Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
248/14.0TBCTX.E2
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
VALOR DA CAUSA
CUSTAS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - No caso concreto em que o valor global dos bens segundo a avaliação promovida pelo sr. Administrador da Insolvência antes da alienação foi de € 2.145.245,95 e o valor global que resultou da liquidação foi (apenas) € 818.030,00, a consideração daquele primeiro valor para efeitos tributários levaria a uma liquidação de custas no valor total de € 47.899,23, sendo que desse valor, € 47.532,00 correspondem à taxa de justiça que é a contrapartida relativa ao funcionamento da máquina judiciária.
2 - O princípio da interpretação conforme a Constituição implica que de entre as interpretações concorrentes do artigo 301.º do CIRE – norma que estabelece o valor da causa para efeito de custas – deva ser adotada aquela que prescreve que o tribunal deve ponderar se o valor estabelecido por avaliação promovida pelo sr. Administrador da Insolvência antes da alienação em detrimento do valor que resultou da alienação é conforme aos princípios da adequação e da proporcionalidade.
3 - O princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso, impõe uma ponderação equilibrada entre interesses, custos e benefícios dela resultantes. No caso sub judice, uma taxa de justiça no montante de € 47.532,00 prejudicaria os credores em termos inadmissíveis à luz dos referidos princípios de adequação, proporcionalidade e igualdade, na medida em que o valor do ativo do devedor constitui a medida máxima da satisfação dos credores e estes só são pagos depois de deduzido aquele valor (e demais dívidas da massa insolvente) do produto da liquidação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 248/14.0TBCTX.E2
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Maria Emília Melo e Castro
Maria Domingas Simões


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), na qualidade de administrador da Massa Insolvente de (…), Lda., interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou improcedente a reclamação da conta de custas que foi apresentada pela massa insolvente[1].

O despacho sob recurso, e para o que ora releva, tem o seguinte teor:
«Por requerimento de 12-03-2025 [11498962], a massa insolvente veio reclamar da conta de custas, invocando, em síntese, que o valor a atender nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 301.º do CIRE deveria ser o do resultado da liquidação e não o valor atribuído ao ativo no referido inventário.
Por requerimento de 20-03-2025 [11524384], o credor requerente (…), Lda. reclamou de igual forma da conta de custas, invocando em síntese que nos termos do artigo 304º do CIRE “As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado”.
Em 29-05-2025 [99961420], o sr. Escrivão pronunciou-se no sentido de não ser apontado qualquer erro à conta.
Em 30-05-2025 [99963219], o Ministério Público pronunciou-se no sentido de serem indeferidas as reclamações, com os fundamentos constantes da informação prestada pelo sr. Escrivão.
Cumpre apreciar e decidir:
No que diz respeito à reclamação apresentada pela massa insolvente, a questão essencial passa pela interpretação do disposto no artigo 301.º do CIRE.
Conforme se pode ler no ac. do TRC de 13-05-2025, proc. 565/24.1T8FND.C1, disponível em www.dgsi.pt “O CIRE contém dois artigos sobre o valor da causa – qualquer causa ou demanda tem actualmente um único valor, que releva, para feitos processuais, por um lado, e de determinação do valor da taxa de justiça por outro, regendo para esta última situação o artigo 11.º do Regulamente das Custas Processuais/Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13.ª ed., Almedina, Coimbra –, o artigo 15.º – para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real –, e o artigo 301.º – o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153.º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15.º, se este for inferior;
nos demais casos, o valor é o atribuído ao activo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso”.
Assim, e revertendo ao caso em apreço, tendo sido declarada a insolvência, o valor a atender para efeitos de custas é o do ativo referido no inventário, apenas assim não sendo no caso em que o valor obtido pelos bens apreendidos é superior, ocasião em que se atende a este último – neste sentido, veja-se ainda a anotação ao artigo 301.º do CIRE in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Quid Juris.
Face ao exposto nada há a apontar à conta elaborada, improcedendo a reclamação apresentada pela massa insolvente.
(…)
Custas do incidente pelos reclamantes, que se fixam em 1 UC para cada um dos reclamantes – artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 7.º e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.
(…)».

