Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
615/23.9T8TMR.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: NULIDADES DA DECISÃO
ARRENDATÁRIO
MORTE
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
Data do Acordão: 03/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Os eventuais vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença; a deficiência, a obscuridade ou a contradição verificadas na decisão de facto ou a falta ou insuficiência da sua motivação (porventura por não terem sido atendidos ou ponderados determinados meios probatórios) constituem vícios que não são causa de nulidade da sentença, podendo, ao invés, determinar, por parte do tribunal da relação, o exercício dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.
2 – O óbito de uma co-arrendatária, viúva do arrendatário primitivo, que tal como os réus na presente ação, ambos filhos do primitivo arrendatário, adquiriu aquela posição contratual por força do disposto no artigo 112.º do RAU, em vigor à data do óbito do arrendatário que celebrou o contrato de arrendamento para comércio, não gera a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário aos aqui réus porque estes já eram contitulares da posição jurídica de arrendatário. Aquele óbito apenas possibilitou e gerou a concentração nas pessoas de ambos os réus/apelados da posição jurídica de arrendatário. Uma vez que não foi alegado, donde não se provou, que qualquer um dos réus (co-arrendatários), e nomeadamente a ré, se tivesse(m) desvinculado da relação de arrendamento através dos mesmos meios que ao arrendatário singular são facultados, designadamente por revogação, ambos aqueles réus têm a obrigação de pagamento das rendas relativas ao locado, como resulta do disposto no artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 615/23.9T8TMR.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Eduarda Branquinho
Ana Margarida carvalho Pinheiro Leite


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
A Herança Indivisa aberta por óbito de (…) e representada pelos seus herdeiros (…) e (…), autora da presente ação movida contra (…) e (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Tomar, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, a qual julgou a ação improcedente e declarou cessado, desde o dia 12 de julho de 2017, o contrato de arrendamento celebrado no dia 1 de janeiro de 1986 entre (…) e (…).

