Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | BEATRIZ MARQUES BORGES | ||
Descritores: | CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES ERRO DE JULGAMENTO PROVA PERICIAL | ||
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Data do Acordão: | 02/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. No crime de condução sob o efeito de substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou de efeito análogo, previsto no n.º 2, do artigo 292.º do CP, é necessária a “demonstração” de que o consumo daquelas substâncias impedia o agente de conduzir com segurança. II. Essa prova deve ser efetuada preferencialmente através de perícia a realizar pelo IML que interprete os valores da amostra de sangue colhida. III. Por regra, o juízo técnico e científico constante da prova pericial (artigo 163.º do CP) está subtraído à livre apreciação do Tribunal, sendo uma exceção ao artigo 127.º do CPP. IV. De acordo com o perito do IML a presença de benzoilecgonina (metabolito da cocaína), numa concentração de 21 ng/mL, e a influência desse produto no corpo do condutor tornava-o incapaz de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança. V. O Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) ao preterir a prova pericial, sem apoio em qualquer argumento de natureza científica, sendo irrelevante, por não fazer parte do tipo do crime, saber qual o lapso temporal existente entre o momento do consumo do estupefaciente e o do despiste do veículo ou o de apurar se o arguido teve ou não “culpa” no despiste sofrido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO 1. Da decisão No Processo Comum Singular n.º 153/19.4GBVRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António - Juiz 1, submetido a julgamento por acusação do MP, foi o arguido AA[1], absolvido do crime imputado na acusação pública de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP. 2. Do recurso 2.1. Das conclusões do Ministério Público Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1.ª – O presente recurso vem interposto da douta sentença que absolveu o arguido AA da prática do crime de Condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelos arts. 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal. 2.ª – Crê-se, que o douto Tribunal «a quo» julgou erradamente os factos descritos nos pontos 10- e 11- do elenco dos factos não provados da fundamentação da sentença em crise, os quais, caso não tivesse incorrido, designadamente, no vício de julgamento traduzido no erro notório na apreciação da prova que se descreverá, deveriam constar do elenco dos factos provados. 3.ª – Nos presentes autos foi produzida prova pericial realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. – Delegação do Sul [doravante INMLCF, I.P.] traduzida na elaboração de três relatórios periciais, a saber: 1 - Relatório do exame de sangue do arguido colhido no dia 06-08-2019, às 21h55, após o despiste que sofreu nesse dia, pelas 19h00, quando conduzia um motociclo – cfr. fls. 7 e 8 – no qual, e para o que ora releva, aquele INMLCF, I.P. constatou a presença no sangue do arguido de Benzoilecgonina (metabolito da cocaína) numa concentração de <25 ng/ml de sangue; 2 – Relatório com a resposta a quesitos que lhe foram formulados para saber se presença de tal substância estupefaciente em tal concentração no sangue do arguido no momento da condução, teve como consequência que não estivesse em condições de conduzir veículo a motor na via pública com segurança por se encontrar sob a influência de estupefacientes – cfr. fls. 22 e 23 -, no qual aquele INMLCF, I.P. concluiu o seguinte (al. f) do Relatório pericial): «(…) consideramos que o condutor não estaria em condições de conduzir um veículo automóvel na via pública em condições de segurança»; 3 - Relatório com a resposta a quesito complementar que lhe foi formulado para saber se a conclusão do Relatório pericial anterior se manteria mesmo que o arguido não tivesse consumido álcool (como consumiu) – cfr. referência (Citius) n.º ...09 de entrada no processo electrónico, de 13.04.2022 (não paginado) -, no qual aquele INMLCF, I.P. não invalidou a conclusão final do 1.º Relatório pericial e concluiu que (al. b) do Relatório pericial) «(…) No caso da cocaína um risco de acidente grave em condutores que consumiram é 3 vezes superior comparativamente a condutores que não consumiram». 4.ª – Apesar das conclusões periciais apresentadas pelo Sr.º Perito do Serviço de Química e Toxicologia Forense do INMLCF, I.P., retira-se da fundamentação da matéria de facto da douta sentença que o Tribunal «a quo» não aceitou o valor da prova pericial fixado no art.º 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal relativamente às duas últimas perícias daquele INMLCF, I.P. que constam dos Relatórios Periciais de fls. 22 e 23 e no processo electrónico com a referência (Citius) n.º ...09, de 13.04.2022 (não paginado), porque não reconheceu validade às conclusões formuladas pelo Perito as quais, no entendimento do Tribunal recorrido, são insuficientes, por não conterem os conhecimentos e as informações necessárias para poder afirmar – como afirmou - que, no momento do acidente de viação que o arguido sofreu como condutor do motociclo de matrícula ....GZB e da acção de fiscalização policial com recolha de sangue que se seguiu, o arguido não estava em condições de conduzir com segurança por se encontrar sob a influência de estupefacientes, já que não fez constar das respectivas conclusões periciais que (1.