Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | FILIPA VALENTIM | ||
| Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS | ||
| Data do Acordão: | 12/03/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I - No domínio dos crimes sexuais em que são ofendidas crianças, o recurso a declarações para memória futura procura, por um lado, evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva, pela criança declarante, da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público, e, por outro lado, fixar os elementos probatórios relevantes a partir do primeiro relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova. II - Compete em exclusivo ao Ministério Público, porque titular do processo de inquérito, gerir as provas que nele quer ver produzidas e o momento em que o devem ser. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – RELATÓRIO O Ministério Público junto do Juízo de Instrução Criminal de Portimão (Juiz 2) requereu, no âmbito do Inquérito com o NUIPC 173/24.7JAPTM, a tomada de declarações para memória futura à menor A, nos seguintes termos: “Apresente os presentes autos à Mm.ª Juiz de Instrução, a quem se requer que sejam tomadas declarações para memória futura à(s) vítima(s) infra identificada(s), nos termos do disposto nos artigos 67.º-A, n.º 1, als. a) i., b), d), n.º 3, com referência ao disposto no artigo 1.º, j) do Código de Processo Penal e artigos 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, bem assim como artigo 35.º da Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, artigos 6.º, 20.º, n.º 3, 22.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 26.º e 29.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho e artigos 271.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 268.º, n.º 1, al. f), ambos do Código de Processo Penal, com vista ao esclarecimento e concretização da factualidade relatada nos autos: Pandora Guerreiro Vieira, nascida em 11/01/2013, com 11 anos de idade, melhor identificado nos autos, Considerando a factualidade constante dos autos, a mesma é susceptível de integrar, em abstracto, a prática do crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 e 177.º, n.ºs 1 al. a) e b), 7 do Código Penal. A é uma vítima especialmente vulnerável, nos termos e no artigo 67.º-A, n.º 1, als. a) i), b) e d) e n.º 3, do Código de Processo Penal, com referência ao disposto no artigo 1.º, j) do mesmo Código, conferindo o legislador, medidas especiais de proteção e de preservação da vítima, designadamente no que tende à recolha das suas declarações para memória futura, a fim de, caso se afigure necessário, poderem vir a serem tomadas em conta no julgamento. Antecipando-se possível desfecho de acusação para julgamento e de modo à criança não ter de depor em audiência face à sua especial vulnerabilidade em razão da idade e da relação de parentesco e de proximidade com os intervenientes adultos, reputamos necessária a tomada de declarações para memória futura. Importa proteger a vítima das consequências nefastas e colaterais que a prestação de tal depoimento poderá acarretar para a mesma, dadas as suas relações com os outros intervenientes no processo. Há, assim, interesse em que tal depoimento seja prestado de modo reservado e prévio a qualquer acusação, o que poderá ser feito através da tomada de declarações para memória futura. Mais acresce que, uma vez que os presentes autos se referem a um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, é obrigatória a recolha, no decurso do inquérito, de declarações para memória futura ao mesmo, sob pena de nulidade (cfr. art. 271.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal de Relação de Évora, no âmbito do processo 168/15.1JAFAR.E1, datado de 24 de outubro de 2017, disponível in www.dgsi.pt). Cumpre aferir os factos vertidos nos autos, os quais, tratando-se da prática de, eventuais, actos de natureza e cariz sexual cuja vítima se trata de menor de idade, somos de considerar que tais factos são susceptíveis de causar marcas e traumas profundos, pelo que, importa, quanto mais cedo possível, ouvir a menor em declarações para memória futura procurando evitar dessa forma que ocorra um prolongamento desnecessário no tempo que agrave e cause um maior desgaste e um aumento do sofrimento emocional associado, que