Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
18/23.5ZFFAR.E1
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: ACUSAÇÃO
NARRAÇÃO / ALEGAÇÃO FACTUAL
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Analisado o auto de notícia por detenção, para o qual remete a acusação, com a preocupação de nele se encontrarem as referências factuais, é inegável que ali se afirma que o documento é contrafeito – diz-se que não obedece aos requisitos de um documento genuíno daquele tipo e explicitam-se as circunstâncias que permitem essa afirmação, narrando factos concretos.

O acrescento na acusação deduzida pelo Ministério Público das circunstâncias conhecimento e propósito do arguido de exibir um documento contrafeito ou falsificado, não visou ultrapassar uma suposta falta de narração dos factos referentes aos elementos objetivos do tipo. Visou, sim, proceder à narração dos factos referentes aos elementos subjetivos, cuja indiciação o Ministério Público considerou derivar dos factos objetivos constantes do auto de notícia.

Deste modo se conclui que a acusação deduzida não está desprovida da necessária narração/alegação factual. E por isso, não podia ser considerada manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
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I – RELATÓRIO

No Processo nº 18/23.5ZFFAR do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Local Criminal de … - Juiz …, foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

«O Tribunal é competente.

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Registe e autue como processo abreviado.

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Determina o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), ex vi artigo 391.º-C, n.º 1, do Código de Processo Penal, que o juiz deve rejeitar a acusação “se a considerar manifestamente infundada”. E será manifestamente infundada a acusação quando os factos não constituírem crime, conforme decorre do disposto na alínea d), do n.º 3, daquele artigo.

Ora, afigura-se-nos que é esta última situação a que se verifica no caso vertente.

Vejamos.

Deduziu o Ministério Público acusação contra AA, em processo abreviado, por remissão para os factos vertidos no auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5, que deu por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, ao abrigo do disposto no artigo 391.º-B, n.º 1 do Código de Processo Penal, acrescentando apenas que “Resulta ainda suficientemente indiciado que o arguido agiu, conforme descrito naquele auto de notícia por detenção, voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, sendo exclusivamente nacional da República da …, exibir um livrete com a aparência de um Passaporte emitido pelo SEF no Posto de Fronteira … onde constava ser nacional da República Portuguesa bem sabendo que o substrato e a impressão de fundo/segurança foram realizados artesanalmente por terceiro que não o SEF não tendo aposto marca de água nem tinta opticamente variável e talhe-doce, criando a falsa representação de que, enquanto nacional de Portugal, tinha direito a viajar para …, …, sem que previamente houvesse obtido, junto das autoridades competentes para a respetiva concessão, o necessário Visto”, e imputando ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de contrafação de documento agravado, previsto e punido, pelos art.º 255.º al. a) e 256.º n.º 1, al. e) [por referência à al. a)] e n.º 3, todos do Código Penal, e artigos 363.º n.ºs 1 e 2 e 372.º n.º 2 [in fine] ambos do Código Civil.

Preceitua o artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

É punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”

Impõe-se, pois, para a verificação da consumação do tipo legal o ato de falsificação em qualquer uma das variantes discriminadas nas diferentes alíneas do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal.

Sucede que, do auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5 não constam todos os factos cuja verificação se mostra necessária ao preenchimento do tipo objetivo do ilícito em questão, designadamente, que o documento apresentado pelo arguido nas circunstâncias de tempo e lugar ali referidas constituísse uma falsificação ou contrafação.

Com efeito, analisado o auto de notícia por detenção do mesmo resulta, apenas, que o documento então apresentado pelo arguido apresenta forte indícios de ser um documento contrafeito, o que é diverso de se afirmar que aquele documento é contrafeito.

E o facto de se imputar ao arguido o conhecimento e propósito de exibir um documento contrafeito ou falsificado não substitui a necessária imputação da falsidade daquele documento.

Carecendo a acusação de tal alegação factual, é a mesma manifestamente infundada, pois que nunca levaria à condenação do arguido, estando assim a acusação deduzida fadada ao insucesso, pois soçobrava por falta de descrição de factos que permitissem preencher o elemento objetivo do tipo na sua plenitude, sendo ainda de sublinhar que tal omissão fáctica não é passível de suprimento em sede de julgamento.

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Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), ex vi do artigo 391.º-C, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, por manifestamente infundada e, consequentemente, determino que, após trânsito do presente despacho, se proceda ao oportuno arquivamento dos autos.

Declaro extinta a medida de coação de Termo de Identidade e Residência aplicada ao arguido nestes autos (artigos 214.º, n.º 1, alínea c) e 311.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código de Processo Penal).

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público.

Notifique.»

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Por não se conformar com o assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, pugnando pela revogação do despacho proferido e pela substituição do mesmo por decisão que mande notificar o arguido a fim de, querendo, apresentar contestação, e proceda à marcação de data para audiência de julgamento.

