Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1022/23.9YIPRT.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: ÓNUS DA PROVA
FACTO CONSTITUTIVO
EXCEPÇÕES
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário1:

I. Como é sabido, as regras de repartição do ónus da prova respeitam ao domínio do direito probatório material e encontram-se abstratamente definidas na lei, quer nas disposições gerais dos artigos 342.º a 348.º do Código Civil, quer em disposições especiais ou avulsas.

II. Fundamental nesta matéria é o disposto no artigo 342.º do Código Civil, segundo o qual cabe àquele que invoca um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e àquele contra quem a invocação é feita incumbe provar os factos excetivos (impeditivos, modificativos ou extintivos) do direito invocado. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

III. Os factos não são por natureza constitutivos ou excetivos; são-no no contexto e em função da pretensão em causa. Para saber se estamos perante uma ou outra categoria de factos há que atender à previsão normativa aplicável (facti species) e ao efeito prático-jurídico pretendido de modo a determinar qual a função desses factos na economia do pedido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

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I.RELATÓRIO

AA, Eventos e Espectáculos, Lda., apresentou contra Santa Casa da Misericórdia de Local 1, procedimento de injunção, pedindo que a Requerida seja notificada no sentido de lhe ser paga a quantia total de € 5 792,08, acrescida de juros.

Alegou, em síntese que por contrato celebrado em 03 de Janeiro de 2020, entre as partes foi acordada a cedência da Arena de Local 1 à Requerente, em regime de exclusividade pelo período de 24 meses, tendo sido convencionado por ambas as partes que a receita da bilheteira relativa à apresentação de espetáculos revertia na proporção de 10% para a requerida e 90% para a Requerente nos eventos culturais com comercialização pública de bilhetes ou, tratando-se de eventos sem comercialização pública de bilhetes ou eventos corporativos, na proporção de 25% para a requerida e 75% para a requerente.

Acrescentou que a Requerente celebrou um contrato de aluguer do espaço com uma sociedade terceira a estas partes, com vista à realização de um espetáculo na referida arena de Local 1 no dia 06 de novembro de 2021, nos termos do qual a referida sociedade se obrigou a pagar à requerente a quantia de €3.700,00 acrescida de IVA, que o espectáculo realizou-se nessa mesma data, tendo aquela sociedade sido a comercializadora dos bilhetes, tendo a requerente apenas cedido o espaço, a necessária autorização de IGAC e ainda a licença de ruído, piquete de emergência médica e piquete da segurança da GNR e que contactou a requerida no sentido de pedir o valor devido à requerente, apurado nos termos da cláusula terceira do contrato de concessão em vigor, no montante de € 1.561,25, o qual se encontra até à presente data na posse da requerida, valor que deveria ter sido entregue ao requerente, uma vez que o mesmo não promoveu a comercialização pública de bilhetes.

Mais alegou que a requerida cedeu ainda gratuitamente a Arena com comercialização pública de bilhetes no dia 23 de outubro de 2021, que tal cedência gratuita da Arena de Local 1 constitui uma violação do contrato de concessão imputável à requerida, o que confere ao aqui Requerente o direito ao pagamento no montante correspondente ao aluguer do espaço, no montante de € 3.700,00, pelo que deve, assim, a requerida à requerente o valor de € 5.261, 25, a título de capital em dívida, aos quais acrescem juros vencidos e vincendos até integral pagamento e, bem assim, os custos advenientes da propositura da presente injunção.

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Regularmente citada a Requerida apresentou oposição, onde, em síntese impugna a inexistência de qualquer divida à A., confirmando que efetivamente foi realizado contrato de cedência, e alegando que o valor que reteve seria correspondente ao valor que lhe caberia por conta da bilheteira e que lhe era devido por direito tendo cumprido com o referido contrato de cedência integralmente, porquanto se tratou de um evento com venda publica de bilhetes.

Mais refere que efetivamente cedeu o espaço a um lojista da praça, para comemoração do aniversario do estabelecido, que tal evento foi gratuito e de acordo com as normas contratuais, e que, não havendo qualquer venda de bilhetes nada tem de pagar ao A.

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Os autos foram remetidos à distribuição, como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, foi realizada a audiência final, após o que veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolve-se a Santa Casa Misericórdia de Local 1 do pedido contra si formulado pela Autora AA, Eventos e Espectáculos, Lda.