Na ação a autora havia pedido ao tribunal que decretasse a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo do locado e condenasse os réus a entregar-lhe o locado livre de pessoas e bens imediatamente e no pagamento da quantia de dez mil, novecentos e vinte euros (€ 10.920,00), a título de rendas vencidas e no pagamento das rendas vincendas até à entrega efetiva do locado.
Para tal desiderato, a autora alegou, em síntese, o seguinte: por contrato que teve o seu início em 1 de janeiro de 1986, (…) deu de arrendamento ao falecido pai dos réus, (…), uma casa destinada a comércio, no rés-do-chão esquerdo do prédio que identificou, pelo prazo de um mês, prorrogável por iguais períodos, e pela renda mensal correspondente a € 39,90, a qual, por força dos aumentos ocorridos desde 2016 passou a ser no valor de € 140,00; (…) faleceu em 1 de dezembro de 1995 e a sua mulher, (…) faleceu em 12 de julho de 2017, deixando como seus únicos e universais herdeiros os réus, os quais sucederam na posição contratual de inquilinos; os réus não pagaram as rendas de setembro a dezembro de 2016, as rendas vencidas de janeiro de 2017 a dezembro de 2022 e as rendas relativas aos meses de janeiro a março de 2023, estando em dívida, o montante global de € 10.920,00.
Na contestação que deduziu, o réu invocou a prescrição das rendas relativas ao período compreendido entre setembro de 2016 e outubro de 2017.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I – A recorrente não se conforma com a sentença ora recorrida.
Como se disse, no presente recurso impugna-se matéria de facto e de direito.
II- Com todo o respeito por melhor opinião, entende-se que houve erro na apreciação da prova testemunhal, documental e por confissão. A douta sentença padece de omissão de apreciação de documentos juntos aos autos por ambas as partes e omissão de pronuncia sobre os mesmos, que levou a que fosse aplicado incorretamente o direito.
III- Na sentença sobre a matéria de facto foi decidido no ponto 18 que:
18. Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu (…) quis entregar as chaves do locado ao Autor, mas este não aceitou sem que antes as rendas em atraso estivessem pagas.
Ora, tal decisão padece de flagrante erro de julgamento, pois, resulta precisamente o contrário da prestadas pelo Autor (…), na audiência de julgamento, gravadas no ficheiro Diligencia 613-23.9T8TMR_2023-12-11_11-20-29, do minuto 11:20 ao minuto 11:37, que disse:
00:05:53 Mandatária A: Alguma vez houve da parte do sr. (…), a si ou ao seu irmão, tentativa de entregar as chaves ?
00:05:59 (…): Não, não.
00:05:53 Mandatária A.: Alguma vez recusou entrega das chaves?
00:05:59 (…): Eu não, nunca.
Erro e contradição que ressalta da sentença recorrida quando afirma na fundamentação da
decisão sobre a matéria dada como provada, que: O próprio Autor (…) confirmou também o facto descrito em 18.
E a reforçar tal erro temos, ainda, as declarações daquele (…), na audiência de julgamento, gravadas no ficheiro Diligencia 613-23.9T8TMR_2023-12-11_11-20-29, que ao minuto:
00:02:58 (…): Tive um contacto, fui aos Açores e fui falar com a D. (…), localizei a morada dela, para … pessoalmente solicitar o pagamento das rendas em atraso e entrega da chave.
Pelo exposto, não podia tal matéria ser dada como provada e muito menos com o fundamento referido pela Mm.ª Julgadora.
IV- Também não podia ter sido dado como provado os pontos 16 e 17 da matéria dada como
provada, a saber:
16. Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu exerceu a atividade “à porta fechada”, por um mês ou dois, e apenas com o intuito de escoar algumas mercadorias.
17. O locado não tinha licença de utilização, pelo menos desde o ano de 2002.
Pois, nenhuma prova foi produzida sobre tal matéria, antes a prova testemunhal foi no sentido de que após a morte da mãe o Réu (…) continuou a explorar o estabelecimento cerca de 3 anos, como referiu a testemunha (…), que era a pessoa que ia ao estabelecimento entregar o recibo da renda ao Réu (…) e com quem até bebia, por vezes, uma cerveja na taberna por ela explorada.
Também como se demonstrou o estabelecimento, atendendo à idade do edifício não estava
obrigada à licença de utilização prédio porquanto foi construído antes de 7 de agosto de 1952.
V- Quanto à prova documental há omissão e erro de apreciação na sentença em crise, pois …
- O Réu (…) juntou com a sua contestação o documento nº 3 – cfr. documentos juntos com a contestação com a referência citius 9878923-, consistindo tal documento na notificação levada a cabo pela Câmara Municipal de Tomar, onde este Réu figura como arguido e no auto de notícia consta como a pessoa singular que explora o estabelecimento instalado no imóvel, objecto do contrato de arrendamento sub judice celebrado entre o falecido pai dos Réus e o (…);
A Autora em sede de audiência prévia respondeu às exceções deduzidas e juntou dois documentos, a saber:
- Uma carta de interpelação de pagamento das rendas em divida efectuada pelo ilustre mandatária da Autora aos Réus – doc. nº 1 junto em audiência prévia; e
- Uma carta de resposta da Ré (…) dirigida aquele ilustre causídico, onde, entre o mais, refere que após o óbito do pai veio dos Açores para o continente para ajudar a mãe na exploração do estabelecimento e posteriormente quando regressou aos Açores acordou com o irmão a divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento – doc. nº 2 junto em audiência prévia.
Factualidade que a Ré (…) confessou em sede de declarações de parte.
Também por este aspecto não podia tal matéria ser dada como provada e muito menos com o fundamento referido pela Mm.ª Julgadora.
VI- No que toca à prova por confissão do Réu, também a sentença recorrida a omite e claro também não a apreciou. Vejamos …
A douta sentença não atentou na confissão que o Réu (…) fez na sua contestação, confissão essa que foi aceite especificadamente pela Autora, nomeadamente, no artigo 20º da sua contestação, onde confessa que exerceu a atividade e explorou o referido estabelecimento após o falecimento da mãe;
Assim como não atentou na confissão que o Réu (…) faz nos artigos 16º e 17º da sua contestação, designadamente:
16º E na verdade, o II Réu explorava a atividade em conjunto com a mãe, inquilina do locado, há já alguns anos.
17º Sendo certo que nos quatro anos que antecederam a morte da sua mãe, o II Réu nunca conseguiu, sequer, retirar mensalmente um ordenado, por razoes que são alias conhecidas dos Autores. E que adiante melhor se explicarão.
VII - Por outro lado, nos factos dados como provados devia ter sido dado como provada a
seguinte factualidade:
- A.- Após o falecimento de (…), em 01/12/1995, o estabelecimento a que se refere o contrato indicado em 2, continuou a ser explorado pela viúva (…) conjuntamente com o seu filho (…);
- B.- A Ré (…) logo após o falecimento do pai (…), em 01/12/1995 veio dos Açores para o continente para o funeral do pai e para ajudar a mãe na exploração do estabelecimento, mas entretanto, regressou aos Açores para prosseguir os estudos e acordou com o irmão a divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento.
- C.- O Réu (…) explorou o estabelecimento comercial desde o falecimento do pai até, pelo menos, 2020.
VIII- A prova da alínea A) e C), resultou da confissão do Réu na sua Contestação, nomeadamente, dos seus artigos 16º e 17º e das declarações da testemunha … (genro do falecido senhorio …), que prestou depoimento na audiência de julgamento, gravado no ficheiro Diligencia 613-23.9T8TMR_2023-12-11_10-19-29, do minuto 10:19 ao minuto 10:36, que instado sobre quem explorava o estabelecimento de (…) disse aos minutos:
00:03:29 (…): Foi a mãe dele e ele, foram os dois. Depois a mãe dele faleceu e ele ficou lá sozinho.
E a instâncias da ilustre Mandatária do Réu (…) sobre até quando é que o Réu (…) explorou o estabelecimento, esta testemunha respondeu:
00.06.59 (…): Depois da mãe falecer, ele ficou lá sozinho uns anos (…)
00.07.08 (…): uns 2 ou 3 anos
Instado novamente pela ilustre Mandatária do Réu (…) sobre quanto tempo este Réu continuou a explorar o estabelecimento após a data da morte da mãe disse:
00.07.26 (…): Ah, pois foi.
IX - A prova da alínea B) ressalta do documento nº 2, junto pela Autora em sede de audiência prévia, pois, trata-se de uma carta enviada pela Ré (…) aos Autores – através do seu então mandatário – em junho de 2018, onde escreve e reconhece que após o óbito do pai (o primitivo arrendatário …) veio dos Açores para o continente para ajudar a mãe na exploração do estabelecimento e posteriormente quando regressou aos Açores acordou com o irmão a divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento.