Da motivação do recurso extraiu o Ministério Público as seguintes conclusões:

1. A decisão proferida pelo Tribunal a quo a 27 de outubro de 2023 violou o disposto no art.º 283.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal na medida em que exigiu para o preenchimento do elemento objectivo do tipo legal imputado ao arguido que o Ministério Público afirmasse que o documento apresentado pelo mesmo era contrafeito, ao invés de constar existirem indícios suficientes de ser contrafeito ou, como neste caso, constar fortes indícios de ser Documento Contrafeito.

2. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do art.º 283.º do C.P.P., não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.

3. Neste caso, perante a comunicação da notícia de um crime e da detenção do seu agente em flagrante delito, o Ministério Público “apenas” verificou a existência de uma possibilidade razoável de vir a provar-se, com certeza, que o arguido praticou o crime.

4. Ao contrário do que o Tribunal a quo propalou, o Ministério Público não tinha de afirmar que, efetivamente, o documento era contrafeito – bastando para o preenchimento do tipo objetivo fazer constar a existência de indícios suficientes nos termos do aludido art.º 283.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal - pois tal conduta exigida pelo Tribunal a quo, no dizer do Tribunal Constitucional, acórdão n.º 439/2002 violaria o princípio in dúbio pro reo por ultrapassar a atividade de valoração da prova que subjaz à decisão de submeter o arguido a julgamento reduzindo «desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art.º 32.º n.º 2, da Constituição».

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A defesa do arguido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência. Extraiu o arguido as seguintes conclusões:

“A. Deve improceder totalmente o recurso interposto pelo Ministério Público.

B. Pelo contrário, é de manter integralmente o douto despacho que rejeitou a acusação, considerando-se que a factualidade descrita no despacho acusatório é omissa quanto ao elemento objectivo do tipo de crime pelo qual o arguido vem acusado.

C. O despacho não merece reparo, afigura-se-nos assertivo e alinhado com a interpretação das normas aplicáveis e que o arguido subscreve na íntegra.

D. A acusação pública foi rejeitada porquanto não constam factos cuja verificação se mostra necessária ao preenchimento do tipo objectivo do ilícito, designadamente, que o documento constituísse uma falsificação ou contrafação.

E. A acusação deve descrever de forma clara, explícita e inequívoca todos os factos materiais concretos praticados pelo arguido penalmente censuráveis (elemento objectivo), sem imprecisões ou referências vagas e sem expressões conclusivas das normas penais, o que não aconteceu.

F. Omitindo a acusação tal materialidade, essencial, constata-se não estar preenchido o elemento objectivo do tipo de crime em causa.

G. Assim sendo, o ora despacho de rejeição da acusação em crise e consequente arquivamento dos autos, não merece qualquer reparo, não violou qualquer disposição legal e consequentemente deve ser mantido.”.

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Remetidos os autos a esta Relação, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões prévias que suscitou, nos seguintes termos:

“A ) Arguido estrangeiro – não domínio da língua portuguesa – Tradução da acusação

Consta expressamente do teor da informação do SEF “. Informa-se que o arguido não fala português, pelo que será necessária a presença de um intérprete de língua … ou ….

É nosso entendimento, a necessidade de assegurar a tradução do despacho de acusação a arguido estrangeiro que não domina a língua portuguesa, na esteira do Ac. Relação de Évora de 20.12.2018 que consagrou : Face à aplicação direta em Portugal das Diretivas da União Europeia constata-se uma falência da previsão normativa no direito interno no que diz respeito às matérias de tradução e interpretação em processo penal pois a lei processual penal apenas prevê a nomeação de intérprete para a intervenção ativa do arguido. As Diretivas impõem uma obrigação “de facere” sobre os tribunais portugueses quanto à necessidade de nomeação de intérprete e/ou tradutor ao arguido. Bem assim, impõe-se também a tradução escrita de todos os documentos essenciais à defesa do arguido, tais como as notificações referentes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como às medidas de coação. No caso dos autos, a arguida, sendo alemã, deveria ter disposto de intérprete nomeado pela força policial e pelo Ministério Público a partir do momento da detenção ou, no mínimo, a partir do momento em que se viu obrigada a assinar documentação apresentada pela força policial. Tendo a arguida assinado TIR e não havendo certeza de que esta entenda a língua portuguesa nem tendo havido cuidado de o confirmar, bem como não lhe tendo sido nomeado intérprete nem sido facultada Carta de Direitos na sua língua, tais atos são considerados inválidos, bem como todos os atos subsequentes.

No caso em apreço nos autos, o arguido – que dominará a língua inglesa – foi constituído arguido e prestou TIR (artº 196 CPP), com recurso a peça (pré) traduzida em língua inglesa.

Sem reparo tal procedimento.

Porém, nessa conformidade e sequência, o despacho acusatório devia ser traduzido (para … ou …) e notificado ao arguido, nesses moldes.