I.2.
A Massa Insolvente (representada pelo sr. Administrador da Insolvência) formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1ª O Tribunal a quo decidiu por despacho decisão de 10/6/2025, Ref.ª 100016482 no seguinte sentido: “Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos improcede a reclamação apresentada pela credora requerente (…) e (…), Lda.”.
2ª A reclamação foi junta quanto às custas do processo porque, erradamente, foi atribuído como Valor do Processo Para Efeito de Custas as seguintes verbas: - Verba 1: Direito de Superfície (Avaliação): € 2.125.000,00; - Verbas 2 a 33: Bens Móveis (A. Bens): € 15.000,00; - Verba 34: Saldo Conta Bancária (A. Bens): € 5.245,95.
3ª Tendo sido atribuído o Valor do Processo de € 2.145.245,95 e gerando o total da conta a pagar, a liquidação da conta, como sendo € 47.899,23, o que não se aceita.
4ª Sendo que o valor de € 47.899,23 é o valor que deve ser considerado para efeitos de recurso, sendo esta a questão em discussão nos autos do presente recurso agora interposto.
5ª Pois à verba n.º 1 foi atribuído o valor de € 2.125.000,00 com base numa avaliação e o imóvel foi vendido por uns parcos € 805.256,43, valor esse que é, para todos os efeitos, o valor real do imóvel.
6ª Nunca deveria a conta ter sido considerada para efeitos de custas com base numa avaliação o que, erradamente, foi feito.
7ª E ainda que não se considerar o valor real da venda, o Tribunal a quo nem sequer considerou o valor do inventário que ascende a € 1.746.890,98, sendo totalmente omisso a este respeito.
8ª Aliás, o Tribunal a quo sempre poderia e deveria considerar, caso o supra exposto do valor real da venda não proceda, o que se dirá por mera cautela e sem proceder, o valor do inventário, o que não o fez e nem sequer o considerou, o que se alega para os devidos efeitos legais.
9ª E por isso, a reclamação foi, e bem, no sentido que se alega aqui em sede de recurso, pois a mesma e elucidativa da pretensão do recorrente e deveria ter sido julgada procedente, o que não foi e pretende-se no presente recurso revogar tal decisão.
10ª Nos termos do artigo 301.º do CIRE, “Para efeitos de custas, o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153.º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15.º, se este for inferior; nos demais casos, o valor é o atribuído ao activo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso.”
11ª Ora, nos presentes autos foi junto o inventário nos termos do artigo 153.º do CIRE em 06/09/2018, ascendendo aí o ativo ao montante global de € 1.746.890,98.
12ª No âmbito do presente processo houve liquidação, e apurou-se um resultado global de € 818.030,00, conforme informação prestada pelo AI no requerimento de 22/11/2024, junto ao apenso da liquidação (Apenso N), inferior, portanto, àquele valor do inventário.
13ª Ora, de acordo com a letra do normativo legal citado em 1. o valor para efeitos de cálculo da base tributável será o do ativo, atribuído no respetivo inventário, ou o valor mais elevado se for o caso.
14ª O legislador não clarifica quais são os casos em que se deve atender ao valor mais elevado.
15ª Por lógica, e atendendo aos princípios de razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação, que estão subjacentes ao pagamento de custas, designadamente nos processos de insolvência cuja finalidade máxima é a satisfação dos credores (ex vi do n.º 1 do artigo 1.º do CIRE), tal ocorre se o produto da liquidação for superior ao valor do inventário, o que não aconteceu nos presentes autos.
16ª Não se considerando, portanto, minimamente razoável, equilibrado e justo atender-se, para efeitos de cálculo da base tributável, ao valor de uma avaliação meramente referencial e que o mercado veio a revelar não se encontrar ajustada.
17ª Até porque, se atendermos ao disposto no artigo 296º do CPC, aplicável subsidiariamente, por remissão do artigo 17.º do CIRE, devemos considerar o valor económico da causa, e este não será seguramente aquele que resulta atribuído no inventário pelo AI ou numa avaliação efetuada por um perito, mas aquele que haverá de resultar da realização desse mesmo ativo, ou seja, da venda e/ou direitos apreendidos;
18ª Havendo o valor do processo que ser corrigido e fixado pelo Juiz, logo que se verifique ser diferente do valor real (artigo 15.º do CIRE).
19ª É pela realização obtida na venda dos bens/ direitos que se apura o valor real do ativo da insolvência, e é por esse valor que é remunerado o AI, e que recebem os credores.
20ª Não se compreende, portanto, que o Estado possa estabelecer para si especiais regras de remuneração tributária, recorrendo a critérios de puro arbítrio, que permitam taxar, in casu, num valor superior ao dobro, que todos os demais intervenientes processuais que se hão-de conformar com a referência do valor real dos bens, apurado na venda.
21ª O valor económico da causa não pode, pois, ser outro que não o valor realizado na venda, escrutinado pela Comissão de Credores, em representação dos credores, e pelo próprio AI, decorrente do seu interesse na realização da sua justa remuneração.
