Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO PERIGOSIDADE ANIMAL CULPA DO LESADO | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Tendo-se a autora introduzido em prédio de natureza privada no qual pastava o gado bovino, a fim de utilizar um carreiro ali existente para aceder a uma ecopista situada nas proximidades, quando tinha disponíveis acessos público livres de animais, fazendo-se ainda acompanhar de um canídeo ao qual reagiu um daqueles animais, ferindo a demandante numa perna, é de considerar que contribuiu culposamente para o evento danoso, convocando a aplicação do disposto no artigo 570.º do Código Civil. II. Da ponderação da maior perigosidade que os animais pertença do réu oferecem, pelo seu número (pastavam na ocasião 43 animais adultos e, pelo menos, cerca de 20 bezerros) e grande porte (pesando os bovinos adultos pelo menos 600 kg), julga-se adequado repartir culpas entre autora e réu na proporção de 30% para a primeira e 70% para este, reduzindo-se em conformidade a indemnização arbitrada. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo 1540/23.9T8EVR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Évora Juízo Local Cível de Évora - Juiz 1 I. Relatório (…) instaurou contra (...) a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação do demandado no pagamento da quantia de € 7.500,00, “a título de responsabilidade civil extracontratual pelos danos não patrimoniais”, bem como no pagamento do montante de € 378,16, “a título de responsabilidade civil extracontratual pelos danos patrimoniais”. Para tanto alegou, em síntese, ter sido vítima, no dia 22 de janeiro de 2022, da investida de um animal de raça bovina pertença do réu, em consequência da qual sofreu ferimentos, que se traduziram em danos de natureza patrimonial e não patrimonial por cujo ressarcimento é o demandado responsável, uma vez que violou os deveres de vigilância que sobre si impendiam nos termos do artigo 493.º do CC, disposição legal que expressamente invocou. Quando assim se não entenda, sempre a responsabilidade do R. radicaria no artigo 502.º, que consagra a responsabilidade objetiva do utilizador dos animais. Regularmente citado, o R. apresentou contestação, peça na qual refutou ter inobservado os deveres de vigilância que sobre si recaem, antes imputando à autora a culpa pelo sucedido, uma vez que se introduziu em propriedade privada, ainda que não vedada, sem qualquer justificação razoável, propiciando que o canídeo que passeava incomodasse a vaca no seu local de pastoreio, a qual reagiu, sem que fosse possível evitar o sucedido. Reputando em qualquer caso de exagerados os montantes reclamados, concluiu pela sua absolvição. Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, na parcial procedência da ação: a) condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 7.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora à taxa legal contados da data da decisão até integral pagamento; b) condenou o réu a pagar à autora a quantia correspondente à diminuição do rendimento da mesma autora pela não prestação de trabalho em consequência do sinistro dos autos, em montante não superior a € 209,84; c) condenou o réu a pagar à autora a quantia despendida por esta última na aquisição de medicamentos em consequência do sinistro dos autos, em montante não superior a € 24,46; d) condenou o réu a pagar à autora a quantia correspondente ao valor das calças de desporto inutilizadas em consequência do sinistro dos autos, em montante não superior a € 40,00; e) condenou o réu a pagar à autora os juros de mora à taxa legal, contados sobre os montantes referidos em b) a d), a apurar em posterior liquidação, e desde a data de citação do réu até integral pagamento; f) absolveu o réu do pedido, na parte restante; g) condenou a autora e o réu no pagamento das custas, na proporção respetiva de 5% e 95%, com eventual correção no incidente de liquidação. Inconformado, apresentou o réu o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões: i. O Tribunal de 1ª Instância resolveu condenar o R. nos pedidos contra si deduzidos, parcialmente, o que mereceu um decaimento de 95%. ii. Assim sendo, bem teria andado o tribunal recorrido se tivesse julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, não o condenando na totalidade do peticionado pela ora Recorrida. iii. Por ter entendido que “No caso em análise, está fortemente diminuída a culpa da autora por utilizar o “carreiro” inserido numa propriedade privada já que tal propriedade não está vedada e aquele “carreiro” é utilizado por outras pessoas.”