º) o acidente de viação do arguido se deu devido à diminuição de tais condições de segurança por se encontrar sob a influência de estupefacientes; (2.º) não discutiu, mormente, o lapso temporal entre o momento do consumo e o momento da produção do acidente. Ou seja, retira-se daquela fundamentação que o Tribunal «a quo» divergiu do juízo científico e técnico contido nas conclusões da prova pericial plasmadas nos mencionados Relatórios periciais porque entendeu, em oposição com as conclusões afirmadas pelo Sr. Perito, que na análise aos resultados do exame de sangue do arguido após o acidente de viação, aquele Sr.º Perito não tendo afirmado os nexos de causalidade entre o consumo de cocaína e a produção do acidente de viação e não tendo discutido o lapso temporal entre o momento do consumo e o momento da produção do acidente, o Sr. Perito não podia ter formulado conclusões sobre o objecto do processo no sentido de afirmar, como afirmou, que nas condições que revelam os resultados do exame de sangue do arguido (constantes do 1.º Relatório pericial) e com os conhecimentos científicos actuais que possui: •«(…) considera[mos] que o condutor não estaria em condições de conduzir um veículo automóvel na via pública em condições de segurança (cfr. al. f) do 1.º Relatório pericial - fls. 23); e que •«No caso da cocaína um risco de acidente grave em condutores que consumiram é 3 vezes superior comparativamente a condutores que não consumiram» (cfr. al. b) do 2.º Relatório pericial). 5.ª – Afigura-se, porém, com o devido respeito e salvo melhor entendimento de V. Exas., que o Tribunal «a quo» não foi capaz de explicar o raciocínio lógico que percorreu para decidir que a não consideração pelo Sr. Perito do período temporal que mediou entre o momento do consumo da cocaína e a verificação do acidente de viação e recolha de sangue para análise que se seguiu, tinham que impedir o Sr. Perito de afirmar, como afirmou, com base na sua experiência e nos conhecimentos técnicos e científicos que possui, que o arguido não estava em condições de conduzir um veículo automóvel na via por estar sob a influência de estupefacientes. E, por força desse erro de julgamento, julgou erradamente os factos descritos nos números 10- e 11- do elenco dos factos não provados da fundamentação da sentença, que devem ser considerados como factos provados, e o arguido condenado pelo crime de que foi acusado. 6.ª – Afigura-se ainda, e salvo melhor entendimento de V. Exas., que o Tribunal «a quo» incorreu também nos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, ao afirmar na fundamentação da sentença em crise que com base nas declarações do arguido a que deu credibilidade, deu como provado que o arguido consumiu a cocaína «durante a madrugada do dia do acidente» - cfr. facto provado n.º 3 – e, simultaneamente, e ainda com fundamento nas declarações do arguido, afirmou que se convenceu que o arguido consumiu cocaína «umas horas antes da condução», sendo certo que o acidente de viação ocorreu pelas 19h00 do dia 06-08-2019 e não se sabe quando é que o arguido iniciou a condução. Ou seja, o Tribunal «a quo» não sabe quando é que o arguido consumiu a cocaína que lhe foi detectada no organismo quando se despistou e lhe foi recolhido sangue para análise, e absolveu-o por discordar das conclusões do Sr. Perito do INMLCF, IP que afirmam que o arguido não estava em condições de conduzir em segurança devido ao consumo da cocaína na quantidade que lhe foi detectada no sangue no momento do acidente de viação, sem fazer depender o sentido das suas conclusões periciais do conhecimento do momento temporal do consumo do estupefaciente e do nexo de causalidade entre o consumo e a produção do acidente de viação, mas tão só da quantidade e qualidade do estupefaciente que apresentava no sangue quando se despistou. E, por não aceitar este conhecimento pericial, o Tribunal «a quo» absolveu o arguido, sem – contudo – apresentar, apreciar e valorar qualquer argumento científico que invalide as conclusões periciais apresentadas pelo Sr. Perito do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INMLCF, IP. 7.ª – Como se aludiu, os dois únicos fundamentos que o Tribunal «a quo» mencionou para divergir do juízo científico apresentado pelo Sr. Perito nas conclusões das perícias que fez nestes autos, foram (1.º) a circunstância deste não ter discutido sobre eventuais nexos de causalidade entre a origem do acidente de viação do arguido e a falta de condições para conduzir o veículo na via pública em condições de segurança por ter no sangue uma concentração <25 (inferior a vinte cinco) nanogramas de BENZOILECGONINA (metabolito da cocaína) por mililitro de sangue (ng/ml); e (2.º) não ter levado em consideração o hiato temporal entre o momento do consumo da cocaína e o acidente de viação. 8.ª – Ora, entende o Ministério Público que - para além do douto Tribunal «a quo» ter incorrido no vício da sentença traduzido na contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão relativamente à definição do momento do consumo da cocaína, sucessivamente identificado como tendo ocorrido durante a madrugada do dia 06-08-2019 e, como tendo ocorrido umas horas antes da condução, a qual não se sabe quando é que se iniciou, mas tão só que o acidente de viação ocorreu pelas 19h00 desse dia -, o Tribunal «a quo» não cumpriu de forma lógica o dever legal de fundamentar a divergência que assumiu com o juízo científico do Sr. Perito do INMLCF, IP, uma vez que não explicou a razão científica pela qual a não consideração nas perícias do lapso temporal entre o momento do consumo da cocaína e o momento do acidente de viação invalidam os conhecimentos científicos supostos nas perícias e as respectivas conclusões. 