Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
741/06.9TAABF.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: PERTURBAÇÃO DA VIDA PRIVADA
INJÚRIAS
STALKING
NULIDADE
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - Os recursos, enquanto meios específicos de impugnação das decisões judiciais, destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas no processo e decididas pelo tribunal recorrido, visando a sua revogação ou alteração, e não a pronúncia do tribunal “ad quem” sobre questões novas que não foram antes submetidas ao contraditório nem, por isso, objecto da decisão impugnada, seja no plano factual como no plano do conhecimento do direito.

II - Com excepção das nulidades da sentença, o sistema está construído de modo a onerar o sujeito processual interessado com a prévia arguição, sujeitando a questão à apreciação judicial para, então, em caso de improcedência, interpor recurso da respectiva decisão.

III - Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida em sede de recurso da decisão final e, portanto, em prazo superior ao prazo legal supletivo, sendo certo que a nulidade por falta ou deficiência de documentação reporta-se a actos ocorridos numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379.º do C.P.P., pelo que se submete ao regime geral sobre nulidades processuais.

IV - O princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art. 323.º, al. a) e 340.º, n.º1, ambos do CPP, princípio cuja violação o recorrente invoca, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

No Processo acima referido do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, foi submetido a julgamento em processo comum, perante juiz singular, o arguido PG, melhor identificado nos autos, sob imputação da prática, em autoria material de um crime de perturbação da vida privada, previsto e punido pelo art. 190.º n.º1 e 2 do Código Penal, e de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 180.º n.º1 do mesmo Código.

PL constituiu-se assistente e deduziu contra o arguido/demandado pedido de indemnização civil, impetrando a condenação deste no pagamento de uma indemnização no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros) e ainda nos juros vincendos, calculados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento.

O demandado apresentou contestação defendendo que não cometeu qualquer crime contra a ofendida.

Realizado o julgamento, o tribunal, por sentença publicada no dia 26 de Maio de 2009 (v.fls.764 a 805), decidiu:

a) Condenar o arguido, PG, pela prática de um crime de perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão.

b) Condenar o arguido PG, pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 1 mês e 15 dias de prisão.

c) Operar o cúmulo jurídico das penas aplicadas e, em consequência condenar o arguido na pena única de 5 meses de prisão, nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal.

d) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 1 ano, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5 do Código Penal (na actual redacção), subordinada, nos termos dos artigos 51.º e 52.º do mesmo diploma aos seguintes deveres e regras de conduta:

- Demonstrar no período de 6 meses e no final do período da suspensão que manteve as consultas com vista ao tratamento das doenças do foro psicológico de que padece;

- Não frequentar as imediações (rua) da loja dos pais da assistente, “O.D..”, sita em Areias de São João, nem as imediações da actual residência desta ou da residência dos seus pais, no Montechoro.

e) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização deduzido pela assistente PL e, em consequência condenar o demandado PG, a pagar à demandante a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

f) Absolver o demandado PG do demais peticionado em termos civis.

Não conformado, o arguido veio interpor recurso da sentença, nos termos constantes de fls.810 a 847, pugnando para que seja revogada a e sua substituição por outra que condene a arguida pelo referido crime.

Extraiu da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1. Face ao preceituado no art.º 410º, nº 2 do CPP, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável de fundamentação ou o erro notório na apreciação da prova;

2. O presente recurso e respectiva motivação têm por objecto a discordância quanto à matéria de facto e de direito constante na douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, designadamente com fundamento no que preceitua o nº 2 do art.º 410º do CPP;

3. Pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados – art.º 412º, nº 3, alínea a) do CPP:

- o considerar-se como provados os factos correspondentes aos pontos 1. a 13., 16., 23., 29. e 30. dos “Factos Provados”;

4. Provas que impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, alínea b) do CPP: os depoimentos do arguido, da assistente, das testemunhas JL, ML, CC, V N, AL, MV, AC, FS, JV e JR;

5. Em nenhum momento qualquer das testemunhas referidas dizem que viram ou ouviram o arguido proferir as expressões pelas quais foi condenado – art.º 181º do CP; de facto, nenhuma das testemunhas da assistente e demandante cível fez referência a tais expressões nos seus depoimentos;

6. A própria assistente disse na audiência de julgamento que se encontrava sozinha e que ninguém viu ou ouviu as expressões que diz terem sido proferidas pelo arguido no dia 02/07/06, nomeadamente: “Tens umas mamas todas boas e um rabo bom, e ainda te vou dar 2 ou 3”;

7. O arguido em momento algum admitiu ter proferido tais expressões;

8. Nenhuma das testemunhas pode ter a certeza de ter sido o arguido a efectuar os telefonemas para casa dos pais da assistente, pois em nenhum momento verificaram qualquer número de telefone relativo ao emissor de tais chamadas, alegando todas elas que eram efectuadas com número anónimo/confidencial;

9. Sendo certo que, reconheceu o tribunal, “…não foi possível identificar dias concretos e horas concretas de telefonemas…pois como foi referido pela generalidade das testemunhas muitos dos telefonemas eram efectuados de número privado não identificável.”

10. Ao longo dos depoimentos da assistente e das suas testemunhas, assistimos a uma série enorme de contradições relativamente ao número de telefonemas, às horas em que eram efectuados, ao local a que eles se dirigiam/eram recebidos, se os aparelhos receptores tinham ou não visor que permitisse ver o número emissor, se eram efectuados de cabine telefónica sita frente à loja, etc. …;

11. Não foi provado em nenhum momento da audiência de julgamento que o arguido se tenha introduzido na habitação da assistente ou tenha frequentado essa casa ou aí a tenha perturbado, sendo que existiram apenas por parte da testemunha V. algumas referências ao facto de ter visto o arguido na rua em frente à casa da assistente num qualquer dia, cuja data não recorda – art.º 190º do CP;

12. As condutas imputadas ao arguido e pelas quais ele foi sentenciado efectivamente não aconteceram nos termos alegados pelas testemunhas e pela assistente, mas, mesmo que assim tivesse sucedido, a verdade é que, salvo melhor opinião, não constituiriam nenhum ilícito penal, podendo apenas ser qualificadas como meros actos de moléstia moral, causadores de eventual desconforto no espírito da assistente. Tais actos, a terem acontecido, não têm gravidade nem enquadramento que mereça tutela penal;

13. Da análise da prova e da fundamentação da matéria de facto, não se encontra uma referência que permita à sentença recorrida dar como provado que em Março de 2006 o arguido começou a dirigir-se frequentemente à loja da assistente;

14. Da análise de toda a fundamentação da matéria de facto bem como de toda a prova gravada, não encontramos referências, a qualquer meio de prova, que permita à sentença recorrida dar como provado que o recorrente insistiu em abordar a assistente com o propósito de com ela encetar uma relação amorosa, abordando-a na loja e no café que esta frequentava;

15. Dos depoimentos prestados pela assistente e pelo recorrente não é feita qualquer alusão a que haveria desistência de queixa por parte da assistente relativamente a processos na CM..;

16. Aliás, tal seria manifestamente impossível pois, as referidas queixas foram efectuadas pela assistente junto da referida edilidade a 20/11/06 e a 22/11/06;

17. O tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final, pois, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, podia e devia ter ido mais longe;

18. O que estava em causa, em parte substancial do processo – quanto ao crime p. e p. pelo art.º 190º do CPP – eram chamadas telefónicas, segundo a assistente e as suas testemunhas, efectuadas “aos milhares” pelo arguido, não tendo procurado o tribunal, entre outras coisas, trazer ao processo os registos das chamadas telefónicas efectuadas em tais períodos (de Julho de 2006 a Julho de 2007) dos números de telefone fixo e móvel do arguido e do telefone da C.M... que se encontrava no gabinete do arguido; não solicitou à P.T. o fornecimento de listagem das chamadas recebidas nos dois números trazidos aos autos pela assistente como sendo os utilizados pelo arguido para a perturbar; não se procedeu à apreensão do telemóvel do arguido para se indagar se o mesmo possuía na sua lista telefónica os números da assistente, de casa dos pais ou da loja; não solicitou à P.T. informação relativa à confidencialidade dos alegados números das cabines telefónicas e / ou dos telefones fixos; não solicitou confirmação das datas em que os pais da assistente procederam à desligação do/s seu (s) telefone (s);

19. Considera o recorrente que, o tribunal deveria ter investigado oficiosamente os supra referidos pontos, tendo deste modo deixado de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar face ao objecto do processo;

20. Da violação do art.º 410º, nº 2 do CPP e da errónea qualificação jurídica: resulta, desde logo, da própria decisão de “per si” conjugada com as mais elementares regras da experiência e senso comum, que estamos perante insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, bem como perante contradições insanáveis da fundamentação ou entre esta e a decisão e, igualmente perante erros notórios na apreciação da prova, o que releva quanto à matéria de direito, redundando em errónea qualificação jurídica;

21. Ao inexistir correspondência lógica entre os factos dados como provados e a prova efectivamente produzida, o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.º 127º do CPP;

22. Impondo-se, assim, que o Tribunal “ad quem” afira da arbitrariedade da decisão violadora dos critérios legais impostos ao julgador na valoração da prova;

23. De facto, o Tribunal “a quo”, acreditando “ab initio” na culpa do arguido, sindicou a sua decisão através de um juízo de tipo presuntivo, discricionário e carecido de suporte factual;

24. A insuficiência da prova produzida para a decisão, indicia a verificação do vício previsto no art.º 410º, nº 2 alínea a) do CPP, ou seja, o Tribunal “a quo” fundamenta a condenação do recorrente em prova insuficiente para alcançar a decisão nos presentes autos;

25. O mesmo sucede no que concerne aos já apontados vícios previstos nas alíneas b) e C) do mesmo art.º 410º nº 2 do CPP;

26. Ao não ter aplicado o princípio do “in dubio pro reo”, o Tribunal “a quo” violou o preceituado no art.º 32º, nº 2 da C.R.P.;

27. Tudo visto e em conclusão, nunca o arguido poderia ter sido condenado pelos crimes de injúrias e perturbação da vida privada, impondo-se a sua absolvição;

28. O Tribunal “a quo” violou, não só o art.º 158º, nº 1 do CP, ao ter proferido decisão condenatória sem que o tipo legal de crime se encontrasse preenchido, como também o art.º 127º do CPP, e ainda o art.º 32º, nº 2 da CRP;

Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite:

29. O Tribunal “a quo” ponderou a hipótese de enquadramento dos factos que deu como provados nos tipos legais de crime de injúrias p. e p. no art.º 181º do CP e do crime de perturbação da vida privada, p. e p. no art.º 190º do C.P.;

30. O Tribunal “a quo” condenou o arguido e ora recorrente a uma pena de:
- 5 meses de prisão – art.º 77º, nº1 do C.P., suspensa por 1 ano e subordinada a regras de conduta:


“- Demonstrar no período de 6 meses e no final do período da suspensão que manteve as consultas com vista ao tratamento das doenças do foro psicológico de que padece;

- não frequentar as imediações da loja dos pais da assistente, “OD”, sita em A. São João, nem as imediações da actual residência desta ou da residência desta ou da residência dos seus pais, no Montechoro.”

- Tendo sido condenado, igualmente a pagar à assistente/demandante cível a quantia de € 7.500,00.

31. O Tribunal “a quo” baseou a sua decisão essencialmente na sua convicção – art.º 127º do CPP;

32. Não se pode condenar uma pessoa que: “…não tem antecedentes criminais, o que atenta a respectiva idade denota já um percurso de vida dentro das regras vigentes em sociedade.”- tal como consta na sentença, que é um bom pai de família, integrado profissional e socialmente, casado, funcionário público com responsabilidades e sem qualquer cadastro disciplinar há mais de 22 anos, baseado em factos que não podem dar-se, concretamente, como provados ou, somente em convicções;

33. Entende nesta perspectiva o recorrente que, ainda assim com base nos factos dados como provados, as penas aplicadas revelam-se excessivas, reflectindo que os critérios de determinação das medidas das penas e as subjacentes finalidades das mesmas não foram respeitadas, violando-se assim o disposto nos arts. 71º e 40º do CP;

34. Na fixação da medida da pena o Tribunal não teve em conta os critérios orientadores da medida concreta da pena aplicada, violando assim os arts. 71º e 72º do CP;

35. Pelo exposto, com base na imputada culpa do arguido e cumprindo as exigências de prevenção até ao máximo que a “culpa” permite, seria adequado e proporcional aplicar-lhe, pela prática dos dois crimes, uma pena de multa dentro do limite dos 240 dias;

36. Garantindo-se, de tal modo que as expectativas da comunidade na validade da norma violada ficarão realizadas com esse quantum, sob pena de se utilizar o arguido como meio para alcançar fins que violem a sua dignidade pessoal e os princípios básicos do Direito Penal e da Lei Fundamental e que servem de intimidação da sociedade em geral, e será dada prevalência ao critério da necessidade de socialização e não ao da intimidação individual, não perdendo de vista que uma pena mais pesada poderá ter efeitos altamente perversos;

37. Também no que concerne à sujeição do arguido à condenação no pagamento à assistente de indemnização em valor quase idêntico ao seu salário anual, ou seja, € 7.500,00, ele alega que é pessoa humilde, de parcos recursos, que vive do seu salário e com o qual tem que fazer face às suas obrigações de chefe de família e de pai de uma menor de 16 anos;

38. Acresce que, considera o recorrente que tal valor muito elevado foi arbitrado à revelia e ao arrepio da jurisprudência portuguesa em casos idênticos e entende que não praticou factos ilícitos, culposos nem voluntários, pelo que, no seu ponto de vista não se encontram cumpridos os vários pressupostos que condicionam, no caso vertente de responsabilidade – art.º 483º do C.C. – a obrigação de indemnizar a assistente;

Nestes termos e demais de Direito, deverá o presente Recurso obter provimento por parte de Vossas Excelências:

- determinando a modificação da matéria de facto dada como provada na sentença de que ora se recorre e, em consequência,

- proferindo decisão que absolva o recorrente PG da prática dos crimes de injúrias e de perturbação da vida privada, pelos quais foi indevidamente condenado em primeira instância,

- ou caso se entenda que terá praticado tais ilícitos, deverá o mesmo ser condenado em pena de multa,

- caso V. Exas. assim não entendam, não poderão deixar de determinar o reenvio do processo para novo julgamento, porquanto se encontram verificados os vícios do art.º 410, nº 2 do CPP, por assim ser de inteira JUSTIÇA!»

O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, e a assistente/demandante vieram responder ao recurso, nos termos que constam de fls.870 a 878 e 883 a 892.

O Ministério Público não formulou quaisquer conclusões, manifestando, contudo, o entendimento de que assiste razão ao recorrente quanto à invocada nulidade, devendo ser determinada a repetição de tomada de declarações ao arguido, a fim de se captar o sentido integral das suas declarações e consequente prolação de sentença. Caso assim se não seja decidido, sustenta o Ministério Público que o tribunal não errou na avaliação da matéria de facto, que a pena de multa é suficiente para sancionar o recorrente pela prática do crime de injúria.

