Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
83/23.5T8LGA.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
CESSÃO DE QUOTA
CONSENTIMENTO
DELIBERAÇÃO SOCIAL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: i) A cessão de quotas, enquanto ato voluntário transmissivo da respetiva titularidade, não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios ou que seja dispensada no contrato de sociedade;
ii) O consentimento da sociedade à cessão de quotas, que deve ser pedido por escrito, é dado de forma expressa por deliberação dos sócios;
iii) A recusa do consentimento da sociedade implica que seja apresentada ao sócio uma proposta de amortização ou de aquisição de quota
iv) Considera-se prestado o consentimento tácito, que implica no reconhecimento de cessão, quando o cessionário tenha participado em deliberação dos sócios e nenhum deles a impugnar com esse fundamento.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…), Agência Predial, Lda.
Recorrido / Autor: (…)

Trata-se de uma ação de anulação de deliberações sociais através da qual o Autor, fazendo apelo ao regime inserto no artigo 59.º do CSC, peticionou que sejam declaradas nulas ou, quando assim não se entenda, anuláveis as deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré que reuniu a 14/02/2023.
Para tanto, vem alegado que as deliberações foram aprovadas em AG não regularmente convocada (quer porque, sendo sócio, não foi convocado, quer porque a convocatória não se encontrava assinada por quem tem poderes de gerência), e que foi violado o disposto no artigo 233.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), não sendo admissível a amortização compulsiva da sua quota.
A Ré, sem sede de contestação, alegou que a aquisição da quota pelo Autor nunca foi por si consentida, nunca o Autor tendo sido reconhecido como sócio. Sustentou a regularidade da convocação para a AG, que quando foi instaurada a ação já tinha decorrido o prazo de 30 dias para impugnação das deliberações, deliberações que são válidas à luz do disposto no artigo 231.º/1, do CSC.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, declarando nula a deliberação da amortização da quota do Autor aprovada na AG da R realizada a 14/02/2023.
Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que valide a amortização da quota do A. por falta de consentimento ou, assim não se entendendo, que determine a baixa do processo à 1.ª Instância para ampliação e julgamento da matéria de facto. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I) Erro Manifesto de Facto e de Direito
A. Factos que deveriam ter sido dados como provados
1. Considera a R. que em face da confissão feita pelo A., pelos depoimentos realizados pelas testemunhas, e ainda pela documentação junta, deveria ter sido dado como provado que:
i. Só com a nova gerência da R. (…), nomeada a 14 de Fevereiro de 2023, é que foi aberto um Livro de Atas da Sociedade, não existindo até essa data qualquer livro de atas;
ii. Não foi pedido qualquer consentimento da cessão de quotas à Sociedade R.,
iii. Que entre 2012 e 2021, (…) instaurou, contra a Sociedade, uma primeira ação especial de inquérito judicial à Sociedade
2. Relativamente ao ponto i: (…) nunca teve nenhum Livro de Atas da Sociedade, e quando fez a cessão de quotas a (…), nunca lhe entregou qualquer Livro de Atas, tendo o mesmo feito um, sem qualquer deliberação assinada, e que confessadamente disse na audiência de julgamento: - “Este Livro de Atas fui eu que fiz o termo de abertura” ao minuto 6:26 – da 1.ª gravação das suas declarações; - “Tivemos mais Assembleias Gerais mas eles nunca assinaram nenhuma ata” 6:52 – da 1.ª gravação das suas declarações;
3. No ponto 126. da contestação Ré impugnou-se a denominada acta n.º 1/2018, sic: “126. E assim impugna-se a denominada “acta n.º 1/2018”, junta pelo A. enquanto doc. 6, por ser inexistente, tão pouco extraída de qualquer Livro de Actas pertença à aqui Ré (…).”
4. Erradamente o douto Tribunal considerou que o doc. 6 da PI, só assinado pelo Autor, era um ata.
5. Relativamente ao ponto ii: e para além do que anteriormente se verteu, e conforme também confissão do A., sic: “Não tive conhecimento que houvesse consentimento da sociedade” – minuto 1:06 segs – da 1.ª gravação das suas declarações; “Não faço ideia [se foi dado ou sequer pedido o consentimento] – minuto 1:14 segs – da 1.ª gravação das suas declarações; “Não conhecia os sócios pessoalmente” minuto 5:45 – da 1.ª gravação das suas declarações;
[Meritíssima: Tem nenhuma ata assinada pelo restantes sócios?] minuto 13:30 – da 1.ª gravação das suas declarações;
6. E ainda conforme confissão de (…) ao minuto 13:34, sic: “Isto quando eu enviei a tal convocatória para eles tomarem conhecimento do novo sócio. [E prestarem
7. consentimento?] Não. Tomarem conhecimento.”