Custas pela A.

Registe e notifique.”

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É desta decisão que recorre a Autora formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

“A. Por “Contrato de Concessão e Dinamização Cultural da Arena d’Local 1 e Eventos Corporativos”, de 3 de janeiro de 2020, a R.-Recorrida cedeu à A.-Recorrente, pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses a contar de 1 de Fevereiro do mesmo ano, a Arena d’Local 1 (Praça de Touros) “para exploração e apresentação de eventos e espectáculos corporativos e culturais” (cfr., cls. 1ª e 2ª do Contrato).ência

B. Essa “exploração e gestão da Arena D’Local 1 para todos e quaisquer eventos será de inteira exclusividade” da ora A.-Recorrente, com salvaguarda das exclusões constantes da cl. 12ª (realce nosso)

C. Como exclusivamente da A.-Recorrente seria a gestão da bilheteira através de plataforma, o que não significa que os bilhetes fossem sempre vendidos pela A.- Recorrente.

D. A R.-Recorrida ficou apenas habilitada a promover eventos organizados por instituições de solidariedade social, instituições sem fins lucrativos ou outras entidades que implicassem tratamento equiparado (cfr., cl. 12ª, nº 1), salvo se de forma diferente fosse acordado com a A.-Recorrente com, pelo menos, 10 (dez) dias de antecedência (cfr., cl. 8ª).

E. No dia 23 de Outubro de 2021, o lojista arrendatário da Taberna..., realizou um evento na praça de toiros de Local 1, espaço que lhe foi cedido pela Recorrida, sem que tal lojista seja instituição de solidariedade social, instituição sem fins lucrativos ou entidade que implique tratamento equiparado.

F. A A.-Recorrente, à qual a R.-Recorrida tinha outorgado o exclusivo da gestão e da exploração comercial da Arena D’Local 1, não deu o seu acordo, e muito menos com 10 dias de antecedência, a tal cedência.

H. Atento que a gestão do espaço em questão era exclusivamente da A.-Recorrente, a Recorrida deveria ter remetido o lojista para contacto com a primeira e, tendo cedido o espaço à revelia da A.-Recorrente, incumpriu o “Contrato de Concessão e Dinamização Cultural da Arena d’Local 1 e Eventos Corporativos”.

I. Assim, tem a A.-Recorrente, entidade à qual que competia garantir a operacionalidade de todo o equipamento técnico e material existente no local e, bem assim, a limpeza do recinto (cfr., cl. 5ª, nºs 4 e 5), direito ao recebimento da quantia que, enquanto detentora exclusiva da gestão e da exploração comercial da praça, fixou.

J. Tendo a R.-Recorrida decidido unilateralmente ceder o espaço ao dito lojista, incorreu ela na obrigação de entregar esse valor à A.-Recorrente.

K. Cabendo-lhe o exclusivo direito de gestão e exploração comercial da Arena D’Local 1, a A.-Recorrente poderia livremente decidir, sem qualquer intervenção e aquiescência da R.-Recorrida, a forma como fazer essa exploração, seja organizando ela directamente os eventos, cobrando ou não ingressos, seja cedendo o espaço e cobrando o valor de utilização e deixando ao subconcessionário a receita de bilheteira, se a houvesse.

L. Assim, e com referência ao evento mencionado no ponto 6 dos Factos Provados, a A.-Recorrente optou por ceder a utilização do espaço ao próprio artista, cobrando-lhe o valor de € 3.700,00 e deixando para este todas as despesas de organização e a receita de bilheteira.

M. Em razão do que a A.-Recorrente não tinha meios, diferentemente do que a Srª Juiz a quo parece pretender, de saber qual a receita de bilheteira apurada.

N. Para determinar de quem é a receita de bilheteira não basta, como simplisticamente é feito na d. Sentença recorrida, determinar que colocou a máquina electrónica de venda de bilhetes e a quem pertence esta, antes importa o que o software no equipamento fizer constar, com nome ou denominação e identificação fiscal, nos bilhetes emitidos.