A assistente PL, por sua vez, conclui que o recurso deverá ser julgado totalmente improcedente, por alegadamente, não ter o mínimo fundamento, nem de facto, nem de direito, tratando-se apenas, e tão-somente, de mais uma manobra tendente a retardar a aplicação da justiça, como sempre foi o interesse do arguido.

O referido recurso foi admitido por despacho proferido em 18 de Novembro de 2009 (v.fls.917).

Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, teve vista dos autos e convocando a argumentação produzida pelo Ministério Público em 1.ª instância manifestou o entendimento de que o recurso merece provimento no que diz respeito à invocada nulidade.

Foi cumprido o disposto no n.º2 do art. 417.º do CPP, não tendo sido produzida qualquer resposta por banda do arguido ou da assistente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo agora decidir.

Delimitação do objecto do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente – art. 403.º n.º1 e 412.º n.º1 do CPP, só abrangendo as questões nelas contidas, podendo sempre o tribunal de recurso conhecer «ex officio»[1]) dos vícios da matéria de facto a que se reporta, designadamente, o n.º 2 do art.410.º do CPP, bem como das nulidades insanáveis.

Por isso, ainda que o recorrente no texto da motivação trate de outras questões que não aporta às conclusões, entende-se que restringiu tacitamente o objecto inicial do recurso, conforme dispõe o n.º3 do art. 684.º do CPC, aplicável em conformidade com o disposto no art. 4.º do CPP

Das conclusões do recurso extrai-se que o recorrente pretende deste tribunal o conhecimento das seguintes questões, que se alinham por ordem lógica e preclusiva:

a) Se o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final (conclusões 17 a 19);

b) Se a sentença recorrida enferma dos vícios prevenidos no n.º 2 do art. 410.º do CPP (conclusões 1, 2, 20, 24, 25);

c) Se na apreciação da prova foi violado o disposto no art. 127.º do CPP (conclusões 21 a 23);

d) Se o tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio “ in dubio pro reo” violou o disposto no art. 32.º n.º2 da CRP (conclusão 26);

e) Se foram incorrectamente julgados os factos insertos nos pontos 1 a 13, 16, 23, 29 e 30 dos “Factos Provados” (conclusões 3 a 16);

f) Se o arguido deve ser absolvido dos crimes por que foi condenado (conclusões 27 e 28);

g) Não procedendo a absolvição, se as penas aplicadas ao arguido são excessivas e se é suficiente a aplicação de pena de multa (conclusões 33 a 36);

h) Se a indemnização arbitrada é de valor muito elevado e foi feita ao arrepio da jurisprudência portuguesa em casos idênticos.

II
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa no mês de Março de 2006, o arguido começou a dirigir-se frequentemente à loja de decoração e artesanato da assistente PL, situada em Areias de São João – Albufeira, pretendendo encetar uma relação amorosa com a assistente, o que ela desde logo rejeitou.

2. Porém o arguido insistiu em abordar a assistente com tal propósito, quer na loja quer no café que a assistente habitualmente frequentava, ao mesmo tempo que lhe escrevia cartas e fazia telefonemas.

3. A assistente, cada vez mais incomodada com tal situação, disso advertiu o arguido, designadamente no dia 21 de Julho de 2006, proibindo-o de a procurar, de lhe falar e lhe fazer telefonemas, tendo mesmo solicitado a comparência da GNR, quando o arguido lhe aparecia.

4. Apesar disso, o arguido continuou a efectuar chamadas telefónicas para a assistente, quer para o número 289 ----, instalado na loja, quer para o número 289 ---, instalado na residência da assistente, em Montechoro, Albufeira.

5. Esses telefonemas eram diários, às dezenas e a qualquer hora do dia ou da noite, e o arguido fazia-os sabendo que a assistente se sentia incomodada com eles e que actuava contra a expressa vontade dela.

6. O arguido reiterou essa conduta pelo menos desde Julho de 2006 a Julho de 2007, sempre actuando nos mesmos moldes, movido pelo mesmo propósito de assediar a assistente e encorajado pela facilidade com que dessa forma importunava a assistente.

7. O arguido agiu com vontade livremente determinada, sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

8. No dia 2 de Julho de 2006, a hora não concretamente apurada, à saída da residência da assistente PL, sita na Vivenda ----, Rua----, Montechoro, Albufeira, o arguido PG dirigiu-se àquela e proferiu-lhe a seguinte expressão “Tens umas mamas todas boas e um rabo bom, e ainda te vou dar 2 ou 3”.

9. O arguido quis e logrou proferir tais expressões à assistente, que sabia serem atentatórias da sua honra e consideração, tendo actuado livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

10. Desde Março de 2007, o arguido voltou novamente a procurar a assistente, com maior intensidade, importunando-a em qualquer parte que a visse.

11. Voltando a insistir, diariamente, com a realização de chamadas telefónicas para o telefone da sua residência, nomeadamente no período nocturno, com maior incidência no período que medeia entre as 20.00 – 24.00/1.00 horas, quando era do seu conhecimento que alguém estava em casa, tal como para o telefone da loja, durante o horário de expediente (10.00 – 21.00 horas).

12. Dias houve em que o arguido chegou mesmo a fazer mais de uma dúzia de chamadas telefónicas, de um número de telefone não identificado, até cerca das 24.00 – 1.00 horas.

13. A presença constante do arguido, ora junto da sua residência, ora através dos telefonemas diários para a sua residência, incomodava a assistente e os seus pais.

14. A assistente tem 30 anos e exerce a profissão de empregada de balcão na loja de decoração e artesanato dos seus pais.

15. A assistente é pessoa conhecida na área de Albufeira, por força de os seus pais também o serem e por a loja onde trabalha ser muito frequentada e ter boa reputação.

16. A assistente sempre foi pessoa pacata, respeitadora, bem considerada e respeitada no seio da comunidade onde reside e trabalha.

17. Em face da conduta do arguido, a assistente ficou perturbada, envergonhada, enxovalhada e humilhada perante terceiros.

18. A situação existente entre a assistente e o arguido é comentada na praça pública e tem tido elevada exposição pública.

19. O arguido também é pessoa muito conhecida na comarca de Albufeira por exercer durante muitos anos as funções de fiscal municipal na Câmara Municipal de ---.

20. A assistente tem sido sujeita a comentários públicos nem sempre abonatórios.

21. O que a deixa envergonhada, perturbada, revoltada e exposta.

22. A conduta do arguido causou ainda à assistente mau estar e tristeza.

23. O arguido trabalhou 2 anos nos Serviços Fiscais e 18 anos na fiscalização da Câmara Municipal de ...

24. O arguido conheceu a assistente numa altura em que fazia o levantamento dos estabelecimentos de restauração e bebidas da área das Areias de São João.

25. A assistente fez queixa do arguido à Câmara Municipal de ---.

26. Em Agosto de 2006 quando o arguido e a mulher regressaram de férias, a queixosa e a mãe deslocaram-se ao local de trabalho da mulher do arguido, confrontando-a com a conduta do arguido.

27. Na sequência dessa visita o arguido ligou para casa da ofendida, tendo sido atendido pela mãe da assistente.

28. No dia 11 de Agosto de 2006, a mulher do arguido telefonou para casa da assistente, tendo sido atendida pelo pai da mesma, tendo combinado encontrar-se na loja OD pelas 18H30, o que veio a acontecer.

29. Nessa ocasião ficou combinado que haveria desistência de queixa na GNR e na CM-- e que o arguido deixaria temporariamente de frequentar os estabelecimentos da zona para evitar que ambos se cruzassem.

30. A assistente manteve as queixas apresentadas.

31. O arguido sofre de Depressão Ansiosa, Perturbação Pós Stress Traumático e Síndrome de Vitima de Mobing.

32. O estado de saúde do arguido tem vindo a agravar-se, designadamente pelo aparecimento de alteração do pensamento com ideias obsessivas, ideias sobrevalorizadas, ideias deliróides e maior dificuldade no controlo dos impulsos.

33. O arguido encontra-se a ser medicado e continua a ser acompanhado pelo Dr. C, com uma frequência de 3 em 3 meses ou 4 em 4 meses.

34. O arguido esteve de baixa médica tendo regressado ao trabalho no mês de Abril de 2009 e actualmente está a dar apoio ao Sr. Vereador do departamento das infra-estruturas e obras públicas.

35. Vive com a mulher e com a filha, actualmente com 16 anos.

36. Aufere mensalmente € 850,00, acrescido de subsídios.

37. Tem como habilitações literárias o 12.º ano.

38. O arguido não tem antecedentes criminais.

A respeito de factos não provados o tribunal consignou:

Da prova produzida em audiência não resultaram provados os seguintes factos:

1. Que no dia 21 de Março de 2007 o arguido telefonou para a residência da assistente, tendo sido a mãe desta a atender o telefone e proferiu a seguinte expressão: “Pronto, devem estar satisfeitos com tudo…Podem abrir as garrafas de champanhe para comemorar”.

2. Que após a realização de tal chamada telefónica, o arguido voltou a telefonar mais 3 (três vezes) durante o período nocturno.

3. Que num determinado dia quando o arguido parou junto à montra da loja onde a ofendida trabalha e se encontrava a observar uma miniatura de moto, aquela o convidou a entrar no estabelecimento “OD”.

4. Que nessa ocasião a queixosa questionou o arguido se trabalhava na Câmara Municipal de ---.

5. Que a partir daí, sempre que o arguido passava pela rua em frente da loja da ofendida, sempre que a mesma se encontrava à porta do seu estabelecimento, abordava-o e convidava-o a entrar.

6. Que logo ao terceiro diálogo entre ambos, na referida loja, a queixosa começou a falar ao arguido da sua vida particular e íntima, nomeadamente dizendo ao arguido que namorava com um rapaz americano, de nome John, filho de pais portugueses, residente em Nova York, casado, pai de um filho, separado nessa altura, e que queria que ela fosse viver para Nova York mas que ela não queria e que tal relação estaria comprometida.

7. Que a queixosa tenha perguntado ao arguido se o mesmo era casado e que, tendo obtido a resposta afirmativa mas que estaria em processo de divórcio, logo lhe tenha dito que iria colocar um ponto final no seu namoro com o americano.

8. Que na ocasião descrita em 26 dos factos provados, a assistente tenha perguntado à mulher do arguido pelas férias deste e do marido, pelas praias que frequentavam e pelo estado do seu casamento.

9. Que na ocasião descrita em 28 dos factos provados tenha sido exibida uma carta do advogado da mulher do arguido referente ao processo de divórcio.

10. Que o arguido, na sequência do descrito em 29 dos factos provados tenha deixado de frequentar os referidos estabelecimentos.

Os demais factos constantes da acusação particular de fls. 220 e da contestação apresentada pelo arguido, não foram considerados na medida em que ou não foram admitidos na decisão instrutória, ou extravasam o objecto dos presentes autos, não tendo sido objecto de inquérito (como aliás já resulta da decisão instrutória) ou são objecto de outros inquéritos/processos em curso ou são meras conclusões, considerações dos exponentes acerca dos factos e da apreciação que fazem da prova constante dos mesmos.

O tribunal fundamentou o julgado em matéria de facto nos termos que seguem:
«A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada assentou na apreciação crítica e objectiva da prova produzida em audiência, à luz das regras de experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório.

As declarações do arguido, da assistente e os depoimentos das testemunhas encontram-se registados em suporte magnético, motivo pelo qual o Tribunal se dispensa de fazer uma análise pormenorizada sobre cada um deles, reproduzindo-os.

Sobre o objecto dos presentes autos, foram apresentadas duas versões contraditórias, a do arguido e a da assistente.

No que ao essencial concerne, o arguido negou ter feito diversos telefonemas para a residência da assistente, com o objectivo de a importunar, bem como ter proferido a expressão ofensiva que lhe é imputada ou sequer ter estado junto à residência da assistente no dia em causa, visto tratar-se de um domingo.

Por seu lado, a assistente afirmou que no período compreendido entre Março de 2006 e Julho de 2007, para além do mais que não é objecto do processo, o arguido fez vários telefonemas para a sua residência, a várias horas do dia, mas sobretudo à noite uma vez que era a essa hora que, por norma se encontrava em casa, visto que durante o dia trabalhava. Que em tais telefonemas o arguido por vezes falava, umas vezes para a elogiar outras para a insultar, às vezes identificava-se logo, outras vezes não se identificava mas ao falar reconhecia-o pelo discurso. Referiu ainda que o arguido persistiu em tal conduta mesmo depois de a assistente o proibir de o fazer e de o advertir que a incomodava e importunava. Por fim referiu que, num domingo no verão de 2006, embora, não concretizasse o dia, o arguido estava em frente à sua casa quando se encontrava a sair da mesma e referiu a expressão constante dos autos acerca do seu peito e rabo.

É obvio que o Tribunal não conhece, através da prova produzida em audiência, a verdade “absoluta e universal” sobre o facto histórico verificado, porque o conhecimento humano é de capacidade limitada, exigindo-se apenas o “convencimento justificado”, idóneo para superar a presunção de inocência.

Com efeito, a verdade histórica nem sempre corresponde à verdade processual, sendo certo que, é de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento, analisada à luz da lei e da consciência do julgador, de acordo com as regras da experiência comum, que se apura a verdade do processo.

O facto de existirem duas versões contraditórias dos factos não é suficiente para colocar, desde logo, o Tribunal numa situação de non liquet, ou seja, numa situação de dúvida insanável sobre a verificação dos factos que, necessariamente tenha de ser resolvida por via do princípio constitucional “in dubio pro reu”. Com efeito, sopesada toda a prova produzida, conjugados os depoimentos e a prova documental, pericial ou outra junta aos autos pode o Tribunal atribuir maior credibilidade a uns depoimentos que a outros e, por via disso, dar credibilidade a uma das versões apresentadas.

Ora, tal é o caso dos presentes autos.

Com efeito, sopesada toda a prova produzida, como adiante se explanará, ficou o Tribunal convencido da veracidade dos factos relatados pela assistente.

Não restaram dúvidas para o Tribunal acerca da animosidade existente entre o arguido e a assistente e a família desta, bem como que a situação que entre ambos se vem verificando, vai muito para além dos factos que são objecto do processo. Todavia, deve o Tribunal, sem deixar obviamente de considerar todo o contexto em que os factos terão ocorrido, cingir a apreciação da prova aos factos relevantes para a apreciação da eventual responsabilidade criminal do arguido.

Das declarações da assistente, PL, conjugadas com os depoimentos das testemunhas JL e ML, pais da assistente, CC - actualmente a exercer a sua actividade na banca, mas à data a trabalhar na espingardaria perto da loja da assistente e amiga desta desde a escola primária -, RG - amiga da família da assistente -, V N, actual namorado da assistente, que com ela vive maritalmente e que, à data dos factos era amigo desta, todos frequentadores da residência da assistente, pelos motivos supra indicados, resultou para o Tribunal que o arguido efectivamente por diversas vezes, a várias horas do dia, mas sobretudo à noite, telefonava para a residência da assistente para a importunar. E importunar porque nada queria em concreto, apenas fazer comentários elogiosos ou depreciativos, outras vezes para falar com ela sabendo que a mesma não queria.