. iv. O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: 2. Tal prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º (…), está inscrito desde pelo menos 30-05-2000 a favor de (…) e (…). (…) 7. A cerca de 60 metros do local onde a autora foi atingida passa o traçado de uma ecopista, de utilização pública, situando-se aquela ecopista no exterior do aludido prédio rústico. 8. A autora sabia que o prédio rústico denominado de “(…)” é um terreno de natureza privada, não carecendo, em situação alguma, de o atravessar já que para aceder à ecopista há um caminho ou acesso público. (…) 12. Tais animais estão familiarizados com os espaços, com veículos automóveis e com seres humanos, não reagindo a estímulos externos com facilidade, limitando-se a comer. (…) 17. Em datas anteriores a 22-01-2022, a autora já tinha utilizado o “carreiro” referido no antecedente ponto 1. para passear com o seu cão. 18. O réu é o dono da referida manada e há vários anos que leva os animais para aquele local para pastoreio.” (…) 25. No dia do acidente também se deslocou ao local do incidente a vizinha da autora, (…), após ter visto junto à ecopista o cão da autora solto e sem a sua dona.” v. Por outro lado, deu o mesmo Tribunal como não provados os seguintes factos: “1. Para concluir o percurso em direção a sua casa, a autora percorreu um atravessadouro sem que no mesmo, ou em redor, estivesse qualquer bovino. (…) 5. Registando-se com frequência incidentes entre animais (gado bovino) e pessoas nesses terrenos próximos da ecopista e mesmo na via pública, situação relatada à autora pelo agente da PSP que a inquiriu na sequência de queixa crime que apresentou.” vi. Ora, salvo o devido respeito, nunca poderia extrair-se do supra referido que a culpa da ora Recorrida seria diminuta na produção do dano que motivou a sentença da qual se recorre. vii. Quanto à fundamentação da matéria de facto, pode ler-se: “Os factos provados vertidos nos pontos 25, 26, 27 e 28 foram confirmados pelo depoimento da testemunha (…) que prestou o seu depoimento de forma assertiva e credível; o doc. n.º 2 junto com a p.i. comprovou que a autora foi transportada para o Hospital do Espírito Santo, em Évora, onde a autora foi assistida no serviço de urgência entre as 17.20 horas e as 19.47 horas; autora, no seu depoimento, esclareceu que na altura do sinistro o seu cão estava com a trela colocada e só largou a trela quando foi atingida pelo bovino; as testemunhas (…) e (…) referiram que, quando chegaram ao local do sinistro, constataram que o cão da autora ainda tinha a coleira e trela”. “Quanto aos factos provados elencados sob o n.º 8: das declarações da autora resultou que a mesma sabia que o prédio rústico denominado de “(…)” é um terreno de natureza privada, tendo a testemunha (…), que é irmão do ora réu e, por vezes, o auxilia no acompanhamento do gado bovino, confirmado que para aceder à ecopista há um caminho ou acesso público.” “Quanto aos factos não provados elencados sob o n.º 1: a própria autora referiu que era habitual percorrer o identificado “carreiro” em direção à ecopista pelo que a mesma sabia que o réu habitualmente pastoreava o seu gado bovino no prédio rústico onde se situava aquele “carreiro”; por outro lado, como consta da petição inicial, a autora é que se dirigiu para o local onde pastoreava o indicado gado bovino”. “Quanto aos factos não provados elencados sob o n.