O. Se nos for permitido a referência a empresas e marcas, é o que se passa com a venda de bilhetes nas lojas Continente, relativamente a venda de bilhetes para jogos da Liga Portuguesa de Futebol, ou com a venda de bilhetes nas lojas FNAC para concertos, representações teatrais, exibição de filmes, entradas em museus, inter alia: ss máquinas de venda estão no Continente e na FNAC, os operadores são trabalhadores dessas empresas, mas a receita gerada quanto a cada um dos eventos não constitui receita do Continente ou da FNAC e estas só têm possibilidade de conhecer os valores apurados nos seus balcões e não a também os valores apurados noutros locais de venda.

P. A R.-Recorrida, com o insólito beneplácito do Tribunal, entende que a receita de bilheteira através da plataforma de venda de bilhetes é receita própria, pelo que não a entregou ao destinatário e guardou para si, independentemente do estipulado na cl. 3ª, nº 1, do contrato, nos termos da qual só lhe caberiam, não a receita bruta apurada, mas 10% da receita líquida!

Q. Ao contrário de quanto propugna o Tribunal a quo, não seria à A.-Recorrente que caberia fazer prova da receita da “real ‘casa’ realizada”, mas, tendo oss bilhetes sido vendidos em instalações pertencentes à R., através de trabalhadora sua (BB, que elaborou a folha de caixa), seria a R.-Recorrida que deveria ter provado que os quase € 2.000,00 que reteve e retém, de acordo com o apuro feito pela própria R.-Recorrida, seriam 10% da receita líquida de bilheteira.

R. O que a R.-Recorrida manifestamente não fez!

S. O Tribunal a quo, referindo amiúde o acordo entre as partes, não se pronunciou quanto à questão de saber se a quantia que a R.-Recorrida reclama para si corresponde a 10% da receita líquida nem se pronunciou quanto a essa matéria, com o que incorreu na nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615º do Cód. Proc. Civil.

T. A convicção do Tribunal radicou em errada avaliação, quer da prova documental, quer da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, nomeadamente quanto aos testemunhos que, a seu juízo, “foram essenciais para estabelecer a restante matéria probatória dada como provada”.

U. Tanto quanto um qualquer declaratário normal pode compreender desta asserção, é que o Tribunal recorrido não só valorou os testemunhos prestados relativamente às matérias a que a testemunhas foram chamadas a depor, mas também relativamente a factos relativamente aos quais nada disseram.

V. Muito embora o livre convencimento do Juiz possa radicar em experiências de vida, tal convencimento não pode assentar em meras presunções ou suposições, pelo que dizer-se que os testemunhos prestados foram essenciais para estabelecer matéria de prova dada como provada, quer a que foi objecto dos testemunhos, quer a ‘restante’, traduz uma inequívoca falta de especificação dos fundamentos de facto que justificaram a decisão, com o que esta, para além de incorrer em erro de avaliação da matéria de facto, em erro de julgamento e, em consequência, errada aplicação do Direito aplicável, a d. Sentença incorre na nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º do Cód. Proc. Civil.

X. Nulidade que perpassa, outrossim, da afirmação (cfr., fls. 18) de que “in casu, podemos, com segurança afirmar que a R. cumpriu com aquilo que lhe era contratualmente exigível, pelo que não poderá deixar de concordar com a sua alegação de que era à A,.” , sem se vislumbrar o que é que seria à A.

Y. Em diversas passagens da d. Sentença, perpassa uma enorme confusão sobre quem é A. e quem é R. na presente acção, bastando atentar no primeiro parágrafo da fl.16, no qual se refere que a A. cedeu o espaço em arrendamento e a R. liquidou as rendas a que estava obrigada, para se ficar com fundada dúvida sobre se a d. Sentença não enforma de alguma ambiguidade relativamente à decisão proferida.

W. Devendo ainda sublinhar-se que que nos pontos 11. e 12. dos Factos Provados em que se confundem e misturam o evento referido nos pontos 6. e 7. com aquele a que se alude nos pontos 8. e 9., em razão do que a comunicação de 27 de Outubro de 2021 é referida, à uma, como não aceitação da Recorrida quanto ao acordo que levou ao evento de Novembro de 2021, e simultaneamente, como comunicação do pedido de cedência pelo lojista, comunicação que, de harmonia com o doc. nº 4 junto com a oposição da R., se encontra datada de 12 de Outubro de 2021.