9.ª – E, assim sendo, e não tendo considerado o valor da prova pericial dos autos subtraído à livre apreciação do julgador, violou o disposto no art.º 163.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal. 10.º – Afigura-se que, não bastava ao Tribunal «a quo», salvo melhor entendimento de V. Exas, dizer que não aceita as conclusões das perícias porque o perito não considerou uma factualidade que não integra os elementos objectivos do tipo-de-ilícito e que, aliás, nunca lhe foi comunicada. O Tribunal «a quo deveria ter explicado, DE FORMA LÓGICA E EM FACE DOS CONHECIMENTOS MATERIAIS PRESSUPOSTOS NA PERÍCIA, porque razão o Perito perante o resultado do exame pericial ao sangue do arguido e o acidente de viação conhecido, TINHA QUE AFIRMAR NÃO SABER SE O ARGUIDO ESTAVA OU NÃO EM CONDIÇÕES DE CONDUZIR UM VEÍCULO MOTORIZADO NA VIA PÚBLICA EM CONDIÇÕES DE SEGURANÇA, em vez de afirmar, como afirmou, que considera que, em face da concentração estimada de 21 ng/ml de benzoilecgonina detetada (<25 ng/ml) e o elevado risco de acidente estimado em 3 vezes superior aos condutores que não consumiram cocaína, o arguido não estava em condições de conduzir um veículo automóvel na via pública em condições de segurança. 11.ª – Porém, o Tribunal «a quo» fez “tábua rasa” das conclusões dos dois últimos relatórios periciais e quedou-se pela lacónica afirmação de que o Perito não afirmou qualquer nexo de causalidade entre o consumo da cocaína e o acidente de viação e não teve em conta o hiato temporal entre o consumo da cocaína e o acidente. O Tribunal «a quo» assumiu o raciocínio não fundamentado em face dos conhecimentos científicos supostos nas perícias, de que nas condições técnicas e científicas em que as realizou e que descreveu nos Relatórios Periciais que elaborou, ele – Perito -, não podia ter concluído o concluiu porque desconhece o que concluiu uma vez que desconhece factos que o Tribunal «a quo» nunca lhe comunicou, que o Perito nunca solicitou, e que nem integram o tipo de ilícito em causa (v.g. o lapso temporal entre o momento do consumo e o momento da produção do acidente) e que, em face desse desconhecimento, o Perito não devia ter formulado conclusões sobre o objecto do processo relativamente à circunstância do arguido não estar em condições de conduzir veículo motorizado na via pública em condições de segurança, por não ter - no entendimento do Tribunal «a quo» - o conhecimento de factos suficientes para o efeito que lhe permitissem raciocinar sobre o objecto do processo. Mas, tal como se referiu, o Tribunal «a quo» não explicou de forma racional e em face dos conhecimentos materiais supostos na perícia, a razão pela qual diverge quanto aos critérios utilizados e as conclusões a que o Sr. Perito chegou com base neles. 12.ª – Pelo exposto, afigura-se que a douta sentença do Tribunal «a quo» violou o disposto no art.º 163.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal por ter desrespeitado a regra sobre o valor da prova vinculada com base num juízo arbitrário de apreciação das conclusões periciais e que consequentemente, padece do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal. 13.ª – Padece, ainda, a douta sentença em crise dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de contradição entre a fundamentação e a decisão – previstos no art.º 410.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal - por ter dado como provado no facto n.º 3 dos factos provados da fundamentação da sentença absolutória que o arguido consumiu cocaína, «durante a madrugada» do dia do acidente de viação (06-08-2019) e, simultaneamente, fazer constar da motivação que o arguido consumiu cocaína «umas horas antes da condução», sendo certo que o acidente de viação ocorreu às 19h00 e, por isso, nunca poderá remontar à madrugada do dia do acidente, como foi dado como provado. 14.º - E por isso, deve a douta sentença do Tribunal «a quo» ser anulada e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos disposto no art.º 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal para prolação de nova decisão que, em cumprimento do estatuído no referido preceito legal violado, reconheça o valor dos juízos científicos plasmados nos dois últimos relatórios periciais dos autos como subtraídos à livre apreciação do julgador e que – nessa conformidade - dê como provados os factos descritos sob os números 10- e 11- da fundamentação da sentença que constam dos factos não provados e, condene o arguido pela prática de 1 (um) crime de consumado de Condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelos arts. 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, de que vinha acusado. (…)”. 