Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1853/23.0T8PTM.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: TÍTULO CONSTITUTIVO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
NULIDADE
DELIBERAÇÃO
UNANIMIDADE
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- em acção em que se pede a declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, intentada pelo condomínio, representado pelo seu administrador mandatado pela assembleia de condóminos, a deliberação que suporta este mandato não exige o acordo de todos os condóminos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. A presente acção foi intentada pelo Condomínio do Edifício SE, representado pelo administrador (RPG Condominium, Lda), contra AA, pedindo que se declare a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio denominado Lote 3, sito em Local 1, União das freguesias de A e O, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número ...745, da freguesia de Cidade 1, com a eliminação da fração “AAAJ” e a distribuição proporcional da permilagem da fração eliminada pelas restantes frações do prédio.


Alegou para tanto, no essencial, que:


- o edifício em causa é constituído por 79 fracções, sendo a R. proprietária da fracção AAAJ, a qual corresponde a um barracão que existia no local, antes da construção do edifício, e barracão, que ali permaneceu após aquela construção.


- essa fracção é omitida no processo de licenciamento da construção do edifício ou em qualquer projecto ou planta, e a existência ou a utilização da fracção nunca foi licenciada pela CM Cidade 2.


- sendo o título constitutivo da propriedade horizontal parcialmente nulo por falta de requisitos legalmente exigidos quanto àquela fracção (art. 1416º n.º1 do CC).


- a assembleia geral de condóminos, em 28.11.2022, deliberou intentar acção com vista à eliminação da fracção AAAJ, deliberação não impugnada.


Por óbito da demandada, foram habilitados como seus sucessores BB e CC, os quais contestaram, tendo:


- invocado a renúncia tácita ao exercício do direito e a sua prescrição, ou a sua caducidade por não uso,


- invocado a ineptidão da petição inicial,


- impugnado a versão do A., e


- deduzido reconvenção, visando o pagamento de indemnização.


Foi proferido despacho que, considerando que i. a pretensão deduzida contém também uma modificação do título constitutivo, e que ii. se o artigo 1416º do CC confere legitimidade para arguir a nulidade a qualquer condómino, já a modificação do título exige o acordo de todos os condóminos segundo o art. 1419º n.º1 do CC, convidou o autor a, em 10 dias, juntar ata assinada por todos os condóminos conferindo poderes ao administrador para intentar esta ação, ou diligenciar por suprir a exceção de ilegitimidade por qualquer outra forma.


O A. indicou ser impossível obter o acordo de todos os proprietários e declarou desistir do pedido na parte respeitante à distribuição proporcional da permilagem da fracção AAAJ pelas demais fracções do prédio, mantendo o pedido de declaração de nulidade parcial do título.


Realizada audiência prévia, na qual o A. se pronunciou sobre as excepções deduzidas, foi proferida a seguinte decisão: «julgo verificada a exceção de ilegitimidade ativa, por preterição do litisconsórcio necessário ativo, e, atento o previsto no artigo 278º, n.º 1, alínea d), do mesmo código, absolvo os réus da instância».


Decisão esta que se baseou na seguinte argumentação:


«A procedência do pedido de declaração de nulidade, ainda que parcial, do título constitutivo da propriedade horizontal do edifício a que respeita condomínio autor, como foi pedida, implica a eliminação da fração AAAJ, o que, necessariamente, importa uma alteração ao título constitutivo, pois o condomínio deixaria de ser constituído por 79 frações autónomas e passaria a ter apenas 78. A distribuição da permilagem da fração eliminada pelas restantes é apenas uma decorrência da procedência do primeiro dos pedidos, pelo que a desistência do autor relativamente a este pedido, em nada altera os dados da questão da legitimidade.


Conforme resulta ao artigo 1419º, n.º 1, já citado, a modificação do título constitutivo exige o acordo de todos os condóminos, pelo que a ação judicial cujo objeto seja a alteração do título constitutivo carece da intervenção do todos os condóminos, seja assumindo todos a posição processual correspondente, seja através de mandato unânime conferido ao administrador pela assembleia de condóminos.».


Desta decisão foi interposto recurso pelo A., no qual formulou as seguintes conclusões:


A) Verifica-se um erro na aplicação do direito, porquanto o regime da invocação da nulidade conforme o disposto no Artº. 286 do Código Civil, deve prevalecer sobre o disposto no Artº1419º, n.º 1, do Código Civil, por estarem em causa questões de legalidade e ordem pública que se sobrepõem à autonomia da vontade privada;


B) O Autor deve ser considerado com legitimidade processual, por si só, para estar em juízo e invocar a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal.