Z. Como quer que seja, sendo que a festa do referido lojista se realizou em 23 de Outubro, não se vislumbra como é que a comunicação à A.-Recorrente pudesse ter ocorrido depois da realização da mesma e, ainda assim, fosse exigível que a A.-Recorrente, depois da festa realizada, manifestasse eventual acordo ou desacordo e, não o tendo feito seja penalizada na d. Sentença recorrida, em razão do que o d. Aresto recorrido incorre, outrossim, na nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 615º do Cód. Proc. Civil.

Nestes termos,

Nos mais de Direito e com o Douto suprimento de Vossas Excelências, Insignes Senhores Desembargadores, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a douta Sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que, julgando a acção totalmente procedente, por provada, condene a R.-Recorrida no pedido e em custas e encargos do processo, com o que se fará JUSTIÇA!”

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A Ré contra-alegou, apresentando a seguinte síntese conclusiva:

a. O presente recurso não deve ser admitido por extemporâneo.

b. Alega a Recorrente existir erro de avaliação da matéria de facto pela Mmª Juiz a quo, mas, na verdade, o que resulta do teor das suas alegações é a necessidade de uma alteração da matéria de facto dada como provada e não apenas erro na sua avaliação

c. Para tal a Recorrente teria de cumprir o disposto no nº 1 do artigo 640 do C.P.C, o que manifestamente não fez

d. Não invocou concretamente os meios probatórios constante do processo ou registo de gravação que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto, também ela, concretamente identificada

e. Na cláusula primeira do contrato de prestação de serviços que se transcreve “A Santa Casa de Local 1 cede à JP Beats a Arena d’Local 1 (praça de touros), sendo excluído os 16 espaços comerciais com acesso direto ao exterior do edifício, para exploração e apresentação de eventos e espetáculos corporativos e culturais.”, logo estão excluídas festas de aniversário de lojistas

f. Festa de aniversário do lojista não poder ser classificada de um evento cultural ou corporativa e sempre estaria abrangido pela cláusula de exceção, a cláusula décima segunda

g. Festa, onde nem sequer houve cobrança de bilhetes e não teve natureza de festa publica, porquanto só poderia entrar quem havia recebido convite, por conseguinte não está abrangida pelo contrato de prestação de serviços em causa.

h. Da cláusula terceira do contrato de prestação de serviços resulta: “ … nos eventos culturais com venda publica de bilhetes (a receita liquida da bilheteira) reverte 10% para Santa Casa e 90% para JP.Beats..”

i. No caso, conforme provado houve venda publica e bilhetes e promovida pela própria JP Beats, pelo que a Santa Casa deveria receber 10% da receita líquida da bilheteira e não 10% de um valor de cedência, alegadamente celebrado entre a JP Beats e representante de CC

j. Alegadamente, pois o suposto contrato celebrado entre a JP Beats e representante de CC tem a data do próprio evento, 6-11-21 e antes desta data houve venda publica de bilhetes promovida pela Recorrente

k. Havendo venda publica de bilhetes, esta só poderia ficar a cargo da Recorrente, não poderia ser cedida a terreiros, conforme dispõe nº 1 da cláusula sétima do contato de prestação de serviços, porquanto a JP Beats tinha a exclusividade da bilheteira e tendo a exclusividade da bilheteira não poderia ceder a venda de bilhetes a terceiros, como afirma ter efetuado, apesar de na prova produzida ter resultado o contrário

l. Ficou, ainda, provado que a Recorrente tratou da venda de bilhetes exatamente com havia efetuados em eventos anteriores em que houve repartição da venda de bilheteira em 10% para Santa Casa e 90% para JP Beats

m. Não assistindo razão à recorrente

Nestes termos e nos demais de direito que V. exas. doutamente suprirão deverá ser mantida nos seus exatos termos a decisão Recorrida par que seja feita a tão desejada JUSTIÇA.”

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II. Questões a decidir.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC), no caso, importa apreciar e decidir, por razões de lógica processual, das seguintes questões, pela seguinte ordem:

- da nulidade da sentença;

- da impugnação da matéria de facto;

- se deve a Requerida ser condenada a pagar à Requerente o valor pela mesma peticionado, com fundamento nas obrigações emergentes do contrato entre as partes celebrado.