º 5: tais factos não foram confirmados por qualquer meio de prova; a testemunha (…), agente da PSP de Évora que subscreveu o “auto de interrogatório” cuja cópia foi junta com a p.i., declarou que não tem conhecimento de outros incidentes entre o gado bovino do réu e terceiros”. viii. Resulta assim da matéria provada, que a Autora sabia que se tratava de um terreno privado no qual habitualmente pastoreavam animais bovinos, optando por culposa, deliberada e conscientemente nele introduzir-se, com o seu canídeo de pequenas dimensões, preso com trela, por diversas vezes. ix. Estando também provado que era até habitual percorrer tal caminho, nas mesmas condições, pasme-se. x. Em suma, a Recorrida sabia que se tratava de um terreno de natureza privada; xi. Sabia que os animais bovinos se encontravam naquele local, xii. Sabia que a ecopista, ou seja, caminho alternativo, público e desprovido da presença de animais bovinos, se encontrava a tão somente 60 metros de distância daquele terreno, xiii. Ou seja, tinha ao seu dispor uma alternativa a passear o cão, em terreno público e desprovido de quaisquer animais bovinos e ainda assim, optou a Recorrida por invadir propriedade privada com o seu animal de companhia, xiv. E pior, sabia que sobre si impendia o dever de vigilância, deveres especiais de cuidado e também responsabilidade pelo risco, no que concerne ao seu animal de companhia. xv. Deveres esses total e deliberadamente violados quando, sendo por este responsável, opta por - conscientemente e racionalmente - conduzir o seu animal irracional por um terreno com animais bovinos, com coleira e trela, xvi. Expondo-o a todo e qualquer risco que tal comportamento acarreta. xvii. Em momento algum se refere, na douta sentença, que as vacas percorreram alguma distância para chegar à ora Recorrida. xviii. Tornando-se certo que foi a Recorrida quem se aproximou dos bovinos. xix. Porquanto, atendendo a tal, nunca poderia concluir-se que a culpa da Autora é diminuta na medida que a mesma tinha perfeito conhecimento do risco que corria e potenciava ao atravessar o terreno privado com o cão, xx. E de todas as características dos animais que, habitualmente, pastoreavam em tal terreno. xxi. Em momento algum é referido que a Autora, ora Recorrida, violou os deveres especiais de cuidado e vigilância que sobre esta impendem, por ter um animal de companhia… xxii. Deveres estes que existem e cujo elenco é cada vez mais vasto! xxiii. Certo é que, bem sabendo da existência dos mesmo - acaso não iria passear o cão, optou consciente e deliberadamente por ignorar, todos e quaisquer deveres especiais de cuidado e vigilância que impendem sobre o dono de qualquer animal de companhia e, expondo o seu animal ao risco, acabando por potenciar o mesmo. xxiv. Pelo que, também aqui, nunca poderá aceitar-se que se entenda que a culpa da Autora foi diminuta na produção do dano. xxv. Impondo-se a conclusão de que contribuiu, activamente, para a produção do dano, conformando-se com o risco, aceitando-o e potenciando-o. xxvi. Prevê o artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil que, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. xxvii. Ao caso concreto, sempre terá de olhar o Tribunal ad quem ao preceito legal consagrado no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, o qual estabelece uma culpa presumida sobre aqueles sobre quem recaem deveres de vigilância, em especial, sobre animais de companhia. xxviii. A Recorrida, violou culposa e ilicitamente o direito de propriedade de outrem, um direito real e inviolável, bem sabendo que o fazia e conformando-se com isso, como foi dado como provado. xxix. De igual forma, tanto Recorrida como Recorrente tinham animais, estando assim obrigados aos mesmos deveres, ou seja, também a esta incumbe o dever de vigilância e, consequentemente, responsabilidade pelo risco sobre o seu animal de companhia, havendo, também quanto à Recorrida culpa presumida. xxx. A Recorrida em grave violação dos deveres que lhe estão adstritos, aproximou-se com o seu cão dos animais bovinos, que já lá estavam quando ela lá chegou e bem sabia lá estarem. xxxi. Não demonstrando que os danos se tinham igualmente produzido se não se tivesse, indevidamente e culposamente introduzido em propriedade privada com alternativa pública a 60 m e, se não tivesse propositadamente deixado o cão chegar perto das vacas. xxxii. Em momento algum foi ilidida a presunção de culpa