2.2. Das contra-alegações do arguido Respondeu o arguido defendendo o acerto da decisão recorrida, quanto às questões suscitadas pelo MP concluindo nos seguintes termos (transcrição): “(…) Em suma, o Recurso baseia-se essencialmente, no facto do Tribunal a quo ter dado como não provado os pontos 10 e 11 do elenco dos factos não provados, ou seja, “que o arguido não estivesse em condições de conduzir o referido veiculo em segurança por se encontrar sob a influencia dos respetivos efeitos, o que admitiu e aceitou” e “ que agiu deliberadamente, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei”, o que se traduziu num erro na apreciação da prova. Afirma ainda o Recurso que o Tribunal não considerou o valor da prova pericial dos autos. Ora, entende o arguido que a apreciação tida pelo Tribunal a quo, aquando da prolação da sentença proferida, foi tida sem mácula, porquanto, a produção de prova em sede de audiência e julgamento não permitiu concluir que o arguido não estaria em condições de conduzir com segurança, quando se deu o acidente. São elementos integrantes do crime em causa: a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada; b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica; c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência. Não basta, pois, a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo do condutor, sendo necessário que a mesma influencie e o torne incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a alegar e demonstrar. Facto que efetivamente, o Ministério Publico não logrou provar em juízo. Considerando que os elementos constitutivos do tipo legal de crime em causa não resultaram provados, o Tribunal a quo teria necessariamente que absolver o arguido do crime que lhe era imputado, o que fez, de forma exemplar, fundamentando exaustivamente a sua decisão. Pelo exposto, entende o arguido pela improcedência do Recurso interposto e consequente manutenção da Sentença proferida nos seus exatos termos. (…)”. 2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo MP. 2.4. Da tramitação subsequente Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência. Cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso. 2. Questões a examinar Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são as seguintes: 2.1. Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP), em virtude da violação de regra sobre o valor de prova vinculada com base em juízo arbitrário de apreciação das conclusões periciais (artigo 163.º, n.ºs 1 e 2 do CPP); 2.2. Impugnação da matéria de facto por violação do artigo 410., n.º 2, alíneas b) e c) do CPP; 2.3. Erro de julgamento quanto ao direito aplicável (artigo 412.º, n.º 2 do CPP).
O MP inconformado com a decisão interpôs recurso e pugnou pela anulação do julgamento e pela prolação de nova decisão na qual fosse reconhecido o valor dos juízos científicos plasmados nos dois relatórios periciais, que na sua ótica se encontram subtraídos à livre apreciação do julgador. Em consequência requereu fossem dados como provados os factos descritos na sentença recorrida conduzidos aos não provados sob os pontos 10. e 11.. Termina pedindo seja o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, de que vinha acusado. Cumpre, agora, conhecer as questões suscitadas pelo MP e também anteriormente assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão, começando, todavia, por enquadrar legalmente o regime aplicável ao crime imputado ao arguido.
3.2.1. Enquadramento legal do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas Estabelece o artigo 292.º do CP sob a epígrafe “Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”: “1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.”.
Este crime é de perigo comum abstrato, embora Silva Dias[2] assinale, desde logo, uma diferença entre os seus n.ºs 1 e 2. No n.º 1 o crime de perigo é presumido e não admite a prova em contrário, enquanto no n.º 2 admite essa prova em contrário Por outras palavras: Na condução em estado de embriaguez a lei no seu n.º 1 fixa a concreta taxa de álcool no sangue (TAS) a partir da qual se infere objetivamente quando a influência dessa substância compromete de tal forma as capacidades motoras e intelectuais de uma condução segura ao ponto de ser punida criminalmente[3], ou seja, a TAS de 1,2 gramas de álcool por litro no sangue. Já na condução sob o efeito de substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou de efeito análogo, prevista no n.º 2, o legislador penal optou por não indicar a taxa a partir da qual a condução deve ser sancionada criminalmente. Sem prejuízo, do referido, cumpre salientar que a nível contraordenacional basta a deteção no sangue de psicotrópicos, independentemente da prova do comprometimento de uma condução segura[4] [5]. Esta opção legislativa de não determinar concretamente a taxa comprometedora das capacidades motoras e intelectuais de uma condução segura encontra fundamento na diversidade de características de cada uma das substâncias psicotrópicas[6] (ex: canabinóides, cocaína e seus metabolitos, opiáceos, anfetaminas e derivados) – cf. artigo 8.