Carta que a Ré (…) nas suas declarações de parte na audiência de julgamento, gravado no ficheiro Diligencia 613-23.9T8TMR_2023-12-11_12-08-39, do minuto 12.08 ao minuto 12.25, confirmou que tinha escrito aquela carta (documento nº 2, junto pela Autora em sede de audiência prévia) de livre vontade, sem qualquer tipo de pressão, mais ao minuto
E confirmou nas suas declarações de parte, que quando o pai morreu regressou ao Continente para vir ao funeral do pai, e que era sua intenção ajudar a sua mãe que estava na loja com o pai e que com morte deste a ficou sozinha, e por ajudou a mãe no estabelecimento a atender os clientes e nas arrumações, e que, entretanto, o irmão lhe disse para ir continuar os estudos que ele ficava com a mãe a explorar o estabelecimento e que o Réu (…) lhe disse que que o lucro vais ser dividido pelos três …
X- A absoluta omissão quanto a tal prova – testemunhal, documental e por confissão – faz
incorrer a sentença em crise nas nulidades da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil.
XI- A decisão da matéria de facto da 1ª Instância, sobre os pontos atrás referidos, deve ser
alterada por esse Venerando Tribunal no sentido aqui indicado atenta toda a prova indicada e transcrita nestas alegações, nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
XII- Perante toda a prova produzida nos autos, nomeadamente, a acima acabada de referir, tendo em conta os depoimentos acima transcritos, a razão de ciência de alguma testemunhas da recorrente, as confissões dos Réus recorridos e os documentos acima indicados, o Tribunal recorrido devia ter decidido nos termos acima indicados sobre a matéria de facto e não como decidiu.
XIII- Da matéria dada como provada e a matéria que devia ter sido dada como provada como
acima se disse, demonstra claramente, que em 1/12/1995, quando faleceu o primitivo arrendatário (…), o arrendamento transmitiu-se aos seus sucessores: seus filhos,
XIV - A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico: morte do arrendatário, e à data do óbito de (…), data do óbito vigorava o DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, com a redação das alterações introduzidas até 1995, e dispunha o artigo 112.º daquele diploma, que o arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias, bem como dispunha que o arrendatário não pode prevalecer-se do não cumprimento dos deveres de comunicação estabelecidos neste artigo e deve indemnizar o senhorio por todos os danos derivados da omissão.
XV- Como resultou à saciedade o a viúva e os filhos de (…) continuaram a explorar o estabelecimento após a morte deste, nomeadamente, a viúva por direito próprio por ser casada em comunhão geral de bens e os filhos.
Como confessou o Réu (…) e resultou da prova testemunhal a viúva (…), após a morte do marido continuou a explorar o estabelecimento mas agora conjuntamente com o filho e aqui Réu (…) que passou, juntamente com a sua mãe, a fruir do mesmo directamente, atendendo os clientes, vendendo a mercearia e as bebidas alcoólicas na taberna e a Ré (…) usufruiu dos respetivos lucros como acordou com o irmão e a mãe.
XVI- Assim os Réus sucederam no arrendamento logo após a morte do pai e bem assim após a morte da mãe.
Quanto ao progenitor e como decidiu Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no Proc. n.º 350/08.8TBCHV.P1, em 18-10-2021:
I – A falta da comunicação de morte do arrendatário não determina a caducidade do contrato de arrendamento, porque o n.° 2 do citado artigo 112.° não estabelece qualquer sanção para o não cumprimento do dever da comunicação nele previsto, muito menos se comina essa omissão com a caducidade do arrendamento.
II – Mal se compreenderia que, após a transmissão automática operada com a morte do arrendatário para o seu sucessor não renunciante, por efeito da manutenção da vigência do contrato consagrada no n.° 1, viesse a caducar o arrendamento ao fim de 180 dias, por falta daquela comunicação de quem já assumira a posição de arrendatário.
XVII- E após a morte da mãe dos Réus – 12-07-2017 – aplicando a Lei vigente à data do decesso, como acima se referiu, nomeadamente o artigo 58.º da Lei 6/2006, de 27/2, que estabelece, verifica-se ao o arrendamento não termina com a morte do arrendatário existindo sucessor que há mais de três anos exerça profissão liberal ou explore estabelecimento comercial, no locado, em comum com o arrendatário primitivo
Ora o Réu (…) confessa no artigo 16º da sua contestação – confissão irretratável – explorava o estabelecimento em conjunto com a mãe há vários anos, pelo que e só por esta confissão se verifica o estatuído no nº l do artigo acima transcrito.
XVIII- E a falta da comunicação de morte do arrendatário não determina a caducidade do contrato de arrendamento, porque segundo o estabelecido no artigo 89.°, n.º 3, do RAU e atual artigo 1107.°, n.º 2, do Código Civil a falta de comunicação ao senhorio da morte do arrendatário não tem por consequência à caducidade do arrendamento, mas apenas obriga o transmissário faltoso indemnizar pelos danos causados pela omissão.
XIX- A parte final do n.° l do artigo 58.° do NRAU, quanto à transmissão do arrendamento constitui uma excepção, que se verifica quando ao arrendatário sobreviva sucessor que, no período correspondente aos três últimos anos de vida daquele, explorou, em comum com o arrendatário, o estabelecimento instalado no local, o que é o caso dos autos, já que o Réu (…), além de ter explorado o estabelecimento conjuntamente com a mãe desde 1995 – ano da morte do pai – após o falecimento da mãe continuou a explorar o estabelecimento mais 3 anos, pelo menos – neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no Proc. n.º 1607/09.6TVPRT.P2, de 05-06-2012.
XX - Deve a sentença recorrida ser revogada, ser julgada improcedente a exceção de caducidade do contrato invocada pelos RR e ser julgada procedente por provada a presente ação e serem condenados nos pedidos formulados pela recorrente.
XXI- Finalmente – sem prescindir –, mesmo que se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento em apreço, os recorridos demandados ficariam sempre obrigados não só à entrega do locado como ao pagamento duma contraprestação pelo seu uso até à entrega efectiva, uma vez que os Réus não podem prevalecer-se do não cumprimento dos deveres de comunicação, pelo que teriam de indemnizar o senhorio por todos os danos derivados da omissão que corresponde, no mínimo, ao valor da renda mensal até à entrega da chave, que só ocorreu na data da audiência de julgamento (cfr. ata).
XXII- A declaração de invalidade tem os efeitos previstos no artigo 289.°, n.º 1, do Código Civil, ou seja, tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
A obrigação de entrega do imóvel sempre seria é uma consequência da declaração da invalidade do contrato de arrendamento e quanto às rendas reclamadas pela recorrente, o Tribunal não pode deixar se atender que durante um lapso de tempo considerável, a mãe e os Réus gozaram do imóvel, sem que a Autora tivesse auferido qualquer contrapartida económica.
XXIII- In casu, o valor a fixar deveria ser o valor da renda estipulado pelas partes do contrato
cuja invalidade os RR. vieram invocar por ser de considerar o valor que foi obtido em razão das regras de funcionamento do mercado e que foi aceite pelas partes como ajustado ao “locado", ou seja, devem os Réus ser condenados a pagar o valor mensal de € 140,00, desde Dezembro de 2016 até à data da entrega das chaves e durante todo o período em que usaram e fruíram do imóvel da demandante e são devidos juros de mora desde a data da citação, como dispõe o artigo 805.°, n.º l, do Código Civil.
XXIV- Ao julgar improcedente a presente ação, foi violado na douta sentença o disposto nos
artigos 112.º do DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, com a redação das alterações introduzidas até 1995, artigo 12.º do Código Civil; artigo 58.º da Lei n.º 6/2006, de 27/2, e artigo 289.°, n.º 1, do Código Civil.
XXV - Deve assim ser alterada a matéria de facto nos termos acima exposto e revogada a decisão recorrida e deve ser julgada procedente por provado a presente ação e os recorridos condenados nos pedidos.
Ao assim se ver decidido terá sido feita a habitual e a correcta JUSTIÇA!»
I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
No caso as questões que cumpre decidir são as seguintes:
1 – Saber se ocorre nulidade da sentença recorrida.
2 – Saber se ocorre erro de julgamento na decisão de facto.
3 – Reapreciação do mérito.