da lesada. xxxiii. Diga-se até que a culpa é agravada porque, jamais, se dá como provado que o canídeo se soltou ou, sequer, fugiu. xxxiv. Estava preso, tinha coleira e trela. xxxv. Mais, o próprio Tribunal dá como provado que a Recorrida teve culpa, ainda que alegadamente diminuta. xxxvi. No entanto, é certo que a Lei fala em “culpa do lesado”, no caso, da lesada. xxxvii. Fala, tão somente, em culpa. xxxviii. Se a culpa é diminuta ou agravada, ou mesmo se se trata de negligência, nem a Lei distingue. xxxix. E a culpa da lesada, ora Recorrida, existiu, deu-se como provada pelo douto Tribunal, para além de ser presumida e nunca, em qualquer instância, foi tal presunção ilidida. xl. Antes sim, confirmada pela própria Autora e Recorrida. xli. Ante o exposto, é manifesto que existe culpa do próprio lesado. Não só por presunção que não foi ilidida como na atuação ilícita que a Autora teve ao entrar em propriedade privada bem sabendo que lá pastoreavam bovinos. xlii. No caso concreto, nunca poderia o Réu ser condenado por responsabilidade pelo risco, responsabilidade essa que é afastada existindo culpa da lesada- culpa essa, reitere-se, dada como provada. xliii. Tão somente porque a sua responsabilidade pelo risco se vê afastada pela culpa da Lesada, ora Recorrida. xliv. Culpa essa, reitere-se, dada como provada pelo Tribunal a quo. xlv. Devendo a mesma ver-se reduzida ou excluída com base na culpa da Autora, a qual, de forma provada, existiu. xlvi. Ainda que tal se conceda, tal condenação nunca poderia ser nos termos em que o foi, xlviii. Não podendo, nem devendo exceder os 50 % do pedido pela Autora. Concluiu “pela alteração da decisão recorrida nos termos explanados, excluindo-se a indemnização devida pelo Recorrente ou, caso assim não se entenda, reduzindo-a e fixando-a em montante não superior a 50% do pedido”. A autora não respondeu. * Assente que pelo teor das concussões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a indemnização peticionada e arbitrada à autora deve ser excluída ou, pelo menos, reduzida, por aplicação do disposto no artigo 570.º do Código Civil. * II. Fundamentação De facto Não tendo sido objeto de impugnação, nem se vendo razão para proceder à sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a atender: 1. No dia 22 de janeiro de 2022, por volta das 16:50 horas, a autora passeava com o seu cão, de pequeno porte, no interior do prédio rústico denominado de “(…)”, com a área total de 54500 m2, sito na União das Freguesias de(…) e (…), concelho de Évora, utilizando, para o efeito, o “carreiro” que consta da 2ª fotografia da página 45 do processo de inquérito n.º 82/22.4PBEVR, cujo teor se considera aqui reproduzido. 2. Tal prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º (…), está inscrito, desde, pelo menos, 30-05-2000, a favor de (…) e (…). 3. O réu (…) é titular do processo (…) no âmbito do NREAP, tendo o título de exploração sido atualizado no dia 28-02-2018, através de um reexame, para um núcleo de 45 CN de bovinos para produção de carne em regime extensivo; foi-lhe atribuída pela DGAV a marca de exploração (…). 4. Fazem parte da exploração licenciada onze parcelas, conforme se pode verificar no anexo II do processo de reexame; nestas 11 parcelas estão inseridas as parcelas n.º (…) com uma área de 5.14, n.º (…) com uma área de 0,25 ha e a parcela n.º (…) com uma área 0,98 ha denominadas Quinta (…); as referidas parcelas n.º (…), n.º (…) e n.º (…), integrantes do prédio rústico denominado “Horta (…)”, são confinantes com vias de comunicação, não dispondo aqui de vedação. 5. O prédio rústico denominado “(…)” não consta do processo de reexame, pelo que não faz parte da exploração licenciada ao réu. 6. No dia e hora referidos no antecedente ponto 1, a autora (…) foi atingida na perna esquerda pela cornada de um bovino, que a projetou para o solo. 7. A cerca de 60 metros do local onde a autora foi atingida passa o traçado de uma ecopista, de utilização pública, situando-se aquela ecopista no exterior do aludido prédio rústico. 