geralmente ocorre associado a este tipo de ilícitos. Mais é uma forma de evitar a exposição da vítima à publicidade, solenidade e formalismo da audiência de julgamento, tendo em vista a sua protecção, atenta a sua vulnerabilidade em razão da idade e da natureza dos actos sob investigação, perturbadores da sua intimidade e integridade sexual. Nestes termos, o Ministério Público promove que: Se designe data para tomada de declarações para memória futura a Pandora Vieira, nos termos dos artigos 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 6 de Setembro e 28º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho; Seja determinada a presença de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento da testemunha e proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado – art. 271º, nº 4 do CPP e art. 27º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (Protecção de Testemunhas), facultando-se os necessários contactos com a antecedência necessária a esse acompanhamento. Seja nomeado defensor ao denunciado e notificado para estar presente na diligência de tomada de declarações para memória futura, para cabal exercício do contraditório, nos termos do disposto no art. 64.º, n.º 1, al. f) do CPP, uma vez que inexiste arguido constituído”. * Por despacho datado de 30 de Outubro de 2024, o Sr. Juiz de Instrução Criminal decidiu indeferir o requerimento do Ministério Público, nos seguintes termos:“Veio a Digna Magistrada do M.P. requerer a tomada de declarações para memória futura à menor A. Entende estar em causa um crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º., ambos do C.P.. Salvaguardando todo o respeito por entendimento contrário, nomeadamente pelo detentor da acção penal, que se afigura ter tal entendimento, não vislumbramos que nos autos tenha sido denunciada matéria subsumível ao tipo criminal indicado. Dos parcos elementos existentes o que se mostra denunciado é que o suspeito B, pai da menor, a terá obrigado a dormir com ele, no âmbito da sua relação paternal, o que gerou na menor a vontade de apenas estar com o suspeito fora do domicílio. Independentemente das considerações éticas, sociais ou parentais que possam ser feitas quanto ao facto denunciado, uma análise fria e objetiva chega a uma conclusão basilar - tal matéria não constitui crime. Note-se que em momento algum é denunciado que o suspeito tentou manter ou manteve algum comportamento de teor sexual com a menor. Ao invés, o que evola dos autos é que a menor não quer, literalmente, dormir com o seu progenitor. Mas inclusive refere que pretende ter contactos com o mesmo, apenas não quer ir à casa deste porque a obriga a dormir (literalmente) com ela. Não vislumbramos que aqui exista matéria criminal indiciada, pelo menos nesta fase. E se não existe matéria criminal indiciada, não é aplicável o disposto no art. 271.º, n.º 2 do C.P.P., pois que para que seja ponderada a tomada de declarações para memória futura é necessário que exista matéria criminal em investigação. Não é ao J.I.C. que compete investigar ou efectuar diligências exploratórias. Em termos práticos, a realização da diligência de tomada de declarações para memória futuras nos presentes autos teria tal condão - a de averiguar se existe ou não matéria criminal a investigar. E tal viola bruscamente o espírito de protecção da norma e estigmatizaria desnecessariamente a menor. Existem notoriamente outros meios, menos sensíveis, menos estigmatizantes, de que o detentor da acção penal pode lançar mão para apurar a existência de matéria criminal que justifique a prossecução dos autos. Posteriormente, caso se apure existir matéria subsumível a tipo criminal, aí então estarão reunidos os requisitos para que a diligência seja realizada. Nesta esteira, decido indeferir a realização de memórias futuras à menor A. Notifique. * Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o Ministério Público, pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que determine a realização da requerida diligência.Extraiu da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: (transcrição) 1. O objecto do presente recurso é o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo, a 30/10/2024 [ref.ª 134082183], o qual decidiu indeferir a tomada de declarações para memória futura à vítima menor, A, as quais o Ministério Público, a 25/10/2024, promoveu. 