Os recorridos responderam, pugnando pela manutenção do decidido.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


O pedido formulado na acção corresponde em rigor a duas pretensões distintas:


- declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, com a inerente eliminação de uma fracção, e


- redistribuição da percentagem que tinha sido atribuída a tal fracção.


Trata-se, na verdade, de efeitos jurídicos distintos e autónomos, embora possam ser vistos como (con)sequenciais [1]. Naturalmente, o arranjo formal derivado da mera agregação das pretensões no mesmo parágrafo é, para o efeito, irrelevante. Donde que devam ser aquelas pretensões consideradas de forma autónoma. O que conduz à constatação de que o recorrente apenas se insurge (nas alegações e nas conclusões formuladas) contra a decisão na parte relativa à nulidade parcial do título da propriedade horizontal, não impugnando a sua absolvição da instância no que à alteração daquela propriedade horizontal respeita (o que se compreende, dada a sua posição no processo, onde apresentou, inclusive, desistência de tal pedido). Assim, ficou restringido em conformidade o âmbito do recurso.


Deste modo, importa avaliar se o A. tem legitimidade para intentar a presente acção, no que à nulidade invocada respeita.


III. No elenco de factos provados consta sob o n.º7 um facto com a seguinte redacção:


7. Em 28 de Novembro de 2022, realizou-se assembleia de condóminos do prédio autor que deliberou, além do mais, intentar ação judicial com vista a eliminar a fração AAAJ com vista a alterar o título constitutivo da propriedade horizontal; (doc.1 da petição inicial);


A redacção dada a este facto não corresponde, de forma rigorosa, ao teor do documento que contém a matéria em causa (invocado doc. 1 da PI), documento que os recorridos não discutiram. Assim, justifica-se alterar a sua redacção, para repor a conformidade descritiva, ao abrigo do art. 662º n.º2 al. c) do CPC (por deficiência da decisão sobre a matéria de facto, constando do processo os elementos que autorizam a modificação) - e modificação que dispensa contraditório prévio por apenas reproduzir o teor de documento que as partes aceitam.


Deste modo, os factos tidos por demonstrados são os seguintes [2]:


1. O condomínio do Edifício SE, sito na Estrada 1, em Cidade 1, que corresponde ao prédio registado na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º ...745, foi constituído por escritura pública lavrada a 3 de fevereiro de 1995 no Cartório Notarial de Cidade 3, e registado na conservatória do registo predial sob a apresentação 17 de 1995/02/27; (Doc.nº. 2 e 3 da petição)


2. Esse condomínio foi constituído com setenta e nove frações, independentes, unidades distintas entre si com saída própria, identificadas pelas letras de A a AAAJ distribuídas, por cave, r/c, 1º. e 2º. Andares; (Doc.nº. 2 e 3 da petição)


3. A fração AAAJ, foi identificada no título constitutivo como destinada a comércio, composta por três compartimentos e instalações sanitárias, com a área de cinquenta vírgula zero quatro metros quadrados, correspondendo a onze vírgula dois por mil do valor total e com o valor parcial e atribuído de setenta mil escudos. A esta fração fica ainda afecta a área descoberta de setenta e um vírgula vinte e oito meros quadrados, perfeitamente demarcada no local. Esta fração está construída em edifício independente, e confronta de norte, sul, e poente com terrenos da área descoberta do lote três e de nascente com estrada; (Doc.nº. 3 da petição)


4. E na respetiva caderneta predial é descrita como: destinada ao comercio composto de 3 compartimentos instalações sanitárias e 71,28 m2 de área descoberta, destinada a fracção. esta fracção esta construída em edifício independente e confrontando a norte, sul e poente com terrenos da área descoberta do lote 3 e nascente estrada. (Doc.nº 6 petição)


5. Na mesma escritura pública referida em 1, supra, foram titulados diversos contratos de compra e venda, pelos quais a sociedade Cláudio e Irmão Lda., vendeu diversas frações do prédio, entre as quais a fração AAAJ, vendida a AA, pelo preço de um milhão e oitocentos mil escudos; (Doc.nº. 3 da petição)


6. A propriedade da referida fração AAAJ encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 a favor de AA, pela apresentação 41 de 1995/02/27; (Doc.nº. 5 da petição)


7. Em 28 de Novembro de 2022, realizou-se assembleia de condóminos do prédio autor que deliberou, além do mais


«... foi posto proposto o Condomínio intentar uma ação judicial para anular a fracção AAAJ. Posto à votação foi o mesmo aprovado por maioria dos votos (...).