8. A autora sabia que o prédio rústico denominado de “(…)” é um terreno de natureza privada, não carecendo, em situação alguma, de o atravessar já que para aceder à ecopista há um caminho ou acesso público. 9. No dia e hora referidos no antecedente ponto 1, estava em pastoreio no interior do prédio rústico denominado de “(…)” uma manada de gado bovino constituída por 43 animais adultos e, pelo menos, cerca de 20 bezerros. 10. Os bovinos adultos pesam, pelo menos, 600 kg.. 11. Diariamente estes animais, acompanhados pelo réu e, na maioria das vezes, ainda por um ajudante, fazem um percurso entre o prédio rústico denominado de “Horta (…)”, onde pernoitam numa zona vedada para o efeito, e o prédio rústico denominado de “(…)”. 12. Tais animais estão familiarizados com os espaços, com veículos automóveis e com seres humanos, não reagindo a estímulos externos com facilidade, limitando-se a comer. 13. O réu, na maioria das vezes auxiliado por um ajudante, acompanha o seu gado bovino nos locais de pastoreio. 14. O local onde os bovinos se encontravam não estava delimitado por vedação pelo que aqueles bovinos encontravam-se livres em pastoreio sem qualquer impedimento à sua circulação entre a via pública e os terrenos adjacentes à ecopista. 15. No seu lado norte, o referido prédio rústico denominado “(…)” confronta parcialmente com o gradeamento da escola básica (…), conforme consta da imagem que é a página 44 do processo de inquérito n.º 82/22.4PBEVR cujo teor se considera aqui reproduzido. 16. A autora acedeu ao referido prédio rústico pelo indicado lado norte, encontrando-se o réu no lado oposto, próximo do local onde a autora foi atingida pelo bovino. 17. Em datas anteriores a 22-01-2022, a autora já tinha utilizado o “carreiro” referido no antecedente ponto 1 para passear com o seu cão. 18. O réu é o dono da referida manada e há vários anos que leva os animais para aquele local para pastoreio. 19. O gado bovino não convive, sem alguma irritabilidade, com canídeos. 20. Devido à investida e perfuração da sua perna pelo corno do animal, a autora ficou caída no chão, enquanto sangrava pela zona perfurada. 21. O animal bovino que atingiu a autora reagiu à presença do cão da mesma autora. 22. A autora não foi socorrida pelo réu. 23. Teve de ser a autora, através de telemóvel, a chamar ao local os seus familiares para lhe prestarem socorro. 24. Em socorro da autora, deslocaram-se ao local (…) e (…), irmã e cunhado da autora. 25. No dia do acidente também se deslocou ao local do incidente a vizinha da autora, (…), após ter visto junto à ecopista o cão da autora solto e sem a sua dona. 26. A (…), ao aproximar-se do canídeo, viu a autora deitada no chão e a sangrar da perna esquerda e perto estavam vários bovinos a pastar. 27. Chocada, a (…) perguntou ao réu se tinha chamado o serviço de socorro do INEM, tendo o réu respondido que não. 28. A (…) chamou o referido serviço de socorro que se deslocou ao local, assistiu a autora e transportou-a para o Hospital do Espírito Santo, em Évora, onde a autora foi assistida no serviço de urgência entre as 17.20 horas e as 19.47 horas. 29. Entretanto, também havia chegado ao local em que a autora foi colhida (…), que, percorrendo então a ecopista, viu a autora a esbracejar e a pedir ajuda. 30. A autora no serviço hospitalar recebeu tratamento qualificado como muito urgente associado a grande traumatismo. 31. Foi diagnosticada com dor severa, tendo recebido a valoração de 8 numa escala entre 0 e 10. 32. No hospital teve de ser suturada com vários pontos, apresentando a cicatriz uma forma notória em “L”, ao longo da coxa esquerda, conforme as quatro fotografias constantes das páginas 27 a 30 do processo de inquérito n.º 82/22.4PBEVR cujo teor se considera aqui reproduzido (as mesmas fotografias, a preto e branco, constituem o doc. n.º 3 junto com a p.i.). 33. Após a alta hospitalar, ocorrida ainda no dia 22-01-2022, pelas 19:47 horas, a autora teve de ser submetida a tratamento médico e fisioterapia, ficando incapacitada para o trabalho por alguns dias. 34. Resultando dessa incapacidade uma diminuição do rendimento da autora pela não prestação de trabalho, em montante não concretamente apurado, mas não superior a € 209,84. 