8. Relativamente ao ponto iii: Entre 2012 e 2021, (…) instaurou, contra a Sociedade, uma primeira ação especial de inquérito judicial à Sociedade no 3º Juízo Cível, processo n.º 2431/12.4TBPTM, posteriormente transferido para o Tribunal Judicial da Comarca de Faro Olhão - Juízo Comércio - Juiz 2 (onde se encontra em arquivo), conforme requerimento e certidão judicial juntos com a referencia eletrónica Citius 12094132 datado de 23.01.2024, e ainda conforme declarações prestadas aqui, como testemunha da Ré, na audiência de julgamento, pelo ROC (…), nomeado pelo Tribunal para realizar a inspeção judicial mencionada;
B | Factos que foram incorretamente julgados:
10. Facto n.º 3 da Sentença: No dia 13 de Julho de 2018, realizou-se uma assembleia geral da sociedade ré na qual estiveram presentes o aqui autor, na qualidade de sócio titular da quota de € 2.750,00; (…) e (…), em representação do sócio (…); (doc. 6 da PI)” – incorretamente julgado uma vez que esta reunião ocorreu no escritório do A., como o mesmo, confessa – ao minuto 09:48 - 10:06 da 1.ª gravação das suas declarações;
11. Acresce que se tivesse sido uma Assembleia a ata (doc. 6 da PI), estaria assinada por todos os sócios, e não só pelo A.,
12. Ou se houvesse recusa em assinar, o A. sempre teria enviado uma carta aos demais sócios intimando-os a assinar, ou intentado uma ação judicial para que tal fosse suprido.
13. Facto n.º 4 da Sentença: “Em 4 de Setembro de 2019, (…) enviou um e-mail ao aqui autor, solicitando-lhe as contas da sociedade; (doc. 7 da PI)” – erradamente julgado uma vez que o douto Tribunal entendeu que o facto de uma sócia, sozinha, ter requerido documentação justifica-se como um reconhecimento tácito da Sociedade.
14. Facto n.º 5 da Sentença: “Em 23 de Março de 2021, (…) instaurou contra a sociedade e contra o aqui autor ação especial de inquérito judicial à sociedade; (doc. 8 PI)” – incorretamente julgado pois deveria fazer referência que era a segunda inspeção judicial intentada.
C | Da exceção do consentimento tácito
15. Vindo assim, a douta sentença fundamentar, contrariamente à prova feita dos factos, um consentimento tácito que justificou, de forma incorreta, no decurso do tempo, e ainda na forma como alguns sócios se dirigiram ao Autor.
16. Conforme Acórdão S.T.J., Processo n.º 153/04.9TYLSB.L1.S1 de 07 de fevereiro de 2017, sic “I - O CSC distingue a cessão de quotas – enquanto acto voluntário transmissivo da respectiva titularidade – das demais modalidades de transmissão de quotas entre vivos, como se constata, desde logo, pela epígrafe do artigo 228.º e pelo teor dos n.os 2 e 3 deste preceito quanto às diferenças dos respectivos efeitos em relação à sociedade. (…) III - A aquiescência da sociedade só se torna exigível para tornar operante a cessão de quotas em relação a ela própria e pode ser manifestada em qualquer momento posterior, mas, enquanto o não for, a cessão engendrada sem o consentimento da sociedade mantém-se ineficaz em relação a esta.”
17. Ora não pode a Ré aceitar que o douto Tribunal a quo dê por confessados factos por parte da Ré que não o foram em momento algum, e por isso mesmo não é identificado na sentença qual o momento em que a alegada confissão existiu e qual o momento em que a Ré os aceitou.