2. A diligência de tomada de declarações para memória futura de A, nascida em (…..), com 11 anos de idade, tinha em vista o esclarecimento e concretização da factualidade relatada nos autos, visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos se denuncia a alegada prática, pelo seu progenitor, de factos integrantes de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º n.ºs 1 e 2 e 177º, ambos do CP. 3. O art. 271.º, n.º 2 do CPP, sob a epígrafe, "declarações para Memória Futura" dispõe nos seguintes termos: “No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior”. 4. No despacho judicial que recaiu sobre a promoção de tomada de declarações para memória futura decidiu-se, em 30/10/2024 [ref.ª 134082183], nos seguintes termos: “Não vislumbramos que aqui exista matéria criminal indiciada, pelo menos nesta fase. E se não existe matéria criminal indiciada, não é aplicável o disposto no art. 271.º, n.º 2 do C.P.P., pois que para que seja ponderada a tomada de declarações para memória futura é necessário que exista matéria criminal em investigação”. 5. Continua referindo: “Não é ao J.I.C. que compete investigar ou efectuar diligências exploratórias. Em termos práticos, a realização da diligência de tomada de declarações para memória futuras nos presentes autos teria tal condão - a de averiguar se existe ou não matéria criminal a investigar. E tal viola bruscamente o espírito de protecção da norma e estigmatizaria desnecessariamente a menor. Existem notoriamente outros meios, menos sensíveis, menos estigmatizantes, de que o detentor da acção penal pode lançar mão para apurar a existência de matéria criminal que justifique a prossecução dos autos. Posteriormente, caso se apure existir matéria subsumível a tipo criminal, aí então estarão reunidos os requisitos para que a diligência seja realizada. Nesta esteira, decido indeferir a realização de memórias futuras à menor A”. 6. O dissídio verificado entre o Ministério Público, ora Recorrente e o Mm.º Juiz de Instrução resulta, essencialmente, de uma avaliação negativa levada a cabo pelo segundo relativamente à (in)existência de matéria subsumível ao tipo criminal indicado, acrescentando, contudo, “que existem notoriamente outros meios, menos sensíveis, menos estigmatizantes, de que o detentor da acção penal pode lançar mão para apurar a existência de matéria criminal que justifique a prossecução dos autos”. 7. Assim, a douta decisão recorrida ao indeferir a realização das promovidas declarações para memória futura, ressalvando o devido e merecido respeito, fê-lo de forma com a qual não nos conformamos. 8. O auto de notícia/participação criminal/queixa/denúncia, não é um meio de prova hoc sensu, mas um início de prova/investigação. 9. In casu, resulta que a menor, A, desde há algum tempo a esta parte, não se sente à vontade para passar os fins de semana na companhia do pai, porque aquele a obriga a dormir com ele, o que a faz ficar “presa, constrangida, zonza e muito desconfortável”. 10. Mais, desde o dia 19/07/2024, a menor recusa-se a ir passar os fins de semana com o pai, tendo chegado a dizer-lhe que não quer ir porque “o pai não a respeita, uma vez que não quer dormir com ele e aquele a obriga a fazê-lo”. 11. Ressalvando, desde já, douta opinião divergente, tais factos são susceptíveis de, em abstracto, configurar a (eventual) prática de um crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, ambos do CP. 12. Na verdade, sem “considerações éticas, sociais ou parentais que possam ser feitas ao facto denunciado, numa análise fria e objectiva” (sic), face ao princípio da investigação, que perpassa o nosso ordenamento jurídico, cumpre aferir o que, efectivamente, se passou (ou não). 13. Não se pretende que o Mm.º Juiz de Instrução diligencie pela investigação dos factos ou realização de diligências exploratórias (as quais já foram realizadas com a apresentação de queixa por parte da progenitora e não de um qualquer terceiro ou denúncia anónima). 14. Com as declarações para memória futura pretende-se recolher elementos probatórios, junto da vítima sobre os contornos dos factos denunciados e que tenham relevância criminal, designadamente, as concretas condutas perpetradas pelo progenitor, a motivação, as consequências (físicas, emocionais, etc.) dessa actuação, eventuais testemunhas desses factos e outros elementos que, na sequência daquelas declarações, se considere oportuno inquirir, evitando a revitimização da ofendida. 