º da Lei 18/2007 de 17 de maio. Acresce que a taxa de álcool no sangue, após algumas horas contadas da sua ingestão, decresce e dissipa-se de seguida, enquanto várias das substâncias psicotrópicas mantém-se algumas horas após o consumo permanecendo no organismo por vários dias. Assim, em relação à ingestão de álcool o cometimento do crime depende tão só do facto de o condutor conduzir com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l, enquanto na toma de estupefacientes para além de o condutor ter de acusar o consumo através de um exame ao sangue tem de ser alegado e provado que aquele tinha a sua capacidade de exercício de condução diminuída devido ao consumo de psicotrópicos. Tal como alguém que conduza com uma taxa de álcool no sangue de 0,3 g/l, não é punido contraordenacionalmente ou penalmente, pode acontecer um automobilista acusar uma presença mínima no sangue de uma substância psicotrópica (por exemplo por ter estado junto de um fumador de haxixe), mas essa quantidade não ter influência negativa na condução que reclame punição penal. Face aos inúmeros tipos de substâncias psicotrópicas o julgador terá de apreciar caso a caso se essa taxa de psicotrópicos no sangue é ou não suscetível de criar um risco acrescido de uma condução censurável criminalmente. Como deve, então, ser realizada essa prova de que o condutor, em consequência da ingestão dos produtos estupefacientes ou das substâncias psicotrópicas, não estava em condições de conduzir com segurança? Alguma Jurisprudência[7] salientou ser imprescindível a realização do “exame médico” aludido no anexo VII da Portaria 902-B/07 de 13.8.. Não se deve, todavia, confundir o resultado obtido através do “exame médico” (observação do condutor por um médico, por não te sido possível colher sangue) com o “exame de rastreio” (amostras de saliva, suor, urina ou sangue) ou com o “exame de confirmação” (sangue), exames esses previstos na Lei 18/2007 e na Portaria 902-B/2007, para onde remete o artigo 81.º, n.º 5 do Código da Estrada[8]. Conforme estabelece o artigo 10.º da Lei 18/2007 a deteção de substâncias psicotrópicas pode incluir um “exame prévio de rastreio” (despistagem), que serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas (artigo 11.º, n.º 1). Se o resultado deste teste rápido for positivo o IML realiza em seguida um “exame de confirmação”, com base numa amostra de sangue, como definido na Portaria de Regulamentação n.º 902-B/2007. Como se assinala no Acórdão desta RE de 10.11.2020[9]: “A realização do teste de despistagem tem a ver com a economia de meios (porque seria impraticável a realização do teste quantitativo em todas as pessoa fiscalizadas) sendo ceto que o resultado positivo não serve de prova para a acusação em processo penal. Porém, a realização directa de análises sanguíneas (…) não representa nenhuma nulidade de prova (…) apenas significando que se salta a fase da despistagem passando-se diretamente ao exame pericial, que identificará o estupefaciente em concreto e o seu nível de concentração.”. Pode, assim, acontecer que o condutor não seja submetido a “exame de rastreio” (este é facultativo), muitas vezes porque tendo sido interveniente em acidente de viação não estará em condições de o ser, sendo conduzido diretamente ao hospital onde é sujeito a “exame de confirmação” com colheita de sangue. Sendo positivo o resultado deste último exame quanto à presença de qualquer substância psicotrópica, prevista no quadro 1 do anexo V da Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto, servirá para efeitos de prova em processo penal. Exigiu o legislador este exame com colheita de sangue, mesmo quando tenha sido realizado exame positivo de despiste (“exame de rastreio”) devido naturalmente à fiabilidade e objetividade conferida pela análise sanguínea, por oposição às demais (teste rápido ao sangue, à urina, à saliva e ao suor). Para efeitos criminais a prova da influência do consumo de estupefacientes tem, pois, de resultar do “exame de confirmação” (recolha de sangue) ou, quando não seja possível realizar esse teste (caso de frustração da tentativa de colheita de uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do “exame de confirmação”) de um “exame médico” (cf. artigo 12.º, n.º 5 e 13.º da Lei 18/2007). Este “exame médico” naturalmente, só é realizado depois de o condutor se sujeitar a um teste rápido de rastreio positivo (sangue, suor, urina, saliva – cf. artigo 11.º da Lei 18/2007 de 17.5) e é por força do nº 3 do artigo 13.º da Lei 18/2007 equiparado, para todos os efeitos legais, à obtenção de resultado positivo no “exame de confirmação” (sangue). Depois, ainda, para os fins penais, é necessária a demonstração de que o consumo impedia o agente de conduzir com segurança. Essa prova deve ser realizada preferencialmente com base numa perícia que interprete os valores da amostra de sangue colhida. A demonstração dessa falta de condições para o condutor conduzir também pode ser realizada através do apontado “exame médico” (artigo 13.º da Lei 18/2007) ponderado com o resultado do teste rápido, em articulação com a quantidade e tipo de estupefaciente. Já saber se as imagens captadas por câmaras de vigilância ou de depoimentos de testemunhas atestando ter ocorrido uma condução imprudente (ex: ziguezaguear do veículo, etc) serão suficientes para demonstrar, em face da experiência comum, da razoabilidade da vida e da normalidade das coisas, que o condutor não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, poderá ser mais controversa, mas não cabe no âmbito da análise deste recurso. Em todo o caso, caberá ao julgador, atento o disposto no artigo 127.º do CPP, com base numa avaliação global dos resultados obtidos através dos testes rápidos, “exame de confirmação” ou “exame médico”, perícia e declarações testemunhais valorar se aquela quantidade concreta de um determinado tipo de estupefaciente no sangue impedia ou não o automobilista de exercer a condução em segurança. Tecidas estas considerações de ordem geral, debrucemo-nos, agora, sobre o caso em apreciação, tendo, em consideração que o MP suscitou o erro de julgamento quanto aos factos não provados e os vícios da sentença do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP.