18. Tão pouco que considere abuso de direito de amortização da quota do Autor, quando a aqui Sociedade esteve “cativa” desde 2015 até à Assembleia de amortização de 14 de Fevereiro de 2023, apesar dos esforços junto dos Tribunais, com uma 1ª ação de inspeção judicial que se frustrou findos 9 anos sem obter quaisquer informações, documentos administrativos ou contabilísticos da Ré Sociedade.
19. Pelo que mal andou o Tribunal a quo, devendo a douta sentença ser substituída por outra que improceda o pedido de invalidade da amortização da quota do Autor, ou o que se concebe sem conceder, que desçam os autos para ampliação da matéria de facto para julgamento da mesma.»
O Recorrido apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que é manifestamente nula a deliberação de amortização compulsiva da quota por contrariar preceitos legais inderrogáveis.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) da validade da deliberação de amortização da quota do A.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. A sociedade (…), Agência Predial, Lda., pessoa coletiva n.º (…), é uma sociedade por quotas, com sede na Travessa (…), Edifício (…), cave, em Lagos, que tem como objeto social a compra venda e administração de propriedades, aluguer de locais comerciais e apartamentos e exploração de unidades hoteleiras (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
2. A 15 de Abril de 2009, o capital social da ré foi fixado no valor de € 5.000,00, dividido em quatro quotas: uma, no valor de € 2.750,00, da titularidade de (…); e as restantes três, no valor de € 750,00 cada uma, uma da titularidade de (…), outra de (…), e a terceira de (…), respetivamente; (Registo Comercial – doc. 1 PI).
3. Desde 19 de Julho de 1988 até 26 de janeiro de 2016, foi gerente da sociedade (…); (Registo Comercial – doc. 1 PI).
4. Pela Ap. (…), de 26/01/2016, foi registada a cessação de funções de (…) como gerente da ré, por renúncia; (Registo Comercial – doc. 1 PI).
5. Por contrato datado de 26 de novembro de 2015, (…), declarou ceder a (…), pelo preço de € 25.000,00, a quota no valor nominal de € 2.750,00, de que era titular na sociedade (…), Agência Predial, Lda. (contrato junto a 24/11/2023).
6. Por Depósito (...), de 26/01/2016, foi registada a transmissão da quota de (…), no valor de € 2.750,00 para … (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
7. Por e-mail de 10 de julho de 2018, a sra. Advogada (…), invocando representar os sócios (…), (…) e (…), solicitou ao aqui autor a consulta dos documentos de prestação de contas para efeitos de participação na Assembleia do dia 13 de julho de 2018, e junta procurações para efeitos de representação na dita assembleia (doc. 5 da PI).
8. No dia 13 de julho de 2018, realizou-se uma assembleia geral da sociedade ré na qual estiveram presentes o aqui autor, na qualidade de sócio titular da quota de € 2.750,00; (…), e (…), em representação do sócio … (doc. 6 da PI).
9. No final da assembleia (…) e (…) recusaram-se a assinar a respetiva ata.
10. Em 4 de Setembro de 2019, (…) enviou um e-mail ao aqui autor, solicitando-lhe as contas da sociedade (doc. 7 da PI).
11. Em 23 de Março de 2021, (…) instaurou contra a sociedade e contra o aqui autor ação especial de inquérito judicial à sociedade (doc. 8 da PI).
12. Por depósito (…), de 20 de janeiro de 2023, foi registada a transmissão da quota de € 750,00 da titularidade de (…) para (…); (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
13. Por email de 21 de dezembro de 2022, (…), através da sua mandatária, solicitou ao autor o envio dos contactos do contabilista da Ré, cópias de inspeções e respetivos relatórios da Autoridade Tributária, acesso a livro de atas e cópias de eventuais procurações e contratos celebrados em nome da sociedade ré (doc. 3 da PI).
14. No dia 20 de janeiro de 2023, (…), na qualidade de sócia da ré, requereu notificação judicial avulsa do aqui autor, na qualidade de sócio maioritário, para que lhe dê acesso a documentação da sociedade e solicitou a realização de uma assembleia geral extraordinária (doc. 4 PI).