15. Estes riscos de vitimização secundária e de distorção probatória adquirem maior acuidade no caso das vítimas menores de crimes sexuais. 16. Pelo que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, a decisão recorrida abre a porta para que a ofendida preste declarações prévias, perante Magistrado do Ministério Público, antes de prestar declarações para memória futura (posto que não se vislumbra que outra diligência investigatória pudesse ser levada a cabo, com um cariz menos invasivo), levando a que se revitimize a vítima. 17. Consequentemente, tratando-se de menor vítima de (alegado) crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, não há sequer lugar à necessidade de justificação sumária da necessidade de antecipação da prova. 18. Neste caso, atendendo às características dos crimes em questão, à posição do declarante e às suas características pessoais, “a lei processual penal presume iuris et de iure a necessidade de antecipação da prova, tornando-a obrigatória”. 19. Não obstante a necessidade de intervenção judicial na diligência contraditória de produção antecipada de prova em apreço, a direcção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério Público, pelo que sugerir ao Ministério Público como fez o Meritíssimo Juiz a quo, que faça, antes de mais, outras e mais diligências probatórias, é desconsiderar que, nos termos do disposto nos arts. 53.º n.º 2 al. b) e 263.º n.º 1 do CPP, cabe ao Ministério Público a direcção da acção penal, sendo este quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito. 20. É o Ministério Público que decide as concretas diligências que visam investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262.º, n.º 1). 21. Em matéria de declarações para memória futura, a realizar na fase de inquérito por referência a crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução deve limitar-se a aferir o preenchimento dos requisitos previstos no art. 271.º, do CPP, sem incorrer em quaisquer juízos de oportunidade e não pode colocar-se na contingência de deferir apenas as inquirições antecipadas que ele próprio entenda que devem ser levadas a cabo, como se estivesse numa fase processual por si dirigida, nomeadamente a apreciar um requerimento de abertura de instrução . 22. Não será a prestação de declarações para memória futura que protegerá a vítima, mas será essencial para, num caso como o vertente, descrever com a minúcia exigida a factualidade denunciada, para evitar que a mesma seja revitimizada e, assim, se possa lograr, a final, uma efectiva responsabilização penal do denunciado, assim se verifiquem, pois, indícios da prática do crime que, de acordo com as regras do direito probatório, permitam sustentar uma condenação. 23. Salvo melhor opinião, não cabe nos poderes do Juiz de Instrução, por a lei não lho permitir, indeferir a diligência requerida alegando inexistir (por ora) matéria criminal e existirem, “notoriamente, outros meios, menos sensíveis, menos estigmatizantes, de que o detentor da acção penal pode lançar mão para apurar a existência de matéria criminal que justifique a prossecução dos autos”. 24. Na verdade, não o sabe o Juiz de Instrução e não o sabe o Ministério Público, em que se traduz o acto de “dormir” (a que se refere a denunciante) e que causa à menor uma tal aversão que se sente "presa, constrangida, zonza e muito desconfortável”, levando-a a alegar que “o pai não a respeita, uma vez que não quer dormir com ele e aquele a obriga a fazê-lo”. 25. Estamos em crer que a conduta do progenitor não se traduzirá, tão-só, em dormir (literalmente) com a menor; mas se assim for, a mesma (e apenas a mesma) poderá comunicá-lo ao Tribunal, uma única vez, sem necessidade de voltar a ser chamada, novamente, a depor. 26. Só a vítima menor, o poderá esclarecer, no âmbito da diligência cuja realização foi indeferida. 27. Apenas através da sua inquirição saberemos se existem ou não indícios suficientes da prática do crime abstractamente imputado, de outro crime ou, como defende o Mm.º Juiz de Instrução, de nenhum crime. 