A remessa da acusação para julgamento nos moldes patenteados nos autos deve ser considerada inválida.

Obviamente, o cumprimento de tal desiderato é susceptível de colocar “em xeque” a opção pelo “processo abreviado” nos moldes constantes nos autos.

Porém, o arguido tem de (ler) e compreender na língua natal ou outra que domine convenientemente, o teor da acusação.

Trata-se de um direito fundamental do arguido com assento constitucional e nos instrumentos internacionais em vigor.

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B ) Ausência de diligências complementares

No 2º despacho dito de alteração de distribuição, o Ex.mo Colega, sagaz e avisadamente referiu, certeiramente, a necessidade de realização de diligências que impedem a tramitação em processo sumário.

Porém, não se alcança que tenham sido realizadas quaisquer diligências surgindo logo o despacho de acusação, conforme resulta da consulta do histórico do “Citius”.

É certo que atenta a forma processual “escolhida” (abreviado) não é obrigatória a realização de inquérito.

Porém, mandava a mais elementar “jurisprudência das cautelas” proceder à análise (mais rigorosa e técnica) do documento apresentado.

Com efeito, do expediente (auto de notícia) apenas se consegue alcançar que “após análise do passaporte nº … verificou-se que o mesmo apresenta fortes indícios de ser documento contrafeito”.

Neste tipo de casos importava investigar até documentalmente se tal situação já tinha ocorrido, se aquele tipo de alteração do documento teria sido já referenciada pelas autoridades policiais e judiciárias para não falar de perícia documental donde pudesse resultar, sem margem para dúvida legítima, que o documento em apreço era contrafeito.

O expediente fala de “fortes indícios de ser contrafeito”, o que não é, de facto, a mesma realidade a que corresponde o conceito de “documento contrafeito”.

Em nosso entender, modesto é certo, justificava-se a remessa dos autos para a forma comum, atenta a necessidade de realização de diligências complementares de prova.

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C ) Despacho judicial sobre censura

A Mme Juiz “a quo” entendeu que: Com efeito, analisado o auto de notícia por detenção do mesmo resulta, apenas, que o documento então apresentado pelo arguido apresenta forte indícios de ser um documento contrafeito, o que é diverso de se afirmar que aquele documento é contrafeito.

E o facto de se imputar ao arguido o conhecimento e propósito de exibir um documento contrafeito ou falsificado não substitui a necessária imputação da falsidade daquele documento.

Carecendo a acusação de tal alegação factual, é a mesma manifestamente infundada, pois que nunca levaria à condenação do arguido, estando assim a acusação deduzida fadada ao insucesso, pois soçobrava por falta de descrição de factos que permitissem preencher o elemento objetivo do tipo na sua plenitude, sendo ainda de sublinhar que tal omissão fáctica não é passível de suprimento em sede de julgamento.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), ex vi do artigo 391.º-C, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, por manifestamente infundada e, consequentemente, determino que, após trânsito do presente despacho, se proceda ao oportuno arquivamento dos autos. Começando a análise pela posição expressa pela Mme Juiz “ a quo” que determina, após trânsito, o arquivamento dos autos.

Não podemos concordar com tal entendimento2. Aqui surpreendem-se duas posições jurisprudenciais. Assim: Há quem defenda que só se forma caso julgado formal e que não ocorre violação do princípio ”ne bis in idem” e sustente, consequentemente, que o processo não deve ser arquivado e deve ser devolvido ao Ministério Público para os fins que tiver por convenientes. Há uma segunda posição que – em várias versões – defende que após a rejeição da acusação o arquivamento dos autos é a consequência lógica a impor-se.

Relativamente a esta última posição parece que os seus defensores olvidam um princípio fundamental – o inquérito é, perdoe-se-nos a expressão, do Ministério Público.