15. Com data de 30 de janeiro de 2023, as sócias (…) e (…) remeteram ao autor uma carta registada com o seguinte teor:
“As sócias (…) e (…) vêm por este meio convocar V. Exa. para uma Assembleia Geral Extraordinária da sociedade (…), Agência Predial, Lda. que terá lugar no dia 14 de Fevereiro de 2023, às 21h (hora portuguesa) e 22h (hora francesa) na Rua dos (…), n.º 12-A, R/C, 8600-723 Lagos, ou através de qualquer meio telemático que tenha disponível e desde que comunicado para (...)gmail.com com a seguinte ordem de trabalhos:
1. Abertura de livro de Actas;
2. Amortização Compulsiva de Quota Fundada em Norma Legal;
3. Nomeação de Gerente.”
16. A referida carta foi recebida a 01 de Fevereiro de 2023 (doc. 11 da contestação).
17. A 14 de Fevereiro de 2023, pelas 21 horas, realizou-se uma Assembleia Geral da sociedade Ré em que estiveram presentes os sócios …, … e … (ata doc. 9 da contestação).
18. O Autor não compareceu nessa mesma assembleia nem se fez representar (ata doc. 9 da contestação).
19. Nessa assembleia, por unanimidade dos presentes, foi deliberado o seguinte:
1. A abertura de um livro de atas;
2. A amortização compulsiva da quota de (…) nos termos e para os efeitos do artigo 231.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, em decorrência da falta de autorização da sociedade para a transmissão da quota, com extinção desta, consequente redução do capital social para € 2.250,00 e pagamento de uma contrapartida no valor de € 78.272,43, em quatro prestações trimestrais com o vencimento da primeira três meses após essa assembleia;
3. Nomeação de (…) como gerente da Ré (ata doc. 9 da contestação).
20. Pela Ap. (…), de 16/02/2023, foi registada a deliberação de 14 de fevereiro de 2023 que nomeou (…) como gerente da ré (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
21. Por depósito n.º (…), de 20/02/2023, foi registada a deliberação de 14 de fevereiro de 2023, que decidiu da amortização da quota de € 2.750,00 da titularidade de (…); (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
22. Pela Ap. (…), de 24/03/2023, foram registadas alterações ao contrato social da sociedade ré, consubstanciadas na redução do seu capital social de € 5.000,00 para € 2.250,00, que passou a estar dividido em três quotas, com o valor de € 750,00 cada uma, da titularidade, respetivamente, de (…), (…) e (…); (Registo Comercial – doc. 1 da PI).
23. Por carta registada datada de 14/03/2023, recebida no dia seguinte, (…), na qualidade de gerente da sociedade Ré, comunicou ao Autor que na Assembleia Geral extraordinária realizada no dia 14/02/2023 foi deliberada “a Amortização Compulsiva da Quota nominal que a anterior sócia-gerente lhe tentou ceder” (doc. 2 da petição inicial).
24. E que “de acordo com a documentação que nos enviou, rececionada nesse mesmo dia, podemos aferir que o valor da contrapartida pela Amortização das quotas é de € 78.272,43 o qual será liquidado de acordo com o artigo 6.º, n.º 2, do Pacto Social” (doc. 2 da petição inicial).
25. Mais era comunicado que “Serão ainda pagos os valores em dívida que se apurem idóneos e legalmente enquadráveis que a sociedade tenha a haver e que de acordo com a mesma documentação por vós enviada se estimam provisoriamente em € 27.761,38” (doc. 2 da petição inicial).
26. O artigo 6.º do Pacto Social da Ré prevê que:
1- Para além de outros casos previstos na lei, a sociedade pode amortizar quotas nas seguintes condições:
a) Em caso de falência, insolvência, interdição ou inabilitação de sócio;
b) Quando em resultado de ação de divórcio ou separação de pessoas e bens, a quota seja atribuída ao cônjuge não subscritor;
c) Quando a quota haja sido arrolada, penhorada, arrestada ou, por algum modo sujeita a qualquer providência legal ou judicial.
2 - O valor da amortização será o que resultar para a referida quota da situação líquida da sociedade, apurada no último balanço aprovado, podendo ser paga em quatro prestações trimestrais iguais e sucessivas;
Os sócios podem deliberar que a quota amortizada fique no balanço como tal e, assim, a sua alienação posterior, total ou parcial, a sócios ou a terceiros(doc. 5 da petição inicial).