3.2.2. Do erro de julgamento quanto aos factos não provados (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 e dos vícios da sentença (artigo 410.º, n.º 2 alíneas b) e c) do CPP) No processo em análise o arguido foi interveniente num acidente de viação ocorrido em 6 de agosto de 2019, pelas 19:00 horas enquanto pilotava o motociclo de duas rodas na Estrada Municipal ...7. Transportado para o hospital foi submetido a “exame de confirmação” realizado pelo IML revelando a presença no sangue de uma concentração <25 (menor 25, pois = a 21) nanogramas de benzoilecgonina (metabolito da cocaína) por mililitro de sangue (ng/mL), substância que integra o grupo de cocaína. O MP em sede de inquérito por consideração ao entendimento defendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, que assinala[10], relativamente à prova do estado de influenciado na condução de veículos pelo consumo de estupefacientes, remeteu ao IML certidão de fls. 7, 8, 3, 4 e 13 a 17, solicitando a resposta a dois quesitos, a saber: - 1.º Quesito: Qual o nível de interferência na condução de um veículo ciclomotor de duas rodas da presença de < 25 nanogramas por mililitro de benzoilecgonina no sangue? - 2.º Quesito: Pode afirmar-se que a presença no sangue de tal substância nessa quantidade influenciou ou perturbou o condutor de tal veículo e tornou-o incapaz de conduzir com segurança? Em resposta o IML respondeu pela seguinte forma aos quesitos colocados: “a) A presença no sangue das substâncias psicotrópicas previstas na Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto são suscetíveis de provocar efeitos perturbadores da aptidão física e mental para uma condução em segurança. b) As substancias com efeito psicoativo detetadas na amostra de sangue recebida neste serviço em 14/08/2019 (…) forma a Benzoilecgonina (metabolito da cocaína) numa concentração de <25 ng/mL e Etanol numa concentração de 1,34 +/- 0,17 g/L. c) A Cocaína, atua sobre o SNC e cujos efeitos com impacto negativo na capacidade para conduzir são, entre outros, a exagerada autoestima, o aumento da disponibilidade para correr riscos, a redução do sentido crítico e da realidade, e a incorreta avaliação das situações, traduzindo-se numa procura de sensações diferentes normalmente através de uma condução inadequada e perigosa. d) Os efeitos provocados pela cocaína ocorrem em 3 fase. A primeira fase, durante a qual é possível, em geral, detetar a presença de cocaína e benzoilecgonina (metabolito), caracteriza-se por um estado de euforia (high) perda de sentido crítico, diminuição da sensação de fadiga, aumento da autoconfiança, etc. Na segunda fase surge dificuldade de concentração, ansiedade e alterações na perceção sensorial. Na terceira fase, depressiva, durante a qual se deteta apenas presença de benzoilecgonina, surge exaustão, agressividade, irritabilidade e outras alterações psicofisiológicas. Todos os efeitos em qualquer das fases, comportam fatores de risco incompatíveis com uma condução segura, isto decorre do facto de alguns dos efeitos negativos para a condução não diminuírem de forma diretamente proporcional à diminuição da concentração das substâncias, no caso a cocaína, permanecendo por isso os efeitos incapacitantes mesmo quando a substância (cocaína) já não é detetável. e) De acordo com a literatura científica e os valores de concentração limite das substâncias no sangue previstos na legislação de vários países relativamente à segurança rodoviária variam para a Cocaína/benzoilecgonina entre 10 e 50 ng/mL. Importa referir que esta concentração limite refere-se à presença das substâncias isoladamente, uma vez que a associação de substancias psicotrópicas, nomeadamente com álcool, potencia os efeitos negativos para a condução que seriam provocados por cada substância isoladamente. f) Considerando a concentração estimada de 21 ng/mL de benzoilecgonina detetada (< 25 ng/mL) e o elevado risco de acidente e de impairment associado aos efeitos do consumo de cocaína em associação com etanol (1,34 g/L +- 0,17 g/L, consideramos que o condutor não estaria em condições de conduzir um veículo automóvel na via pública em condições de segurança.”. Apesar da existência deste relatório e, ainda, de um outro que complementou o primeiro o Tribunal a quo conduziu, ao abrigo da sua livre convicção (artigo 127.º do CPP) a materialidade constante dos artigos 10. e 11. aos factos não provados (“10- que o arguido não estivesse em condições de conduzir o referido veículo em segurança por se encontrar sob a influência dos respectivos efeitos, o que admitiu e aceitou; 11- que agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.”). No artigo 127.º do CPP consagra-se, efetivamente, um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova por parte do Julgador, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos colhidos da experiência comum. Essa livre apreciação, todavia, encontra-se limitada pelas exceções decorrentes da “prova vinculada”, designadamente como a prevista no artigo 163.º do CPP que, sob a epígrafe “valor da prova pericial”[11], estabelece: “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”. Ou seja: o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (n.º 1 do preceito). Essa presunção embora seja elidível, porquanto pode ser afastada quando a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, tem de ser devidamente fundamentada (n.