II.3.
FACTOS
O tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos:
«1. Por herança aberta por óbito de (…) e de (…), os Autores adquiriram sem determinação de parte ou direito o prédio misto composto por prédio rústico e urbano sito na Travessa do (…), 2 e 2B, freguesia de (…), concelho de Tomar, atualmente inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) da União das Freguesias de Tomar (anterior artigo … proveniente dos artigos …, … e …) e na matriz rústica sob o artigo (…), secção (…), da referida União de Freguesia (anterior artigo … da secção F da extinta freguesia de …) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…).
2. Por contrato, com início em 1 de janeiro de 1986, o falecido pai dos Autores, (…) deu de arrendamento ao falecido pai dos Réus (…) uma casa destinada a comércio, no rés-do-chão esquerdo do prédio descrito.
3. Pelo prazo de um mês, prorrogável por iguais períodos, com início em 1 de janeiro de 1986.
4. E pela renda mensal de 8.000$00 que corresponde a € 39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos), que, por força dos vários aumentos desde 2016, passou a ser no valor de € 140,00 (cento e quarenta euros).
5. O contrato de arrendamento foi participado à Repartição de Finanças de Tomar.
6. Entretanto, em 31/08/2010 faleceu o pai dos Autores que deixou como únicos e universais herdeiros: a mulher (…), viúva; a filha (…), casada com (…); (…), solteiro, maior e (…), casado com (…).
7. Em 15 de julho de 2015, faleceu (…), que deixou como únicos e universais herdeiros o viúvo (…) e a mãe (…);
8. Em 6 de março de 2022, faleceu (…), que deixou como únicos e universais herdeiros: (…), solteiro, maior e (…), casado com (…).
9. Entretanto, em 01/12/1995, faleceu (…), sucedendo-lhe como únicos e universais herdeiros a viúva (…) e os dois filhos, os Réus (…) e (…), e
10. Em 12/07/2017, faleceu (…) e deixou como únicos e universais herdeiros os dois filhos, os Réus (…) e (…).