22ª Acresce que, de acordo com o Guia Prático das Custas Processuais (5.ª Edição), editado pelo CEJ – Centro de Estudos Judiciários, a páginas 80 e seguintes, “O artigo 15.º do CIRE preceitua que o valor da causa para efeitos processuais é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição inicial, sendo corrigido logo que se constate ser diferente o valor real. No processo de insolvência, em face do desconhecimento por parte do Requerente (credor) do valor do ativo, e no PER, o valor a indicar deverá ser o equivalente ao da alçada da Relação, conforme estabelecido no artigo 301.º do CIRE.
Preceitua este artigo que o valor da causa para efeitos de custas, no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153.º, é o equivalente ao da alçada da Relação ou ao valor aludido no artigo 15.º, se este for inferior; nos demais casos, o valor é o atribuído ao ativo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados, se for o caso.
Como se depreende da conjugação dos citados normativos, impõe-se, nos processos de insolvência, como critério de determinação provisória do valor da causa, o valor que for indicado na petição, o qual se mantém para efeitos processuais (relevando na fixação da base tributável para efeitos de taxa de justiça) até posterior correção em face dos elementos que os autos vierem a fornecer, isto é, logo que se verifique ser diferente o valor real do ativo do devedor indicado na petição. Assim, por exemplo, tendo sido decretada a insolvência e não tendo ainda havido lugar à apresentação do inventário a que se refere o artigo 153.º do CIRE, o valor da causa para efeitos processuais, bem como para efeitos de custas, ainda se não mostra definitivamente apurado. Somente a final será possível ao juiz fixar em termos definitivos o valor da causa”.
23ª Também a jurisprudência emanada dos Tribunais Superiores tem atendido ao critério da correção do valor da base tributável de acordo com o valor real do ativo.
24ª Veja-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora proferido em 12/02/2025 no processo n.º 19/14.4T8VVC-A.E1, disponível em Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que dispõe que “Impõe-se como critério de determinação provisória do valor da causa, o valor que for indicado na petição, o qual se mantém para efeitos processuais até posterior correção em face dos elementos que os autos vierem a fornecer, isto é, logo que se verifique ser diferente o valor real do activo do devedor indicado na petição”.
25ª Ou ainda o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 02/06/2015 no processo n.º 189/13.9TBCCH-B.E1.S1 (em especial, a declaração de voto do mesmo constante), disponível em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, onde se entendeu que “sendo certo que as regras de indicação do valor da causa em sede de processo de insolvência se regem prima facie pelo preceituado no artigo 15.º do CIRE, isto é, terá o valor do activo que tiver sido indicado pela Insolvente, o qual será corrigido logo que se verifique ser diverso do valor real.
26ª Daqui deflui que pouco importa qual seja o valor indicado, uma vez que o mesmo não é imutável, sendo alterado logo que se constate ser diverso do valor real, o que poderá acontecer quando houver lugar à elaboração do inventário a que alude o artigo 153.º do CIRE, o que na espécie ainda não aconteceu, pelo que, nenhuma razão existe, por ora, para ficcionar, como se faz na tese explanada no Acórdão, que o valor da causa foi fixado em 7.000,00 Euros e que este valor transitou em julgado, não podendo ser alterado, porque a única coisa que se sabe é que tal valor foi fixado em sede de saneamento do processo e que
depois disso não houve qualquer alteração, mas pode vir a haver por força da aplicação daquele supra mencionado normativo.”
27ª Nestes termos, e nos melhores de direito que V/ Exa. doutamente suprirá, requer-se que ordene a correção do valor do processo, em conformidade com o valor do ativo efetivamente realizado (€ 818.030,00), e seja reformada a conta de custas, tendo em consideração esse valor para efeitos de tributação e apuramento da respetiva taxa de justiça a pagar pela Massa Insolvente.
28ª Pelo que esteve e bem a douta reclamação, que não foi atendido pelo Tribunal a quo, devendo a decisão sob análise ser revogada e decidir-se no sentido de considerar que o Valor do Processo para efeito de Custas deve ser no valor de € 818.030,00, considerando a verba 1 como tendo o valor real (da escritura de compra e venda) de € 805.256,43 e liquidando-se a conta pelo valor que se vier a apurar mas muito inferior a € 47.899,23 da liquidação sob análise.
29ª Deve, por isso, ser revogada o despacho/decisão recorrida, sempre salvo o devido respeito.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por ter provimento, conforme se propugna nas conclusões, devendo ser revogado o despacho/decisão de 10/06/2025, Ref.ª 100016482, por outro que confirme que o valor para efeitos de custas é de € 818.030,00 que é o valor real dos ativo, ou, caso assim não se entenda, o que se dirá por mera cautela e sem conceder, pelo valor do inventário, tudo com as devidas consequências legais, sendo que assim se fará a costumada.
JUSTIÇA!»

