificação deste tipo de instalações, emitiu em 15-12-2006 o Certificado n.º……..859, sendo a potência certificada de 13,80 kVA;
29.- Em 25-06-2019, o réu CC celebrou com a EDP Comercial, Comercialização de Energia, S.A. o contrato de fornecimento de energia elétrica com o n.º …………….206, cfr. doc. junto com a contestação.
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III.2. O Tribunal Recorrido considerou não provados os seguintes factos com relevância para a decisão:

1.- Quando a Autora chegou à Quinta (Local 1) desmaiou, perdendo os sentidos por breves momentos.
2.- Só a intervenção célere do helicóptero utilizado no combate ao incêndio impediu que o fogo atingisse o monte (casa).
3.- Os autores sentiram desespero e angústia quando tiveram de decidir e fazer o transporte dos 18 animais (vacas) que estava na Quinta para outra exploração.
4.- As instalações elétricas existentes no prédio dos réus encontravam-se em perfeitas condições, bem como devidamente aptas, conforme resulta das fotografias constantes do aludido relatório da polícia judiciária.
5.- As instalações elétricas existentes no prédio dos réus foram aceites pela EDP.

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III.3. Da impugnação da matéria de facto.
O Apelante impugna agora a matéria de facto considerada na sentença sob censura, proferida após a decisão deste Tribunal da Relação (que se debruçou sobre a impugnação então apresentada, e que, como é sabido, tinha um âmbito mais alargado), por considerar que o Tribunal “a quo” julgou incorretamente os pontos 26, da factualidade provada e pontos 4 e 5, da factualidade não provada, os quais, devia ter julgado, como não provado e provados, respetivamente.
O Recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil - especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que, no seu entender, conduzem à alteração daqueles pontos nos termos por si propugnados, e concretizou a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida, indicando as passagens da gravação em que funda o recurso, nada obstando, pois, ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.
Tarefa que cumpre realizar tendo presente que por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insuscetível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (artigos. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do Código de Processo Civil).
E que nos termos do artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no Código Civil, designadamente nos seus artigos 389º (para a prova pericial), e 396º (para a prova testemunhal), sendo que a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil).
Procedeu-se à audição da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente à produzida após a reabertura da audiência, e à conjugação da mesma com o teor da prova documental junta aos autos e igualmente analisada em audiência.
E da concatenação de toda a prova assim produzida, não podemos deixar de concordar com o juízo probatório realizado pelo Tribunal Recorrido.
Recordemos os factos em causa para facilitar a análise que se impõe realizar:
26.- O réu não se assegurou da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia na instalação que se propôs, designadamente, não mandou vistoriar por eletricista as referidas estruturas de cimento que acondicionam cabos elétricos, que, apesar de se situarem a céu aberto, não são estanques; os aludidos quatro pontos de energia estão colocados no solo em estruturas de betão com cerca de 15 cm de altura, estando estas estruturas cobertas, de forma provisória, com pequenas lajes, conforme se observa pelas fotografias que constam de fls. 47 a 49 da certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 (integram o relatório da Policia Judiciária).
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4.- As instalações elétricas existentes no prédio dos réus encontravam-se em perfeitas condições, bem como devidamente aptas, conforme resulta das fotografias constantes do aludido relatório da polícia judiciária.