Foi ainda aprovado por unanimidade dos presentes e representados que sendo a acção ganha, alterar-se a propriedade horizontal do Condomínio» (doc.1 da petição inicial);


8. Nessa assembleia estiveram presentes os condóminos proprietários das seguintes frações: F, O, R, S, X, Z, AA, AB, AF, AH, AI, AP, AR, AAA, AAC, AAD, AAQ, AAU, AAV, AAX, AAAA e AAAE.(doc.1 da petição inicial)


IV.1. A decisão impugnada assenta na ideia de que a acção visando a declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal (ficando implícita uma pretensão de redução da invalidade, nos termos do art. 292º do CC) exige a intervenção de todos os condóminos. Indica duas formas de alcançar essa intervenção universal: uma, seria a intervenção directa de todos os condóminos na acção; outra seria através da intervenção do administrador, embora nesta desde que tal intervenção assentasse em mandato unânime [diz-se, com efeito, na decisão impugnada que «... a ação judicial cujo objeto seja a alteração do título constitutivo carece da intervenção do todos os condóminos seja assumindo todos a posição processual correspondente, seja através de mandato unânime conferido ao administrador pela assembleia de condóminos.»]. No caso, e não estando na acção todos os condóminos, a intervenção deles só se alcançaria, de acordo com o entendimento da decisão impugnada, se a sua representação pelo administrador (ou melhor, a representação do condomínio por este administrador) assentasse numa deliberação unânime (ou no acordo de todos).


Esta asserção vem sustentada no facto de a «procedência do pedido de declaração de nulidade, ainda que parcial, do título constitutivo da propriedade horizontal (...) implica a eliminação da fração AAAJ, o que, necessariamente, importa uma alteração ao título constitutivo,...» e esta «...modificação do título constitutivo exige o acordo de todos os condóminos, pelo que a ação judicial cujo objeto seja a alteração do título constitutivo carece da intervenção do todos os condóminos...».


Pode, deste modo, dizer-se que a lógica inerente à decisão impugnada assenta, em termos simples, no seguinte raciocínio: a nulidade parcial altera a propriedade horizontal; a propriedade horizontal só pode alterar-se por acordo de todos os condóminos; logo, aquela nulidade, em acção em que se façam representar pelo administrador, terá que ser colocada por todos os condóminos através de mandato unânime conferido àquele administrador (o que não ocorria no caso).


O litisconsórcio necessário seria assim afirmado por derivação da regra legal que impõe a intervenção de todos os condóminos na modificação da propriedade horizontal, constante do art. 1419º n.º1 do CC (em conjugação com o art. 33º n.º1 do CPC): por essa forma, todos teriam que intervir na acção ou assumir a representação pelo administrador, com ela acordando.


2. Esta lógica da decisão subordina o regime da nulidade do título constitutivo ao regime da alteração daquele título constitutivo, o que, salvo o devido respeito por entendimento diverso, se julga não corresponder aos dados legais. Ao invés, entende-se que a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a modificação desse título constituem realidades funcionalmente distintas, a que, por isso, correspondem regimes também diversos.


Assim:


- o regime da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal por falta de observância dos requisitos legalmente exigidos está especificamente contido nos art. 1416º e 1418º n.º3 do CC, com refracção particular no art. 1419º n.º4 do CC [3], o qual regula a inobservância, especificamente na alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, dos requisitos válidos para o próprio título constitutivo. Em particular, o regime de invocação da nulidade (e assim quanto à legitimidade substantiva para exercer o direito de anular) consta do art. 1416º n.º2 [tido por aplicável às situações do art. 1418º n.º3 do CC (v. Ac. do TRL de 10.04.2008, proc. 1384/2008, em 3w.dgsi.pt)] e, no que toca à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, do referido art. 1419º n.º4 do CC.


- já o regime geral da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal consta, por sua vez, do art. 1419º n.º1 a 3 do CC (na redacção actual), no qual também se fixa a legitimidade (substantiva) para aquela modificação, estabelecendo uma regra de unanimidade: art. 1419º n.º1, in fine, e n.º2 do CC [4] (regra com excepções sujeitas a um elenco taxativo, e de exclusiva origem legal - v.g. art. 1422º-A ou 1422º-B do CC).