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, o Ministério Público defendeu a improcedência do recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão a decidir prende-se com a determinação do valor da causa para efeito de cálculo das custas no processo de insolvência.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar na decisão constam da decisão sob recurso.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
A decisão sob recurso, na parte que ora releva, julgou improcedente a reclamação da conta de custas apresentada pela massa insolvente da (…) – Hotelaria e Turismo, Lda., através da qual esta última (representada pelo sr. Administrador da Insolvência) defendera que o valor da causa a que se deveria atender para efeitos de custas era o resultante da liquidação dos bens da massa insolvente e não o valor atribuído ao ativo no inventário previsto no artigo 153.º do CIRE.
Na conta de custas foi atribuído ao processo o valor de € 2.125.000,00 (que resultou de uma avaliação promovida pelo sr. administrador da insolvência antes da alienação dos bens e depois de apresentado o inventário dos bens apreendidos da massa insolvente), o que gerou um valor total a pagar de € 47.899,23, valor que compreende € 47.532,00 a título de taxa de justiça, € 385,50 a título de emolumentos de conservatórias e € 8,73 de reembolsos ao IGFEJ por adiantamentos.
Na decisão sob recurso – que incidiu sobre a reclamação da ora apelante – o tribunal recorrido entendeu que, tendo sido declarada a insolvência, e não sendo o valor obtido pelos bens aprendidos superior ao do ativo referido no inventário, à luz do artigo 301.º do CIRE deve atender-se ao valor do ativo referido no inventário.
Por sua vez, a apelante no seu recurso defende que a conta, para efeitos de custas, nunca deveria ter sido elaborada com base numa avaliação porque o valor real da venda do imóvel aprendido foi bastante inferior ao valor resultante da dita avaliação; aduz que não se pode considerar «minimamente razoável, equilibrado e justo atender-se, para efeito de cálculo da base tributável, ao valor de uma avaliação meramente referencial e que o mercado veio a revelar não se encontrar ajustada» e que «é pela realização obtida na venda dos bens/direitos que se apura o valor real do ativo da insolvência e é por esse valor que é remunerado o AI e que recebem os credores.», concluindo que «não se compreende que o Estado possa estabelecer para si especiais regras de remuneração tributária, recorrendo a critérios de puro arbítrio, que permite taxa in casu, num valor superior ao dobro, que todos os demais intervenientes processuais se hão-de conformar com a referência do valor real dos bens apurado na venda» e que «o valor económico da causa não pode, pois, ser outro que não o valor realizado na venda, escrutinado pela Comissão de Credores, em representação dos credores, e pelo próprio AI, decorrente do seu interesse na realização da sua justa remuneração».
Apreciando.
O presente recurso prende-se com a elaboração e liquidação da conta de custas, mais propriamente com uma reclamação que o ora apelante apresentou relativamente à mesma e que foi indeferida pelo tribunal a quo.
É consabido que as custas representam as despesas com o processo em geral, ou seja, o dispêndio necessário à obtenção em juízo de um direito ou da verificação de determinada situação fático-jurídica.
As custas processuais compreendem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. Nos termos do disposto no artigo 529.º do CPC a taxa de justiça compreende o montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, os encargos são todas as despesas resultantes da condução do processo, sejam elas requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa e as custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça é, por conseguinte, a contrapartida do serviço judicial desenvolvido (artigo 529.º/1, do CPC).
Como é referido no Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 731/2013[2], o TC tem concluído uniformemente que a “taxa de justiça” deve enquadrar-se na figura de “taxa” (por contraponto ao “imposto”) na medida em consubstancia a contrapartida pecuniária da utilização do serviço da administração da justiça e que embora a bilateralidade que ela envolve não implique uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço, «é exigível que de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação – material e não meramente formal – na perceção de um dado serviço», adiantando que, no que respeita à questão dos critérios de fixação do montante da taxa de justiça, o Tribunal Constitucional tem considerado que, não impondo a Constituição a gratuitidade da utilização dos serviços de justiça, o legislador dispõe de uma larga margem de liberdade de conformação, embora limitada por imposições constitucionais como as da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição) e da tutela do acesso ao direito e à justiça (artigo 20.º da Constituição).
De acordo com o disposto no artigo 11.º do Regulamento das Custas Judiciais a base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela I[3], e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respetivo.
O que nos remete, in casu, para o artigo 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[4] (doravante CIRE), epigrafado Valor da causa para efeito de custas, que dispõe o seguinte:
«Para efeitos de custas, o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153.º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15.º[5], se este for inferior; nos demais casos, o valor é o atribuído ao ativo do referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso.»
Dessa forma estabelece-se que nas situações em que o processo termina sem que a insolvência seja decretada ou antes do inventário, o legislador manda atender (sempre) ao valor mais baixo dos dois ali indicados, mas, quando o processo de insolvência prossegue para liquidação dos bens apreendidos da massa insolvente, o critério é diferente.
Pode-se questionar se no normativo em causa o legislador pretendeu que se efetuasse uma comparação entre o valor constante do inventário e o valor resultante da alienação dos bens ou, havendo a possibilidade de existirem valores diferentes no próprio inventário em virtude da situação prevista no artigo 153.º, n.º 2, do CIRE, se o legislador teve em mente essa hipótese. A letra da norma parece apontar para que nos casos em que o valor resultante da liquidação for inferior àquele que consta do inventário, aquele primeiro seja desconsiderado. Dito de outra forma, o valor da liquidação dos bens que constituem a massa insolvente só poderia ser considerado para efeitos tributários se for superior ao valor que consta do inventário (se não o for, o valor a considerar para efeitos tributários é o do ativo que consta do inventário).
A interpretação que acabamos de enunciar é aquela para que aponta a letra da lei, ponto de partida para a tarefa de retirar do texto legal um determinado sentido ou conteúdo de pensamento[6].
Ao texto da lei cabe duas funções: a) uma negativa que é a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei; e b) uma positiva, que se traduz no seguinte: se o texto comportar apenas um sentido, é esse o sentido da norma, com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador; quando as normas comportam mais que um significado, a função positiva implica dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis[7].