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III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1. Fundamentação de Facto.

O Tribunal Recorrido considerou provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. A Ré é dona e legitima proprietária da denominada “Praça da Toiros” ou “Arena D’Local 1”, local onde ser podem organizar diversos espectáculos.

2. Por contrato celebrado em 03 de Janeiro de 2020, entre a Ré e a A Requerente, foi acordada a cedência da Arena de Local 1 ao Requerente, em regime de exclusividade pelo período de 24 meses;

3. Nos termos do contrato, foi convencionado por ambas as partes que a receita da bilheteira relativa à apresentação de espectáculos revertia na proporção de 10% para a requerida e 90% para a Requerente nos eventos culturais com comercialização pública de bilhetes ou, tratando-se de eventos sem comercialização pública de bilhetes ou eventos corporativos, na proporção de 25% para a requerida e 75% para a requerente.

4. Tal contrato excepcionava os 16 espaços comerciais existente na praça.

5. A gestão de bilheteira pertencia única e exclusivamente à requerente, através de plataforma eletrónica de bilhetes

6. A Requerente celebrou a 6 de novembro de 2021, um contrato de aluguer do espaço com uma sociedade terceira a estas partes, com vista à realização de um espetáculo na referida arena de Local 1 no dia 06 de novembro de 2021, nos termos do qual a referida sociedade se obrigou a pagar à requerente a quantia de €3.700,00 acrescida ade IVA;

7. O mencionado espetáculo realizou-se nessa mesma data tendo a requerente apenas cedido o espaço, a necessária autorização de IGAC e ainda a licença de ruído, piquete de emergência médica e piquete da segurança da GNR

8. A requerida cedeu gratuitamente parte da Arena a um lojista arrendatário da R. no dia 23 de outubro de 2021, para a realização da festa de aniversario do estabelecimento.

9. Tal evento não teve venda publica de bilhetes, tendo a entrada se realizado exclusivamente por meio de convites entregues pelo estabelecimento.

10. A A. informou a R, por correio eletrónico datado de 15/09/2021, do contrato existente entre si e a entidade terceira responsável pelo concerto identificado em 6 e 7.

11. Não tendo a R. aceite os termos do mesmo, pugnado pelo estabelecido no contrato celebrado em ambos, por meio de correio eletrónico datado de 16/09/2021 e 27 de Outubro de 2021

12. A R. informou o A, nesse mesmo dia 27 de Outubro de 2021, do pedido de cedência de parte do espaço da praça de toiros, por parte de um lojista.

13. Não tendo a A dado qualquer resposta ao solicitado.

14. A máquina da bilheteira do espetáculo identificado em 6 e 7, colocada no ponto de venda existente na praça, era igual à bilheteira habitual.

15. Tal máquina foi colocada no ponto de venda por um representante da A.

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III.2. O Tribunal recorrido considerou que com interesse para a decisão da causa, não de provaram os seguintes factos:

a) A comercialização dos bilhetes para tal espetáculo identificado em 6 e 7, ocorreu por iniciativa da sociedade terceira e promotora do evento, sendo o requerente completamente alheio a essa venda de bilhetes, nem tinha de ter esse conhecimento

b) concessão e dinamização cultural da Arena de Local 1, o evento realizado com cedência gratuita do espaço não se enquadra nas excepções expressamente consagradas no número um da referida cláusula

c) cedência gratuita da Arena de Local 1 constitui uma violação do contrato de concessão imputável à requerida, o que confere ao aqui Requerente o direito ao pagamento no montante correspondente ao aluguer do espaço, no montante de € 3.700,00.

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III.3. Da invocada nulidade da sentença.

A Recorrente entende que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação, omissão de pronúncia ou oposição entre os factos provados e a decisão, invocando, neste segmento, as alíneas b), c) e d) do artigo 615º citado.

Mas, pese embora se reconheça que a sentença não corresponde a um modelo de organização e estruturação de uma decisão judicial – atente-se desde logo à falta de organização da matéria de facto por ordem lógica e cronológica -, não lhe assiste razão.

Como é sabido, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do Código de Processo Civil) o que, de resto, consubstancia um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

O dever de fundamentação, no que respeita à sentença e à decisão de facto, impõe a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme dispõe o artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil.