Todas estas testemunhas, com excepção da testemunha RG, que apenas relatou ter assistido à mãe da assistente a atender telefonemas, referiram ter atendido telefonemas do arguido na residência da assistente, que à data, vivia com os pais. Esclareceram que os telefonemas foram mais intensos a partir de Março de 2007, o que, de acordo com a documentação junta aos autos coincide com a data em que o arguido terá sido notificado da decisão proferida pela Câmara Municipal de --, no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado.

Especialmente relevante neste aspecto foi o depoimento da testemunha ML, mãe da assistente, que pese embora as relações de parentesco que a unem a esta, demonstrou uma atitude calma e apaziguadora em relação aos factos, como aliás não foi posto em causa pelo arguido, e segundo a qual entre Julho de 2006 e Julho de 2007 o arguido fazia uma média de cinco telefonemas por dia, todos os dias, a várias horas do dia mas sobretudo, no período nocturno, porque durante o dia ligava mais para a loja.

Refira-se que, quanto a este aspecto, efectivamente não foi possível identificar dias concretos e horas concretas de telefonemas pois como foi referido pela generalidade das testemunhas muitos dos telefonemas eram efectuados de número privado não identificáveis.

Todavia, foi possível apurar com razoável grau de certeza, o suficiente para dar tal facto como provado, a frequência e as horas a que tais telefonemas eram efectuados.

Salvo melhor entendimento, não será exigível para a prova dos factos que existam registos telefónicos de chamadas efectuadas por números identificados, pois, efectivamente, o que resulta das regras da experiência comum é que os autores deste tipo de condutas efectuam chamadas através de números não identificados por forma a evitarem deixar o registo da sua conduta. Salvo o devido respeito, outra coisa não seria de esperar e, a exigir-se tal prova, encontrado estaria o crime perfeito, na maioria das vezes, com excepção feita aos arguidos mais incautos e distraídos, insusceptível de prova.

A verdade é que as testemunhas supra referidas, com excepção, mais uma vez da referida RG, conheciam o arguido e já tinham tido outros contactos com ele que não apenas nos telefonemas que referiram presenciar e, por vezes, até atender. Os pais da assistente e assistente, pelas razões óbvias e que resultaram provadas nos autos, que já tinham contactado com o arguido na loja de artesanato de que são proprietários e onde a assistente trabalha. A testemunha CC porque quando trabalhava na espingardaria dos seus pais próximo da loja da assistente e, pelo facto de ser amiga desta já havia sido abordada por este, como a própria relatou, para que intercedesse junto da assistente a seu favor e, a testemunha V, porquanto na qualidade de amigo da assistente, na altura, muitas vezes a acompanhava, tendo chegado a contactar com o arguido. Este última testemunha referiu ainda, que, pese embora os contactos até então mantidos com o arguido tivessem sido breves reconhecia-o ao telefone pelas expressões que utilizava, que eram em todo semelhantes às constantes das cartas escritas à assistente, e pelo facto de, em algumas vezes terem sido reproduzidos ou mencionados nos telefonemas factos de que o arguido se apercebeu das conversas trocadas nos cafés em que ambos se encontravam.

Apesar da animosidade latente entre a família da assistente e o arguido, que aliás é patente nos vários processos de natureza crime que correm neste Tribunal, a credibilidade destes depoimentos não foi posta em causa por esse motivo, nem sequer pelas contradições que ao longo das várias sessões de julgamento foram sendo apontadas às testemunhas pelo arguido. É que, daquilo que foi possível ao Tribunal aperceber-se a questão dos telefonemas é apenas uma entre muitas e, se calhar, nem sequer a mais grave que imputam ao arguido, mostrando-se muito mais preocupados em relatar as perseguições efectuadas pelo arguido, a constante presença do arguido nos locais em que a assistente se encontrava, a sua insistente presença junto à loja da mesma para falar com ela, do que propriamente os telefonemas para a residência, o que demonstrou que, efectivamente, não estavam estas testemunhas mecanizadas, instrumentalizadas para relatar os factos com relevância criminal. Por esse motivo mereceram a credibilidade do Tribunal.

Para além disso, a prova produzida pelo arguido, quer documental quer testemunhal não foi suficiente para abalar tais depoimentos, na medida em que, em termos documentais nada resulta quanto ao período de tempo em apreço nos autos e, mesmo que constassem os registos do telefone de casa do arguido ou do seu telemóvel, pelos motivos supra aduzidos daí não se inferia, necessariamente, que os telefonemas não teriam sido feitos. É que, efectivamente, se dúvidas se pretendeu suscitar que os telefonemas tenham sido realizados, sempre se poderia dizer que trabalhando o arguido essencialmente na rua, como o próprio afirmou, teria fácil acesso a cabines telefónicas, sem falar na facilidade actualmente em adquirir telemóveis por baixo preço e sem qualquer identificação.

No que concerne ao factos ocorridos no dia 21 de Julho de 2007[2], em frente à residência da assistente, é certo que a mesma, em audiência de julgamento afirmou não se recordar do dia em concreto, tendo a certeza que se tratava de um domingo e que foi no verão de 2006, sendo certo que, quanto às concretas expressões que lhe foram dirigidas não teve qualquer dúvida em reproduzi-las.

Também quanto a este aspecto o arguido negou a prática dos factos, tendo esclarecido que nunca se deslocava a Albufeira aos domingos.

Todavia, mais uma vez, entende o Tribunal que a versão dos factos prestada pela assistente se afigurou credível. É que, efectivamente, pese embora os pais da mesma não tenham assistido à conversa entre ambos no âmbito da qual vieram a ser proferidas as expressões constantes dos autos, ambos depuseram no sentido de ter visto o arguido no referido dia à porta da sua casa, pese embora não tenham ouvido o que o mesmo disse à filha.

Por outro lado, tendo o arguido vincado várias vezes em audiência de julgamento que nunca se dirigia ao domingo a Albufeira, a verdade é que da carta junta aos autos a fls. 16 a 18 (original a fls. 151/152) e cuja autoria em audiência de julgamento o arguido reconheceu, resulta que o mesmo se terá dirigido a casa da assistente num domingo, como o próprio aí afirma. Veio o arguido dizer que tal missiva fora escrita em 2004, todavia, não ficou o Tribunal em crer que assim fosse pois que em audiência referiu o arguido que a sua filha tem actualmente 16 anos e, na aludida carta, refere que a filha tem 13 anos. Ora, feitas as contas, estaremos a rondar o ano de 2006 e não de 2004.

O que não significa de todo, que os factos em apreço se tenham passado no domingo referido na carta, mas tão só que a versão do arguido de que nunca em qualquer domingo vinha a Albufeira, não é verosímil.

Para além disso, também não poderá deixar de se dizer que, considerando o conteúdo das cartas juntas aos autos a fls. 16/18 (original a fls. 151 a 153) e a fls. 154, o arguido faz diversas referências ao corpo da assistente e à sua sensualidade, pelo que, não se afigura de todo despropositado ou fora do contexto que o mesmo tenha proferido tais expressões, enquadradas obviamente num quadro obsessivo que, sem dúvida, o arguido desenvolveu em relação à assistente.

Nem se diga que as declarações prestadas pela assistente ficaram abaladas pelo facto de não se ter recordado do dia em concreto em que os factos ocorreram, esclarecendo apenas que foi no verão do ano de 2006 e num domingo. Na verdade, a apreciação da prova também não deve ser feita de forma autista, sendo certo que a mesma afirmou ter feito queixa destes factos e nos autos encontra-se o respectivo auto de denúncia. Para além disso, sempre se dirá que, considerando a sucessão de factos que tem vindo a suceder entre a assistente, o arguido e a família daquela, e que já deram origem a outros processos não será de todo despropositado que a assistente não se recorde em concreto do dia.

De tudo isto resulta que a versão dos factos apresentada pela assistente foi corroborada por outros meios de prova que, de forma sustentada e credível, lhe deram consistência.

No que respeita ao conhecimento e vontade do arguido, pese embora a prova não tenha sido directa resulta dos factos objectivos dados como provados na medida em que, considerando todo o contexto em que os factos ocorreram, que o arguido tinha uma atracção não correspondida pela assistente, que a mesma veio a apresentar queixa na C.M.. que deu origem a um processo disciplinar, o arguido queria efectivamente importunar a assistente, perturbar o seu descanso, e ofendê-la na sua honra e consideração ao referir ao seu peito e rabo da forma como o fez, tendo conseguido alcançar os seus intentos.

Sobre todo o contexto em que os factos ocorreram, para além dos depoimentos supra referidos, foram valorados os depoimentos das testemunhas AL, tia da assistente e MV, amiga da assistente, que relataram, tal como as demais testemunhas, os telefonemas que o arguido fazia para o local de trabalho da assistente, as visitas que fazia à loja, a sua presença nos mesmos locais frequentados pela assistente, etc.

Do depoimento de todas as testemunhas, com excepção da testemunha RG, bem como das cartas juntas a fls. 151 a 154 e cuja autoria o arguido reconheceu, não resultaram dúvidas que o arguido pretendia iniciar uma relação amorosa com a assistente e que não era correspondido.

Não obstante, para além deste facto que se deu como provado, os demais factos relatados quanto às abordagens do arguido, embora censuráveis e por certo causadores de desconforto, não merecem tutela penal, não obstante devam ser valorados em sede de censurabilidade da conduta do mesmo.

As testemunhas arroladas pelo arguido, essencialmente colegas de trabalho e o empregado da pastelaria OD, que se situa próximo da loja da assistente, vieram depor sobre a personalidade do arguido enquanto colega de trabalho e descrever o seu quotidiano em termos laborais.

A testemunha FB, também fiscal municipal fez equipa com o arguido na C.M... desde Abril de 2006 a Fevereiro de 2007, esclarecendo só ter tido conhecimentos dos factos que se vinham passando entre o arguido e assistente depois de instaurado o procedimento disciplinar porque aquele lhe contou, nunca tendo no respectivo dia a dia de trabalho presenciado qualquer telefonema ou situação, sendo certo que, nos tempos em que não estavam juntos, o que às vezes sucedia porque a testemunha estava incumbida de inserir dados na base de dados informática e por vezes não saía para a rua, nada sabia sobre o arguido, nem sequer sobre a sua vida pessoal.

A testemunha LC, médico veterinário esclareceu ter trabalhado com o arguido numa comissão criada em 2004, na altura do Euro, a qual terminou meses depois desse evento, descrevendo o arguido como bom profissional, dedicado, bom amigo e pessoa idónea e de carácter, sendo que, sobre a sua vida pessoal não demonstrou conhecimento. Pelo contrário referiu que, pese embora tenham ficado amigos, até íntimos, nunca lhe perguntou pelo desfecho do processo disciplinar de que foi alvo, o que de todo, não poderá deixar de causar estranheza.

As testemunhas JR, fiscal municipal e JF, arquitecto referiram conhecer o arguido do exercício das suas funções, identificando-o como amigo, mas que, em termos profissionais deixaram de ter um contacto tão próximo no ano de 2006, descrevendo-o, todavia, como pessoa trabalhadora, responsável e dedicada, não revelando todavia, conhecimento da sua vida pessoal.

A testemunha JM, empregado da pastelaria OD apenas referiu que o arguido é cliente de há muitos anos e que por norma lá se prolongava mais no período da tarde, sendo que, sobre os factos, não demonstrou qualquer conhecimento.

Por fim, foi valorado o depoimento da testemunha AC, mulher do arguido, a qual tendo descrito de forma credível, e aliás confirmada quer pelo arguido, quer pela assistente, que foi contactada pela assistente e pela mãe desta no seu local de trabalho, tendo sido então confrontada com a carta junta aos autos a fls. 151 a 153, bem como a reunião entre todos organizada com vista a resolver a situação.

O depoimento desta testemunha, que nesta parte não foi posto em causa, nada veio acrescentar sobre os factos imputados ao arguido, nem permitiu infirmá-los pois que, como a mesma afirmou o marido trabalhava de manhã, à tarde e por vezes à noite e não o acompanhava, não podendo afirmar nada acerca das suas rotinas. Esclareceu que aos domingos o arguido costumava descansar e passar o tempo com a família. Todavia, daí não se retira que nunca o arguido tenha vindo a Albufeira num domingo. Este depoimento foi também relevante no que concerne a certos pormenores descritos pela testemunha que, não obstante tenha afirmado entender que a assistente pretende destabilizar o seu casamento, também referiu que, quando se conheceram e trocaram telemóveis a mesma lhe pediu que nunca desse o número ao marido, o que esta efectivamente fez.

No que concerne ao impacto da conduta do arguido no modo de vida e de estar da assistente foram valoradas as declarações da mesma, dos pais e das testemunhas AL, tia da assistente, MV e CC, amigas da assistente, RG, amiga da família e VN, amigo e actual namorado da assistente, todos pessoas que em virtude da relação de parentesco e amizade acompanharam a assistente e relataram, de forma que se afigurou credível, na medida em que demonstraram conhecimento da mesma em data anterior aos factos, como a conduta do arguido alterou o quotidiano da mesma e da respectiva família, o impacto que teve em termos sociais e de exposição pública, bem como ao nível da personalidade da assistente e da sua atitude perante a vida e perante as coisas, descrevendo-a actualmente como uma pessoa triste, reservada, receosa, envergonhada e psicologicamente muito abalada.

Relativamente às condições pessoais e profissionais da assistente foram tidas em consideração as declarações da própria e dos respectivos progenitores.

No que concerne às condições pessoais, sociais e profissionais do arguido, foram valoradas as declarações do próprio, que nesta parte, não foram infirmadas por qualquer outro meio probatório, conjugadas com o depoimento da testemunha AC, mulher do arguido e ainda os elementos clínicos de fls. 100, 445, 446 e 447, 392 a 394, 462, 488, 629, 486, 749 a 751.

Por fim, foram tidos em consideração os documentos juntos a fls. 144, 273 a 283 (relativamente à queixa apresentada pela assistente na CM.. e à decisão proferida no processo disciplinar instaurado contra o arguido), 678 a 697, 752 (quanto ao telefone de casa do arguido) e a reportagem fotográfica de fls. 753 a 757 (relativamente ao local de trabalho da assistente e às imediações do mesmo).

Quanto aos documentos juntos a fls. 205 a 207 e 248 a 250 não foi possível, da prova produzida estabelecer qualquer relação com o arguido, muito menos imputar-lhe a sua autoria, pois quanto a este aspecto apenas foi referido pelas testemunhas que o arguido tratava o actual namorado da assistente por “monhé”, o que todavia, não é suficiente para imputar ao arguido a sua autoria.

No que concerne aos antecedentes criminais do arguido foi valorado o certificado de registo criminal de fls. 623.

Relativamente aos factos não provados foram os mesmos valorados dessa forma considerando que não foram referidos por qualquer das testemunhas nem resultam dos documentos juntos aos autos.