O “dominus” do inquérito é o MºPº, não o juiz de julgamento ou de instrução. Temos, assim, por acertada, a tese que defende que no caso de rejeição de acusação, deve ser ordenada a remessa dos autos ao seu primitivo titular (MºPº) Neste sentido, por todos, com interesse, Ac. Relação de Évora de10.04.2018, relator Gomes de Sousa onde se deixa consagrado o seguinte: “Daí o acerto da remessa dos autos de inquérito ao Ministério Público após a rejeição de uma acusação, como já se decidiu nesta Relação por acórdão de 06-03-20123 e de 05-07-20164, assim como a Decisão em Incidente de Reclamação Penal (artigo 405º do C.P.P.) do Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-09-2009, do seguinte teor: I - Como é evidenciado pelo Mmº Juiz a quo, a decisão por ele proferida a fls. 166-167, de rejeitar a acusação do Ministério Público por considerar não punível a conduta ali imputada ao arguido, louvou-se não só na circunstância de não ter sido o arguido notificado para os efeitos previstos do art. 105º, nº 4, alínea b) do RGIT (que constitui condição objectiva de punibilidade), mas também em não constar da acusação a referência à realização dessa notificação. II – Devolvidos os autos ao Ministério Público, a Digna Procuradora-adjunta, uma vez diligenciada a notificação do arguido por éditos, limitou-se a reenviar os autos à distribuição, com a acusação primitivamente deduzida e sem que a esta fosse feito qualquer aditamento. III – Ora tendo em conta a omissão na acusação da referência à notificação do arguido para os efeitos do art. 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, que já fundara a primeira rejeição dela por parte do Mmº Juiz a quo a fls. 166-167, parece-nos evidente que o recebimento do recurso interposto pelo Ministério Público redundaria numa situação susceptível de colocar em crise a força do caso julgado entretanto formado quanto à necessidade daquela menção na acusação pública, asserção essa que não foi posta em crise, como o Mmº Juiz assinalou a fls. 213. IV – Não obstante, não fica o Ministério Público impedido de reformular a peça acusatória em conformidade com o sugerido no despacho judicial de fls. 166-167. Daqui decorre que argumentos a defender que o “processo” (ou “os autos”) deve ser arquivado só possam ter como suporte argumentos como “a jurisdicionalização do processo” (categoria processual que se desconhecia) ou práticas assentes na ideia de que ao juiz é lícito dar ordens ou avocar competências no domínio do Ministério Público, nos processos de inquérito.

Nesta conformidade e atento o que se deixou exposto, não se concorda com a posição expressa pela Mme Juiz “a quo” ao determinar o arquivamento dos autos. Mesmo que se entenda como boa a sua decisão, os autos deviam ser reenviados para o MºPº.

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A questão da rejeição da acusação, consta do douto despacho judicial em crise que: “ – Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), ex vi do artigo 391.º-C, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, por manifestamente infundada”.

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Sobre a matéria importa atender ao disposto no artº 311 do CPP, sob a epígrafe “Saneamento do processo”.

“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada

b ) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d ) Se os factos não constituírem crime.”

A Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, ao aditar o nº 3 ao Artº 311º do C.P.Penal, prevendo de modo claro e taxativo as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitou os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento.

Cumpre realçar que por virtude de tal alteração legislativa, excluída ficou, pois, a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, tornando claro que o juiz de julgamento não pode fazer a apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito, determinando a caducidade da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (in DR, I Série A, nº 72, de 26/03/1993)

Neste sentido e com plena aplicação ao caso em apreço importa atender ao referido pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque5, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 816, “Esta limitação do poder do juiz de julgamento de rejeição liminar da acusação pública ou particular manifestamente infundada não é inconstitucional, pois não há um direito constitucional a não ser submetido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que o arguido tenha praticado o crime (...).”

Mais acrescenta, com interesse e relevo que: “… ao invés, o princípio da acusação impõe a inibição deste controlo substantivo da acusação pelo juiz de julgamento, de modo a evitar que ele formule um pré-juízo sobre o bem fundado da mesma e, com isso, se comprometa com o destino da mesma.”

Como emerge da supra transcrita norma legal, dentre os casos expressamente previstos no 3, em que, para os efeitos do nº 2, a acusação se considera manifestamente infundada, interessa-nos, na situação em apreço, o que vem previsto na alínea d), que se verifica quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”.

Ora, a este propósito, refere o citado autor, ibidem, pág. 817, que “(...) o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (...)”.

No caso em apreço e ora presente à alta apreciação de Vossas Excelências, importa referenciar os Acs. Relação de Guimarães de 26.09.2022, relator António Teixeira6 e da Relação de Coimbra de 27.09.2023, relatora Isabel Valongo7

Ainda a este propósito, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 12/07/2011, Proc. 66/11.8GAACB.C18, “(…) Só quando de forma inequívoca os factos constam da acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la”, da Relação do Porto de 21/10/2015, Proc.658/14.3GAVFR.P1 “I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituam crime é que o Tribunal ao abrigo do art.311 nº3 d), do C.P.P., pode rejeitar a acusação. II. Havendo divergências na jurisprudência sobre a integração dos factos descritos na acusação como constituindo crime, só após o julgamento o tribunal pode tomar posição sobre a qualificação jurídica dos factos como integrando ou não o crime imputado”, da Relação de Évora de 8/7/2010, Proc.1083/08.0TAABF.E1, “I. A previsão da al.d) do nº3 do artigo 311º do C.P.P. que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime (…)” e de 15 de outubro de 2013, proferido no processo 321/12.OTDEVR.E.1, “(…) a alínea d), do nº3, do art.311º, do Código de Processo Penal, não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colide com acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime (…)”. Atentos os subsídios doutrinários e jurisprudenciais acima referenciados temos que no despacho ora em crise a Mme juiz “a quo” (de julgamento) fez uma apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito, ao ponto de ter expressamente referido que nos autos constavam apenas “fortes indícios do documento ser contrafeito”, o que lhe estava vedado face ao que consta no artº 311 do CPP. *

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, dar provimento ao recurso apresentado pelo MºPº, sem prejuízo de ponderarem as questões suscitadas que nos parecem ser do conhecimento oficioso.”