Tal como decorre do artigo 607º do Código de Processo Civil, a sentença comporta três partes distintas: o relatório, onde se procede à identificação das partes, do objeto do litígio e das questões a solucionar; a fundamentação, com enunciação dos fundamentos fáctico-jurídicos da decisão; e a decisão ou parte dispositiva em que o tribunal julga da procedência do pedido do autor ou réu reconvinte ou absolve da instância por falta de pressupostos processuais ou outra irregularidade insanável.

A sentença, como ato jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º do Código de Processo Civil.

A este respeito, estipula-se no apontado normativo, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença” que:

“1 - É nula a sentença quando:

a) (…);

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) (…)” .

O vício previsto na alínea b) é um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença que não se confunde motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.

A nulidade da sentença contemplada na al. c) pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.

Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.

Por seu turno, a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC reconduz-se a um vício de conteúdo , ou seja, vício que enferma a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam, verificando-se quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e terá de ser aferida, tendo em consideração o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

A causa da nulidade a que se refere este preceito relaciona-se com a inobservância do disposto na segunda parte do referido n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma e visa sancionar o desrespeito, pelo julgador, do comando contido na parte final deste normativo, nos termos da qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com exceção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido.

Por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664.º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.

In casu, como decorre da decisão recorrida, o Tribunal Recorrido não deixou de enunciar os fundamentos de facto em que fundamentou a decisão, elencando de forma clara os que considerou demonstrados com relevância da causa, decisão que motivou à luz dos meios de prova produzidos em audiência, conjugados com a prova documental junta aos autos.

Enunciou ainda os fundamentos de direito em que baseou a decisão, aludindo às normas relativas ao cumprimento dos contratos.

E entre todos os fundamentos, de facto e de direito e tal decisão, nenhuma contradição se surpreende, antes se verifica total coerência e harmonia entre a fundamentação e a decisão.

Verificando-se, pois, que na sentença recorrida constam os factos e as razões de direito em que o tribunal alicerçou a sua decisão de inviabilidade dos embargos em face das circunstâncias processuais que os autos evidenciam, e que esta é consequência lógica daquela fundamentação, é evidente que aquela peça processual não está inquinada de qualquer nulidade.

Ora sendo esse o vício que a Recorrente imputa à decisão, não pode o recurso deixar de improceder.

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III.4. Da impugnação da matéria de facto.

A Apelante faz referência a “erro de avaliação da matéria de facto”.

Como é sabido, as exigências a respeitar em matéria de impugnação da matéria de facto, constam dos nºs 1 e 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, constituindo a respetiva omissão motivo para rejeitar o recurso no tocante a essa impugnação.

Assim sendo, o recorrente tem obrigatoriamente de especificar quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, quais os concretos meios probatórios que impunham/impõem decisão diversa da proferida e qual deveria ter sido essa decisão.

Significa tal exigência que o recorrente tem de identificar sem margem para dúvida (por referência ao facto constante da sentença, ao quesito ou ao artigo das peças processuais apresentadas pelas partes) o facto que entende “mal” julgado, com os motivos desse errado julgamento, e o modo como, no seu entender, deveria ter sido apreciado, indicando especificadamente (o concreto documento, o concreto depoimento, o concreto relatório pericial, etc.) em que meios probatórios apoia o seu entendimento. E, invocando a prova testemunhal, o recorrente deve, ainda, indicar com exactidão as passagens da gravação de que se socorre.

Entre as diversas decisões que têm versado sobre o aludido ónus, destacamos, pela respetiva clareza o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2023 (Proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1), no qual pode ler-se:

“29. O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.

30. O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:

Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [2]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [3]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”[4].

31. O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função[5], conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[6] [7].

32. O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no art. 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso [8] e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido [9]. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente[10].

33. Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do art. 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”[11]”.

O ónus previsto no artigo 640.º do CPC não exige que as especificações – referidas no seu n.º 1 constem todas das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.

Já quanto aos pontos da matéria de facto incorretamente julgados, constitui jurisprudência uniforme e reiterada que a falta de concretização pelo recorrente nas conclusões do recurso dos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, implica a rejeição do recurso quanto à matéria de facto.