5.- As instalações elétricas existentes no prédio dos réus foram aceites pela EDP.
Em causa estão, pois, as circunstâncias que determinaram o deflagrar do incêndio.
O Tribunal Recorrido motivou a sua decisão quanto a estes factos no seguinte trecho da decisão:
“(…)Quanto aos factos provados elencados sob os n.ºs 19, 24, 25, 26, 28 e 29: a certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 integra cópia do aludido relatório da Polícia Judiciária; as referidas declarações do ora réu CC, mencionadas no indicado ponto 24 dos factos provados, constam igualmente da aludida certidão; o réu CC, nas declarações prestadas na audiência final, confirmou a ocorrência dos factos contidos no indicado ponto 24, bem como confirmou que as ligações elétricas na sua propriedade eram as mesmas da data da aquisição do terreno; os factos contidos no indicado ponto 28 estão comprovados pelo teor do ofício de 07-02-2022 da Direção Geral de Energia e Geologia onde se informou o seguinte: “(…) fizemos uma pesquisa na base de dados enviada pela CERTIEL, à altura entidade competente para a certificação deste tipo de instalações, que foi extinta pelo Decreto-Lei n.º 96/2017 e verificámos que as digitalizações dos Certificados de Exploração só existem na base de dados a partir do ano de 2013, pelo que não conseguimos enviar qualquer digitalização do certificado de exploração, no entanto consegue-se extrair os seguintes dados:
N.º Certificado: ……………859
Potência Certificada: 13,80 kVA
NIP: …….231
Tipo de local: Recinto agrícola
Data da certificação: 15.12.2006
Mais informo que, à data da certificação este tipo de instalação não carecia de projeto elétrico por ser inferior a 50 kVA, só a partir da entrada em vigor da Lei n.º 61/2018, de 21 de agosto, as instalações superiores a 10,35 kVA passaram a carecer de projeto elétrico para a certificação da instalação elétrica.
Não existe na base de dados da CERTIEL, enviada à DGEG, qualquer registo de não conformidades decorrentes de eventual ação de inspeção desta instalação elétrica, pelo que não terá sido emitido qual relatório ou certificado provisório.
Desde a data da certificação não existe qualquer registo de alterações efetuadas nesta instalação elétrica (…).”; o teor do doc. junto com a contestação (cópia do respetivo contrato) comprova o vertido no ponto 29; nas suas declarações na audiência final, o réu CC esclareceu o seguinte:
- os anteriores proprietários da Quinta (Local 2), adquirida pelos ora réus em 03-11-2015 (conforme cópia do contrato de compra e venda que integra a aludida certidão e ainda cópia dos registos prediais junta com o req. de 12-11-2021), mandaram efetuar a instalação elétrica existente naquele prédio no decurso do ano de 2006, visando, designadamente, a instalação de quatro candeeiros exteriores;
- os anteriores proprietários pretendiam construir uma casa de habitação na Quinta (Local 2), o que não foi aprovado pela Câmara Municipal de Évora, pelo que a existente instalação elétrica, até 27 de junho de 2019, nunca foi ligada à rede elétrica da EDP;
- no decurso do ano de 2019, o réu CC deslocou-se à EDP para efetuar um contrato de fornecimento de energia elétrica para a Quinta (Local 2), tendo a EDP referido que era necessário comprovar a certificação pela entidade competente da respetiva instalação elétrica;
- o réu CC, através do Sr. HH (que tem uma horta no prédio do réu), contratou os serviços do Sr. JJ, que é eletricista, para realizar aquela certificação, tendo este último, através do Sr. HH, informado o réu que aquela instalação já estava certificada em 2006;
- o réu nunca falou pessoalmente com o Sr. JJ nem nunca mandou vistoriar fisicamente a referida instalação elétrica no interior do seu prédio por técnico qualificado;
- o prédio dos ora réus não tem qualquer casa de habitação.