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A defesa do arguido, notificada nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não veio apresentar resposta.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada (o despacho que rejeitou a acusação por manifestamente infundada e ordenou o arquivamento dos autos), a questão a examinar e decidir é a de saber se a acusação deduzida deve ser considerada manifestamente infundada, por os factos nela vertidos não constituírem crime.

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III –FUNDAMENTAÇÃO.

Para apreciação da questão enunciada, importa ponderar as seguintes circunstâncias que resultam documentadas nos autos:

i. A acusação deduzida pelo Ministério Público em 11 de outubro de 2023, tem o seguinte teor:

“ACUSAÇÃO NA FORMA DE PROCESSO ABREVIADO

Dos factos vertidos no auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5 que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (cf. art.º 391.º -B n.º 1 do Código de Processo Penal), resulta suficientemente indiciada a prática pelo arguido identificado no ponto 5 do aludido auto de notícia e a fls. 19, em autoria material e na forma consumada, de um crime de contrafação de documento agravado, previsto e punido, pelos art.º 255.º al. a) e 256.º n.º 1, al. e) [por referência à al. a)] e n.º 3, todos do Código Penal, e artigos 363.º n.ºs 1 e 2 e 372.º n.º 2 [in fine] ambos do Código Civil.

Resulta ainda suficientemente indiciado que o arguido agiu, conforme descrito naquele auto de notícia por detenção, voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, sendo exclusivamente nacional da República da …, exibir um livrete com a aparência de um Passaporte emitido pelo SEF no Posto de Fronteira … onde constava ser nacional da República Portuguesa bem sabendo que o substrato e a impressão de fundo/segurança foram realizados artesanalmente por terceiro que não o SEF não tendo aposto marca de água nem tinta opticamente variável e talhe-doce, criando a falsa representação de que, enquanto nacional de Portugal, tinha direito a viajar para …, …, sem que previamente houvesse obtido, junto das autoridades competentes para a respetiva concessão, o necessário Visto.

O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.

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Prova – toda a dos autos, designadamente:

Documental – Auto de notícia por detenção, de fls. 3 a 5;

- Auto de apreensão, de fls. 14 e 15;

- Documento com a aparência de Passaporte, saco prova a fls. 16;

- Ficha de análise documental – exame – realizada pelo SEF - Autoridade que consta como emissora daquele documento, de fls. 18;

- Cópia do Passaporte titulado pelo arguido, a fls. 19.

Testemunhal – BB e

CC, ambos, à data, Inspetores do SEF, identificados no aludido auto de notícia por detenção.

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Defensor do arguido:

Proceda à nomeação eletrónica de defensor ao arguido, que desde já se indica, cumprindo o disposto no artigo 64.º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Após, notifique nos termos e para os efeitos do art.º 66.º n.º 1, do mesmo diploma, com prévia tradução para a língua ….

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Estatuto Processual do Arguido:

Compulsados os autos, resulta não existirem quaisquer das circunstâncias previstas no art.º 204.º do C.P.P. que determinem a aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial diversa do TIR, já prestado.

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Comunique a presente acusação ao arguido - com prévia tradução para a língua … do ofício de notificação, do despacho de acusação e do auto de notícia por detenção a enviar em anexo - e ao defensor nomeado e, após, remeta os autos à distribuição, para julgamento, na forma de processo abreviado.

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A partir do presente despacho, os autos têm natureza urgente, cf. art.º 103.º n.º 2, al. d) do CPP.

*

(Elaborado, processado e revisto pelo signatário, nos termos do artigo 94.º n.º 2 do C.P.P.)

*

…, d.s.”

ii. O auto de notícia de fls. 3 a 5 para que remete a acusação deduzida pelo Ministério Público, tem, para além do mais, o seguinte conteúdo:

“AUTO DE NOTÍCIA

(…)

DATA: 07/10/2023

I - DESCRIÇÃO DOS FACTOS

Apresentou-se perante mim BB, Inspector(a) da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, na zona de controlo de fronteira de saídas de Território Nacional do Posto de Fronteira do Aeroporto de…, a fim de verificar as condições de saída de cidadãos estrangeiros, com o intuito de viajar para … - … no voo …, da companhia aérea …, com partida prevista para as 20:15, a/o cidadã(o) identificado em 2.