35. Com medicamentos necessários ao seu restabelecimento, a autora gastou um montante não concretamente apurado, mas não superior a € 24,46. 36. Devido à aludida cornada, foram inutilizadas umas calças de desporto pretas que custaram à autora um montante não concretamente apurado, mas não superior a € 40,00 euros. 37. Em 04-04-2022, no âmbito do tratamento a que teve de ser submetida, foi observado o seguinte: “… alteração na expressão morfológica da pele, subcutâneo, assim como no plano aponevrótico superficial e no ventre muscular vasto externo, favorecendo sequelas de lesão perfuro cortante, com pequena quantidade de fluido de provável natureza sero-hemática ocupando o espaço criado pela lesão. Assinala-se que existem sinais indicativos de violação dos planos mio aponevróticos nesta zona, medindo não menos do que 5 cm em seu maior eixo longitudinal”, cfr. doc. n.º 5 junto com a p.i.. 38. Em 8 de julho de 2022, a autora ainda tinha uma hérnia relacionada com a cornada, o que foi atestado pela médica Dra. (…): “…tem na coxa esquerda, local que sofreu traumatismo extenso e foi posteriormente suturado, uma zona de intervalo entre as fibras musculares onde se palpa pequena hérnia. Isso mesmo foi confirmado por Ressonância Magnética, que se anexa”, cfr. doc. n.º 6 junto com a p.i.. 39. Devido à lesão que sofreu e às sequelas estéticas na sua coxa esquerda, a autora sentiu-se angustiada e desgostosa, receando não recuperar totalmente do traumatismo e de ter de permanecer em tratamento durante um tempo indefinido ou mesmo ser submetida a uma cirurgia. 40. A autora também sentiu revolta pela rejeição do autor em assumir todas as responsabilidades pelo incidente que a vitimou, tendo o réu apenas pago as primeiras despesas hospitalares da autora no valor de € 184,77, declinando pagar qualquer outra compensação à autora e as restantes despesas do seu tratamento. 41. Por causa do referido dano corporal, a autora teve de desenvolver esforços suplementares para a realização das tarefas pessoais e domésticas. 42. Em consequência da lesão sofrida, a autora, para além do sofrimento físico, sentiu angústia, tristeza e apreensão por andar com dificuldade e dor física. Factos não provados 1. Para concluir o percurso em direção a sua casa, a autora percorreu um atravessadouro sem que no mesmo, ou em redor, estivesse qualquer bovino. 2. Nem o réu ou outra pessoa estavam a controlar os movimentos do gado bovino. 3. Momentos antes do incidente, o canídeo da autora encontrava-se solto, o que diminuiu drasticamente qualquer forma de controlo que a autora pudesse ter sobre o seu animal. 4. A autora interveio para proteger o seu cão do animal bovino que investiu contra si. 5. Registando-se com frequência incidentes entre animais (gado bovino) e pessoas nesses terrenos próximos da ecopista e mesmo na via pública, situação relatada à autora pelo agente da PSP que a inquiriu na sequência de queixa crime que apresentou. 6. Aos familiares da autora que acorreram ao local o réu disse que "pagava tudo o que houvesse que pagar'' e que assumia a responsabilidade pelo que a vaca tivesse feito à autora; disse-o no dia do incidente e voltou a repeti-lo uns dias mais tarde, quando a testemunha (…) contactou telefonicamente o réu. 7. A autora também se viu impossibilitada de comparecer em duas sessões eleitorais nas mesas de voto para o ato eleitoral agendado para o dia 30 de janeiro de 2022, perdendo por cada uma delas o pagamento do valor de € 51,93. 8. Por causa do referido dano corporal, a autora teve de desenvolver esforços suplementares para a realização das tarefas profissionais. * De Direito Da culpa da autora e da exclusão ou redução da indemnização arbitrada Tendo-se imputado ao Réu a violação do artigo 14.º, n.º 1, al. e), da Portaria n.º 42/2015, de 19 de Fevereiro, aplicável aos NPB (núcleos de produção bovina) de classe 2 em produção extensiva, norma que impõe que as vedações exteriores dos parques de pastoreio dos animais assegurem de forma eficiente a contenção dos mesmos, devendo ser concebidos de forma a evitar traumatismos nos animais ou nas pessoas, violação tida por causal do evento danoso (a não inclusão do dito prédio rústico, denominado (…), na exploração do réu, sendo passível de constituir ilícito de natureza administrativa é contudo irrelevante do posto de vista da causalidade na produção do evento danoso), concluiu-se na sentença recorrida pela verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil enunciados no artigo 483.