A testemunha HH confirmou que, por indicação do réu CC, pediu ao referido Sr. JJ para intervir no âmbito da resolução da questão da ligação da mencionada instalação elétrica à rede elétrica da EDP, esclarecendo que o Sr. JJ apenas esteve junto da entrada para a Quinta (Local 2), não tendo vistoriado os quatro pontos de energia (inicialmente destinados a candeeiros exteriores) nem a restante instalação elétrica existente no interior do identificado prédio dos réus; os aludidos quatro pontos de energia estão colocados no solo em estruturas de betão com cerca de 15 cm de altura, estando estas estruturas cobertas, de forma provisória, com pequenas lajes, conforme se observa pelas fotografias que constam de fls. 47 a 49 da certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 (integram o relatório da Policia Judiciária).

A testemunha JJ referiu que nunca contactou com o réu CC, tendo todos os contactos sido efetuados por intermédio da testemunha HH, incluindo a sua contratação para a prestação de serviços como eletricista e o pagamento dos serviços prestados ao mesmo réu CC; a testemunha JJ esclareceu que, na altura, exercia a atividade profissional de eletricista, trabalhando para a empresa EMP1, Lda., empresa esta que era subempreiteira da empresa EMP2 que, por sua vez, prestava serviços para a EDP, cabendo nas funções profissionais daquela testemunha, designadamente, o serviço de piquete e montagem e desmontagem dos contadores elétricos; referiu ainda a testemunha JJ que foi contratado pelo réu CC, por intermédio da testemunha HH, para tratar do fornecimento de energia elétrica ao identificado prédio dos réus, salientando que não chegou a entrar neste último prédio já que o contador elétrico estava instalado na parte exterior do muro daquele prédio dos réus; a testemunha JJ afirmou que então desconhecia o concreto estado da instalação elétrica no interior do identificado prédio dos réus, nomeadamente desconhecia a existência dos indicados “pontos de luz”, esclarecendo que não foi incumbido pelo réu CC - diretamente ou por intermédio da testemunha HH - para vistoriar a instalação elétrica existente no interior do prédio dos réus mas apenas para tratar da ligação da energia elétrica através do quadro elétrico existente no mesmo prédio dos réus; quanto a este quadro elétrico, a testemunha JJ referiu que teve de o reparar, substituindo os respetivos fusíveis porque os mesmos estavam degradados, e que o funcionário da EDP (ou da empresa encarregada para o efeito, no caso a EMP2) não efetuaria a ligação da energia elétrica sem que tal prévia reparação do quadro elétrico fosse realizada; ao serem exibidas à testemunha JJ as fotografias dos mencionados “pontos de luz” - fotografias que constam de fls. 47 a 49 da certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 (integram o relatório da Policia Judiciária) -, esta testemunha constatou imediatamente que os mesmos não estavam contidos numa caixa estanque, afirmando que se conhecesse na altura o estado dos mesmos “pontos de luz” teria aconselhado o réu CC a mandar vistoriar a respetiva instalação elétrica no interior do seu prédio antes de se proceder à ligação para início do fornecimento de energia elétrica; a testemunha LL referiu que na altura exercia a atividade profissional de eletricista, trabalhando para a empresa EMP1, Lda., empresa esta que era subempreiteira da empresa EMP2 que, por sua vez, prestava serviços para a E-Redes (empresa do grupo EDP), cabendo nas funções profissionais daquela testemunha, designadamente, o serviço de ligação de instalações privadas, como a do réu CC, à rede de fornecimento de energia elétrica; a testemunha LL afirmou que não chegou a entrar no identificado prédio dos réus dado que o contador elétrico estava instalado na parte exterior do muro daquele prédio dos réus, confirmando que ocorreu um curto circuito alguns minutos após o efetivo fornecimento de energia elétrica ao identificado prédio dos réus; ao serem exibidas à testemunha LL as fotografias dos mencionados “pontos de luz” - fotografias que constam de fls. 47 a 49 da certidão junta aos autos com o req. de 26-04-2021 (integram o relatório da Policia Judiciária) -, a mesma testemunha confirmou que tais instalações provisórias não estavam em boas condições já que não estavam estanques, assim permitindo a entrada de humidades, tendo ainda declarado que se tivesse então conhecimento do estado dos referidos “pontos de luz” teria aconselhado o réu CC a mandar vistoriar tais instalações elétricas antes de efetuar a ligação para início do fornecimento de energia elétrica; do aludido relatório da Polícia judiciária consta que “(…) Relativamente às zonas carbonizadas, designadas pelos padrões registados na vegetação rasteira, nomeadamente, zonas de exposição e protecção, grau de dano e marcas de congelação da vegetação, presume-se que o seu início teve lugar junto das estruturas em cimento da instalação eléctrica existentes na quinta.”, respeitando as fotografias com os n.ºs 6 a 11 - constantes do mesmo relatório - às aludidas “estruturas em cimento da instalação eléctrica”; em tal relatório consta ainda que “Na data, hora e local da ocorrência do incêndio, não foram registadas trovoadas, sendo apenas possível observar no local os pontos de distribuição de energia eléctrica, que tudo indica terem estado na origem do incêndio.”; nas suas declarações, o réu CC, referindo-se às mencionadas “estruturas em cimento da instalação eléctrica”, documentadas nas aludidas fotografias com os n.ºs 6 a 11, afirmou que levantou várias vezes as lajes de cobertura daquelas instalações elétricas e que verificou que os respetivos cabos elétricos estavam em bom estado, o que significa que o réu CC não desconhecia que os indicados “pontos de luz” eram instalações provisórias já com vários anos, sujeitos à entrada de humidade proveniente das chuvas, facto este que as testemunhas JJ e LL confirmaram, tendo adiantado que tais estruturas não eram estanques; a provisoriedade dos indicados pontos de luz resultou do facto de, como atrás já se aludiu, a Câmara Municipal de Évora não ter aprovado a construção ali projetada erigir pelo anterior proprietário; pelo conjunto de razões atrás elencadas concluiu-se que o réu não se assegurou da capacidade do seu terreno e das instalações lá existentes para levar a cabo o seu propósito de fornecimento de energia na instalação que se propôs, designadamente, não mandou vistoriar por eletricista as referidas estruturas de cimento que, apesar de se situarem a céu aberto e acondicionarem cabos elétricos, não são estanques; assim, julgaram-se não provados os factos contidos no ponto 4 dos factos não provados; nenhum meio de prova confirmou que “As instalações elétricas existentes no prédio dos réus foram aceites pela EDP”, tendo ficado provado que a EDP apenas exigiu ao autor CC a apresentação de um documento, emitido pela entidade competente, de certificação da referida instalação elétrica. (…)”