Na interpretação da lei deve-se recorrer também ao chamado elemento sistemático, ou seja, às outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria, bem como aos chamados lugares paralelos, que são as disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, não se podendo perder de vista a consonância da norma interpretanda com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento, considerando o princípio da unidade da ordem jurídica. E, assim sendo, não podemos ignorar o disposto no artigo 15.º do CIRE, o qual sob a epígrafe, Valor da ação, dispõe que:
«Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente do valor real» (itálicos nossos).
A propósito do normativo acabado de transcrever, escreveram Luís Carvalho Fernandes e João Labareda o seguinte: «O valor da causa fixado no momento da instauração tem, todavia, sempre um caráter provisório. Como se diz na parte final do preceito, ele será sempre corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real. (…) conquanto em alguns casos deva obedecer a critérios rígidos, o valor atribuído pelo administrador é sempre um valor estimado e ideal, fruto de elaborações de carácter predominantemente intelectual, mas sem expressão na atividade efetiva da liquidação, que façam equiparar os bens e direitos a dinheiro. Ora, o que interessa para a correção do valor da causa é o que possa traduzir e concretizar o valor do ativo do insolvente em operações realmente praticadas, porquanto só elas exprimem, verdadeiramente, o seu valor real, que é a variável a considerar na retificação, de acordo com o próprio texto da lei»[8].
Temos assim que no artigo 15.º do CIRE o legislador expressamente dá prevalência à fixação do valor da ação, para efeitos processuais, com base no valor real do património do insolvente e não em elementos meramente potenciais ou expectáveis.
O mesmo sucede no artigo 3.º do CIRE, epigrafado de Situação de insolvência, dispondo os seus n.ºs 2 e 3, alínea a), o seguinte:
«2 – As pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, são também considerados insolvente quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3 – Cessa o disposto no número anterior quando o ativo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:
a) Consideram-se no ativo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor.» (itálico nosso).
No dispositivo legal em apreço permite-se ao devedor demonstrar que o seu ativo é superior àquele que consta da sua escrituração. A seu propósito, voltamos ao ensinamento de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda: «O valor justo não é determinado (…) pelo recurso a critérios contabilísticos, o que inutilizaria a reavaliação, dado o que já consta do n.º 2. De resto, não pode ignorar-se aqui o facto de, com relação a certos elementos do ativo, eles não poderem sequer, de acordo com as regras da contabilidade, ser escriturados, (…). Se, com relação a alguns elementos, houver critérios legais imperativos – de ídolo nacional ou transnacional – a respeitar, há que cumpri-los, podendo estar, entre eles, em alguns casos, a observação do princípio nominalista. (…) No mais prevalecerá, por regra, o critério do valor de mercado (…)» (negrito nosso)[9]. Ou seja, o legislador permite ao devedor que demonstre que o seu património tem uma realidade substancial, em termos económicos, diferente daquela que consta dos elementos da sua contabilidade.
E se olharmos também para o disposto no artigo 296.º, n.º 1, do Código de Processo Civil verificamos que o mesmo consagra como critério geral para a fixação do valor da causa para efeitos processuais (isto é, para os efeitos previstos no n.º 2), o da “utilidade económica imediata do pedido” expressa em dinheiro.
Retornando à letra do artigo 301.º do CIRE, embora o texto seja dúbio ao referir “o caso”, ele parece permitir que quando o processo de insolvência prossiga para liquidação seja fixado como valor tributário da ação aquele que resulte ser o mais elevado, ainda que o mesmo não tenha correspondência com o valor real dos bens (que é o resultante da liquidação).
Se assim fosse, quando o processo de insolvência prosseguisse para a fase de liquidação dos bens da massa insolvente, o Estado iria cobrar uma taxa de justiça fundada num valor meramente expectável (o resultante do inventário) ainda que o valor resultante da liquidação (isto é, o valor real dos bens) fosse substancialmente inferior. Consequentemente, se se atendesse apenas ao elemento literal na interpretação da parte final do artigo 301.º do CIRE, sendo o valor resultante da liquidação inferior ao valor do ativo do inventário, o Estado iria cobrar uma taxa de justiça com base num valor que não tem correspondência real e, sendo as custas precípuas do produto da liquidação, os credores veriam reduzida a margem de satisfação dos créditos respetivos. Em síntese, quando o valor do ativo do inventário fosse superior ao valor da liquidação, a norma em causa beneficiaria o Estado em detrimento dos credores.
Mas, se na interpretação da norma, em detrimento do estrito elemento literal se atender ao critério sistemático-teleológico a conclusão já será distinta.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem a finalidade de satisfação dos credores, ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores. Assim, quando os credores são satisfeitos através da liquidação do património do devedor, o valor do ativo deste último constitui a medida máxima da satisfação dos créditos que se pretende fazer no âmbito deste processo.
Nos termos do disposto no artigo 172.º, n.º 1, do CIRE as custas e demais dívidas da massa insolvente são pagas do produto da liquidação dos bens da massa insolvente antes dos créditos reclamados e reconhecidos nos autos, e na medida do que for indispensável à satisfação integral das mesmas (artigo 172.º, n.º 2, do CIRE). Este preceito equivale, pois, à regra da precipuidade das custas do processo e despesas da liquidação.
Importa, ainda, atender a que no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral tributária (LGT), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 91/2019, de 04.09[10], se estabeleceu que «as construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.» (itálicos nossos). Ou seja, através desta disposição pretendeu-se fazer prevalecer a realidade substancial e económica subjacente aos atos e negócios praticados através de formas jurídicas gizadas e implementadas com o fito principal de reduzir ou eliminar carga fiscal que seria devida caso tivesse sido utilizada a forma jurídica normalmente adequada aos efeitos económicos e materiais cuja obtenção se visava[11]. Dito de outro modo, naquele preceito legal o Estado legislador faz prevalecer a realidade substancial e económica subjacente aos atos e negócios praticados pelos particulares, o que representa uma solução antagónica daquela que resultaria da estrita interpretação literal do artigo 301.º do CIRE que permitiria que o apuramento da taxa de justiça não tivesse qualquer correspondência com o valor real dos bens do insolvente, penalizando de forma arbitrária os credores (porque são pagos do produto da liquidação só depois do pagamento das custas).