2 - INTERVENIENTE E DOCUMENTAÇÃO APRESENTADA

Nome: AA

Data Nascimento: …1999

Nacionalidade: …

Documento: Passaporte N.º Documento: …Emissão: …2021

Validade: …1931

3 - ANÁLISE À DOCUMENTAÇÃO

Após análise do Passaporte, n.º … verificou-se que o mesmo apresenta fortes indícios de ser Documento Contrafeito, porquanto não obedece aos requisitos de um documento genuíno,

nomeadamente:

- Impressão de fundo/segurança irregular;

- Marca de água ausente/simulada;

- Técnica de Personalização Irregular;

(…)

5 - IDENTIDADE

Confrontado com os fortes indícios de fraude, o/a passageiro/a, identificou-se da seguinte forma:

Nome: AA

Data Nascimento: …1999 Nacionalidade: …

Documento: Passaporte N.º Documento: …

Emissão: …/2017 Validade: …/2027”.

*

O despacho recorrido, considerou que “do auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5 não constam todos os factos cuja verificação se mostra necessária ao preenchimento do tipo objetivo do ilícito em questão, designadamente, que o documento apresentado pelo arguido nas circunstâncias de tempo e lugar ali referidas constituísse uma falsificação ou contrafação”, uma vez que dele resulta “apenas, que o documento então apresentado pelo arguido apresenta forte indícios de ser um documento contrafeito, o que é diverso de se afirmar que aquele documento é contrafeito”.

Acrescenta-se no despacho recorrido que “o facto de se imputar ao arguido o conhecimento e propósito de exibir um documento contrafeito ou falsificado não substitui a necessária imputação da falsidade daquele documento”.

Nessas considerações se estribou o despacho recorrido para concluir que “Carecendo a acusação de tal alegação factual, é a mesma manifestamente infundada”.

O Ministério Público recorre, pedindo a revogação do despacho, por entender que “o Ministério Público não tinha de afirmar que, efetivamente, o documento era contrafeito – bastando para o preenchimento do tipo objetivo fazer constar a existência de indícios suficientes nos termos do aludido art.º 283.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal”.

Cumprindo apreciar a questão suscitada pelo recurso interposto, afigura-se-nos que a razão não está com a subscritora do despacho recorrido.

Mas também não é possível acompanhar a argumentação vertida na motivação de recurso acerca do conteúdo necessário da acusação, quando afirma bastar “para o preenchimento do tipo objetivo fazer constar a existência de indícios suficientes”.

Fazer constar a existência de indícios suficientes é fazer constar um juízo de indiciação (trata-se de uma apreciação sobre factos).

Aquilo que releva para a apreciação da questão a resolver neste recurso são os factos. É sobre se o Ministério Público verteu na acusação os factos integradores dos elementos do tipo criminal imputado ao arguido, que devemos questionarmo-nos.

Factos. Não juízos sobre os factos.

O artigo 283º do Código de Processo Penal, com absoluta clareza, refere nos nrs. 1 e 2 o juízo de indiciação suficiente que deverá poder emitir-se para se deduzir acusação. Mas com igual clareza, refere no seu nº 3 que a acusação deverá conter a narração dos factos que

fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

O artigo 283º do Código de Processo Penal, para o que ora nos importa, estabelece:

Artigo 283.º

Acusação pelo Ministério Público

1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.

2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

(…)”.

De “narração dos factos” volta a falar-nos o Código de Processo Penal no artigo 311º do Código de Processo Penal, para nos dar os contornos da nulidade extremada da acusação que não a contenha.

Dispõe o artigo 311º do Código de Processo Penal:

Artigo 311.º

Saneamento do processo

1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.

Para além de outros casos de nulidade da acusação que apenas são, genericamente, previstas no nº 3 do artigo 283º do CPP, os casos contemplados nas diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º correspondem a casos extremados de invalidade daquela peça processual.

A distinção releva por ser diferente o regime de conhecimento da nulidade, consoante a mesma esteja ou não contemplada na previsão do referido artigo 311º. As nulidades da acusação genericamente previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal, reconduzem-se, em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, a nulidades sanáveis e dependentes de arguição. Mas o legislador processual penal entendeu dever estabelecer um regime especial para os casos em que o vício surge de forma extremada – são os casos que, estando também contidos na previsão das alíneas do nº 3 do artigo 283º, surgem referidos no nº 3 do artigo 311º. Como se explicou, de forma magistral no Acórdão da Relação de Évora de 29 de Outubro de 2013 (que aqui de perto seguimos) (9): “Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis. Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar. Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP. (…) Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º. Em resumo, as nulidades da acusação previstas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal e que não coincidam com as previstas no artigo 311º, a existirem, devem ser arguidas perante o magistrado subscritor ou seu superior hierárquico e são sanáveis no sentido em que, não declaradas, nada impede o seu envio para a fase de julgamento. As “nulidades” também previstas pelo artigo 311º, nº 3 do Código de Processo Penal (…) seguem um regime de conhecimento oficioso pelo juiz da fase de julgamento mas, passada a fase de saneamento do processo, insusceptível de arguição de nulidade em prazo útil (v. g. artigo 313º, nº 4 do Código de Processo Penal e insusceptibilidade de recurso do despacho que designa dia para julgamento). E isto porquanto, passada a fase de dedução da acusação e de saneamento do processo em fase de julgamento, fixa-se o objecto do processo, cristalizando-se o thema decidendum (objecto do processo) e o thema probandum (extensão da cognição) e tudo se reconduz a saber se estes se verificam em sede de facto e de direito. Ou seja, (…) todas as restantes “nulidades” da acusação e causas de actuação judicial no âmbito do artigo 311º perdem a sua invocabilidade como “nulidades” e passam a merecer um juízo exclusivo de procedência ou improcedência.”.