B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O regime atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto consta enunciado no artigo 640.º do CPC. O seu acionamento despoleta a reapreciação do julgamento realizado em 1.ª Instância com vista a apurar se os factos concretos submetidos à instrução, factos esses objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso, foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa da recorrida. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da recorrida – cfr. artigos 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Se o facto versado na impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto; logo, a impugnação não deve ser conhecida. Na verdade, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente. Assim é imposto pelos princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º, n.º 1 e 137.º do CPC.[1]
A recorrente sustenta que devem ser dados como provados os seguintes factos:
i. Só com a nova gerência da R. (…), nomeada a 14 de fevereiro de 2023, é que foi aberto um Livro de Atas da Sociedade, não existindo até essa data qualquer livro de atas;
ii. Não foi pedido qualquer consentimento da cessão de quotas à Sociedade R;
iii. Entre 2012 e 2021, (…) instaurou, contra a Sociedade, uma primeira ação especial de inquérito judicial à Sociedade.
Vejamos.
A afirmação de que inexistia livro de atas até 14/02/2023 é irrelevante para a questão jurídica objeto do presente recurso, a questão de saber se é válida a deliberação de amortização da quota do Recorrido.
A afirmação de que não foi pedido consentimento da cessão de quotas à R é igualmente irrelevante. Note-se que a decisão proferida em 1.ª Instância alicerçou a argumentação aduzida na circunstância de não ter sido demonstrado que a cedente tivesse pedido e a R tivesse deliberado o consentimento para a cessão de quotas (cfr. fls. 569 vs.). Por conseguinte, ainda que constasse dos factos provados que não foi pedido o consentimento da cessão, tal facto não implicaria na alteração da decisão proferida em 1.ª Instância.
A afirmação de que entre 2012 e 2021, (…) instaurou, contra a sociedade, uma primeira ação especial de inquérito judicial à Sociedade não tem relevância para a apreciação da validade da deliberação da amortização da quota do Recorrido.
Termos em que não cabe apreciar se tais factos, desde que alegados, resultaram provados pelos meios de prova indicados pela Recorrente.
Segue a Recorrente sustentando que o facto n.º 3 da sentença foi incorretamente julgado. Contudo, pronuncia-se sobre o teor do n.º 8, afigurando-se que pretende dele retirar o segmento “realizou-se uma assembleia geral da sociedade ré”. Invoca, para tanto, que a reunião de 13 de julho de 2018 não ocorreu na sede da R, antes no escritório do Recorrido, e que não foi nenhuma assembleia, pois o Recorrido não requereu a assinatura da ata.
Ora, o facto a consignar nos moldes pretendidos pela Recorrente resultaria destituído de sentido (a saber: No dia 13 de julho de 2018, na qual estiveram presentes o aqui autor, na qualidade de sócio titular da quota de € 2.750,00; …, e …, em representação do sócio …).
Acresce que do facto provado não consta o local onde se realizou a AG. Mais acresce que uma reunião de sócios de uma sociedade não deixa de ser uma AG pelo facto de não ser assinada a respetiva ata. Por conseguinte, não está demonstrado qualquer erro de julgamento.
A Recorrente refere-se ao “facto n.º 4 da sentença: Em 4 de Setembro de 2019, (…) enviou um e-mail ao aqui autor, solicitando-lhe as contas da sociedade (doc. 7 da PI).” Dado que não é indicado fundamento de existir erro na formulação dada ao n.º 10 dos factos provados (n.º que corresponde ao item mencionado), nem é indicada a redação que seria adequada (cfr. artigo 640.º/1, alíneas a) a c), do CPC), nenhum reparo há a fazer ao referido ponto dos factos provados.
Passa a Recorrente a referir “facto n.º 5 da sentença: Em 23 de Março de 2021, (…) instaurou contra a sociedade e contra o aqui autor ação especial de inquérito judicial à sociedade (doc. 8 da PI)”. O erro, alega a Recorrente, reside na circunstância de ser devida a referência de que se trata da segunda inspeção judicial intentada.
Uma vez que resulta do doc. 8 junto com a p.i. a instauração de ação judicial nos moldes estabelecidos no n.º 11 dos factos provados, não sendo relevante, em face da questão da (in)validade da deliberação de amortização da quota do Recorrido, que se trate da segunda ação instaurada com a referida finalidade, conclui-se ser de manter o referido item dos factos provados nos seus precisos termos.