A interpretação da norma da parte final do artigo 301.º do CIRE atento o elemento sistemático-teleológico, e em particular sentido programático das normas dos artigos 3.º, 15.º e 162.º do CIRE, do artigo 296.º, n.º 1, do CPC e do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, permite concluir que quando o valor do ativo do insolvente segundo a avaliação promovida pelo Administrador da Insolvência antes da alienação for mais elevado do que o valor real do património do insolvente resultante da venda, o tribunal deve ponderar um ajustamento suscetível de corrigir uma eventual desproporção da tributação, à luz dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e igualdade.

A interpretação que se extrai do elemento sistemático-teleológico e que deve ser adotada em detrimento daquela que resultava apenas do elemento literal do preceito legal é a única solução que respeita o princípio da interpretação conforme a Constituição. Frisa-se que este cânone assenta não só no princípio da unidade da ordem jurídica, mas também no princípio do aproveitamento dos atos jurídico-públicos ou da conservação das normas, e, sobretudo, do princípio da proporcionalidade – a impor que a sanção da inconstitucionalidade (e a declaração de nulidade da norma a ela inerente) funcionem como expedientes de ultima ratio, incidindo apenas sobre atos cuja constitucionalidade falhada se revele impossível de salvar[12].

Quanto a esta dimensão, importa relembrar o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira[13], o­ princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios, a saber:

i. princípio da adequação: as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos;
ii. princípio da exigibilidade: essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato; e
iii. princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito: não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.
Freitas do Amaral[14] define o princípio da proporcionalidade como aquele que «segundo o qual a limitação de bens ou interesses privados por atos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais atos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins, congregando três dimensões essenciais: adequação, necessidade e equilíbrio. A adequação significa que a medida tomada em concreto deve ser causalmente ajustada à finalidade que se propõe atingir, numa relação de ajustamento ponderado entre o meio usado e o fim ou objetivo conseguido; a necessidade significa idoneidade para o fim que se pretende alcançar, no sentido em que, de entre as várias medidas abstratamente idóneas deve ser escolhida aquela que menor lesão cause a direitos e interesse dos particulares; o equilíbrio exige que os benefícios que se esperam alcançar com determinada medida administrativa, adequada e necessária, suplantem, segundo parâmetros materiais, os custos que ocasionará.
O princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de proporcionalidade em sentido estrito, ou de proibição de excesso, implica uma ponderação dos custos-benefícios e está associado ao princípio da razoabilidade, pressupondo a realização de um juízo avaliativo sobre as medidas impostas, tendo em consideração a esfera pessoal dos sujeitos atingidos. Nesta dimensão, o princípio da proporcionalidade impõe que determinado ato não traduza uma desrazoável ou desequilibrada ponderação de interesses, custos e benefícios dele resultantes. Como se escreveu no Acórdão do TC n.º 634/93, citando Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal, «Pode, assim, reconhecer-se que haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para efetuar uma “ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto”, para averiguar “se o sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a importância do interesse estatal que se trata de salvaguardar”, já que “se o sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de proporcionalidade”».
O princípio da proporcionalidade tem por função servir de cânone de interpretação, mas também como limite à atuação jurídico-pública, sendo, enquanto tal, um parâmetro de validade e um padrão de controle desta última[15].
Na jurisprudência constitucional o princípio da proporcionalidade tem sido entendido como um “princípio geral de limitação do poder público”, assente no princípio do Estado de Direito, “impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (e também o Estado-legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos ao invés de estatuir soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas, considerando que num Estado de Direito é imperativo que as decisões dos poderes públicos tenham “uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser ilimitadas nem arbitrárias”; donde, “o princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma ‘justa medida’”; o Estado de direito deve, pois, compreender-se como um “Estado proporcional”. A jurisprudência constitucional aponta para um juízo de inconstitucionalidade, no que às medidas legislativas respeita, «apenas perante hipóteses em que a medida (legislativa) em causa se apresente como manifestamente excessiva. Impõe-se, pois, um equilíbrio entre proporcionalidade e liberdade de conformação do legislador, ao qual, em primeira linha, caberá a realização das tarefas de ponderação e em cuja sabedoria se deverá confiar.»[16]

Como se refere no Acórdão do TC n.º 349/2001, «não basta uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado para que ao tributo falte caráter sinalagmático. Será necessário que essa desproporção seja manifesta e comprometa, de modo inequívoco, a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática»; seguindo esse critério, no Acórdão n.º 297/2018 sublinha-se que «esta desproporção deverá ser aferida não só em face do caráter fortemente excessivo da quanta a pagar relativamente ao custo do serviço, mas também em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. Acórdãos n.ºs 1140/96, 115/2002, 349/2002, 610/2003, 68/2007 e 622/2013)».

Neste quadro, entende-se que o princípio da interpretação conforme a Constituição implica que de entre as interpretações concorrentes do artigo 301.º do CIRE deva ser adotada aquela que prescreve que o tribunal deve ponderar se o valor estabelecido por avaliação promovida pelo sr. Administrador da Insolvência antes da alienação em detrimento do valor que resultou da alienação é conforme aos princípios da adequação e da proporcionalidade.

Voltando ao caso concreto, o valor global dos bens segundo a avaliação promovida pelo sr. Administrador da Insolvência antes da alienação foi de € 2.145.245,95; em contraponto, o valor global que resultou da liquidação foi (apenas) € 818.030,00.

A consideração do valor de € 2.145.245,95, para efeitos tributários, levaria a uma liquidação de custas no valor total de € 47.899,23, sendo que desse valor, € 47.532,00 correspondem à taxa de justiça que é, como já assinalado supra, a contrapartida relativa ao funcionamento da máquina judiciária.

Como dissemos, o princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso, impõe uma ponderação equilibrada entre interesses, custos e benefícios dela resultantes. No caso sub judice, uma taxa de justiça no montante de € 47.532,00 prejudicaria os credores em termos inadmissíveis à luz dos referidos princípios de adequação, proporcionalidade e igualdade, na medida em que o valor do ativo do devedor constitui a medida máxima da satisfação dos credores e estes só são pagos depois de deduzido aquele valor (e demais dívidas da massa insolvente) do produto da liquidação.

