Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
198/24.2YREVR
Relator: FILIPE CÉSAR OSÓRIO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Considerando que o direito vigente no Estado Ucraniano atribui competência à Conservatória do Registo Civil para a dissolução do casamento, por divórcio, a requerimento de ambos os cônjuges, a decisão ali proferida pelo Conservador do Registo Civil deve ser equiparada a uma decisão sobre direitos privados, abrangida pela previsão do art. 978.º do Código de Processo Civil, por isso, é suscetível de revisão e confirmação para produzir efeitos em Portugal.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:

ACORDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Processo Especial de Revisão de Sentença Estrangeira
Requerentes – AA, de nacionalidade portuguesa, residente na Estrada 1, ..., Código Postal 1 Local 1, e BB, de nacionalidade ucraniana, residente na Rua 1, ..., Urb. 1, Código Postal 2 Local 1.
Objecto do litígio – Revisão e confirmação de sentença proferida na Ucrânia que decretou o divórcio dos Requerentes para que a mesma possa produzir em Portugal todos os seus efeitos legais.
Alegações:
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 982.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Os Requerentes apresentaram alegações onde mantêm o alegado na Petição Inicial, pedindo que seja revista e confirmada a sentença revidenda que decretou o divórcio entre os Requerentes, para que a mesma passe a ter plena eficácia em Portugal
O Ministério Público apresentou alegações, concluindo essencialmente que nada obsta à revisão e confirmação da sentença, pelo que se deverá atender à pretensão dos Requerentes.
Saneamento O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, do território e da hierarquia. Requerente e Requerido são dotados de personalidade e capacidade judiciárias, de legitimidade ad causam e não há vícios de patrocínio. Inexistem nulidades, questões prévias ou outras excepções de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Questão a decidir – Saber se estão verificados os pressupostos para confirmar e rever a sentença de divórcio proferida na Ucrânia.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A. FACTOS PROVADOS:
Resultam provados os seguintes factos:
1. Os requerentes celebraram casamento civil no dia ../../1981, sem convenção antenupcial, em Kherson, Ucrânia.
2. Este casamento foi transcrito sob o Assento de Casamento n.º ...02 do ano de 2024, no Conservatória do registo Civil Local 2.
3. Por sentença de 18 de janeiro de 2005, transitada em julgado, proferida pela Secção “1” da Conservatória do Registo Civil do Departamento da Justiça da cidade de Kherson, foi decretado o divórcio entre os ora requerentes.
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B. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem.
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C. MOTIVAÇÃO
Os factos provados acima descritos resultaram do teor objectivo dos seguintes documentos, que fazem prova plena dos mesmos:
- Assento de Casamento n.º ...02 do ano de 2024, no Conservatória do registo Civil Local 2 (doc. 1);
- Certidão de Divórcio e respectiva tradução para a língua portuguesa (doc. n.º 2).
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D. ENQUADRAMENTO JURÍDICO
A única questão jurídica que importa dilucidar, é a da verificação dos requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada.
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras assenta no sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o Tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o Tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais – cfr. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II – Reimpressão, 1982, pág. 141; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011 (Paulo Sá, processo n.º 987/10.5YRLSB.S1 em www.dgsi.pt).
O art. 980.º, do C.P.C., estabelece os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira, e que são os seguintes:
– Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença, nem sobre a inteligência da decisão;
– Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
– Que provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;
– Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a Tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
– Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
– Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
No caso dos autos, não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos apresentados, nem sobre a compatibilidade da decisão com os princípios vigentes na ordem jurídica interna, verificando-se deste modo os requisitos previstos nas alíneas a) a f) do art.º 980º supra enunciado.
Como bem referido pelo Ministério Público, no direito vigente no Estado Ucraniano a é atribuída competência à Conservatória do Registo Civil para a dissolução do casamento, por divórcio, a requerimento de ambos os cônjuges.
Com efeito, dispõem os artigos 105.º e 106.º, do Código de Família da Ucrânia (tradução oficial disponível em https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/en/2947-14#Text) o seguinte
“Artigo 105.º Término do casamento por dissolução
1. O casamento extingue-se por dissolução mediante requerimento de divórcio formulado por ambos os cônjuges, nos termos do artigo 106.º, ou por qualquer dos cônjuges, nos termos do artigo 107.º do presente Código.
{Parte 1 do artigo 105, com a redação dada pela Lei n.º 524-V, de 22 de dezembro de 2006 }
2. O casamento será dissolvido pelo tribunal competente mediante requerimento de divórcio apresentado por ambos os cônjuges, nos termos do artigo 109.º deste Código.
3. O casamento será dissolvido pelo tribunal competente com base em reclamação apresentada por qualquer dos cônjuges, de acordo com o artigo 110 deste Código.
Artigo 106.º Dissolução do casamento pelo registo civil a requerimento dos cônjuges que não tenham filhos
1. Os cônjuges que não tenham filhos podem requerer o divórcio no registo civil.
Se um dos cônjuges não puder requerer o divórcio pessoalmente no cartório de registro civil por um motivo válido, o outro cônjuge poderá apresentar tal requerimento, devidamente certificado por um notário ou com nível de autorização equivalente, em seu nome.