º do Código Civil[1]. Pese embora se trate de matéria não alegada pela autora, que assentou a sua pretensão na violação, por banda do réu, do seu dever de vigilância, ou, quando assim não fosse entendido, na responsabilidade objetiva consagrada no artigo 502.º do CC[2], a verdade é que o apelante renunciou a discutir o acerto do assim decidido – ainda que esteja em causa responsabilidade por facto ilícito, e não pelo risco, conforme erradamente se lhe refere –, pelo que se tem tal conclusão por assente. Não questionando propriamente o réu o montante indemnizatório arbitrado, sustenta todavia que, atendendo à culpa da lesada, a indemnização deve ser excluída ou, no limite, reduzida em 50% nos termos do artigo 570.º, disposição legal que tem por indevidamente desaplicada. E cremos que lhe assiste razão. Dispõe o convocado artigo 570.º que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” (cfr. n.º 1 do preceito). Na sentença impugnada recusou-se reduzir a indemnização arbitrada face à consideração de que a conduta da autora não assumiu gravidade que justificasse uma qualquer redução. Não secundamos tal entendimento. Com efeito, pese embora a violação pelo réu de norma destinada, alem do mais, a proteger interesses alheios, conduta ilícita nos termos dos artigos 483.º, n.º 1 e 486.º, a qual se considerou causal da lesão sofrida pela autora, subsistem os factos provados desta se ter exposto ao perigo, introduzindo-se em prédio de natureza privada no qual pastava o gado bovino, a fim de utilizar um carreiro ali existente, quando tinha disponíveis acessos públicos para a ecopista livres de animais (cfr. pontos 7, 8, 9 e 17). Acresce que se fazia acompanhar de um canídeo, que tinha o dever de vigiar nos termos do art.º 493.º, e cuja aproximação ao gado bovino que se encontrava na pastagem permitiu, considerando os factos assentes em 12, 19, e 21. Ao atuar da forma descrita a autora concorreu para o evento danoso, atuação que se tem igualmente por culposa, considerando que avistou necessariamente os animais, tendo-se ainda assim introduzido sem autorização no terreno privado em que pastavam, sabedora como era da sua presença, tanto mais que, conforme decorre ainda da matéria factual apurada, ali pastavam diariamente e não era a primeira vez que utilizava o carreiro em causa (cfr. pontos 11 e 17). No entanto, da ponderação da maior perigosidade que os animais pertença do réu oferecem, pelo seu número e grande porte – cfr. os pontos 9 e 10 do elenco dos factos assentes –, considera-se adequado repartir culpas entre autora e réu na proporção de 30% para a primeira e 70% para este, proporção em que deve suportar a indemnização arbitrada. * Sumário: (…) * III. Decisão Em face do exposto, e na parcial procedência do recurso, vai o R. condenado a pagar à A. a quantia de € 5.250,00 (cinco mil e duzentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos de natureza não patrimoniais sofridos e 70% dos valores que se vierem a liquidar nos termos especificados nas alíneas b), c) e d) do dispositivo da sentença, a qual se confirma quanto ao mais. Custas nesta e na primeira instância na proporção de 70% para o apelante e 30% para a apelada (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). * Évora, 10 de Julho de 2025 Maria Domingas Simões Mário João Canelas Brás Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem. [2] A sentença é, assim, nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), seu segmento final, nulidade por excesso de pronúncia que se verifica igualmente no que concerne à condenação do réu no pagamento de juros que não foram pedidos (veja-se, ainda, o AUJ n.º 9/2015, de 24 de Junho). Todavia, não sendo tal nulidade de conhecimento oficioso e não tendo sido arguida pelo apelante, a mesma mostra-se sanada. |