Deste modo, o que se verifica é que, em termos estritamente normativos, a alteração consensual da propriedade horizontal e a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal conhecem regimes de legitimidade substantiva (quanto ao exercício do direito) distintos e autónomos. Asserção esta que se mostra irrecusável face ao disposto no art. 1419º n.º4 do CC, pois esta norma sujeita a nulidade da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, por inobservância dos requisitos do art. 1415º do CC, a regras próprias, idênticas às que valem para a nulidade do próprio título constitutivo da propriedade horizontal. Ora, se a nulidade da modificação do título constitutivo não se subordina ao regime daquela modificação da propriedade horizontal, e se, ao invés, apela a normas específicas da nulidade do título constitutivo, isso corresponde à cabal demonstração da respectiva autonomia de regimes. Assim, a exigência de um «mandado unânime» dos condóminos não pode resultar do regime da modificação da propriedade horizontal e da unanimidade que esta modificação postula. Ela teria, antes, que derivar do regime específico da nulidade da alteração do título constitutivo.


3. É certo que a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal provoca, por definição, uma alteração daquele título constitutivo, pois este será amputado de uma sua parte. Mas esta alteração não tem autonomia, constituindo apenas efeito mediato da nulidade parcial. Esta nulidade tem, de modo directo e primacial, apenas um efeito eliminatório: a declaração da nulidade somente exclui o facto antijurídico. A nulidade declarada já nada propõe quanto à parte subsistente do título constitutivo, não visando intervir por si na regulação da propriedade horizontal. A expurgação da ilicitude é que pode impor uma alteração da propriedade horizontal (v.g. com a eliminação de uma fracção) e/ou pode exigir modificações adicionais (ajustamento das permilagens). Porém, não se trata aqui de uma intencionada modificação do título mas de um mero efeito derivado ou mediato da ilicitude existente, sendo desta meramente sequencial. E, assim, de um efeito cuja produção deriva das regras reguladoras do desvalor (ilicitude), e não das regras atinentes à modificação voluntária do título constitutivo. Ilicitude que é, aliás, prévia e autónoma face ao efeito modificativo que induza, sendo avaliada, na sua existência, independentemente deste efeito. Ou seja, é o desvalor que justifica a alteração, e por isso impõe a aplicação do regime inerente à nulidade (sendo para a nulidade indiferente a vontade das partes e assim o regime que dela cuida na modificação consensual da propriedade horizontal).


Também por aqui se não vê, pois, que exista razão para convocar o regime do art. 1419º n.º1 do CC.


4. Admite-se que o condomínio, representado pelo administrador, possa intentar a acção de nulidade, no quadro dos art. 1437º n.º2, 2ª parte, do CC [5] e 12º al. e) do CPC [6], e assim no exercício dos poderes que lhe são atribuídos pela assembleia de condóminos - também assim porque a nulidade respeita ao estatuto real da propriedade horizontal e desse modo a todos os condóminos e a todo o edifício, e não apenas a posições circunscritas a fracções autónomas e à sua inerente propriedade exclusiva, e por isso está em causa relação jurídica conexa com a posição comum dos condóminos. A asserção não é sequer controvertida na acção e não vem por isso discutida no recurso. Aliás, a possibilidade de o administrador intentar tal acção, mesmo sem prévia deliberação, poderia ainda encontrar apoio no art. 1436º n.º1 al. m) do CC, quando atribui ao administrador o encargo de assegurar a execução das disposições legais relativas ao condomínio, no sentido exposto da existência de situação comum [7]. O que se discute neste recurso é se a deliberação atributiva daqueles poderes deve assentar no acordo unânime dos condóminos (em termos relativos, pois não se pode esperar o acordo de quem será afectado pela nulidade). Já se viu que a resposta dada a esta questão pela decisão impugnada assenta em fundamento insubsistente, estando revelado que os termos da atribuição do mandato (na formulação legal) não se medem pelo regime da modificação da propriedade horizontal, não havendo, por essa via, razão para exigir um acordo unânime dos condóminos.


E não se vê que ocorra outra razão justificativa de tal exigência.


Desde logo, debalde se encontra directo suporte legal para semelhante solução. De um lado, inexiste regra que claramente o imponha. De outro lado, a regra geral depõe contra essa solução, ao estipular a regra da maioria do capital ou até a maioria dos presentes (art. 1432º n.º5 e 6 do CPC, para além do valor que o n.º 11 do mesmo artigo atribui ao silêncio dos ausentes [8]). Por fim, as regras legais que impõem maiorias qualificadas (e não a unanimidade, pois esta apenas surge nas referidas regras relativas à modificação do título constitutivo ou, de certo modo, na deliberação referida no art. 1422º n.º2 al. d) do CC [9]) surgem em situações que não têm paralelo com a situação em causa (estão sempre em causa situações na disponibilidade dos condóminos, mas cujo eventual impacto na posição interna dos condóminos justifica uma deliberação com adesão abrangente - v. art. 1422º n.º3 e 4, 1424º n.º2 ou 1425º n.º1 e 2 do CC).