º 2 do preceito em causa) o que significa que a discordância do julgador, quanto ao juízo científico constante da perícia, tem também de ser científica. Assim, por regra, o juízo técnico e científico constante da prova pericial está subtraído à livre apreciação do Tribunal - salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o Juiz terá, então, de modo seguro e sustentado, de motivar a sua divergência. É que a perícia supõe a necessidade de especiais conhecimentos para percecionar (compreender) e apreciar (valorar) factos e daí o valor da prova pericial ser acrescido em relação aos outros meios de prova. Na situação em apreciação existe um “exame de confirmação” e uma perícia, datada de 8.1.20 realizada por um assessor principal de medicina legal do serviço de química e toxicologia forenses do IML, complementada com um esclarecimento solicitado pelo tribunal em 12.4.2022. Qualquer divergência relevante do juízo inerente à prova pericial não se basta com uma apreciação genérica e inconsistente, sob pena de se incorrer numa inadmissível valoração subjetiva ou na falta de fundamentação. O Julgador na primeira instância, todavia, não aplicou corretamente a norma sobre o valor probatório específico da prova pericial (artigo 163.º do CP), pois a sua divergência tinha de ter por fundamento uma crítica material da mesma natureza da constante da perícia, isto é, uma crítica de natureza científica ou técnica (o juízo pericial - médico/científico, no caso em apreço - impõe-se ao Tribunal, a menos que este o afaste com apoio em argumentos científicos da mesma natureza). No processo a questão residia em saber se existia (ou não) um nexo causal entre o consumo da substância estupefaciente e a falta de condições de condução com segurança (elemento objetivo do tipo legal de crime do artigo 292.º, n.º 2, do CP. O exame de sangue do arguido (“exame de confirmação”) realizado no dia 6.8.2019, pelas 21:55 horas, após o despiste sofrido pelo arguido nesse dia, pelas 19h00, quando conduzia um motociclo) revela que o arguido tinha no sangue Benzoilecgonina (metabolito da cocaína), numa concentração de <25 ng/mL de sangue. O perito do IML, questionado, sobre a interpretação a dar àquele exame afirmou que a presença de tal substância estupefaciente, naquela concentração, no sangue do arguido, no momento da condução, teve como consequência que não estivesse em condições de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança. Acresceria ter arguido também consumido álcool, mas, apesar disso, o perito afirmou (cf. relatório complementar) que independentemente dessa etilização continuaria a manter-se válida e verdadeira a anterior conclusão (a presença de benzoilecgonina no sangue do arguido teve como consequência que não estivesse em condições de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança). Ou seja, mesmo que não tivesse bebido álcool, com aquela quantidade de benzoilecgonina no organismo, o arguido não estava em condições de conduzir com segurança, no momento em que se despistou, por se encontrar sob a influência de estupefacientes. Isso mesmo sem se saber qual o lapso temporal existente entre o momento do consumo do estupefaciente em causa e o momento do despiste do veículo conduzido pelo arguido. Ou de se saber se o arguido teve ou não “culpa” no despiste sofrido (o nexo de causalidade não é entre o consumo de estupefacientes e o acidente de viação, mas sim entre tal consumo e a falta de condições para conduzir o veículo na via pública em condições de segurança). Por outras palavras, e apenas quanto à essência da questão colocada: a presença do produto estupefaciente e a influência desse produto no corpo do arguido, face ao teor da prova pericial, tornava o arguido incapaz de conduzir em condições de segurança. Cumpridos os ónus legais do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP pelo recorrente MP e verificando-se ter efetivamente ocorrido um erro de julgamento quanto aos factos não provados, caberá a esta Relação retirar daí as legais consequências. Assim, com base na prova pericial, deve dar-se como provado que o arguido não estava capaz de conduzir o veículo em condições de segurança, por se encontrar sob a influência de substância estupefaciente (factos que integram um dos elementos objetivos do tipo legal de crime em causa - o elemento questionado in casu), e, além disso, a prova do dolo (prova por presunção judicial), devem, também, dar-se como provados os factos integrantes dos elementos subjetivos do crime em questão. Determina-se, assim, sejam eliminados dos factos não provados os pontos 10. e 11. que devem passar a considerar-se como provados. Por fim, face à alegada contradição entre os factos e a motivação suscitada pelo MP no recurso, dir-se-á ser irrelevante ter-se dado como provado que o arguido consumiu durante a madrugada e simultaneamente ter-se referenciado tê-lo feito horas antes do “exame de confirmação”. Saber se o consumo foi realizado há muito ou há pouco tempo, não tem significado quanto estamos perante o consumo de estupefacientes, concretamente cocaína, pois esse elemento (dilação temporal entre o consumo e o exame) não faz parte do tipo legal do crime. O importante é verificar a percentagem encontrada do princípio ativo do estupefaciente no sangue do condutor após o ato de conduzir. Não tendo sido alegado ou provado que entre o momento do acidente e a realização do “exame de confirmação” tivesse ocorrido qualquer contaminação do sangue do arguido a dilação temporal é despicienda face à quantidade de estupefaciente detetada no seu sangue. Sedimentada que fica a matéria dada como provada, por força da impugnação apresentada por via do recurso interposto pelo MP, cumpre, agora, apurar quais os reflexos quanto ao direito aplicável ao caso em apreciação.