Subscrevemos inteiramente tal motivação.
Efetivamente, da audição das testemunhas JJ e LL foi possível determinar com clareza os contornos dos serviços solicitados pelo ora Réu, por intermédio de HH, que foram executados diretamente pelas referidas testemunhas e que culminaram na ligação do contador de eletricidade por LL na data do incêndio – o Réu pediu que fossem averiguadas as condições para que fosse ligado o contador de eletricidade para que fosse fornecida energia elétrica ao prédio, mas não que fosse verificada a segurança das instalações elétricas existentes no prédio, desde momento anterior à aquisição do mesmo pelo Réu.
E isso explica que tais prestadores de serviços não tenham sequer entrado na propriedade do Réu, pois o serviço que lhes foi pedido foi apenas que interviessem na ligação da rede elétrica ao prédio, pelo que, como esclareceram repetidamente, circunscreveram a sua intervenção à instalação existente no muro de vedação do prédio do Réu.
Sucede, porém, que as instalações elétricas que então existiam no prédio do Réu, datavam de há vários anos (a certificação é de 2006), tinham natureza provisória, por terem sido realizadas na perspetiva de construção de edificação no local, que contudo, não viria a ser autorizada, e não se encontravam protegidas por caixas estanques, o que determinou que tivessem estado sujeitas a deterioração por humidade e outras condições atmosféricas adversas, independentemente da regularidade da sua projeção e concretização.
E que logo que a energia foi fornecida ao prédio, como esclareceu a testemunha LL (poucos minutos depois), deflagrou um incêndio no local, decorrente de um curto circuito nos cabos de um dos já várias vezes mencionados “pontos de luz”.
As testemunhas em causa permitiram, pois, confirmar aquilo que a prova documental, designadamente, o relatório da Polícia Judiciária e os demais documentos referidos na motivação reproduzida, indiciavam quanto às causas do infeliz sinistro, com as consequências gravosas que constam dos factos provados.
E não se duvida de que, tendo em atenção que as instalações elétricas existentes no prédio haviam sido realizadas vários anos antes, os seus proprietários deveriam ter-se assegurado da respetiva integridade e segurança previamente, ou pelo menos em momento contemporâneo da ligação à rede elétrica que solicitaram.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão de facto, pelo que, sem necessidade de maiores considerações, se julga improcedente este segmento recursivo.
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III.4. Fundamentação jurídica.
O Apelante centra a sua discordância quanto à questão jurídica no pressuposto da alteração da decisão de facto, no que concerne às causas do incêndio que provocou os danos constantes dos factos provados, e ao dever de cuidado no que se refere à ligação da instalação elétrica existente no prédio à rede da EDP.
Não tendo a matéria de facto considerada pelo Tribunal Recorrido sofrido qualquer alteração, não pode deixar de improceder a pretensão recursiva quanto a esta questão pelas razões que constam da sentença recorrida que, por razões de economia, aqui se dão por reproduzidas.
Na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado o ónus de provar todos os referidos pressupostos consagrados no nº1 do art. 483º, entre eles, como vimos, a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, ambos daquele Código, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º, contando-se, entre eles, o consagrado no nº1, do artigo 493º.
Efetivamente, a norma do nº1, do artigo 493º, estabelece uma presunção de culpa que é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, em face da ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar[1], respondendo esta civilmente pelos danos causados, a menos que logre ilidir aquela presunção..
Assim, o ónus da prova de que o facto ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância cabe ao Autor (nº1, do art. 342º, do CC) e mostra-se cumprido com a prova de que o incêndio que destruiu o imóvel começou em prédio detido pelos Réus, não sendo exigível a prova da sub-causa, isto é, do que concretamente originou o incêndio.
Assim, no caso dos autos, demonstrado que o incêndio deflagrou em prédio dos Réus e ao qual se pretendia a ligação da rede elétrica, não pode discordar-se do juízo de que o mesmo se ficou a dever a incumprimento do dever de vigilância que onerava o Apelante por ser aquele que tinha a possibilidade e a obrigação de evitar a ocorrência de danos, por ter o poder de facto sobre a coisa e o dever de a vigiar, de cuidar do seu estado de conservação, de modo a que o prédio, designadamente a ligação à rede elétrica das instalações elétricas existentes no prédio, não colocassem em risco a integridade das pessoas e das coisas alheias, o que não fez.
Não tendo o Apelante demonstrado que a observância dos deveres de cuidado que se lhe impunham ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua está, pois, o Apelante (pois apenas da sua responsabilidade se cuida neste recurso) como bem entendeu o Tribunal a quo em face aos factos que considerou provados, e cuja decisão de facto, como supra se decidiu, aqui se mantém, obrigado a indemnizar os Autores por todos os danos por eles sofridos, no valor considerado pelo Tribunal Recorrido, que não é posto em causa no recurso.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões das apelações, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo Apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante – artigo 527.º, ns.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.

*
Évora,
Ana Pessoa
José António Moita
Maria Adelaide Domingos


__________________________________________________
[1] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 27.02.2023, proferido no âmbito do processo n.º 641/20.0T8PVZ.P1 e toda a doutrina e jurisprudência no mesmo citadas.