Ora, no caso dos autos, percorrendo todas as conclusões de recurso, não se surpreende em qualquer delas, a indicação de um facto incorretamente julgado – a Apelante não refere em qualquer ponto das conclusões do recurso, quais os factos provados e/ou não provados constantes da sentença, que, pelas razões que invoca, devem ser alterados.

Acresce que não faz ainda referência, na motivação, quer a meios de prova que impliquem qualquer alteração de facto, quer à própria alteração que entende deveria ser feita.

Por conseguinte, e desde logo, não tendo a Recorrente indicado nas conclusões quais os concretos pontos da matéria de facto provada e/ou não provada que pretende ver alterados, por falta de cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, rejeita-se o conhecimento do recurso quanto à matéria de facto.

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III.5. Reapreciação jurídica.

A pretensão da Autora em obter a condenação da Ré no pagamento da quantia de €5.792,08, inscreve-se no quadro de uma relação contratual havida entre aquelas partes, 03 de Janeiro de 2020, nos termos da qual foi acordada a cedência da Arena de Local 1 à Requerente, em regime de exclusividade pelo período de 24 meses, tendo sido convencionado que a receita da bilheteira relativa à apresentação de espectáculos revertia na proporção de 10% para a requerida e 90% para a Requerente nos eventos culturais com comercialização pública de bilhetes ou, tratando-se de eventos sem comercialização pública de bilhetes ou eventos corporativos, na proporção de 25% para a requerida e 75% para a requerente.

Sustenta a Apelante que a quantia lhe é devida porquanto, na vigência do contrato aludido, celebrou a 6 de novembro de 2021, um contrato de aluguer do espaço com uma sociedade terceira a estas partes, com vista à realização de um espetáculo na referida arena de Local 1 no dia 06 de novembro de 2021, nos termos do qual a referida sociedade se obrigou a pagar à requerente a quantia de €3.700,00 acrescida ade IVA e a Apelada cedeu gratuitamente parte da Arena a um lojista arrendatário da R. no dia 23 de outubro de 2021, para a realização da festa de aniversario do estabelecimento.

Como é sabido, as regras de repartição do ónus da prova respeitam ao domínio do direito probatório material e encontram-se abstratamente definidas na lei, quer nas disposições gerais dos artigos 342.º a 348.º do Código Civil, quer em disposições especiais ou avulsas.

Fundamental nesta matéria é o disposto no artigo 342.º do Código Civil, segundo o qual cabe àquele que invoca um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e àquele contra quem a invocação é feita incumbe provar os factos excetivos (impeditivos, modificativos ou extintivos) do direito invocado. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

Os factos não são por natureza constitutivos ou excetivos; são-no no contexto e em função da pretensão em causa. Para saber se estamos perante uma ou outra categoria de factos há que atender à previsão normativa aplicável (facti species) e ao efeito prático-jurídico pretendido de modo a determinar qual a função desses factos na economia do pedido.

Assim, em regra, quando o facto em causa, à luz daqueles parâmetros, se mostrar favorável à pretensão deduzida, será constitutivo. Quando for desfavorável, poderá ser meramente impugnativo, se for factualmente incompatível com um facto constitutivo ou com um facto excetivo e, portanto, instrumental em sede de contraprova (artigo 346.º do Código Civil); ou será facto essencial impeditivo, modificativo ou extintivo se potenciar, respetivamente, um efeito jurídico que impeça, modifique ou extinga o efeito pretendido pelo autor.

Ora, no caso, sobre a Autora recaía, pois, o ónus de demonstrar os factos de que dependia a procedência da sus pretensão – aqueles que permitiam concluir que a Ré era devedora das quantias peticionadas, o que passaria por demonstrar que a mesma auferiu receitas relativas a eventos, que, nos termos do ponto 3 dos factos provados, deveria entregar à Ré.

Sucede que dos factos provados não resulta que a Ré tivesse obtido qualquer concreta receita relativamente aos eventos demonstrados, que, por força da citada estipulação contratual, tivesse de entregar parte à Autora, designadamente, a quantia peticionada, ou qualquer outro montante.

Razão pela qual não pode deixar de concluir-se pelo naufrágio da pretensão recursiva.

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IV. DECISÃO

Por todo o exposto decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante – artigo 527º do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

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Évora,

Ana Pessoa

Francisco Xavier

Manuel Bargado

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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