Regressemos ao caso dos autos.

Estando o processo a ser tramitado na forma especial de processo abreviado, importa considerar o que dispõe o artigo 391º-B, no seu nº 1:

Artigo 391.º-B

Acusação, arquivamento e suspensão do processo

1 – A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o nº 3 do artigo 283º. A identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efetuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia.

(…)”.

No nosso caso, o Ministério Público optou por fazer a “narração dos factos” por via da referida remissão parcial para o auto de notícia.

Assim, escreveu-se na acusação que “(…)os factos vertidos no auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5 (…) aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (cf. art.º 391.º -B n.º 1 do Código de Processo Penal).

Em complemento do que se importou para a acusação por remissão para o auto de notícia, acrescentou o Ministério Público, ainda em sede de narração dos factos, o seguinte:

“(…) o arguido agiu, conforme descrito naquele auto de notícia por detenção, voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, sendo exclusivamente nacional da República da …, exibir um livrete com a aparência de um Passaporte emitido pelo SEF no Posto de Fronteira … onde constava ser nacional da República Portuguesa bem sabendo que o substrato e a impressão de fundo/segurança foram realizados artesanalmente por terceiro que não o SEF não tendo aposto marca de água nem tinta opticamente variável e talhe-doce, criando a falsa representação de que, enquanto nacional de Portugal, tinha direito a viajar para …, …, sem que previamente houvesse obtido, junto das autoridades competentes para a respetiva concessão, o necessário Visto.

O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.”.

Pondo de parte os juízos constantes do auto de notícia, designadamente o juízo de forte indiciação que ali se menciona, já que o Ministério Público importou para a acusação apenas os factos vertidos naquele auto, cumpre aferir quais as circunstâncias de facto narradas na acusação.

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Conjugando o auto de notícia com o conteúdo acrescentado no despacho de acusação, constatamos estarem narrados na acusação dos autos, os seguintes factos:

1. No dia 7 de outubro de 2023, apresentou-se perante o Inspetor da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras BB, na zona de controlo de fronteira de saídas de Território Nacional do Posto de Fronteira do Aeroporto de …, para efeito de verificação das condições de saída de cidadãos estrangeiros, o cidadão AA, com o intuito de viajar para ...– …, no voo …, da companhia aérea …, com partida prevista para as 20H15.

2. Nessas circunstâncias, AA apresentou a seguinte documentação: passaporte emitido em seu nome, com o nº …, menção da nacionalidade portuguesa, com a data de emissão correspondente a …2021 e a data de validade de …1931.

3. Após análise do Passaporte n.º … verificou-se que o mesmo não obedecia aos requisitos de um documento genuíno, nomeadamente:

- Impressão de fundo/segurança irregular;

- Marca de água ausente/simulada;

- Técnica de Personalização Irregular;

4. Confrontado com o resultado da análise do documento, o passageiro AA, identificou-se da seguinte forma:

Nome: AA

Data Nascimento: …/1999

Nacionalidade: …

Documento de identificação: Passaporte N.º…, emitido em …/2017 e válido até …/2027.

5. O arguido AA agiu, conforme descrito, voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, sendo exclusivamente nacional da República da …, exibir um livrete com a aparência de um Passaporte emitido pelo SEF no Posto de Fronteira … onde constava ser nacional da República Portuguesa bem sabendo que o substrato e a impressão de fundo/segurança foram realizados artesanalmente por terceiro que não o SEF, não tendo aposto marca de água, nem tinta opticamente variável e talhe-doce, criando a falsa representação de que, enquanto nacional de Portugal, tinha direito a viajar para …, …, sem que previamente houvesse obtido, junto das autoridades competentes para a respetiva concessão, o necessário Visto.

6. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.

*

Sendo este o conteúdo da narração factual vertido na acusação (sublinhando nós que não procedemos ao acrescento de qualquer elemento que não constasse da conjugação do auto de notícia com o teor do despacho de acusação), imediatamente se impõe a conclusão de que não ocorre a ausência de qualquer elemento, objetivo ou subjetivo, do tipo de crime imputado ao arguido, a saber um crime de contrafação de documento agravado, previsto e punido, pelos art.º 255.º al. a) e 256.º n.º 1, al. e) [por referência à al. a)] e n.º 3, todos do Código Penal, e artigos 363.º n.ºs 1 e 2 e 372.º n.º 2 [in fine] ambos do Código Civil.