11. Os réus não pagaram as rendas de setembro a dezembro de 2016, nem as rendas vencidas nos meses de janeiro a dezembro de 2017; de janeiro a dezembro de 2018; de janeiro a dezembro de 2019; de janeiro a dezembro de 2020; de janeiro a dezembro de 2021; de janeiro a dezembro de 2022 e os meses de janeiro de março do corrente ano de 2023.

12. A Ré fixou-se na ilha Terceira, Açores, pelo ano de 1992, onde desde então reside e trabalha.

13. Não explora nem explorava, conjuntamente com os seus pais, há mais de três anos, contados até à morte de cada um, o comércio estabelecido no locado.

14. O Réu (…) explorava a atividade em conjunto com a mãe, há já alguns anos.

15. O Réu (…) não comunicou, nos três meses posteriores ao decesso da mãe, a sua vontade de continuar a exploração.

16. Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu exerceu a atividade “à porta fechada”, por um mês ou dois, e apenas com o intuito de escoar algumas mercadorias.

17. O locado não tinha licença de utilização, pelo menos desde o ano de 2002.

18. Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu (…) quis entregar as chaves do locado ao Autor mas este não aceitou sem que antes as rendas em atraso estivessem pagas.
19. O Réu (…) entregou as chaves do imóvel à Ilustre Mandatária dos autores em 06.12.2023.


II.4.
Apreciação do mérito do recurso
II.4.1.
Nulidade da sentença
A recorrente invoca o vício de nulidade de sentença a que aludem as alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, invocando para tal desiderato a «absoluta omissão quanto a prova testemunhal, documental e confissão». Ou seja, na perspetiva da apelante o facto de o julgador a quo não ter ponderado, no julgamento de facto por si empreendido, os meios de prova que ela invoca nas suas alegações de recurso, tornam a sentença nula.
Liminarmente se dirá que este segmento do recurso não pode proceder.
Os vícios previstos no artigo 615.º do CPC traduzem-se no chamado error in procedendo, o qual se verifica quando ocorre a violação de uma disposição reguladora da forma do ato processual, ou seja, quando o ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto, não se discutindo nesta sede se a questão foi, ou não, bem julgada. Como ensinava Alberto dos Reis[1] «O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de caráter substancial: afetam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de caráter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade de julgador».
Os (eventuais) vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença; a deficiência, a obscuridade ou a contradição verificadas na decisão de facto ou a falta ou insuficiência da sua motivação (porventura por não terem sido atendidos ou ponderados determinados meios probatórios) constituem vícios que não são causa de nulidade da sentença, podendo, ao invés, determinar, por parte do tribunal da relação, o exercício dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da primeira instância nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.
Pelo exposto, improcede este segmento da apelação.