ii) Da validade da deliberação de amortização da quota do A
A deliberação julgada nula em 1.ª Instância é aquela que determinou a amortização compulsiva da quota do Recorrido, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 230.º/1, do CSC, em decorrência da falta de autorização da sociedade para a transmissão da quota.
A Recorrente sustenta que sempre ignorou a cessão da quota ao Recorrido, pelo que tudo se passa como se a cessão não tivesse tido lugar; que não pode aceitar que se tomem por confessados factos que não o foram em momento algum, até porque não vem indicado na sentença o momento em que a confissão existiu e em que momento a R os aceitou.
Afigura-se, contudo, que a sentença proferida apreciou de forma acertada a questão atinente à invalidade da deliberação por violar regime imperativo – cfr. artigos 56.º/1, alínea b) e 232.º do CSC. Dela consta, designadamente, o seguinte:
«A decisão desta questão passa pela análise prévia do regime de amortização da quota previsto nos artigos 232.º a 238.º do Código das Sociedades Comerciais.
(…)
A amortização pode, assim, decorrer de uma de três situações:
1. Consentimento expresso do sócio;
2. Decorrente de cláusula contratual do contrato de sociedade que a preveja;
3. De situações previstas na lei.
No caso em apreço o autor não consentiu na amortização da sua quota, pelo que tal situação está afastada.
O contrato de sociedade da ré prevê que a sociedade pode amortizar quotas, além dos casos previstos na lei, nas seguintes nas seguintes situações: Em caso de falência, insolvência, interdição ou inabilitação de sócio; Quando em resultado de ação de divórcio ou separação de pessoas e bens, a quota seja atribuída ao cônjuge não subscritor; Quando a quota haja sido arrolada, penhorada, arrestada ou, por algum modo sujeita a qualquer providência legal ou judicial.
A lei prevê a amortização de quotas nas seguintes situações:
1. Em caso de falecimento do sócio, por força de disposições contratuais, a quota não for transmitida para os sucessores do sócio falecido – artigo 225.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais;
2. Em caso de cessão de quotas, se a sociedade recusar o consentimento – artigo 231.º do Código das Sociedades Comerciais;
3. Em caso de exoneração de sócio – artigo 240.º, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais;
4. Em caso de exclusão judicial de sócio – artigo 242.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais.
Neste caso concreto não está em causa qualquer das situações previstas no contrato social da ré, nem as referidas nos pontos 1, 3 e 4, suprarreferidos. A ré deliberou amortizar a quota do autor com fundamento na falta de autorização da sociedade para a cessão dessa quota.
Não se provou que a cedente, (…), tivesse pedido e a sociedade tivesse deliberado o consentimento para a cessão de quotas.
Mas, conforme já ficou suprarreferido, o comportamento dos demais sócios da ré após a cessão de quotas de (…) para o aqui autor permite a presunção do consentimento tácito da ré nessa cessão.
Tendo-se considerado existir consentimento da sociedade na cessão, não assiste à sociedade o direito a amortizar a quota com esse fundamento.
Além disso, tendo a cessão ocorrido em 2016, facto que é do conhecimento de todos os sócios da ré desde essa altura, ou pelo menos desde a participação na Assembleia de 13 de Julho de 2018, só em Fevereiro de 2023 tomam a iniciativa de amortizar a quota transmitida há mais de 8 anos, contraria todo o regime legal que prevê prazos relativamente curtos para o exercício desses direitos de modo a evitar protelar as situações de incerteza no seio da sociedade.
Entende-se, pois, que inexistindo fundamento para a amortização, a deliberação da amortização sem fundamento legal ou contratual e sem o consentimento do sócio titular da quota, torna tal deliberação nula por violação do regime imperativo do artigo 232.º do Código das Sociedades Comerciais, conforme artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do mesmo Código.»
Na verdade, os factos revelam que o Recorrido sempre foi considerado, quer pela Recorrente quer pelos demais sócios, como sócio da Ré. Registada que foi a transmissão da quota em favor do Recorrido, o que teve lugar no ano de 2016, este foi interpelado para disponibilizar documentos de prestação de contas da sociedade, cópias de inspeções, relatórios da Autoridade Tributária e outros documentos relativos à atividade da sociedade, convocou a realização de AG na qual os demais sócios compareceram, foi demandado, juntamente com a sociedade, em processo especial de inquérito judicial e foi convocado para AG da sociedade Ré.