No que respeita aos factos constantes nos números 3 a 7, pese embora tenham sido relatados pelo arguido, foram postos em causa pela assistente e, ao contrário do que sucedeu quanto às declarações desta não foram corroborados por qualquer outro meio probatório. De qualquer modo, sempre se dirá que, para os factos em apreço a relevância seria sempre diminuta pois que tendo ficado demonstrado que a assistente não pretendia ter qualquer relacionamento com o arguido, como aliás resulta das cartas por este escritas, ainda que o tivesse tido em momento anterior, tal não justificaria a conduta do arguido, nem daí resultaria qualquer tipo de consentimento presumido.

Por fim, quanto ao facto número 8 pese embora a mulher do arguido o tenha referido, foi o mesmo negado pela assistente e pela sua mãe, sendo que não houve outros meios de prova que permitissem concluir pela sua verificação.»

Conhecendo.

É um facto que o arguido/recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, com fundamento numa deficiente gravação das declarações que prestou em julgamento, veio arguir a nulidade do julgamento e requerer fosse ordenada a sua repetição.

Essa questão não foi aportada às conclusões do recurso e também não foi apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, pelo que este tribunal não tem que dela conhecer.

Os recursos, enquanto meios específicos de impugnação das decisões judiciais, destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas no processo e decididas pelo tribunal recorrido, visando a sua revogação ou alteração, e não a pronúncia do tribunal “ad quem” sobre questões novas que não foram antes submetidas ao contraditório nem, por isso, objecto da decisão impugnada, seja no plano factual como no plano do conhecimento do direito.

Trata-se de entendimento unânime na jurisprudência e também na doutrina (cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 28-06-2001, Proc. n.º 1293/01 - 5.ª; de 26-09-2001, Proc. n.º 1287/01 - 3.ª; de 16-01-2002, Proc. n.º 3649/01 - 3.ª; de 30-10-2003, Proc. n.º 3281/03 - 5.ª (os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a obter decisões ex novo sobre questões não colocadas ao tribunal a quo, mas sim a obter o reexame das decisões tomadas sobre pontos questionados, procurando obter o cumprimento da lei); de 22-10-2003, Proc. n.º 2446/03 - 3.ª, SASTJ n.º 74, pág. 147; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209; de 20-07-2006, Proc. n.º 2316/06 - 3.ª; de 02-05-2007, Proc. n.º 1238/07 - 3.ª; e de 10-10-2007, Proc. n.º 3634/07 - 3.ª e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª Edição, a fls.73).

Não obstante, até para elucidação do recorrente, tanto mais que já abordamos questão idêntica no âmbito do acórdão de 5 de Novembro de 2009, proferido no Recurso n.º 17/03.3GBGDL.E1, sempre se dirá que a arguição da nulidade do julgamento apenas em sede de recurso seria sempre intempestiva.

Em matéria de gravação de audiência, estabelece o art. 9.º do Decreto-Lei 39/95 de 15/2 (aplicável ex vi art. 4.º do CPP):

«Se, em qualquer momento se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que esta for essencial ao apuramento da verdade».

Porque essa repetição é oficiosa, deve entender-se que em qualquer momento significa apenas enquanto decorrer a audiência e não posteriormente.

Decorrido esse momento, a repetição só tem lugar na sequência de deci­são que, precedida da respectiva arguição por qualquer sujeito processual, a ordene.


A audiência de julgamento realizada na 1ª Instância decorreu em várias sessões, tendo o arguido sido ouvido sobre os factos objecto da acusação no dia 12 de Março de 2009 (v. actas de fls.633 a 639), sendo que o encerramento da discussão e as últimas declarações do arguido tiveram lugar no dia 12 de Maio de 2009 (v. fls.763).

Porém, o recorrente só veio invocar a deficiência da gravação no presente recurso que foi interposto em 22-06-2009 (v. fls.810).

Naturalmente, a arguição deveria ser feita por meio de requerimento formulado perante o tribunal de 1.ª instância e não directamente no recurso interposto da sentença.

Mantém-se actual a jurisprudência a que Alberto dos Reis aludia, em sede de processo civil, quando citava o postulado «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».

Com excepção das nulidades da sentença, o sistema está construído de modo a onerar o sujeito processual interessado com a prévia arguição, sujeitando a questão à apreciação judicial para, então, em caso de improcedência, interpor recurso da respectiva decisão.

Ainda quanto à arguição da nulidade perante o tribunal de 1.ª instância, importa identificar situações distintas.

No caso de o tribunal não proceder, pura e simplesmente, à documentação da prova – o que acontecerá raramente, pois todos os tribunais estão apetrechados com os equipamentos de gravação –, a nulidade respectiva deve ser arguida pelo interessado no próprio acto, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º1 e 3, alínea a), do C.P.P., por se tratar de omissão que é pública e patente.

Diferentemente, quando se trate de documentação deficiente, por inaudibilidade dos depoimentos gravados, só quando se procede, posteriormente, à análise das gravações é que a deficiência poderá ser detectada, já que enquanto decorre a gravação é ao funcionário do tribunal que incumbe averiguar se o aparelho de gravação está a funcionar correctamente.

Não se pode exigir que terminada uma qualquer sessão da audiência de julgamento incumba ao arguido ou a qualquer outro sujeito processual a tarefa de verificar a boa qualidade da gravação efectuada. Eles só têm possibilidade de controlar essa qualidade quando, a seu requerimento, lhe são entregues as cassetes ou CD´s.

E, neste caso, o prazo de arguição, na falta de disposição legal em contrário, terá de ser o prazo legal de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do C.P.P.).

Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida em sede de recurso da decisão final e, portanto, em prazo superior àquele prazo legal supletivo, sendo certo que a nulidade por falta ou deficiência de documentação reporta-se a actos ocorridos numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379.º do C.P.P., pelo que se submete ao regime geral sobre nulidades processuais.

Da decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade caberá recurso, nos termos gerais.[3]

Como contar o prazo de arguição da nulidade?

Paulo Pinto de Albuquerque sustenta que a nulidade em causa sana-se «se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artigo 105.º, n.º1) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido. Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido (…)» (Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 1.ª edição, p. 906).

Esta posição foi seguida num recente acórdão desta Relação, proferido em 22-10-2009, no âmbito do processo n.º 2024/08 – 1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Dr. Gilberto Cunha.

Posição algo semelhante vem perfilhada no Código de Processo Penal dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, que defendem em anotação ao art. 363.º, que “o prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da documentação é de 10 dias (art. 105.º n.º1), contados da data do encerramento da audiência. Se a audiência se prolongar por mais que uma sessão, o prazo conta-se a partir do fecho de cada uma. Prazo que agora se deve ter por fixado uma vez que a gravação fica imediatamente disponível no sistema informático dos tribunais e que é o único que se coaduna com a possibilidade de reparação tempestiva da nulidade sem que haja lugar à prática de actos inúteis como seria o recurso com essa finalidade.”

Sendo a gravação efectuada com o equipamento existente no tribunal e por funcionários de justiça, qualquer falta de gravação ou a imperceptibilidade da mesma não é (em princípio) imputável aos sujeitos processuais, mas aos serviços judiciários (seja por falta de qualidade do equipamento de gravação, por falta de preparação do pessoal para o seu manuseio ou a eventual desatenção na efectuação da gravação ou seu controle) pois lhes compete efectuar a gravação e fazê-lo correctamente.

Porém, os sujeitos processuais podem ter acesso, após o final de cada sessão de julgamento, às respectivas cassetes ou CD`s, devendo o funcionário, sempre que for realizada gravação, entregar no prazo de 48 horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário, de harmonia com o disposto no artigo 101.º, n.º3, do C.P. Penal.

E a perfilhar este entendimento doutrinal teremos de concluir que a nulidade se sanou decorridos 10 dias sobre a sessão do julgamento em que a prova foi produzida pelo que sempre seria intempestiva a sua arguição já depois de proferida a sentença.

Assim, tal vício sanou-se e não pode o arguido, em sede de recurso, invocar questão de que o tribunal recorrido não curou e de que não cumpre conhecer “ex officio”, pois não configura nulidade insanável.

Por isso, a posição doutamente defendida pelo Ministério Público na sua resposta não é de acolher nesta matéria.
**
Afirma o recorrente nas conclusões do recurso que o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final (conclusões 17 a 19).

Diz que “o que estava em causa, em parte substancial do processo – quanto ao crime p. e p. pelo art.º 190º do CPP – eram chamadas telefónicas, segundo a assistente e as suas testemunhas, efectuadas “aos milhares” pelo arguido, não tendo procurado o tribunal, entre outras coisas, trazer ao processo os registos das chamadas telefónicas efectuadas em tais períodos (de Julho de 2006 a Julho de 2007) dos números de telefone fixo e móvel do arguido e do telefone da C.M.. que se encontrava no gabinete do arguido; não solicitou à P.T. o fornecimento de listagem das chamadas recebidas nos dois números trazidos aos autos pela assistente como sendo os utilizados pelo arguido para a perturbar; não se procedeu à apreensão do telemóvel do arguido para se indagar se o mesmo possuía na sua lista telefónica os números da assistente, de casa dos pais ou da loja; não solicitou à P.T. informação relativa à confidencialidade dos alegados números das cabines telefónicas e / ou dos telefones fixos; não solicitou confirmação das datas em que os pais da assistente procederam à desligação do/s seu (s) telefone (s)”.

Considera o recorrente que, o tribunal deveria ter investigado oficiosamente os supra referidos pontos, tendo deste modo deixado de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar face ao objecto do processo.

Não retira, contudo, qualquer consequência do que alega, em termos processuais.

O princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art. 323.º, al. a) e 340.º, n.º1, ambos do CPP, princípio cuja violação o recorrente invoca, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais.

Os meios de prova admissíveis são aqueles cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – e o árbitro da necessidade é o tribunal.

Como já se disse no acórdão desta Relação de 1 de Abril de 2008, no âmbito do recurso n.º 360/08 – 1, acessível in www.dgsi.pt/jtre, “aquele juízo de oportunidade, de necessidade de diligências de prova não vinculada, dada a imediação e a vivência do julgamento, sede do contraditório, constitui pura questão de facto não subsumível ao art. 410.°, n.º 2, als. a), b) e c) e n.° 3, do C.P.Penal e, portanto, insusceptível de ser sindicada pelo tribunal de recurso.”

Não consta das actas do julgamento que o arguido, no decurso da produção de prova, tenha requerido a produção da prova que agora reputa com interesse.

Se, nesse momento processual, tinha por indispensável para a boa decisão da causa a realização de outras diligências, impunha-se-lhe que formalizasse o requerimento, invocando as razões que as justificavam e, perante uma eventual recusa, reagisse de forma processualmente adequada.

É que a omissão de diligência que possa reputar-se essencial à descoberta da verdade constitui nulidade dependente de arguição (cf. art. 120.º n.º2, alin. d) “parte final” e 3, alin. a) do CPP), o que não foi feito, pelo que uma eventual violação do princípio da investigação, que não se concebe, estaria sanada.

Dos vícios do art. 410.º n.º2 do CPP.

Do disposto nos art. 410.º , n.º 2, 428.º e 431.º do CPP decorre que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação é admissível em dois patamares distintos. Num primeiro, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, para aferição dos vícios previstos no primeiro daqueles preceitos que decorram do texto da decisão: conforme resulta “expressis verbis” de tal preceito, os vícios em causa têm que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade (por si só ou conjugado com as regras da experiência comum), sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos. Num segundo, no contexto mais amplo do recurso da matéria de facto que permite a modificação dessa matéria em razão de prova produzida. Neste âmbito o que se pretende é a reapreciação da prova produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo n.º3 e 4 do art. 412.º do CPP.

Já no primeiro de tais patamares a reapreciação da decisão de facto visa aferir da verificação de erros de julgamento que se infiram do seu próprio texto, e tão só - e bem assim da sua coerência interna e concludência, que podem estar comprometidas por motivos diversos, correspondentes aos vários vícios previstos no citado artigo 410.º n.º 2 – vícios cujo conhecimento é aliás oficioso, competindo a qualquer Tribunal de recurso mesmo nos casos em que o conhecimento do recurso se restrinja à matéria de direito conforme decorre da jurisprudência fixada no douto acórdão do STJ com o nº 7/95 de 19.10.1995, in DR I série-A de 28.12.1995.

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP e alegados cumprirá desde já dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b)- (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação ou até com contradições entre depoimentos ou declarações; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas ou ainda com um errado enquadramento jurídico. E, como se tal não bastasse, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, relativamente ao vício prevenido na alin. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida[4](negrito e sublinhado do relator).

Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127), que é insindicável em reexame da matéria de direito.

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida[5].

Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

A "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" para relevar como vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), a "contradição - que significa incoerência, oposição ou incompatibilidade manifesta - tem de ser insanável, isto é, tem de se apresentar como inultrapassável pelo tribunal de recurso. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir - em sentido idêntico se vem pronunciando, de forma unânime o S.T.J., destacando-se, a título de exemplo, os Ac. de 22.05.1996, Proc. n.º 306/96 e de 02.12.1999, Proc. n.º 1046/1998, 5.ª Sec., "Sumários de Acórdãos do S.T.J., n.º 36".

O mesmo vício pode ter lugar quando se dá como provado um facto mas da respectiva motivação resulta que assim não pode ser considerado, o que igualmente integra o erro notório na apreciação da prova.

Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça «a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum» (Ac. de 14.3.02, proc. n.º 3261/01-5).

O erro notório é o erro ostensivo, de tal modo evidente, que não passa despercebido ao comum dos observadores ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (cf. Ac STJ de 31.1.90,CJ,1990 TºI, p 24 e Prof. Germano M. Silva, in Curso P.P., vol. III, 326, Editª. Verbo, 1994). Ou na expressão comentada de Simas Santos e Leal Henriques, in Recurso em Processo Penal, 4ª ed., Rei dos Livros, “... Trata-se de uma falha grosseira e ostensiva, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si (...) que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis…”. Integram este vício os erros sobre factos notórios, neles se incluindo os factos históricos do conhecimento geral, a consideração como provados de factos que ofendem as leis da natureza (leis da física ou da mecânica) ou da lógica.

Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (cf. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, III, pág.259; CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova, pág.711; VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.61 e ss.).

O erro notório na apreciação da prova a que se refere o art. 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal só existe, quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum. Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

Sem desdouro pela argumentação apresentada pelo recorrente, o certo é que ele confunde impugnação da matéria de facto com a sobredita revista agravada, como se infere até pela sistematização da sua motivação.

Lendo a motivação do recurso chega-se à conclusão que o recorrente entende que a matéria de facto dada por provada pelo tribunal “a quo” é manifestamente insuficiente para fundamentar a solução de direito, porque nenhuma prova foi produzida em julgamento que justifique a sua condenação. Entende também que o tribunal, ao dar como provados os factos vertidos nos itens 1, 4, 5, 6, 7, 16, 23, 29 e 30 incorreu em erro notório na apreciação da prova e, ao dar como provados os factos vertidos nos itens 2, 3, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, incorreu no vício de contradição insanável.