De outra banda, os valores presentes na situação não sustentam o entendimento suposto na decisão impugnada, mormente em contraponto com o que se passa com a modificação da propriedade horizontal. Assim, a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, em si e tal como regulada no art. 1419º do CC, assenta, em regra, na vontade das partes e assim na sua autonomia negocial. Mas como está em causa uma situação de comparticipação necessária no estatuto real do bem (que se pode dizer, em termos simplificados, que pertence a todos os condóminos), coloca-se a necessidade de articular a vontade de um condómino com a vontade dos demais, tendo o legislador optado por uma solução de tendencial unanimidade [10]. A autonomia regulativa (ou jurisgénica) de cada condómino conhece o limite imposto pela idêntica autonomia reconhecida aos demais condóminos. Donde que as alterações voluntárias ao regime básico (constitutivo) da propriedade horizontal tenham que, em princípio, ser acertadas entre todos os condóminos. Em segunda linha, trata-se ainda de reflexo da natureza real do direito (de propriedade horizontal) em causa. Pois se o condómino adquire um direito real, com específicas valências derivadas do título constitutivo, esse direito vale erga omnes, nos termos em que foi definido naquele título e depois adquirido, podendo ser oposto a terceiros e, nessa medida, aos demais condóminos [11]. Logo, tal direito real só pode ser modificado com a anuência do seu titular. A modificação do título constitutivo tem que ficar assim dependente, como regra, da vontade de todos os condóminos. As excepções legais (à unanimidade) situam-se em espaços onde o direito dos demais condóminos não é afectado ou essa afectação pode ser acautelada por outras vias (v.g. por falta de oposição, que funciona como consentimento tácito, ou pelo suprimento judicial) - v. art. 1419º n.º2 e 1422º-A ou o recente art. 1422º-B do CC. Já a nulidade do título constitutivo corresponde à preservação de interesses de ordem pública que se reflectem na propriedade horizontal [12], e que se impõem por igual a todos os destinatários da norma e assim a todos os condóminos. Derivando de normas imperativas, a nulidade vale por si e vale não apenas independentemente da vontade dos condóminos mas mesmo, ou especialmente, contra a vontade desses condóminos, vontade esta de que prescinde. Tal ocorre pela natureza da nulidade e dos valores que a sustentam, que se impõe a todos os destinatários, os quais não têm o poder de dispor daquela legalidade (ou de a dispensar). Acresce que se trata de regras que visam garantir a conformidade do título às especificações administrativas, mas também garantir a manutenção da fisionomia do direito real (de propriedade horizontal) tal como previsto pelo legislador. Por isso que condicionam a própria constituição do direito real e por isso sobre ela têm que prevalecer, inexistindo razão para ficarem dependentes da vontade dos condóminos. O que isto significa é que a vontade dos condóminos não é tão importante ou determinante, pois, além de cada um deles dispor de legitimidade para invocar a nulidade (naturalmente, a referência do art. 1416º n.º2 do CC a todos os condóminos não pretende significar que têm que actuar todos concertadamente ou em conjunto, nem a decisão impugnada o sustenta), estão em causa valores que superam aquela vontade, ao ponto de a vontade de um não poder condicionar (ou impedir) a iniciativa dos demais. Mas se assim é, nada impede que o administrador possa ser incumbido de intentar a acção, representando o condomínio, sem se tornar necessária qualquer intervenção unânime dos condóminos na deliberação respectiva, quer por estar em causa interesse comum mas não questão dependente de acordo total, quer por se tratar de manifestação da autonomia decisória dos condóminos, de cada um deles, traduzida em manifestação interna da vontade geral predominante dos condóminos, à luz da prevalência das regras legais violadas sobre a vontade dos condóminos.


Acresce que a solução também garante, de forma imediata, um acertamento integral da situação, já que se aceita que a intervenção judicial do administrador implica a vinculação do condomínio que representa e assim de todos os condóminos (pois são eles os verdadeiros titulares da posição jurídica exercida), que ficarão vinculados ao caso julgado que se forme [13]. O que garante, assim, que o efeito da decisão valha igualmente para todos os condóminos, alcançando um resultado perfeito no que à regularização vinculativa da situação respeita [14].