II.4.2.
Impugnação da decisão de facto
Prescreve o artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo civil que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância de forma a apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, ou por terem sido considerados assentes quando deveriam julgar-se não provados, ou por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido julgados assentes.
Neste segmento do seu recurso, a apelante impugna o julgamento do tribunal de primeira instância relativamente aos factos provados n.ºs 18, 16 e 17, defendendo que os mesmos deverão ser julgados não provados e pretende que seja aditada determinada factualidade, que infra se indicará, ao elenco dos factos provados.
Vejamos se lhe assiste razão.

A - Facto provado n.º 18 - Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu (…) quis entregar as chaves do locado ao Autor, mas este não aceitou sem que antes as rendas em atraso estivessem pagas.
Defende a apelante que este facto deve ser julgado não provado, porque não só nenhuma prova foi produzida sobre este facto como o mesmo foi contrariado pelas declarações de parte de (…).
Ouvido o depoimento prestado pelo autor, verificamos que o mesmo não corroborou que o réu tenha querido entregar as chaves do locado. Pelo contrário, (…) afirmou que não houve qualquer tentativa por parte do réu de entrega das chaves. Também a testemunha (…), que era a pessoa que emitia os recibos das rendas relativos ao locado em causa nos autos, afirmou que o réu nunca lhe entregou as chaves ou manifestou vontade de o fazer.
Por conseguinte, este facto deve ser eliminado do elenco dos factos provados.

B – Facto provado n.º 16 - Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu exerceu a atividade “à porta fechada”, por um mês ou dois, e apenas com o intuito de escoar algumas mercadorias.

Como se disse, a apelante defende que o enunciado em questão deve ser julgado não provado, argumentando que resultou do depoimento da testemunha (…) que após a morte da mãe, o réu (…) continuou a explorar o estabelecimento cerca de três anos.

Ouvida toda a prova oral, verificamos que nenhum depoimento prestado por quem tivesse conhecimento direto dos factos permite julgar provado que após o falecimento da sua mãe o réu exerceu a atividade “à porta fechada”, por um mês ou dois, e apenas com o intuito de escoar algumas mercadorias.

Resultou efetivamente dos depoimentos das testemunhas (…) e (…) que depois do falecimento da mãe o réu “ficou a explorar o estabelecimento , sozinho”; quanto à duração de tal exploração “a solo” pelo réu, não foi feita prova suficiente pois a testemunha (…) acabou por admitir que não podia precisar durante quanto tempo tal aconteceu e a testemunha (…) declarou que em 2019, ano em que deixou de viver em (…) onde se situava o dito estabelecimento, este “já estava fechado há algum tempo”.

Em face do exposto, procede parcialmente a impugnação, determinando a alteração da redação do enunciado em questão a qual passará a ser a seguinte:

«Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu continuou a exercer sozinho a atividade no estabelecimento comercial, por tempo não determinado».

C- Facto provado n.º 17 - O locado não tinha licença de utilização, pelo menos desde o ano de 2002.

Defende a apelante que este facto deve ser julgado não provado alegando que se demonstrou que, atendendo à idade do edifício – porquanto o mesmo foi construído antes de 7 de agosto de 1952 – não havia obrigatoriedade de uma licença de utilização.
Sucede, que não foi alegado e não está julgado provado que o imóvel em causa foi construído antes de 7 de agosto de 1952, pelo que fica prejudicado o juízo de valor afirmado pela apelante: a “desnecessidade de licença de utilização”.
Improcede, por isso, este segmento da impugnação.