É patente que o recorrente, ao trazer à colação a sua análise da prova produzida, está fora do contexto dos vícios em causa que só podem ser aferidos pelo texto da decisão recorrida e com apelo às regras da experiência comum.

Examinada a sentença recorrida, não se perfila nela, nomeadamente quanto aos itens de facto assinalados, a existência de qualquer dos vícios constantes do artigo 410.º n.º 2 do CPP, pois a decisão mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, ou ilogicismos, nem contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro que seja patente para qualquer cidadão; inexistindo por outro lado, qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo que a decisão de facto é bastante para a decisão de direito. É consonante, logicamente interligada e inteligível para qualquer cidadão comum a factualidade apurada e a respectiva motivação da convicção do tribunal.

Por isso que, neste conspecto, não assiste qualquer razão ao recorrente, improcedendo, por conseguinte, o pedido de reenvio do processo para novo julgamento.

Terá o tribunal recorrido violado o princípio da livre apreciação da prova como sustenta o recorrente?

Em processo penal a regra é a de livre apreciação da prova como decorre do estatuído no artigo 127.º do CPP, onde se dispõe que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é absoluto e entre as excepções a tal regra, incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.

Segundo Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª Edição, pág. 355, estas excepções integram-se no princípio da
prova legal ou tarifada, que é usualmente baseado na segurança e certeza das decisões, consagração de regras de experiência comum e facilidade e celeridade das decisões.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 201 e ss,Apreciação livre da prova significa, na sua feição negativa, ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova; na sua feição positiva significa liberdade de apreciação de acordo com o dever de perseguir a verdade material, razão pela qual essa apreciação deve reconduzir-se a critérios objectivos, portanto susceptíveis de motivação e controlo”. A convicção assente na livre apreciação da prova é aquela que se firma para além de toda a dúvida razoável e ocorre quando o tribunal tenha logrado afastar todas as dúvidas face à certeza apresentada.

Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a determinadas fontes de prova em detrimento de outras, só haverá fundamento válido para proceder à alteração da decisão se esta não se apresentar como uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência. Dito de outro modo, se a decisão do julgador for uma das soluções a retirar da prova produzida, prova esta analisada e valorada segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que julgue de acordo com a sua livre convicção.

E a livre convicção, assente na credibilidade de determinadas provas em detrimento de outras, só se pode ter como viciada, e portanto insubsistente, se existirem elementos objectivos bastantes para tornar inverosímil tal convicção. Por isso a lei exige a especificação das provas que impõem decisão diferente da recorrida: impor é diferente de permitir e só naquele caso é que o erro existe.

A verdade processual – não a verdade ontológica, mas aquela que resulta do processo e por isso sujeita a todas as limitações a que o tribunal está sujeito na sua busca – é o resultado probatório processualmente válido, ou seja, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meios processualmente válidos.

A lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, porque sabe que este sempre seria um objectivo inalcançável: a verdade obtida, com todas as limitações nos métodos e meios, é uma verdade histórico-prática, uma determinação humanamente objectiva de uma realidade humana.

A valoração da prova por declarações e testemunhal depende do seu conteúdo, mas também do modo como os mesmos são assumidos pelos declarantes e testemunhas, da forma como são transmitidos ao tribunal, das circunstâncias relevantes, da postura, do comportamento. Tudo isto, afinal, releva para efeitos de atribuição da credibilidade a um determinado depoimento.

Momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objectivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal. Nessa concretização, o julgador aprecia livremente a prova produzida, com sujeição às respectivas regras processuais de produção, aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão, bem como às regras de experiência que integram o património cultural comum, e decide sobre a demonstração daqueles factos, extraindo, em seguida, as conclusões inerentes à aplicação do direito.

A liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

Sem embargo do que vier a ser decidido quando apreciarmos a impugnação da matéria de facto, impõe-se dizer que, examinados os termos da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, não se colhe qualquer afronta às regras da experiência comum.

Por isso que também neste aspecto o recurso não procede.

Refere o recorrente a violação do princípio “in dubio pro reo”, que se encontra plasmado na Constituição sob a forma da consagração do princípio da presunção de inocência do arguido (art. 32.º, n.º 2), por não ter sido absolvido.

O princípio “in dubio pro reo” vale para a matéria de facto, que não para a matéria de direito, e vem a traduzir-se em que «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, p. 215).

Conexionando-se com a matéria de facto, ele actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.

Tem o STJ entendido que só pode sindicar a aplicação do princípio “in dubio pro reo”, se da decisão resulta que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido (entre outros, os Acórdãos de 5/6/03, Proc. n.º 976/03 - 5.ª e de 12/7/05, Proc. n.º 2315/05 - 5.ª, ambos relatados pelo Cons. Simas Santos, e de 7/12/05, Proc. n.º 2963/05. 3ª, relatado pelo Cons. Flores Ribeiro), ou ainda quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida em virtude de erro na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP (entre outros, os Acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º 2630/01 - 3.ª, relatado pelo Cons. Armando Leandro, de 6/12/2002, Proc. n.º 2707/02 - 5.ª, relatado pelo Cons. Oliveira Guimarães, e de 24/11/05, Proc. n.º 2831/05 - 5ª, relatado pelo Cons. Costa Mortágua).

«A sindicância do princípio in dubio pro reo está limitada aos aspectos externos da formação da convicção das instâncias: há-de ficar-se pela exigência de que tal convicção seja objectivada e motivada na análise crítica das provas, dela sendo a expressão de um processo racional convincente que suporte a conclusão final do tribunal recorrido pela valoração feita deste ou daquele meio de prova» (Ac. de 20/10/05, Proc. n.º 2431/05 - 5ª, relatado pelo Cons. Pereira Madeira).

Essa violação só ocorrerá quando, através de análise pertinente, se mostre que o tribunal recorrido valorou contra o arguido uma determinada prova, apesar da subsistência de uma dúvida razoável, ou porque o tribunal manifestamente desfavoreceu o arguido nessa situação, ou porque por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido um determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorizada a seu favor, ou ainda quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

Analisada a decisão recorrida, só nos resta concluir que a mesma não patenteia a violação do princípio “in dubio pro reo” por qualquer das formas que vimos que ele podia ser revelado, pois o tribunal não manifestou quaisquer dúvidas em relação aos factos elencados nos itens n.ºs 1, 4 a 9, os únicos que se mostram essenciais ao preenchimento dos tipos legais de crime imputados ao arguido, como quanto aos restantes considerados provados.

Da impugnação da matéria de facto:

Terão sido incorrectamente julgados os factos insertos nos pontos 1 a 13, 16, 23, 29 e 30 dos “Factos Provados”?

O recorrente visa a modificação da matéria de facto nos itens supra referidos. Mas, para que tal aconteça, é necessário – em conformidade com o disposto no art. 431.º n.º1, alin. b) do CPP – que a matéria de facto tenha sido impugnada nos termos do n.º3 do art. 412.º.

Vista a motivação do recurso - e não obstante o recorrente fundamentar a impugnação na existência de vícios do n.º2 do art. 410.º - concluímos que, relativamente a alguns dos itens factuais postos em causa, ele observa minimamente preceituado no citado art. 412.º n.º3. Por isso se conhecerá da impugnação nos casos em que tiver sido indicado o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida.

Estão em causa os factos que a seguir se transcrevem:

[“1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa no mês de Março de 2006, o arguido começou a dirigir-se frequentemente à loja de decoração e artesanato da assistente PL, situada em Areias de São João – Albufeira, pretendendo encetar uma relação amorosa com a assistente, o que ela desde logo rejeitou.

2. Porém o arguido insistiu em abordar a assistente com tal propósito, quer na loja quer no café que a assistente habitualmente frequentava, ao mesmo tempo que lhe escrevia cartas e fazia telefonemas.

3. A assistente, cada vez mais incomodada com tal situação, disso advertiu o arguido, designadamente no dia 21 de Julho de 2006, proibindo-o de a procurar, de lhe falar e lhe fazer telefonemas, tendo mesmo solicitado a comparência da GNR, quando o arguido lhe aparecia.

4. Apesar disso, o arguido continuou a efectuar chamadas telefónicas para a assistente, quer para o número 289----, instalado na loja, quer para o número 289 ---, instalado na residência da assistente, em Montechoro, Albufeira.

5. Esses telefonemas eram diários, às dezenas e a qualquer hora do dia ou da noite, e o arguido fazia-os sabendo que a assistente se sentia incomodada com eles e que actuava contra a expressa vontade dela.

6. O arguido reiterou essa conduta pelo menos desde Julho de 2006 a Julho de 2007, sempre actuando nos mesmos moldes, movido pelo mesmo propósito de assediar a assistente e encorajado pela facilidade com que dessa forma importunava a assistente.

7. O arguido agiu com vontade livremente determinada, sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

8. No dia 2 de Julho de 2006, a hora não concretamente apurada, à saída da residência da assistente PL, sita na Vivenda..., Rua ..., Montechoro, Albufeira, o arguido PG dirigiu-se àquela e proferiu-lhe a seguinte expressão “Tens umas mamas todas boas e um rabo bom, e ainda te vou dar 2 ou 3”.

9. O arguido quis e logrou proferir tais expressões à assistente, que sabia serem atentatórias da sua honra e consideração, tendo actuado livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

10. Desde Março de 2007, o arguido voltou novamente a procurar a assistente, com maior intensidade, importunando-a em qualquer parte que a visse.

11. Voltando a insistir, diariamente, com a realização de chamadas telefónicas para o telefone da sua residência, nomeadamente no período nocturno, com maior incidência no período que medeia entre as 20.00 – 24.00/1.00 horas, quando era do seu conhecimento que alguém estava em casa, tal como para o telefone da loja, durante o horário de expediente (10.00 – 21.00 horas).

12. Dias houve em que o arguido chegou mesmo a fazer mais de uma dúzia de chamadas telefónicas, de um número de telefone não identificado, até cerca das 24.00 – 1.00 horas.

13. A presença constante do arguido, ora junto da sua residência, ora através dos telefonemas diários para a sua residência, incomodava a assistente e os seus pais.
(…)

16. A assistente sempre foi pessoa pacata, respeitadora, bem considerada e respeitada no seio da comunidade onde reside e trabalha.
(…)

23. O arguido trabalhou 2 anos nos Serviços Fiscais e 18 anos na fiscalização da Câmara Municipal de ---.
(…)

29. Nessa ocasião ficou combinado que haveria desistência de queixa na GNR e na CM.. e que o arguido deixaria temporariamente de frequentar os estabelecimentos da zona para evitar que ambos se cruzassem.

30. A assistente manteve as queixas apresentadas. “

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

O registo da prova, contra o que pode pensar quem nunca foi solicitado a apreciar com critério, isenção e seriedade a prova, está ainda algo longe de dar uma ideia segura da valia dos depoimentos. Pois que (como diz um conhecido provérbio) se quem vê caras não vê corações, muito menos corações vê quem não chega a ver caras...

Como exemplarmente se afirmou em acórdão proferido em 8.2.99 na 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do recurso de apelação do processo n.º 1/99, vindo do Tribunal de Circulo de Chaves, de que foi relator o Exmo. Desembargador, Dr. Mário Cruz, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente”.

Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise dos textos processuais ou suportes de gravação onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.

De facto, tal sistema não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.

Tal não significa que o tribunal ad quem não controle o processo de formação da convicção do tribunal de 1ª instância e da respectiva decisão sobre a matéria de facto, quer no que respeita à exigência fundamental de que a decisão sobre os factos resulte de prova produzida no processo, quer quanto à sua conformidade com as regras da experiência, da lógica e os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, nomeadamente as que dispõem sobre a validade da prova ou o especial valor de alguns meios de prova, como a confissão, a prova pericial ou a derivada de certos documentos. Afirma-se apenas que, não visando o recurso em matéria de facto um novo julgamento, que aquele apenas deve constituir um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância, não pode o tribunal de recurso, sem imediação e oralidade, limitar-se a sobrepor à do tribunal a quo a sua convicção sobre a credibilidade das pessoas ouvidas em audiência.

No presente recurso, no rigor dos princípios, o recorrente não indica prova que imponha decisão diversa da recorrida. Na verdade, o que o recorrente visa é impugnar a convicção firmada pelo tribunal recorrido com base na sua leitura pessoal da prova e fazendo apelo a outra prova testemunhal produzida em inquérito ou em sede de instrução (em completo desrespeito pelo disposto no art. 355.º, n.º1 do CPP, visto que tal prova não foi produzida ou examinada na audiência de discussão e julgamento), para afirmar contradições ou inexactidões. Tal decorre do que afirma a respeito da impugnação dos itens 1, 4, 5, 16 e 13 dos factos provados em que convoca declarações prestadas no âmbito do processo disciplinar movido ao arguido, bem como na fase de instrução destes autos.

O tribunal recorrido explica com clareza os raciocínios efectuados para a decisão de facto, sendo perfeitamente compreensíveis tais raciocínios, particularmente no que diz respeito à razão pela qual o tribunal deu como provada a matéria de facto aqui posta em causa pelo Recorrente.

E examinados os depoimentos e declarações que foram objecto de transcrição e ouvida a demais prova que está gravada em suporte digital, não vemos objectivas razões para alterar os itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, aqui impugnados, pois essa matéria resulta inequivocamente das declarações prestadas pela assistente, que mereceram a credibilidade que lhe foi conferida pelo tribunal recorrido.

Deve dizer-se, em primeiro lugar, que, no plano da aquisição da prova, as declarações da assistente não só são genericamente admitidas, face ao princípio geral da prova livre ou não taxatividade dos meios de prova, acolhido no art. 125.º do C. P. P. (legalidade da prova), como são mesmo um dos meios de prova expressamente previstos (cf. art. 145º do CPP). Em segundo lugar, porque do ponto de vista da sua valoração, a lei de processo não regula em especial o valor probatório daquelas declarações, limitando-se a dispensar o assistente e as partes civis da obrigação de prestar juramento, mas vinculando aqueles sujeitos processuais ao dever de falar com verdade de forma semelhante ao previsto para o depoimento testemunhal, cujo regime lhe é subsidiariamente aplicável (cf. art. 145.º nºs 2 e 3 CPP). Mais: o Código de Processo Penal não prevê, ainda, qualquer regra de corroboração necessária, quer em geral, quer para aquele meio de prova específico, quer mesmo para a prova de determinados factos, pelo que a valoração das declarações da assistente e das partes civis, deve respeitar apenas o princípio da livre apreciação da prova.

Por outro lado, da análise crítica da prova resultam suficientemente explicados os motivos que, em concreto, levaram o tribunal recorrido a fazer fé nas declarações da assistente, sendo certo que no caso concreto o tribunal considerou ainda depoimentos de testemunhas que revelaram conhecer circunstâncias que confirmam as declarações directas da assistente, nada apontando para a necessidade de solicitar os registos das chamadas telefónicas que, em todo o caso, não seriam decisivas num sentido ou outro.