Também assim porque a decisão não unânime não afecta decisivamente a posição dos condóminos discordantes já que a sua vontade isolada não é suficiente para condicionar a legitimidade dos demais, como se viu, pelo que a sobreposição da vontade da maioria constitui apenas reflexo do próprio regime de invocação da nulidade, de um lado, e da formação da vontade do condomínio, de outro. Também assim porque está em causa uma questão de legalidade e não de articulação de interesses, e ainda porque, decisivamente, a deliberação não os vincula, no sentido de que podem impugnar a deliberação (a existir vício invocável), mas também, em especial, porque tal deliberação não os impede de assumirem uma posição contrastante com o sentido do decidido, não estando impedidos de discutir judicialmente o vício, em acção que intentem ou através de intervenção em acção que não interpuseram.


5. Não se vê, assim, fundamento para impor a solução sustentada na decisão impugnada (do ponto de vista em que foi colocada, sem discutir, por desnecessária, a referida possibilidade derivada do art. 1436º n.º1 al. m) do CC).


6. Decaindo no recurso, suportam os recorridos as respectivas custas (art. 527º n.º1 do CPC) - avaliação que se reputa exigível, embora, inexistindo encargos e estando paga a taxa de justiça, ela apenas se reflectirá em eventuais custas de parte.


V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, de absolvição da instância dos réus, no que respeita ao pedido de declaração de nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal.


Custas pelos recorridos.


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):


(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

António Marques da Silva - Relator

Ana Pessoa - Adjunta

Filipe César Osório - Adjunto

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1. Esta autonomia está, aliás, vertida na deliberação que sustenta a acção, na qual foram claramente distinguidas as duas vertentes em causa.↩︎

2. Em reprodução literal, salvo, naturalmente, na parte agora modificada.↩︎

3. A numeração desta regra legal (n.º4) deriva de alterações legais recentes (Lei 8/2022), mas a regra está consagrada desde o início de vigência do CC (então como n.º2 do mesmo artigo, passando depois para n.º3, constando, actualmente, como n.º4).↩︎

4. Solução que se manteve em todas as versões da norma.↩︎

5. A deliberação em causa foi tomada já após a entrada em vigor da Lei 8/2022, mas a solução teria, de qualquer modo, apoio na redacção anterior (e original) da norma, que se se referia à actuação sob autorização da assembleia.↩︎

6. V. Ac. do TRE de 11.04.2024, proc. 2195/20.8T8PTM.E1, in 3w.dgsi.pt.↩︎

7. E já foi mesmo colocada a possibilidade de ver o administrador, sem poderes enquanto tal, agir como mandatário dos condóminos que aprovaram a deliberação.↩︎

8. Também aqui a numeração deriva da Lei 8/2022, mas o regime exposto já existia anteriormente. Abstrai-se ainda da fixação do alcance da norma, fixação não isenta de dissensão, mas que não interessa discutir dada a economia da decisão.↩︎

9. Embora, nesta norma, as abstenções pareçam não evitar a aprovação da deliberação.↩︎

10. Tendencial dada a existência de situações particularizadas em que se prescinde dessa unanimidade.↩︎

11. Afirmação geral, sem contemplar todas as especificidades do título constitutivo, que variam de caso para caso e podem incluir regulações cuja alteração não constitui verdadeira modificação do título constitutivo.↩︎

12. É o que justifica a legitimidade do MP (sob participação) para invocar a nulidade. Prendem-se com a garantia da viabilidade e funcionalidade da figura, articulada com a salvaguarda da higiene e segurança (a afirmação de interesses desta natureza é pacífica: v., por exemplo, Ac. do STJ de 11.02.2014, proc. 8284/07, ou Ac. do TRL de 11.01.2018, proc. 1256/13, ambos em 3w.dgsi.pt).↩︎

13. Assim, Miguel Mesquita, anotação em CDP 35, pág. 49; trata-se de efeito da função representativa do condomínio, não dotado de personalidade jurídica, importando que a sua posição equivalha à posição de cada condómino (independentemente da configuração da situação como substituição processual ou não).↩︎

14. Tende, com efeito, a sustentar-se que a acção de nulidade (parcial) não exige a intervenção de todos os condóminos, o que, não intervindo o condomínio devidamente «mandatado» na acção, deixa em suspenso a questão do efeito da decisão quanto aos condóminos não intervenientes na acção.↩︎