{Parte 1 do artigo 106 complementada com um considerando de acordo com a Lei n.º 524-V de 22 de dezembro de 2006}
2. O registo civil lavrará a certidão de dissolução do casamento no prazo de um mês a contar da data do requerimento, desde que este não tenha sido retirado.
{Parte 2 do artigo 106, conforme alterado pela Lei n.º 2.398-VI, de 01 de julho de 2010}
3. O casamento será dissolvido independentemente de quaisquer disputas de propriedade entre os cônjuges.”
Nesta sequência, segundo o direito interno ucraniano, é admissível a dissolução do casamento, a requerimento de ambos os cônjuges, dirigido à Conservatória do Registo Civil, desde que aqueles não tenham filhos, sendo então lavrada, por essa entidade pública, a certidão de dissolução do casamento, por divórcio.
No caso concreto em apreciação, é precisamente essa a realidade retratada nos documentos juntos aos autos pelos Requerentes, os quais se encontram devidamente apostilhados, não se suscitando dúvidas quanto à sua autenticidade, nem sobre a inteligência do seu conteúdo.
Como citado pelo Ministério Público, no Acórdão da Relação de Lisboa de 27.01.2022 (Jorge Leal, proc. n.º 2674/21.0YRLSB-2), referiu-se que “a circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retira ao acto em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português.”.
Por sua vez, o controlo feito pelo Conservador do Registo Civil da verificação dos requisitos de que depende o divórcio por mútuo consentimento, de acordo com aquele Código, consubstancia a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto de divórcio, ao qual são atribuídos efeitos pela ordem jurídica ucraniana.
A certidão de divórcio, à luz das apontadas normas, controlável pelo Conservador do Registo Civil e por este assinada deve ser equiparada à decisão jurisdicional ou administrativa:
A este propósito se decidiu em situação semelhante, em caso atinente ao direito brasileiro, citado pelo Ministério Público, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2022 (Ferreira Lopes, processo n.º 2201/21.9YRLSB-A.S1-7.ª Secção, Sumários do STJ) considerou o seguinte “A escritura pública, prevista no art. 733.º do CPC brasileiro, através da qual se pode realizar o divórcio consensual dos cônjuges, com fundamento em separação de facto por mais de dois anos, previsto no art. 1580.º, parágrafo 2.º, do CC Brasileiro, consubstancia uma decisão administrativa que deve ser equiparada a uma decisão sobre direitos privados, abrangida pela previsão do art. 978.º do CPC, carecendo, por isso, de revisão para produzir efeitos em Portugal”.
Acresce que a decisão estrangeira objecto de apreciação já transitou em julgado e do procedimento em causa não consta qualquer elemento donde se possa retirar a existência de uma situação de litispendência ou de caso julgado, com fundamento em causa afecta a um Tribunal português, nem que não tenham sido cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
De igual modo, nada nos permite concluir que a decisão, cuja confirmação é pretendida, provenha de entidade cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei.
De notar também que a matéria sobre a qual a decisão versa não é da exclusiva competência dos Tribunais portugueses – cfr. art. 63.º do C.P.C.
Sublinhando-se que não houve impugnação e que não foi posta em causa a ordem pública internacional do Estado português, conclui-se pela verificação de todos os pressupostos necessários para que a decisão que decretou o divórcio entre os requerentes, possa ter eficácia em Portugal, ao abrigo do disposto no art. 980.º, do CPC.
Em síntese – Considerando que o direito vigente no Estado Ucraniano atribui competência à Conservatória do Registo Civil para a dissolução do casamento, por divórcio, a requerimento de ambos os cônjuges, a decisão ali proferida pelo Conservador do Registo Civil deve ser equiparada a uma decisão sobre direitos privados, abrangida pela previsão do art. 978.º do Código de Processo Civil, por isso, é suscetível de revisão e confirmação para produzir efeitos em Portugal.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
- Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar a presente acção totalmente procedente e, em consequência,
- Conceder a revisão da sentença de 18 de janeiro de 2005, transitada em julgado, proferida pela Secção “1” da Conservatória do Registo Civil do Departamento da Justiça da cidade de Kherson, que decretou o divórcio entre os ora requerentes AA e BB, que assim se confirma.
- Valor da causa: €30.000,01 (artigos 296.º e 303.º, n.º 1, do CPC, e 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
- Custas pelos requerentes.
- Registe e notifique.
- Após trânsito, cumpra o disposto nos artigos 7.º, n.º 2 e 78.º, n.º 1 e 2 do Código de Registo Civil.
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Évora, 07-11-2025
Filipe César Osório (Juiz Desembargador – Relator)
Susana Ferrão da Costa Cabral (Juíza Desembargadora – 1.ª Adjunta)
António Fernando Marques da Silva (Juiz Desembargador – 2.º Adjunto)