Na verdade, decorre da motivação do julgado em matéria de facto que “das declarações da assistente, PL, conjugadas com os depoimentos das testemunhas JL e ML, pais da assistente, CC - actualmente a exercer a sua actividade na banca, mas à data a trabalhar na espingardaria perto da loja da assistente e amiga desta desde a escola primária -, RG - amiga da família da assistente -, VN, actual namorado da assistente, que com ela vive maritalmente e que, à data dos factos era amigo desta, todos frequentadores da residência da assistente, pelos motivos supra indicados, resultou para o Tribunal que o arguido efectivamente por diversas vezes, a várias horas do dia, mas sobretudo à noite, telefonava para a residência da assistente para a importunar. E importunar porque nada queria em concreto, apenas fazer comentários elogiosos ou depreciativos, outras vezes para falar com ela sabendo que a mesma não queria.

Todas estas testemunhas, com excepção da testemunha RG, que apenas relatou ter assistido à mãe da assistente a atender telefonemas, referiram ter atendido telefonemas do arguido na residência da assistente, que à data, vivia com os pais. Esclareceram que os telefonemas foram mais intensos a partir de Março de 2007, o que, de acordo com a documentação junta aos autos coincide com a data em que o arguido terá sido notificado da decisão proferida pela Câmara Municipal de A, no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado.

Especialmente relevante neste aspecto foi o depoimento da testemunha ML, mãe da assistente, que pese embora as relações de parentesco que a unem a esta, demonstrou uma atitude calma e apaziguadora em relação aos factos, como aliás não foi posto em causa pelo arguido, e segundo a qual entre Julho de 2006 e Julho de 2007 o arguido fazia uma média de cinco de telefonemas por dia, todos os dias, a várias horas do dia mas sobretudo, no período nocturno, porque durante o dia ligava mais para a loja.
(…)
A verdade é que as testemunhas supra referidas, com excepção, mais uma vez da referida RG, conheciam o arguido e já tinham tido outros contactos com ele que não apenas nos telefonemas que referiram presenciar e, por vezes, até atender. Os pais da assistente e assistente, pelas razões óbvias e que resultaram provadas nos autos, que já tinham contactado com o arguido na loja de artesanato de que são proprietários e onde a assistente trabalha.

A testemunha CC porque quando trabalhava na espingardaria dos seus pais próximo da loja da assistente e, pelo facto de ser amiga desta já havia sido abordada por este, como a própria relatou, para que intercedesse junto da assistente a seu favor e, a testemunha V, porquanto na qualidade de amigo da assistente, na altura, muitas vezes a acompanhava, tendo chegado a contactar com o arguido. Este última testemunha referiu ainda, que, pese embora os contactos até então mantidos com o arguido tivessem sido breves reconhecia-o ao telefone pelas expressões que utilizava, que eram em todo semelhantes às constantes das cartas escritas à assistente, e pelo facto de, em algumas vezes terem sido reproduzidos ou mencionados nos telefonemas factos de que o arguido se apercebeu das conversas trocadas nos cafés em que ambos se encontravam.

Apesar da animosidade latente entre a família da assistente e o arguido, que aliás é patente nos vários processos de natureza crime que correm neste Tribunal, a credibilidade destes depoimentos não foi posta em causa por esse motivo, nem sequer pelas contradições que ao longo das várias sessões de julgamento foram sendo apontadas às testemunhas pelo arguido. É que, daquilo que foi possível ao Tribunal aperceber-se a questão dos telefonemas é apenas uma entre muitas e, se calhar, nem sequer a mais grave que imputam ao arguido, mostrando-se muito mais preocupados em relatar as perseguições efectuadas pelo arguido, a constante presença do arguido nos locais em que a assistente se encontrava, a sua insistente presença junto à loja da mesma para falar com ela, do que propriamente os telefonemas para a residência, o que demonstrou que, efectivamente, não estavam estas testemunhas mecanizadas, instrumentalizadas para relatar os factos com relevância criminal. Por esse motivo mereceram a credibilidade do Tribunal.

Para além disso, a prova produzida pelo arguido, quer documental quer testemunhal não foi suficiente para abalar tais depoimentos, na medida em que, em termos documentais nada resulta quanto ao período de tempo em apreço nos autos e, mesmo que constassem os registos do telefone de casa do arguido ou do seu telemóvel, pelos motivos supra aduzidos daí não se inferia, necessariamente, que os telefonemas não teriam sido feitos. É que, efectivamente, se dúvidas se pretendeu suscitar que os telefonemas tenham sido realizados, sempre se poderia dizer que trabalhando o arguido essencialmente na rua, como o próprio afirmou, teria fácil acesso a cabines telefónicas, sem falar na facilidade actualmente em adquirir telemóveis por baixo preço e sem qualquer identificação.
(…)

De tudo isto resulta que a versão dos factos apresentada pela assistente foi corroborada por outros meios de prova que, de forma sustentada e credível, lhe deram consistência.

No que respeita ao conhecimento e vontade do arguido, pese embora a prova não tenha sido directa resulta dos factos objectivos dados como provados na medida em que, considerando todo o contexto em que os factos ocorreram, que o arguido tinha uma atracção não correspondida pela assistente, que a mesma veio a apresentar queixa na C.M.. que deu origem a um processo disciplinar, o arguido queria efectivamente importunar a assistente, perturbar o seu descanso, e ofendê-la na sua honra e consideração ao referir ao seu peito e rabo da forma como o fez, tendo conseguido alcançar os seus intentos.

Sobre todo o contexto em que os factos ocorreram, para além dos depoimentos supra referidos, foram valorados os depoimentos das testemunhas AL, tia da assistente e MV, amiga da assistente, que relataram, tal como as demais testemunhas, os telefonemas que o arguido fazia para o local de trabalho da assistente, as visitas que fazia à loja, a sua presença nos mesmos locais frequentados pela assistente, etc.

Do depoimento de todas as testemunhas, com excepção da testemunha RG, bem como das cartas juntas a fls. 151 a 154 e cuja autoria o arguido reconheceu, não resultaram dúvidas que o arguido pretendia iniciar uma relação amorosa com a assistente e que não era correspondido. (…)”

A análise da prova que foi feita pelo tribunal recorrido nos itens de facto acima assinalados tem suporte na prova produzida em audiência e não nos oferece qualquer reparo, face às críticas que lhe são dirigidas pelo arguido/recorrente, exceptuando na parte em que vem dito, no tocante à motivação do julgado sob ponto 8 dos factos provados, referindo-se aos pais da assistente, que… ambos depuseram no sentido de ter visto o arguido no referido dia à porta da sua casa, pese embora não tenham ouvido o que o mesmo disse à filha.”

Na verdade, aqui parece ter havido confusão com outras presenças do arguido junto à casa dos pais da assistente, já que a testemunha ML, mãe da assistente, é peremptória ao afirmar que nesse dia a filha estava sozinha em casa. Mais referiu a testemunha que, nesse dia, estava num almoço e que a filha chegou ao pé dela toda em pânico e que lhe contou que o arguido estava lá à espera dela, abordou-a e chamou-lhe nomes, que a testemunha não conseguiu reproduzir. Também o pai da assistente não confirmou tivesse assistido a esse episódio, mas apenas que a filha se queixou disso.

A própria assistente, a instâncias do ilustre mandatário do arguido, confirmou que estava sozinha quando esses factos aconteceram.

Mas isso não retira credibilidade à versão da assistente, como se demonstra na motivação da decisão de facto, supra transcrita e que aqui nos dispensamos de voltar a reproduzir.

Relativamente aos itens 7 e 9 dos factos provados, impõe-se dizer que tais factos se reportam ao elemento subjectivo dos crimes imputados ao recorrente.

Tais factos não foram confessados pelo arguido mas é legítimo extrair dos factos provados que o arguido agiu nos termos aí descritos. Na verdade, as regras da experiência de vida, permitem firmar a conclusão de que qualquer cidadão na idade do arguido e no uso das suas faculdades tem discernimento suficiente para representar as situações, consciencializar a ilicitude das mesmas e agir de acordo com essa avaliação, ou seja, para não perturbar a vida privada, a paz e o sossego da assistente através dos telefonemas que efectuou para a sua habitação, bem como para conhecer o sentido e alcance das suas palavras e saber que as expressões mencionadas no item 8 dos factos provados são susceptíveis de afectar o respeito e a dignidade da pessoa a quem foram dirigidas.

Insurge-se o recorrente também contra o facto de ter sido dado como assente no item 16 que “a assistente sempre foi pessoa pacata, respeitadora, bem considerada e respeitada no seio da comunidade onde reside e trabalha”, dizendo que nenhuma das testemunhas da assistente e demandante cível fez referência a tais expressões nos seus depoimentos pelo que considera que o que o tribunal “a quo” fez foi tão somente presumir dos depoimentos contraditórios e confusos da assistente e suas testemunhas, incorrendo numa situação de erro notório na apreciação da prova.

Já acima referimos o conceito de erro notório na apreciação da prova, de que a sentença manifestamente não enferma, neste ou em qualquer outro ponto.

O recorrente não indica na motivação à impugnação deste item qualquer conteúdo específico de meio de prova que imponha decisão diversa da recorrida, limitando-se a alegar que nenhuma das testemunhas da assistente ou demandante cível fez referência a tais expressões, o que inviabiliza, neste aspecto, se conheça amplamente da sua pretensão (cf. art. 412.º n.º3, alin. b) e n.º4 do CPP).

Relativamente ao item 23 dos factos provados diz o recorrente que “trabalhou 2 anos nos Serviços de Finanças e trabalha há mais de 20 anos nos Serviços de Fiscalização da C.M.. Existe, pois, manifesta incorrecção relativamente ao tempo de serviço imputado ao arguido enquanto funcionário público, facto que se torna bastante relevante uma vez que o mesmo teve o seu cadastro disciplinar perfeitamente imaculado até ao momento em que se iniciaram as querelas com a assistente e o seu pai. Foram mais de 22 anos de Função Pública em que lidou com muitos milhares de utentes/cidadãos sem que tenha tido qualquer problema de relacionamento profissional ou outro”. Indica como prova as suas declarações do dia 12 de Março de 2009.

Também aqui não menciona a passagem ou ponto da gravação que imponha decisão diversa. Mais: Esse facto foi invocado pelo ora recorrente no ponto 6 da sua contestação, sendo de todo irrelevante para a decisão que o recorrente esteja a trabalhar há mais de 20 anos nos Serviços de Fiscalização Camarária, pois não está em causa aqui a apreciação da sua responsabilidade disciplinar.

Por isso que também aqui não se conhecerá da impugnação.

Por último, quanto aos itens 29 e 30 dos factos provados diz o recorrente que “dos depoimentos prestados pela assistente e pelo recorrente não é feita qualquer alusão a que haveria desistência da queixa por parte da assistente relativamente a processos na CM. Aliás, tal seria manifestamente impossível, pois, como se pode facilmente observar da análise dos documentos constantes dos autos, nomeadamente através das referências que lhe são feitas pela própria assistente em sede de acusação particular, mais concretamente nos art. 43.º e segs., as referidas queixas foram efectuadas pela assistente junto da referida edilidade a 20/11/2006 e 22/11/2006.

Na realidade, o acordo que resultou de tal reunião efectuada foi a desistência das queixas que a assistente havia apresentado junto da GNR contra o facto de o arguido deixar temporariamente de frequentar dois estabelecimentos sitos na zona da loja “OD”, nomeadamente o “G” e a “T”.

Assim, também não corresponde à prova produzida em audiência de julgamento a referência que é feita no ponto 29 da douta sentença recorrida quando aí se diz em termos absolutamente genéricos que: “o arguido deixaria temporariamente de frequentar os estabelecimentos da zona…”. – neste sentido os depoimentos do arguido e também de JL”.

De facto, o recorrente não deixa de nos surpreender quando impugna matéria de facto por si próprio alegada na contestação.

Na verdade, o que consta do item 29 dos factos provados corresponde quase “ipsis verbis” ao alegado pelo arguido/recorrente no item 40 da sua contestação onde se afirma sem qualquer restrição que “Nesse dia, ficou combinado que haveria desistência de queixa na G.N.R. e na C.M.., e que o arguido deixaria temporariamente de frequentar os estabelecimentos da zona para evitar que ambos se cruzassem”.

Não obstante, não podemos deixar de reconhecer que, neste conspecto, lhe assiste alguma razão, face aos elementos que indica.

Com efeito, examinadas as queixas, cujas fotocópias constam de fls.144 a 150 e 156 e 157, logo se vê, pelas datas da sua feitura e de entrada na Câmara Municipal de ---, que apenas foram apresentadas nos dias 20 e 22 de Novembro de 2006. Por isso que, aquando do encontro a que alude o item 28 dos factos provados, ocorrido no dia 11 de Agosto de 2006, só poderia ser acordada a desistência das queixas apresentadas na GNR.

E examinados os depoimentos prestados pelas testemunhas JL e ML, das declarações da assistente e do arguido (estas na parte que é perceptível), apenas se colhem alusões à retirada das queixas sem qualquer menção, com a condição do arguido se afastar dali.

Das declarações da assistente extrai-se que se trataria das queixas-crime, pois esta, no decurso das mesmas refere que o seu pai, dirigindo-se ao arguido, lhe disse: “se você nos deixar em paz eu quando chegar à altura do Tribunal eu retiro as queixas”

A assistente confirma que as queixas não foram retiradas

Por isso que se impõe reformular o item 29 dos factos provados que passará a ter a seguinte redacção:

Nessa ocasião, ficou combinado que haveria desistência das queixas que foram apresentadas na GNR e que o arguido deixaria temporariamente de frequentar os estabelecimentos da zona para evitar que ambos se cruzassem”.

Quanto ao item 30 dos factos provados, também aqui não procede a impugnação pois a assistente foi categórica em afirmar que as queixas não foram retiradas, sendo certo que uma delas é a que deu origem aos presentes autos.

Por isso que, exceptuando a alteração ao item 29 dos factos provados, a impugnação apresentada não procede.

Deverá o arguido ser absolvido dos crimes por que foi condenado?

Mantendo-se, no essencial, o acervo factual é manifesto que esta pretensão do arguido/recorrente não pode proceder. Na verdade, como se demonstra na sentença recorrida, o arguido preencheu com a sua apurada conduta os elementos objectivos e subjectivos dos crimes por que foi julgado.

Escreveu-se ali sobre o enquadramento jurídico-penal o seguinte:

“À data dos factos imputados ao arguido, dispunha o artigo 190.º, n.º 1 e 2 do Código Penal que:

“1. Quem sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

2. Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação”.

O bem jurídico tutelado pelo n.º 2 do artigo 190.º do Código Penal é a paz e o sossego sendo que a conduta objectiva descrita é, apenas, uma das idóneas a violar tal bem jurídico.

Nessa medida o tipo em questão é de âmbito muito restrito porquanto só incrimina a conduta de telefonar para a habitação e, actualmente, também para o telemóvel.