Participou, ainda, em deliberação dos sócios[2] (na qual, como se alcança do doc. 6 junto com a p.i., foi deliberado aprovar, por unanimidade, para além do mais ali versado, a fixação da sede social efetiva da sociedade; foi deliberado, por maioria, recusar a proposta de alteração dos estatutos da sociedade e aprovar a proposta de nomeação de gerente) sem que tenha dela havido impugnação com o fundamento de inexistir consentimento da sociedade na cessão de quota em favor do Recorrido.
Nos termos do disposto no artigo 228.º/2, do CSC, a cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios.
Consentimento que, no entanto, não é imperativo, podendo ser dispensado no contrato de sociedade – art. 229.º/2, do CSC.
Já o n.º 3 estatui que a transmissão de quota entre vivos torna-se eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por escrito ou por ela reconhecida, expressa ou tacitamente.
O artigo 230.º do CSC, por sua vez, regula o pedido e a prestação do consentimento da sociedade. O consentimento da sociedade à cessão de quotas deve ser pedido por escrito, conforme estabelece o n.º 1, e, de forma expressa, é dado por deliberação dos sócios – n.º 2.
A recusa do consentimento da sociedade implica seja apresentada ao sócio uma proposta de amortização ou de aquisição de quota, conforme decorre do n.º 1 do artigo 231.º do CSC.
Neste quadro normativo, a amortização de quotas constitui instrumento destinado a evitar a entrada, não consentida pela sociedade, de pessoas estranhas a esta, ou genericamente ou por não possuírem certas qualificações: assim ocorre quer nas transmissões não forçadas – cessão de quota, casos de alienação ou doação de quota, entre outros; quer nas transmissões forçadas – arresto, penhora, venda judicial, etc..[3]
Para além do consentimento expresso e da recusa do consentimento, o n.º 6 do artigo 230.º do CSC prevê o consentimento tácito com vista ao reconhecimento de cessão, nos seguintes termos:
6 - Considera-se prestado o consentimento da sociedade quando o cessionário tenha participado em deliberação dos sócios e nenhum deles a impugnar com esse fundamento, provando-se o consentimento tácito, para efeitos de registo da cessão, pela ata da deliberação.
No caso em apreço, por se tratar de cessão de quotas não livre[4], cessão de quotas enquanto ato voluntário transmissivo da respetiva titularidade (e não já de uma transmissão forçada de quota entre vivos)[5], é exigível o consentimento da sociedade à cessão, dado não estar dispensada pelo contrato da sociedade (cfr. artigo 229.º/1 e 2, do CSC).
Não consta que o consentimento tenha sido pedido.
Na assembleia que reuniu a 14/02/2023, a sociedade, por unanimidade dos presentes, decidiu amortizar compulsivamente a quota cedida com fundamento na falta de autorização da sociedade para a transmissão da quota.
Porém, desde logo na assembleia que reuniu a 13/07/2018, resultou tacitamente consentida a cessão, passando a considerar-se reconhecida a cessão que, até então, não tinha sido consentida.
Considerando-se prestado o consentimento da sociedade a 13/07/2018, deliberação tomada a 14/02/2023 no sentido da amortização compulsiva da quota cedida com fundamento na falta de consentimento para a transmissão viola o mencionado regime legal inderrogável, pelo que se reveste de nulidade – artigo 56.º/1, alínea d), do CSC.

Termos em que improcedem as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 10 de julho de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário Branco Coelho
Mário João Canelas Brás


__________________________________________________
[1] Ac. TRC de 12/06/2012 (Beça Pereira).
[2] A falta de assinatura da ata, conforme resulta dos n.ºs 8 e 9 dos factos provados, não contende com a validade e eficácia da mesma, pois tal documento não constitui formalidade ad substantiam – cfr. Ac. TRP de 19/05/2014 (Soares de Oliveira).
[3] Cfr. Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª edição, pág. 688.
[4] Cfr. Ac. STJ de 22/06/2021 (Ricardo Costa).
[5] Cfr. Ac. STJ de 07/02/2017 (Alexandre Reis).