3.2.3. Da escolha da espécie e da medida da pena principal Atenta a factualidade provada cumpre escolher a espécie e a medida da pena principal, porquanto os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime se encontram preenchidos. Sendo a moldura penal do crime punível com uma pena de prisão até 1 ano ou uma pena de multa de 10 a 120 dias e tendo em conta o disposto nos artigos 70.º e 40.º, n.º 1 do CP opta-se pela aplicação da pena de multa, por se considerar adequada e suficiente para promover a recuperação social do arguido e para satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime. O artigo 71.º, n.º 2 do CP estabelece que na determinação concreta da medida da pena se devem atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados na execução do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta licita. Na situação em apreciação verifica-se que, atendendo sobretudo à qualidade (cocaína) e à quantidade da taxa de psicotrópico detetada no sangue do arguido (21 ng/mL), a ilicitude, revelada na prática dos factos que consubstanciam o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes, se situa acima de um nível médio. No concernente à modalidade do dolo impõe-se concluir ser a mais elevada, face aos factos provados em 11., pois o arguido atuou com dolo direto, pois sabia que não podia conduzir veículo automóvel depois de ter consumido cocaína, tendo, ainda, ingerido, em simultâneo, bebidas alcoólicas (ponto 4. dos factos provados). Por outro lado, foi interveniente em acidente de viação tendo-se despistado enquanto conduzia um motociclo de duas rodas numa estrada municipal. Como se colhe do facto dado como provado sob o ponto 9 o arguido, cerca de dois meses depois de ter praticado os factos em análise neste recurso cometeu em 17.10.2019 um crime de injúria pelo qual foi condenado em 70 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 9.12.2019. Quanto às suas condições pessoais o arguido vive em casa dos pais, com estes, tem o 9.º ano de escolaridade, é solteiro, não tem filhos e frequenta um programa ocupacional ministrado por uma CM auferindo uma remuneração mensal de 330 €. Em face da factualidade considerada provada e embora o arguido frequente programa ocupacional e viva com os pais, tendo em consideração o tipo de droga consumida (cocaína) a quantidade de benzoilecgonina detetada no sangue (21 ng/mL), o ter sido interveniente em acidente de viação e o ter consumido simultaneamente álcool (TAS 1,17 g/l) julga-se adequado fixar a pena concreta em 90 dias de multa, acima, por isso, do ponto médio da moldura abstrata (65 dias). Considerando, ainda, encontrar-se o arguido à data do julgamento a frequentar curso ocupacional onde auferia 330 €, mas vivendo em casa dos pais e tendo o 9.º ano de escolaridade, julga-se adequado fixar a taxa diária da multa em 6,50 €, atento o limite mínimo e máximo estabelecido na lei (5 € a 500 € estabelecida no artigo 47.º, n.º 2 do CP), perfazendo o montante global de 585 € (mesmo assim em valor inferior a dois rendimentos mensais por si auferidos), de forma a que o arguido sinta a gravidade do ato cometido.
3.2.4. Da medida da pena acessória Tendo em consideração o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2013, DR n.º 5, Série I de 2013-01-08 que estabeleceu que: “Em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292.º do CP, e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, n.º 3 do CP e art. 500.º, n.º 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP.”. Assim, condena-se o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis por um período de 7 meses de entre uma moldura que vai de 3 meses a 3 anos (artigo 69.º, n.º 1 do CP), atentos os fundamentos já utilizados para a fundamentação da pena principal, mas, ainda, atenta a circunstância de na “cocaína o risco de acidente grave em condutores que a consumiram é 3 vezes superior comparativamente a condutores que não consumiram”, como salientado pelo perito do IML no esclarecimento complementar prestado a pedido do Tribunal a quo. III. DECISÃO Nestes termos e com os fundamentos expostos concede-se total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência decide-se: 1. Eliminar dos factos não provados os pontos 10. e 11. que deverão ser conduzidos aos provados. 2. Condenar o arguido pela prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, na pena de multa de 90 dias de multa, à taxa diária de 6,50 €, perfazendo a quantia global de 585 €. 3. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 7 meses, ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, devendo o arguido entregar o título de condução, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, na secretaria do tribunal de 1.ª instância ou em qualquer posto policial, sob pena de a mesma ser apreendida, nos termos do artigo 500.º do CPP, e com a advertência de, se o não fizer incorrerá na prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º do CP (Acórdão Fixador de Jurisprudência n.º 2/2013, publicado no Diário da República em 8.1.2013). 4. Sem custas. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários. Évora, 7 de fevereiro de 2023. Beatriz Marques Borges - Relatora João Carrola Maria Leonor Esteves --------------------------------------- [1] Nascido em .../.../1984, natural da Freguesia e Concelho ..., filho de CC e de DD, solteiro, titular do Cartão de Cidadão n.º ..., residente na Av.ª ..., .... |