Deste modo, é forçoso concluir que no despacho recorrido se fez uma leitura errada acerca do conteúdo da narração factual vertido na acusação, certamente motivada pela presença no auto de notícia, quanto ao documento em questão, da expressão “o mesmo apresenta fortes indícios de ser Documento Contrafeito” – esse trecho corresponde a uma apreciação, à emissão de um juízo indiciário, não à narração de circunstâncias de facto.

Descartada tal expressão conclusiva, e analisado o auto de notícia por detenção com a preocupação de nele se encontrarem as referências factuais, é inegável que ali se afirma que o documento é contrafeito – diz-se que não obedece aos requisitos de um documento genuíno daquele tipo e explicitam-se as circunstâncias que permitem essa afirmação, narrando factos concretos.

O acrescento na acusação deduzida pelo Ministério Público das circunstâncias conhecimento e propósito do arguido de exibir um documento contrafeito ou falsificado, não visou ultrapassar uma suposta falta de narração dos factos referentes aos elementos objetivos do tipo. Visou, sim, proceder à narração dos factos referentes aos elementos subjetivos, cuja indiciação o Ministério Público considerou derivar dos factos objetivos constantes do auto de notícia.

Deste modo, concluímos que, ao contrário do que se escreveu no despacho recorrido, a acusação deduzida não está desprovida da necessária narração/alegação factual. E por isso, não podia ser considerada manifestamente infundada. A prova dos factos que supra se enumeraram e constam da acusação, uma vez realizada em julgamento, poderá levar à condenação do arguido.

Não nos encontramos perante um daqueles casos extremos, previstos no nº 3 do artigo 311º do CPP, em que a acusação se deve considerar manifestamente infundada (que correspondem aos casos em que não contenha a identificação do arguido, não contenha a narração dos factos, não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, ou em que os factos não constituem crime).

Assim sendo, o presente recurso não pode deixar de ser julgado procedente, devendo revogar-se o despacho recorrido e determinando-se que o Tribunal prossiga na tramitação do processo sem considerar manifestamente infundada a acusação por falta de narração dos factos, designadamente ordenando os ulteriores termos, sem prejuízo da possibilidade de emissão do juízo referido no artigo 391º-D, nº 1, do CPP, e da aferição da possibilidade de conhecimento da invalidade arguida quanto à notificação da acusação (cfr. o douto parecer apresentado pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto).

Impõe-se recordar que em sede de processo especial abreviado, por via do disposto no artigo 391º-G do Código de Processo Penal, é correspondentemente aplicável o estabelecido no artigo 391º desse código, só sendo admissível recurso da sentença ou de despacho que puser termo ao processo. Quanto aos demais atos jurisdicionais compreendidos na tramitação processual, não está legalmente prevista a intervenção deste Tribunal de segunda instância.

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V. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por despacho que ordene o prosseguimento da tramitação do processo sem considerar manifestamente infundada a acusação por falta de narração dos factos, designadamente ordenando os ulteriores trâmites legais para prosseguimento da causa.

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Sem custas.

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D.N.

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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 21 de maio de 2024

Jorge Antunes (Relator)

Margaria Bacelar (1ª Adjunta)

Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta)

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1 Relator João Gomes de Sousa

2 Pese embora conhecer-se jurisprudência nesta Relação, em sentido contrário, Ac. Relação de Évora de 22.06.2021. 3 Relator António João Latas

4 Relator Alberto Borges

5 Antigo Juiz de direito

6 I – No artº 311.º, n.º 3 do C.P.Penal, contemplam-se de modo claro e taxativo as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição

II – Em face da redacção daquele preceito legal, excluída está a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, sendo claro que o juiz de julgamento não pode fazer a apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito. (negrito da nossa responsabilidade)

III – Na verdade, o princípio da acusação impõe a inibição deste controlo substantivo da acusação pelo juiz de julgamento, de modo a evitar que ele formule um pré-juízo sobre o bem fundado da mesma e, com isso, se comprometa com o destino da mesma.

IV - Só quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

V - Havendo divergências na jurisprudência sobre a integração dos factos descritos na acusação como constituindo crime, só após o julgamento o tribunal pode tomar posição sobre a qualificação jurídica dos factos como integrando ou não o crime imputado.

7 VI – O n.º 3 do artigo 311.º do C.P.P. veio consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.

VII – O tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada, ao abrigo da alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do C.P.P., e rejeitá-la quando a irrelevância penal dos factos imputados ao arguido seja manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, isto é, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.

8 Todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt”

9 Acórdão da Relação de Évora de 29 de Outubro de 2013 – Relator: João Gomes de Sousa – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c30aa53bf20bd21180257de10056fc82?OpenDocument