Com efeito, o que se protege é a paz e o sossego de outra pessoa gozados no espaço físico da habitação.

Actualmente, em face da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, dispõe o artigo 190.º. n.º 1 e 2 do Código Penal que:

“1. Quem sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

2. Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel”.

Alargou-se o âmbito objectivo da norma que passou a abranger também os telefonemas para o telemóvel, descentrando, deste modo, a tutela penal do espaço físico do domicílio para a estender a qualquer espaço físico onde o ofendido se encontre.

Ambas as incriminações previstas no artigo 190.º do Código Penal são crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.

No que concerne ao elemento subjectivo, o crime só é punível a título de dolo.

Não obstante, na infracção prevista no n.º 2 do artigo 190.º o tipo integra ainda um específico elemento subjectivo – a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de uma pessoa. Isto significa que, a realização do facto há-de estar subordinada a uma determinada direcção de vontade do agente. Uma direcção de vontade em que radica e se actualiza a particular perigosidade da conduta para o bem jurídico – neste sentido, Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 709.

Provada a circunstância de o arguido ter efectuado vários telefonemas para a residência da assistente, a várias horas do dia com o intuito de a perturbar e importunar nos seus momentos de descanso, devido ao facto de a mesma não pretender com ele ter qualquer relacionamento amoroso, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de que vem acusado, pelo que, pelo mesmo deverá ser condenado.

Não existem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Com efeito, sendo certo que o arguido sofre de várias doenças do foro psiquiátrico, nenhum dos elementos clínicos juntos aos autos permite concluir acerca das causas dos mesmos ou do seu início, muito menos que o arguido não seja capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

B) Do crime de Injúria

Dispõe o artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal que:

“1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo que sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 120 dias”.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra das pessoas.

A doutrina vem analisando a honra quer numa vertente subjectiva, ou interior, que consistiria no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra objectiva, ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

Actualmente, a doutrina dominante entende a honra como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior – neste sentido, José de Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 607.

Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, Volume II, 2.ª Edição, pág. 317 e 328, definem injúrias como “a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado”. De facto, há certos comportamentos, os visados no tipo de injúrias, que são atentatórios daquele “conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum deles (...) possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público” e que por isso justificam a sua incriminação – neste sentido, Beleza dos Santos, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, pág. 167 e 168.

Constitui pois elemento objectivo do crime, a imputação de factos ou o dirigir de palavras, ofensivos da honra ou consideração de determinada pessoa, no sentido apontado. O juízo que há a fazer sobre o carácter ofensivo das palavras deve ser um juízo que parta de elementos objectivos, atenta a normalidade da vida em sociedade e tendo em conta o homem médio inserido espacio-temporalmente no contexto em que tais palavras foram dirigidas.

Por honra deverá entender-se o elenco dos valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade de cada um. Por consideração, deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja, a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública – neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1996, CJ, XXI, Tomo I, pág. 156.

No crime em análise não se protege a susceptibilidade pessoal mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.

Como elemento subjectivo do tipo, exige-se o dolo uma vez que não se prevê a punição a título de negligência, o que implica a consciência do agente de que tal imputação ou palavras são de molde a ofender a pessoa visada na sua honra e consideração.

Considerando os factos provados, designadamente que o arguido dirigindo-se à assistente lhe disse “tens umas mamas todas boas e um rabo bom, ainda te vou dar duas ou três”, sem dúvida que tal expressão assume um conteúdo ofensivo e é susceptível de afectar quer o respeito e dignidade que a visada atribui a si própria como a reputação que tem junto dos outros, na medida em que passa uma imagem de mulher ordinária, que cultiva o corpo para atrair os homens e pouco selectiva nos seus relacionamentos amorosos.

Ora, o arguido conhecia a assistente e sabia que a mesma não pretendia com ele ter qualquer relacionamento amoroso, pelo menos não na altura dos factos em apreço, pelo que não podia deixar de saber que tais palavras eram de molde a ofendê-la na sua honra e consideração.

Mostram-se, assim, verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime.

Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.”

Perante o exposto que subscrevemos, sem necessidade de mais considerações, impõe-se concluir que o arguido não podia deixar de ser condenado.

Refira-se tão-somente, a talhe de foice, que a actuação do recorrente abrange condutas conhecidas por “Stalking” que vem preocupando os psicólogos portugueses e que algumas legislações europeias punem autonomamente.

Como se refere no estudo da Dr.ª Carla Alexandra dos Santos Paiva, psicóloga clínica e investigadora da Universidade do Minho, acessível in http://app.parlamento.pt, o Stalking, definido como um síndrome comportamental decorrente de uma patologia das relações interpessoais e da comunicação, inclui uma série de acções repetidas ao longo do tempo, partilha características de vigilância e controlo, procura de contactos e comunicação e é percebido pela vítima como capaz de despertar, e efectivamente despertando (arousing), ansiedade e medo.

Stalking consiste, pois, num conjunto de comportamentos de assédio persistente, indesejados pelo alvo desses comportamentos. Podem diferir no grau de intrusividade, envolvendo desde acções mais discretas como telefonar constantemente ou vigiar, assediar pela internet, até actos altamente intimidatórios como perseguição na rua, invasão da propriedade e ameaça de agressão física. Este fenómeno e a violência doméstica como forma de vitimação relacional, muitas vezes andam de mãos dadas. São casos de relações que terminaram e que uma das partes não aceitou ou uma fixação obcecada por alguém.

Os comportamentos associados com o Stalking em mais de 10% dos casos são:
1. Perseguir a pessoa;
2. Telefonar à pessoa;
3. Demorar-se ou vaguear frente a casa da vítima;
4. Enviar cartas e postais indesejados;
5. Rondar na proximidade do local de trabalho ou estudo da pessoa;
6. Observação e vigilância repetidas;
7. Fazer telefonemas e enviar emails obscenos.

Ainda segundo o referido estudo, constitui conduta típica do Stalking:

- Chamadas telefónicas indesejadas - 89%
- Amigos e familiares ameaçados- 82%
- Calúnias e mentiras -82%
- Vigilância no trabalho ou em casa – 79%
- Perseguido na rua – 75%
- Visitas não desejadas – 74%
- Ameaça de violência – 74%
- Envio de e-mail indesejado – 70%
- Informações falsas – 65%
- Danos na propriedade -64%
- Violência – 55%

O elemento angústia e o temor diferenciam o Stalking de qualquer outro tipo de comportamento, derivado das relações quotidianas entre seres humanos.

- Prolongar-se no tempo, por meses, anos ou décadas.

Ainda segundo a mesma autora, o Stalking refere-se a uma constelação de condutas motivadas por:

-Intenção de iniciar uma relacão sentimental especial;
-Satisfazer um desejo sexual;
-Retomar uma relacão já terminada;
-Vingar-se de alguém que lhe causou dano de algum modo;
-Iniciar uma perseguição aberta que terminara posteriormente num ataque sexual a vitima (e.g. parafilias);

Tipos e motivações dos perpetradores:

-Escrever ou telefonar depois de ter sido advertido para não o fazer;
-Enviar presentes indesejados;
-Fazer ameaças de destruição da propriedade;
- Espiar e perseguir a vítima;
-Encontros “casuais”.

Entre as consequências do Stalking são apontadas perturbações psicológicas e físicas de intensidade diversa, como sejam o stress, depressão, perturbações de ansiedade, perturbações do sono e tentativas de suicídio.

O legislador português não encarou na revisão de 2007 este fenómeno em toda a sua amplitude, pois apenas é possível punir condutas de Stalking quando os comportamentos individuais elementos dessa conduta são contemplados nos crimes prevenidos nos art. 143.º, 152.º, 153.º, 154.º, 190.º, 192.º e 199.º do Código Penal, deixando de fora condutas que constituem verdadeiros atentados aos direitos dos cidadãos.

A perseguição persistente e obsessiva a outra pessoa constitui uma violação da sua privacidade e representa uma ameaça à sua segurança e uma violação dos seus direitos, liberdades e garantias enquanto cidadão, cuja violação o legislador, perante a proliferação deste fenómeno, por certo não deixará de acautelar em futuras revisões.

Na verdade, no quadro da legislação em vigor ao tempo dos factos, algumas das condutas imputadas ao recorrente, nomeadamente as chamadas efectuadas para o seu local de trabalho, as esperas, vigilâncias e perseguições não são objecto de punição.

Fechado este parêntesis, passemos à questão seguinte.

Insurge-se também o recorrente contra as penas que lhe foram aplicadas defendendo que são excessivas, sendo suficiente a aplicação de multa dentro do limite dos 240 dias.

Vejamos:

A sentença recorrida justificou a escolha e determinação da medida das penas, nos termos seguintes:

Ao crime de perturbação da vida privada, corresponde uma moldura penal abstracta no máximo de 1 (um) ano de prisão ou multa até 240 (duzentos e quarenta dias) dias e um mínimo de 1 (um) mês de prisão ou 10 (dez) dias de multa, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 190.º, n.º1 e 41.º e 47.º do Código Penal.

Ao crime de injúria corresponde uma moldura penal abstracta no máximo até 3 (três) meses de prisão ou pena de multa até 120 (cento e vinte) dias, e um mínimo de 1 (um) mês de prisão ou 10 (dez) dias de multa, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 190.º, n.º1 e 41.º e 47.º do Código Penal.

Atento o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, cumpre determinar a natureza da pena a aplicar.

Uma vez que estamos, desde logo, perante uma alternativa quanto à natureza das penas aplicáveis, será esta a primeira escolha a fazer.

Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a medida da pena ultrapassar a medida da culpa.

São, pois, as finalidades de prevenção geral positiva de integração (protecção de bens jurídicos) e de prevenção especial (integração e socialização do agente) as que se têm e conta na escolha da pena, sendo a culpa valorada em momento posterior na determinação da medida da pena.

No caso em apreço, no que respeita às exigências de prevenção geral, que têm em vista restaurar a confiança que a comunidade tem na norma violada, verifica-se que são elevadas, atenta a natureza da infracção e a especial necessidade de a comunidade em geral compreender que não pode, por via deste tipo de comportamentos, impelir os outros a adoptar comportamentos não desejados nem importunar até ao limite do suportável, como forma de retaliar pela não adopção desses comportamentos.

No que concerne à prevenção especial, visa-se e integração do agente na sociedade por forma a que não volte a cometer mais crimes.

No caso, há que considerar o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, o que, atenta a respectiva idade denota já um percurso de vida dentro das regras vigentes em sociedade.

Todavia, não pode o Tribunal deixar de descurar a personalidade e carácter do arguido, quer manifestado nos documentos juntos aos autos, quer na postura revelada em sede de audiência de julgamento. Com efeito, não ficam dúvidas para o Tribunal que o arguido tem comportamentos obsessivos e é obsessivo em tudo o que faz, não revelando qualquer sentido de auto-crítica nem de auto-responsabilização. Pelo contrário, o arguido adopta um comportamento desculpabilizante com o comportamento dos autos e não mostrou qualquer consciência da gravidade dos seus actos. É certo que o arguido sofre de várias doenças do foro psiquiátrico, todavia, nenhum dos elementos clínicos juntos aos autos permite concluir acerca das causas dos mesmos ou do seu início, muito menos que o arguido não seja capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Por fim, ficou o Tribunal em crer que as exigências de prevenção especial são muito elevadas e que, face ao clima de animosidade ainda latente entre o arguido e a assistente, visto que ainda estão em curso vários processos judiciais, não será de esperar que o arguido não volte a praticar actos de natureza semelhante, pelo que se impõe, por via da pena, evitar que tal venha a suceder.

Assim, é manifesto que as exigências de prevenção geral positiva ou de integração – a necessidade de manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência da norma violada e o efeito de intimidação – são elevadas, bem como as exigências de prevenção especial, verificada a necessidade de socialização e sensibilização do arguido, além de que a confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas apenas assim ficará satisfeita, sob pena de descrédito em todo o sistema judicial.

A multa, sendo embora sanção adequada e suficiente em muitos casos de pequena criminalidade, de modo algum se mostra adequada e suficiente em casos onde são elevadas as exigências de prevenção geral e especial, como no caso dos presentes autos.

Assim, não se pode considerar que a pena de multa ainda possa satisfazer de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, impondo-se a aplicação ao arguido de penas de prisão, não obstante a ausência de antecedentes criminais.

Escolhida a natureza das penas cumpre determinar a medida da mesma.

Visando a aplicação das penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, não pode em caso algum a medida daquela ultrapassar a medida da culpa – art.º 40.°, n.° 2 do CP.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias (in As consequências jurídicas do crime, Coimbra, pág. 215, “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligado ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção”.

Assim, na determinação da medida da pena cumpre ponderar as seguintes circunstâncias:

- O grau de ilicitude do facto que se mostra muito elevado no que concerne aos telefonemas efectuados para a residência da assistente, visto a quantidade de telefonemas que eram efectuados por dia, não era um nem dois, mas sim vários durante o dia a diversas horas do dia e sobretudo durante a noite e, elevada também no que concerne às palavras dirigidas à assistente, considerando o respectivo teor;

- O modo de execução dos factos, a reiteração da conduta, que, considerando apenas o objecto deste processo durou mais de um ano, a persistência no comportamento do arguido, mesmo após ter percebido que a assistente não pretendia ter qualquer relacionamento com ele;

- A culpa, que é intensa, considerando-se que o arguido agiu com dolo directo e que a conduta assumida é extremamente censurável, pois que, pese embora, muitas vezes este tipo de condutas sejam desvalorizadas, inclusivamente pelo sistema penal que incrimina apenas uma parte muito restrita das mesmas, é uma conduta que pela sua persistência, pela reiteração, associada a todo um contexto de outros telefonemas para outros locais, contendas com os familiares, queixas e contra-queixas sucessivas, cartas, encontros ou tentativas de encontros, causam um desgaste incontornável e desmesurado na pessoa da vítima;

- Os fins que motivaram o arguido que não aceitou o facto de a assistente não querer ter qualquer relacionamento amoroso consigo e o facto de não mostrar qualquer arrependimento ou sequer sentido de auto-crítica;

- A conduta anterior e posterior aos factos, sendo que o arguido nada fez para os reparar, bem pelo contrário, a contenda com a assistente e com a respectiva família ainda persiste, ainda que, não se descura, de ambos os lados, atentos os vários processos que correram e ainda correm neste Tribunal;

- Por fim, entende-se que, quer face ao quadro clínico traçado do arguido, em face das depressões de que padece e dos comportamentos obsessivos e delirantes que às mesmas estão associados, o arguido não revela preparação para parar com este tipo de comportamentos e para passar a adoptar uma conduta lícita, sendo que, salvo melhor entendimento, tal facto deve ser censurado através da pena.

Por fim, a favor do arguido milita o facto de estar social, familiar e profissionalmente integrado, ser pessoa conhecida e reputada em termos profissionais e não ter quaisquer antecedentes criminais.