Em síntese, no caso em apreço deve ser adotada a única interpretação da parte final do artigo 301.º do CIRE que se concluiu ser conforme a Constituição, isto é, quando o valor do ativo do insolvente resultante da avaliação realizada antes da alienação for mais elevado do que o valor real do património do insolvente resultante da alienação, o tribunal deve, à luz dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e igualdade, ponderar um ajustamento suscetível de corrigir um eventual excesso da tributação, tendo como limite mínimo o referente estabelecido pelo valor real do património do insolvente.

Assim, aplicando a referida norma ao caso concreto, impõe-se concluir o seguinte:

1) A fixação do valor da ação de insolvência tendo por referência o valor do ativo do insolvente segundo a avaliação promovida pelo sr. Administrador da insolvência antes da alienação, afigura-se manifestamente desproporcional e irrazoável como contrapartida pela utilização da máquina judiciária, considerando que esse valor é mais de duas vezes superior ao valor obtido com a liquidação dos bens, determinando a liquidação de uma taxa de justiça no montante de € 47.532,00 que, saindo precípua do produto da liquidação, iria implicar uma redução da margem de satisfação dos créditos dos credores.

2) O valor que tem por referência o valor real do património do insolvente (em detrimento do valor do ativo do insolvente segundo a avaliação promovida pelo sr. Administrador da Insolvência antes da alienação) apresenta-se como o único adequado para o cálculo do valor das custas e da taxa de justiça na medida em que o efetivo custo da utilização da máquina judiciária no caso concreto não foi superior ao que teria existido se a avaliação anterior à alienação tivesse sido similar à do valor que veio a resultar da alienação.

Destarte, o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte relativa à fixação das custas e determinando a reforma da conta de custas de molde a que a mesma tenha por referência o valor obtido com a liquidação do património do insolvente (€ 818.030,00), em detrimento do valor da avaliação promovida pelo sr. Administrador da insolvência antes da alienação dos bens.

Sumário: (…)

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam julgar a apelação procedente e, em conformidade, revogam a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a reclamação da conta de custas que foi apresentada pela massa insolvente, ordenando que a conta de custas seja reformada tendo por referência o valor resultante da liquidação dos bens da massa insolvente.

Não há lugar ao pagamento de custas porquanto o Ministério Público, vencido no recurso, está isento do seu pagamento, e a apelante já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual.

Notifique.

DN.

Évora, 2 de outubro de 2025

Cristina Dá Mesquita

Maria Emília Melo e Castro

Maria Domingas Simões





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[1] O despacho sob recurso decidiu igualmente a reclamação da conta de custas apresentada pela requerente da insolvência, (…), Lda., mas este segmento da decisão não foi objeto de recurso por parte daquela sociedade.
[2] Processo n.º 2019/13, 2.ª Secção, relator Conselheiro Fernando Ventura, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Estes acertos consubstanciam-se nos limites de valor das espécies processuais em causa e na forma de cálculo da taxa de justiça nas ações de valor superior a € 275.000,00 – assim, Salvador da Costa, As Custas Processuais, Análise e Comentário, 2017, pág. 161.
[4] Aprovado pelo D/L n.º 53/2004, de 18 de março.
[5] Este preceito legal dispõe o seguinte: Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.
[6] João Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25.ª Reimpressão, Almedina, págs. 175 e seguintes.
[7] João Batista Machado, ob. cit., pág. 182.
[8] Código das Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume I, Reimpressão, 2006, Quid Juris, Sociedade Editora, pág. 114.
[9] Ob. cit., pág. 75.
[10] Esta lei transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno, com a redação que lhe foi dada pela Diretiva (UE) 2017/952, do Conselho, de 29 de maio de 2017, que altera a Diretiva (UE) 2016/1164 no que respeita a assimetrias híbridas com países terceiros.
[11] Gustavo Gramaxo Rozeira, Proporcionalidade e razoabilidade na tributação por aplicação da disposição geral anti-abuso, XIII Congresso de Professores de Direito Público, 2021, págs. 91 e seguintes.
[12] Ana Raquel Gonçalves, Juízo de Proporcionalidade e Justiça Constitucional, XIII Congresso de Professores de Direito Público, 2021, págs. 34-35.
[13] Constituição da República Portuguesa Anotada, volume 1º, pág. 170.
[14] Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, págs. 129/132 citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.09.2014, processo n.º 21/14.6YFLSB, consultável em www.dgsi.pt.
[15] Ana Raquel Gonçalves Moniz, Juízo de Proporcionalidade e Justiça Constitucional, XIII Congresso de Professores de Direito Público, 2021, pág. 33.
[16] Ana Raquel Gonçalves Moniz, ob. cit., págs. 40-41.