*
Aditamento de factualidade ao elenco dos factos provados
Defende a apelante que o tribunal deveria ter julgado provada a seguinte factualidade:
(i) Após o falecimento de (…), em 01.12.1995, o estabelecimento a que se refere o contrato indicado em 2) continuou a ser explorado pela viúva (…) conjuntamente com o seu filho (…); – ver facto provado n.º 14
(ii) A ré (…) logo após o falecimento do pai (…), em 01.12.1995, veio dos Açores para o continente para o funeral do pai e para ajudar a mãe na exploração do estabelecimento mas, entretanto, regressou aos Açores para prosseguir os estudos e acordou com o irmão a divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento.
(iii) O réu (…) explorou o estabelecimento comercial desde o falecimento do pai até pelo menos 2019/2020.
Invoca, para tal desiderato, isto é, como prova da factualidade referida em (i) e (iii) «a confissão do réu na sua contestação, nomeadamente no artigo 16º e no artigo 17º daquele articulado» e o depoimento da testemunha (…).
Quanto à factualidade referida em (ii) a apelante invoca o documento n.º 2 junto pela autora em sede de audiência prévia que consiste numa carta enviada pela ré aos autores, e o depoimento daquela em sede de julgamento, ao confirmou que escreveu a carta “sem qualquer tipo de pressão”.
Vejamos.
No que respeita à factualidade supra enunciada em (i) diremos que foi julgado provado no ponto de facto n.º 14 que «o réu (…) explorava a atividade em conjunto com a mãe, há já alguns anos», o qual não foi impugnado.
Com o aditamento em causa a apelante pretende concretizar o momento a partir do qual o réu começou, também ele, a explorar o comércio dos pais no locado. Ora, a ré afirmou de forma que nos pareceu verdadeira que depois da morte do pai a mãe e o irmão ficaram com o estabelecimento e quando ela manifestou a sua intenção em ajudar a mãe no atendimento de clientes no estabelecimento o irmão de imediato se prontificou a ir para junto da mãe e lhe disse que ela devia regressar aos Açores para prosseguir os seus estudos. Também a testemunha (…) declarou, de forma convincente, que depois da morte do primitivo arrendatário, a viúva e o filho (…) ficaram a explorar a loja.
Por conseguinte, deferindo parcialmente este segmento da impugnação determina-se a alteração da redação do ponto de facto provado n.º 14 que passará a ter a seguinte redação:
«14 - O réu (...) explorava a atividade em conjunto com a mãe, desde o falecimento de (...)».
Quanto à factualidade supra referida em (ii), note-se que está já julgado provado – e não foi impugnado – que «a ré não explora nem explorava conjuntamente com os seus pais, há mais de três anos, contados até à morte de cada um, o comércio estabelecido no locado e que se fixou na ilha Terceira, pelo ano de 1992, onde desde então reside e trabalha». Por conseguinte, cumpre apenas apurar se o último segmento do enunciado descrito em (ii) – acordou com o irmão a divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento – resultou, ou não, da prova produzida nos autos.
A apelante invoca o documento que consiste numa missiva subscrita pela ré, que não se mostra datada, mas que aquela reconheceu, em julgamento, ter sido subscrita por si. Aquele documento e o depoimento da ré não são todavia suficientes para julgar provado que houve um “acordo de divisão dos lucros obtidos com a exploração do estabelecimento”, pois aquilo que foi referido pela ré é que o irmão lhe disse que «se houvesse lucros eles seriam partilhados com ela», acrescentando que nunca beneficiou de eventuais benefícios resultantes da exploração do estabelecimento e que nada sabia do negócio. O que corresponde ao que escreveu na carta. Acresce que a testemunha (…), marido da ré, afirmou de forma perentória que não houve qualquer acordo entre os réus quanto à exploração do estabelecimento comercial.
Em face de todo o exposto, não há que preceder ao aditamento da factualidade em causa.
Por fim, e no que respeita à factualidade supra enunciada em (iii) a apelante invoca a confissão do réu e o depoimento da testemunha (…).
Liminarmente se dirá que o réu não confessou no seu articulado a factualidade em causa, como ressalta do artigo 20º da contestação.
Quanto à testemunha (…), este referiu que depois do falecimento da mãe o réu «ficou bastante tempo lá, sozinho», mas não conseguiu precisar de forma convincente quanto tempo o réu ali permaneceu depois do decesso da progenitora. A testemunha (…), que depôs de forma que nos pareceu isenta, declarou que viveu em (…), a poucos metros da loja do réu, até 2019 e que quando de lá saiu em 2019, o estabelecimento já estava fechado “há algum tempo” e a testemunha (…), cônjuge da ré e cunhado do réu, disse que não sabia durante quanto tempo o cunhado esteve a explorar o estabelecimento após o decesso da mãe. Por conseguinte, não pode ser aditada a factualidade pretendida pela apelante.
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DECISÃO:
Em face do exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto e, em conformidade, decide-se:
1) Eliminar do elenco dos factos provados o ponto de facto n.º 18.
2) Alterar a redação do ponto de facto provado n.º 14, que passará a ser a seguinte: «O réu (…) explorava a atividade em conjunto com a mãe, desde o falecimento de (…)».
3) Alterar a redação do ponto de facto provado n.º 16, a qual passará a ser a seguinte: «Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu continuou a exercer, sozinho, a atividade no estabelecimento comercial, por tempo não determinado».

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Por uma questão de clareza, passa-se a enunciar o elenco dos factos provados com as alterações resultantes da impugnação do julgamento de facto:
«1. Por herança aberta por óbito de (…) e de (…), os AA. adquiriram sem determinação de parte ou direito o prédio misto composto por prédio rústico e urbano sito na Travessa do (…), 2 e 2B, freguesia de (…), concelho de Tomar, atualmente inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), da União das Freguesias de Tomar (anterior artigo … proveniente dos artigos …, … e …) e na matriz rústica sob o artigo (…), secção (…) da referida União de Freguesia (anterior artigo … da secção … da extinta freguesia de …) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…).
2. Por contrato, com início em 1 de janeiro de 1986, o falecido pai dos Autores, (…) deu de arrendamento ao falecido pai dos Réus (…) uma casa destinada a comércio, no rés-do-chão esquerdo do prédio descrito.
3. Pelo prazo de um mês, prorrogável por iguais períodos, com início em 1 de janeiro de 1986.
4. E pela renda mensal de 8.000$00 que corresponde a € 39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos), que, por força dos vários aumentos desde 2016, passou a ser no valor de € 140,00 (cento e quarenta euros).
5. O contrato de arrendamento foi participado à Repartição de Finanças de Tomar.
6. Entretanto, em 31/08/2010 faleceu o pai dos Autores que deixou como únicos e universais herdeiros: a mulher (…), viúva; a filha (…), casada, com (…); (…), solteiro, maior e (…), casado com (…).
7. Em 15 de julho de 2015 faleceu (…), que deixou como únicos e universais herdeiros o viúvo (…) e a mãe (…);
8. Em 6 de março de 2022, faleceu (…), que deixou como únicos e universais herdeiros: (…), solteiro, maior e (…), casado com (…).
9. Entretanto, em 01/12/1995, faleceu (…), sucedendo-lhe como únicos e universais herdeiros a viúva (…) e os dois filhos, os Réus (…) e (…), e
10. Em 12/07/2017 faleceu (…) e deixou como únicos e universais herdeiros os dois filhos os Réus (…) e (…).

11. Os réus não pagaram as rendas de setembro a dezembro de 2016, nem as rendas vencidas nos meses de janeiro a dezembro de 2017; de janeiro a dezembro de 2018; de janeiro a dezembro de 2019; de janeiro a dezembro de 2020; de janeiro a dezembro de 2021; de janeiro a dezembro de 2022 e os meses de janeiro de março do corrente ano de 2023.