Por conseguinte, entende o Tribunal que, face às exigências de prevenção geral e especial supra mencionadas e à culpa do arguido, são adequadas e proporcionais as penas de 4 meses de prisão, pela prática do crime de perturbação da vida privada e de 1 mês e 15 dias pela prática do crime de injúria.”

Decidindo:

A protecção dos bens jurídicos apontada como finalidade das penas no art.40.º do Código Penal, implica que a pena, sem ultrapassar a medida culpa seja adequada e suficiente para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte da comunidade.

Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos factos disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas.

Aqui há que atender à conduta do arguido, relativamente aos crimes de injúria e de perturbação da vida privada, que não pode ser desintegrada do contexto em que se insere.

Considerando o quadro factual apurado, não obstante a menor gravidade do crime de injúrias imputado ao recorrente, julgamos que a pena de multa, que os crimes em causa contemplam como pena alternativa, não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, no caso, a protecção dos bens jurídicos violados pelo recorrente, pois este não a sentiria como pena e sairiam frustradas as expectativas da comunidade na eficácia das normas que preveem e punem tais condutas, como se refere na sentença recorrida.

Por isso que nenhuma censura nos merece, no caso em apreço, a opção pela pena de prisão.

Tendo presente toda a conjuntura, nomeadamente as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido - na ausência de atenuantes de relevo como sejam a confissão e uma atitude repesa - não podemos deixar de considerar que não são de modo algum excessivas as penas parcelares e única que àquele foram aplicadas, bem como a aplicação da pena de substituição sob condições, pelo que se mantêm.

Quanto à indemnização arbitrada, considera o recorrente que tal valor é muito elevado, pois corresponde quase ao seu salário anual, e foi arbitrado à revelia e ao arrepio da jurisprudência portuguesa em casos idênticos e entende que não praticou factos ilícitos, culposos nem voluntários, pelo que, no seu ponto de vista não se encontram cumpridos os vários pressupostos que condicionam, no caso vertente de responsabilidade – art. 483.º do C.C. – a obrigação de indemnizar a assistente.

O tribunal recorrido justificou a condenação nos seguintes termos:

“A Assistente deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido a indemnizá-la com a importância de 15.000,00 € (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais. Alega, em síntese, que em virtude da conduta do arguido, designadamente, das perseguições que este lhe fazia, dos telefonemas que fazia para a loja e para a sua casa, da sua presença constante em todos os locais onde a assistente se dirigia, das expressões que utilizava junto de terceiros para se referir a ela e das palavras que lhe dirigiu directamente, ofensivas da sua honra e consideração, sofreu humilhação e vexame, sentiu-se perturbada, revoltada, triste e envergonhada.

Nos termos do disposto no artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, ou seja, de harmonia com as regras constantes dos artigos 483.º, 562.º, 563.º e 566.º, todos do Código Civil.

O pedido de indemnização civil deduzido no processo penal funda-se na prática de um crime, pois que consiste na reparação, de natureza civil, dos danos causados pelo crime – cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal.

É, pois, legalmente inadmissível o pedido cível que não se funde em indemnização pelos danos causados pelo crime em apreço uma vez que a acção civil que adere ao processo penal, tem por objecto unicamente a indemnização por perdas e danos emergentes do crime em apreço.

No plano do direito adjectivo, por força do princípio da adesão, a acção de indemnização pela prática de um crime, formalmente enxertada no processo penal, tem a estrutura material de uma acção cível. Não é admissível a cumulação do pedido de indemnização fundada no crime com quaisquer outros, por ineptidão (vide, a este propósito, o sumário do Ac. do S.T.J. de 06.12.1989, in C.P.P. anotado, Simas Santos e Leal Henriques, 2.ª Ed., pág. 384).

Pelo exposto, sem deixar de considerar o contexto em que os factos ocorreram, apenas pelos factos praticados pelo arguido e que integram os ilícitos penais supra referidos e pelos quais se entendeu dever ser condenado, podem ser valorados em termos indemnizatórios, ou seja, as chamadas efectuadas para a residência da assistente e as palavras ofensivas que lhe dirigiu.

Posto isto.

Preceitua o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Assim, para que haja obrigação de indemnizar é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

1) Facto voluntário – no sentido de controlável pela vontade humana;

2) Ilicitude – reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto da lei, em contraposição à culpa que se reporta a um comportamento concreto;

3) Culpa – imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou negligência, em qualquer das suas modalidades.

4) Dano – pode ser real (lesão causada no interesse juridicamente tutelado), patrimonial (reflexo do dano real na situação patrimonial do lesado, englobando danos emergentes e lucros cessantes), ou não patrimonial (o que é insusceptível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado).

5) O nexo de causalidade – só há responsabilidade relativamente aos danos que o lesado provavelmente não sofreria se não fosse aquela conduta, estando entre nós consagrada a teoria da causalidade adequada.

Os factos praticados pelo arguido, tal como resultaram provados na sentença são factos voluntários, ilícitos e culposos.

No que concerne à ilicitude, o desvalor da acção, resulta desde logo do disposto no artigo 70.º do Código Civil, segundo o qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

No tocante à culpa, esta é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, ex vi do artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil.

Ora, quer no plano geral e abstracto, quer no plano particular e concreto do arguido, no seu contexto, familiar, social e profissional a conduta do arguido não pode deixar de considerar-se reprovável e censurável.

Desta forma, o arguido constitui-se em responsabilidade civil por factos ilícitos e, consequentemente, na obrigação de indemnizar os danos sofridos pelo demandante, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.

No que concerne aos danos, logrou provar-se a assistente é pessoa conhecida na área de Albufeira, por força de os seus pais também o serem e por a loja onde trabalha ser muito frequentada e ter boa reputação e sempre foi pessoa pacata, respeitadora, bem considerada e respeitada no seio da comunidade onde reside e trabalha.

Mais se provou que, em face da conduta do arguido, a assistente ficou perturbada, envergonhada, enxovalhada e humilhada perante terceiros, na medida em que situação existente entre ambos é comentada na praça pública, onde tem tido elevada exposição, sendo que a assistente tem sido sujeita a comentários nem sempre abonatórios. Mais se provou que conduta do arguido causou ainda à assistente mau estar e tristeza.

Por danos não patrimoniais entendem-se os «prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir, nem frustrando o seu acréscimo» - neste sentido, o Professor Galvão Teles, “Direito das Obrigações”, 2ª ed. pg. 366.

Na expressão da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as normas que regem esta matéria indemnizatória por danos não patrimoniais, “fixam-se definitivamente não numa concepção materialista da vida, mas antes num critério que consiste em que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores e desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor tenha provocado” – neste sentido o Ac. do STJ de 16/04/91, in BMJ 406.º-424.

Atento o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Ora, não nos merece dúvida que os danos sofridos pela demandante e que resultaram provados, revestem gravidade suficiente para que sejam tutelados e, consequentemente indemnizados ao abrigo daquele normativo, até porque a honra a consideração individuais, a dignidade pessoal, a auto estima e saúde mental, bem como a reputação e consideração no meio social em que nos inserimos são bens fundamentais da pessoa humana, pelo que cada um tem o direito a viver em paz e tranquilidade e a não ser molestado na sua personalidade e integridade moral.

Todavia, não com a extensão com que a assistente veio peticionar, porquanto, tal como já ficou dito, não podem ser cumulados pedidos indemnizatórios que não resultem do facto ilícito penal imputado ao arguido.

Por outro lado, os actos praticados pelo arguido são idóneos a causar os danos em causa, de acordo com a teoria da causalidade adequada prevista no artigo 562.º do Código Civil.

Determinados os danos, sobra a questão sempre controvertida do quantum em que deverá ser fixada a respectiva compensação pecuniária.

De acordo com o disposto no artigo 496.º n.º 3 do Código Civil, a determinação do montante dos danos não patrimoniais deve ser feita com base na equidade, tendo em consideração as circunstâncias referidas no artigo 494.º do mesmo código, designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, ponderando-se ainda os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência.

A equidade, dir-se-á apenas que não é sinónimo de arbitrariedade pura e simples, mas sim um critério para a correcção do Direito, em ordem a que tenham em consideração, fundamentalmente, as consequências do caso concreto (A reparação judicial dos danos na responsabilidade civil, Rui Rangel, Almedina, 2002, pág. 36).

De tal sorte, há que ponderar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 496.º, n.º 3, primeira parte e 494.º do Código Civil, os factos provados e a extensão das lesões provocadas.

Por conseguinte, resulta adequado ao caso concreto fixar a compensação por danos não patrimoniais em € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), improcedendo quanto ao demais peticionado.”

Perante a factualidade apurada não foram questionados os pressupostos da responsabilidade civil (o recorrente parte do pressuposto de que os factos que servem de suporte à pretensão ressarcitória não resultaram provados, o que é bem diferente), sendo certo que os mesmos, como se demonstra na sentença recorrida, estão verificados.

Consagra o art. 496.º, n.º1, do C. Civil a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

O legislador deixa ao tribunal a tarefa de, por um lado, aferir o que é a gravidade merecedora da tutela jurídica e, por outro, em caso de verificação desse merecimento, determinar o valor adequado a ressarcir o dano, valor que será necessariamente influenciado pela extensão da respectiva gravidade.

A medição da gravidade do dano há-de ser feita com ponderação das circunstâncias do caso concreto, à luz de critérios objectivos e não com base em padrões subjectivos e será apreciada em função da tutela do direito, isto é, o dano deve revelar tal gravidade que justifique a atribuição de uma satisfação de natureza pecuniária ao lesado - Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral, 8.ª edição, vol. 1, pág. 617.

Para a fixação do montante indemnizatório, impõe a lei (n.º 3 do art. 496.º do C. Civil) que se usem juízos de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, ou as flutuações do valor da moeda (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 1993, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 1, 1993, tomo II, págs. 130 e ss. e cf. também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 1979, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113, pág. 91 e de 18 de Março de 1997, na Colectânea de Jurisprudência, ano V, tomo 1, 1997,pag. 163 e ss. e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. 1, 9.ª Edição, pag. 629).

Deverá ter-se ainda presente, com o vem afirmando a nossa jurisprudência, de forma constante, que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica, devendo antes ser de montante que viabilize o fim a que se destina – atenuar a dor sofrida pelo lesado – i. é, a dor em sentido físico e a dor em sentido psicológico, e, por conseguinte, enquanto "experiência sensorial e emocional desagradável" e "experiência subjectiva resultante da actividade cerebral como resposta a traumatismos físicos e/ou psicológicos".[6] Na verdade, a jurisprudência do Supremo Tribunal em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista.

Os montantes indemnizatórios relativos aos danos não patrimoniais devem ser fixados segundo padrões de dignidade humana.

Como se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça, a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura a suportar - cf. acórdão de 28 de Maio de 1998, revista n.º 337/98, mantendo plena actualidade o que se escreveu no Ac. STJ de 83.10.26 (BMJ 330-396): "é tempo de os tribunais inflacionarem as importâncias já que tudo sobe sem parar (lucros cessantes e danos emergentes). Todos têm de ganhar cada vez mais para enfrentar os altos custos. Até o preço da vida e da dor deve ser actualizado para não envilecer os respectivos valores".

A natureza compensatória da indemnização a arbitrar pressupõe, como acima se disse, que se tenha em conta não só o grau de culpabilidade do agente e a situação económica deste e do lesado, mas também, as demais circunstâncias do caso entre as quais se contam a gravidade do dano causado – a intensidade e duração da dor física ou psíquica, ou dos sentimentos negativos provocados – sob pena de se pôr em causa a sua seriedade e o respeito devido a quem o sofreu.

Como se disse, nos danos não patrimoniais, na atribuição da indemnização deverá ter-se em consideração um juízo de equidade – ponderando o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – e não os critérios fixados para a determinação da medida concreta da pena.

Pondera-se ainda que conforme ensina Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, 2.ª Ed. pág. 488) «a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por lado, visa compensar de algum modo mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente».

Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita a valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.

Assim se compreende que a actividade do juiz no domínio do julgamento à luz da equidade, não obstante se veja enformada por uma importante componente subjectiva, não se reconduza ao puro arbítrio.

Ora a recorrente, mais uma vez não invoca a violação de critério legal, ou sequer a violação de critérios jurisprudenciais relevantes, não invocando sequer um único acórdão dos tribunais superiores em que, perante situação semelhante, tenha sido aplicada uma indemnização de menor valor, dado que está em causa a formulação de um juízo de equidade.

A quantia arbitrada surge como perfeitamente módica, atenta a natureza e relevo das ofensas, o carácter reiterado e prolongado no tempo da perturbação da paz e sossego da assistente no espaço físico da sua habitação, através dos telefonemas para aí efectuados contra a vontade daquela, a irreparabilidade do dano, a situação sócio-económica do arguido, a sua formação, bem como a sua actuação dolosa.

A assistente não pode deixar de ser compensada com justiça pelos prejuízos não patrimoniais que afectaram a sua vida e que o recorrente com a sua delituosa conduta injustamente lhe causou.

Porém, não se pode ignorar que algum do mau estar, perturbação, tristeza e revolta sentidos pela assistente emergem também de condutas do arguido que, no quadro legal vigente ao tempo dos factos, posto que socialmente censuráveis, não constituíam crime – telefonemas para a loja, esperas, seguimentos, abordagens.

Por tudo isso, e tendo presentes também a situação económica e condições de vida do recorrente, reduz-se para €7.000,00 (sete mil euros) o montante indemnizatório devido à assistente.

Face à improcedência parcial do recurso, incumbe ao recorrente o pagamento das custas, ao abrigo do disposto nos art. 513.º n.º1 e 514.º do Código de Processo Penal e art. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b) e n.º3, ainda do Código das Custas Judiciais.

Tendo em conta a complexidade das questões aportadas ao recurso e a condição económica do recorrente, fixa-se a taxa de justiça em 5 UC.

III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder parcial provimento ao recurso interposto por PG e, em consequência, altera-se o item 29 dos factos provados nos termos supra referidos, reduz-se a indemnização por danos não patrimoniais devidos à assistente para €7000,00 (sete mil euros), confirmando, quanto ao mais, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Évora,18 de Março de 2010

(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Fernando Ribeiro Cardoso
João Martinho de Sousa Cardoso
_________________________________________________
[1] Cf. Acórdão, do S.T.J., de 19-10-95, no D.R., 1.ª Série A, de 28-12-95.

[2] - Há lapso manifesto na referência a esta data, pois os factos como resulta do contexto, são os que terão ocorrido em 2 de Julho de 2006.

[3] - Neste sentido o acórdão da Relação de Coimbra de 2-6-2009, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Gonçalves, acessível in www.dgsi.pt

[4] «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, pp. 339/340.

[5] Cf. por todos, o acórdão, do STJ, de 9-4-97 (BMJ 466-392).

[6] - Neste sentido, ver João Lobo Antunes, Sobre a Dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pp.98; ainda, J. Coelho dos Santos, Rev. Portuguesa do Dano Corporal, Maio 1994, ano III, nº 4, APADAC, IML - Coimbra, pp. 77.