12. A Ré fixou-se na ilha Terceira, Açores, pelo ano de 1992, onde desde então reside e trabalha.

13. Não explora nem explorava, conjuntamente com os seus pais, há mais de três anos, contados até à morte de cada um, o comércio estabelecido no locado.

14. O réu (…) explorava a atividade em conjunto com a mãe, desde o falecimento de (…).

15. O Réu (…) não comunicou, nos três meses posteriores ao decesso da mãe, a sua vontade de continuar a exploração.

16. Após o falecimento da (…), sua mãe, o Réu continuou a exercer, sozinho, a atividade no estabelecimento comercial, por tempo não determinado».

17. O locado não tinha licença de utilização, pelo menos desde o ano de 2002.
18. (eliminado)
19. O Réu (…) entregou as chaves do imóvel à Ilustre Mandatária dos Autores em 06.12.2023.


II.4.3.
Reapreciação do mérito
Está em causa no presente recurso a sentença proferida nos autos que declarou cessado, desde o dia 12 de julho de 2017, o contrato de arrendamento celebrado, na data de 1 de janeiro de 1986, entre (…) e (…) e que teve por objeto uma casa destinada a comércio e absolveu os réus de tudo o que contra os mesmos havia sido peticionado.
Na ação a autora havia pedido ao tribunal que decretasse a resolução do contrato de arrendamento acima referido com fundamento na falta de pagamento de rendas e condenasse os réus, na qualidade de arrendatários “por terem sucedido na posição contratual de inquilinos” a entregar o locado livre de pessoas e bens e no pagamento da quantia de dez mil, novecentos e vinte euros, a título de rendas vencidas e ainda das vincendas até à entrega efetiva do locado.
O segmento decisório da sentença recorrida funda-se no entendimento de que por morte da locatária (…), mãe de ambos os Réus, ocorrida em 12.07.2017, não se operou a transmissão da posição de locatário para os ora réus/apelados, tendo, por isso, o contrato de arrendamento celebrado entre (…) e (…) cessado na data do óbito daquela.
Cumpre apreciar da bondade daquela decisão e, concretamente, se deve julgar-se que o contrato de arrendamento em causa se extinguiu por caducidade, em 12.07.2017, data do óbito de (…), como decidiu o tribunal recorrido.
A caducidade resulta da verificação de um facto jurídico stricto sensu e opera, por norma, automaticamente. Trata-se de uma figura distinta quer da revogação quer da rescisão, as quais exigem uma declaração de vontade com vista a tornar, por si só ou integrada por uma decisão judicial, o negócio ineficaz.
A causa de caducidade que seja invocada deve ser interpretada à luz da lei em vigor ao tempo da verificação do facto que a fundamenta, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil.
As causas de caducidade do contrato de locação encontram-se previstas no artigo 1051.º do Código Civil, estipulando a sua alínea d) que o contrato de locação caduca por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa coletiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário.
Há, porém, casos em que a lei determina a transmissão por morte do arrendatário, casos em que, por isso, a caducidade não se verifica.
No caso sub judice não vem posto em causa que estamos perante um contrato de arrendamento para comércio.
Tal contrato foi celebrado não só em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU) mas inclusive em data anterior ao D/L n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU).
Está provado que o pai dos réus, (…) – o qual celebrou o contrato de arrendamento em causa nos autos – faleceu na data de 1 de dezembro de 1995.
Naquela data estava em vigor o D/L n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU), cujo artigo 112.º dispunha o seguinte:
«1 – O arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias.
2 – O sucessor não renunciante deve comunicar, por escrito, ao senhorio a morte do arrendatário, a enviar nos 180 dias posteriores à ocorrência e da qual constem os documentos autêntico ou autenticados que comprovem os seus direitos.
3 – O arrendatário não pode prevalecer-se do não cumprimento dos deveres de comunicação estabelecidos neste artigo e deve indemnizar o senhorio por todos os danos derivados da omissão» (itálicos nossos).
Resulta do preceito legal supra transcrito que no arrendamento para comércio, a morte do arrendatário, pessoa física, não importava a caducidade do contrato, mas antes a sua comunicabilidade para os respetivos sucessores (herdeiros ou legatários). Embora, sublinha-se, fosse possível a renúncia à transmissibilidade da situação jurídica do locatário.
Assim sendo, estando in casu provado que … (viúva) e os réus … e … (filhos) eram os únicos e universais herdeiros de (…), todos eles ficaram com direito à transmissão da posição de arrendatário. E, não tendo sido alegado e provado que qualquer deles haja renunciado à transmissibilidade para a respetiva esfera jurídica da posição de arrendatário, os três tornaram-se co-arrendatários do prédio em causa nos autos. Ou seja, por força do óbito do primitivo arrendatário e da transmissão da posição de locatário para os três herdeiros daquele (viúva e filhos), passou a haver um arrendamento plural ou um co-arrendamento, o qual se caracteriza «pelo facto de todos os arrendatários serem simultânea e compativelmente arrendatários do mesmo objeto»[2].
Entretanto, em 12 de julho de 2017, faleceu a co-arrendatária (…).
À data estava em vigor a Lei n.º 6/2006, de 27-02 (NRAU), cujo artigo 1113.º dispõe que:
«1 – O arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio, no prazo de três meses, com cópia dos documentos comprovativos da ocorrência.
2 – É aplicável o disposto no artigo 1107.º, com as necessárias adaptações.»
De acordo com este normativo, a transmissão por morte do arrendatário ocorre ope legis, ou seja, sem necessidade de aceitação. Porém, há o dever, por banda do transmissário, de comunicar ao senhorio a transmissão no prazo de três meses a contar da ocorrência, com cópia dos documentos comprovativos.
Porém, para os contratos pretéritos, isto para os contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, há que atender às normas transitórias previstas no NRAU, concretamente ao disposto no artigo 58.º do NRAU, o qual, sob a epígrafe Transmissão por morte no arrendamento para fins habitacionais, dispõe o seguinte:
«1 – O arrendamento para fins não habitacionais termina com a morte do primitivo arrendatário, salvo existindo sucessor que há mais de três anos exerça profissão liberal ou explore estabelecimento comercial, no locado, em comum com o arrendatário primitivo.
2 – O sucessor com direito à transmissão comunica ao senhorio, nos três meses subsequentes ao decesso, a vontade de continuar a exploração».
Em face de tal preceito normativo, nos contratos pretéritos, a regra é a de que o contrato de arrendamento caduca com a morte do arrendatário. Só haverá transmissão se existir sucessor que, há mais de três anos, exerça profissão liberal ou explore estabelecimento comercial no locado, em comum com o arrendatário primitivo.
A propósito deste normativo, dir-se-á que a pessoa a quem tenha sido transmitida a posição arrendatícia antes da entrada em vigor do NRAU deve ser equiparada ao locatário primitivo (ou seja, àquele que celebrou o contrato), sob pena de se esvaziar o sentido útil da disposição em virtude se esta ser apenas aplicável a casos muito escassos[3].
In casu, a presente ação de despejo foi movida pela autora contra os réus (…) e (…) no pressuposto de que ambos têm a posição contratual de inquilinos, por terem ambos «sucedido na posição contratual de inquilinos», alegando a autora que estão em dívida rendas correspondentes aos anos de setembro de 2016 a dezembro de 2022 e, ainda, as rendas correspondentes aos meses de janeiro a março de 2023. E o pedido era a cessação do contrato por resolução e a condenação dos réus no pagamento das rendas vencidas e vincendas e na entrega do locado.
Atento todo o exposto supra, dir-se-á que ambos os réus têm, efetivamente, a posição de arrendatários. Porém, não por força de uma transmissão da posição de locatários gerada pelo óbito de (…), ao abrigo do disposto no artigo 58.º do NRAU, mas por efeito da sucessão na posição de arrendatários determinada pelo óbito do pai de ambos, o primitivo arrendatário, por força do disposto no artigo 112.º do RAU, em vigor à data daquele óbito.
O óbito de (…) não gerou a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário aos aqui réus porque estes já eram contitulares da posição jurídica de arrendatário. Aquele óbito apenas possibilitou e gerou a concentração nas pessoas de ambos os réus/apelados da posição jurídica de arrendatário. Donde o óbito da co-arrendatária (…) não gerou a extinção do contrato de arrendamento por caducidade, ao contrário do decidido pelo julgador a quo.
Uma vez que não foi alegado, donde não se provou, que qualquer um dos réus (co-arrendatários), e nomeadamente a ré, se tivesse desvinculado da relação de arrendamento através dos mesmos meios que ao arrendatário singular são facultados, designadamente por revogação, ambos aqueles réus têm a obrigação de pagamento das rendas relativas ao locado, como resulta do disposto no artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil.
Está provado que os réus não pagaram: as rendas de setembro a dezembro de 2016; as rendas vencidas nos meses de janeiro a dezembro de 2017; as rendas vencidas de janeiro a dezembro de 2018; as rendas vencidas de janeiro a dezembro de 2019; as rendas vencidas de janeiro a dezembro de 2020; as rendas vencidas de janeiro a dezembro de 2021; as rendas vencidas de janeiro a dezembro de 2022 e as rendas correspondentes aos meses de janeiro a março do ano de 2023.
Existe, por isso, fundamento para resolução do contrato, por banda do senhorio, aqui autora/apelante, atento o disposto no artigo 1083.º, n.º 1 e n.º 3 e n.º 4, do Código Civil.
Ambos os réus/apelados, enquanto co-arrendatários, são responsáveis, solidariamente, pelo pagamento das rendas vencidas e não pagas, bem como pelo pagamento das rendas vincendas até à entrega do locado, esta última ocorrida em 06.12.2023.
Em síntese e concluindo, o contrato de arrendamento em causa nos autos deve ser declarado cessado por resolução e os réus devem ser condenados, solidariamente, no pagamento das rendas vencidas até março de 2023, num total de dez mil, novecentos e vinte euros, bem como no pagamento do valor correspondente às rendas que se venceram até 6.12.2023 (data da entrega das chaves do imóvel), tudo conforme peticionado.
Procede, pois, a apelação, substituindo-se a sentença recorrida por outra que declara cessado, por resolução, o contrato de arrendamento celebrado em 1 de janeiro de 1986 e que teve por objeto o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Travessa do (…), 2 e 2B, freguesia de (…), concelho de Tomar, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…), e condena ambos os réus no pagamento à autora do montante de dez mil, novecentos e vinte euros (€ 10.920,00), a título de rendas vencidas até março de 2023 e das rendas que se venceram até 6 de dezembro de 2023.


Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogam a sentença recorrida que substituem por uma outra que:
1) Declara cessado, por resolução, o contrato de arrendamento celebrado em 1 de janeiro de 1986 e que teve por objeto o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Travessa do (…), 2 e 2B, freguesia de (…), concelho de Tomar, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º (…); e
2) Condena ambos os réus (…) e (…), solidariamente, no pagamento à autora do montante de dez mil e novecentos e vinte euros (€ 10.920,00), a título de rendas vencidas até março de 2023, bem como no montante correspondente às rendas que se venceram até 6 de dezembro de 2023.

As custas na presente instância são da responsabilidade da apelante, atento o disposto no artigo 527.º, n.º 1, parte final, do CPC, sendo que nenhum pagamento é devido a esse título porque a recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar na presente instância ao pagamento de custas de parte.
Notifique.
D.N..
Évora, 13 de março de 2025
Cristina Dá Mesquita
Eduarda Branquinho
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite


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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª Edição Reimpressão, Coimbra Editora, págs. 124-125.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.07.2013, processo n.º 1313/08.09YXLSB.L1-6, relatora Maria de Deus Correia, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Assim, Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3.ª edição, Almedina, pág. 91.