28. Em termos de estratégia de investigação criminal e gestão processual, cremos, a tomada de declarações para memória futura da menor, como meio antecipado de prova, é a opção a seguir. 29. Inexistem vantagens para protecção da vítima e recolha da prova em não ouvir imediatamente, para memória futura, uma vítima menor de crime sexual e há uma desvantagem em decidir-se como se decidiu, designadamente, potenciar a revitimização da ofendida. 30. Assim, conclui-se pela inexistência de motivo para o Mm.º Juiz a quo indeferir a tomada de declarações para memória futura da vítima. 31. Razão pela qual o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 67.º-A, n.º 1, als. a) i. e iii., b), d), n.º 3, com referência ao disposto no artigo 1.º, j) do Código de Processo Penal e artigos 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, bem assim como artigo 35.º da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, artigos 6.º, 20.º, n.º 3, 22.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 26.º e 29.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho e artigos 53.º, n.º 2, al. b), 263.º, nº 1, 271.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 268.º, n.º 1, al. f), ambos do Código de Processo Penal, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que determine a realização da referida diligência. * O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer no sentido da procedência do recurso, concluindo que “(…) tudo ponderado, e partindo do princípio de que se impõe a prestação de declarações para memória futura com plena salvaguarda de direitos e sem inibições com reflexos negativos para a descoberta da verdade em conformidade com o postulado legal atinente, nos termos que claramente fluem da argumentação do Ministério Público, a solução da vexata quaestio reclama tratamento urgente conciliando as regras legais com as do bom senso, nos termos que vêm de ser preconizados”. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir. II – QUESTÕES A DECIDIR. Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»). Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir é a de saber se ocorrem ou não razões para indeferir a realização da diligência de declarações para memória futura. III – ELEMENTOS RESULTANTES DOS AUTOS. Com relevo para a decisão a proferir, apura-se dos elementos certificados nos presentes autos, o seguinte: - Em 02.08.2024 a Polícia Judiciária (Departamento de Investigação Criminal de Portimão) comunicou ao Ministério Público (Comarca de Faro) a abertura de inquérito, referente à menor A, nascida em (…..), por eventual crime de abuso sexual de menor. - Junto à comunicação encontra-se um auto de denúncia apresentada pela mãe da menor, C, no qual esta refere que, • Está separada do pai da menor desde 2015, tendo sido realizado um acordo parental onde ficou a constar que a menor ficava com a mãe durante a semana e aos fins de semana ficaria na companhia do pai; • O pai reside num apartamento com os pais e tem um quarto onde existe um pequeno anexo, separado por uma cortina, onde se encontra a cama da filha; • Desde há algum tempo que a menor refere não se sentir à vontade para passar os fins de semana em casa do pai, e, depois, de questionada acabou por verbalizar à avó materna que não se sentia bem em passar os fins de semana em casa do pai porque aquele a obrigava a dormir com ele, o que a fazia ficar “presa”, constrangida, zonza e muito desconfortável; • Ficou bastante preocupada, até porque a sua filha sempre foi boa aluna e, no mês de Maio, foi surpreendida pela chamada à escola da directora de turma da menor, que lhe disse que esta havia baixado bastante as notas e que desconfiava que se pudesse estar a passar algo de errado com a mesma; • Na altura falou com a filha que apenas lhe disse que estava triste porque o pai tinha dito que punha a mãe em tribunal, o que a deixou melindrada, tendo-a acalmado; • Porém, desde 19-07-2024 que a menor se recusa a ir passar os fins de semana com o pai, tendo chegado a dizer-lhe, ao telefone, que não quer ir porque o pai não a respeita, uma vez que não quer dormir com ele e aquele obriga a fazê-lo; • Antes de se dirigir à PJ falou com a filha, questionou-a se estava preparada para falar com pessoas que não conhece, ao que esta respondeu que fala com quem tiver que ser de modo a que não a obriguem a regressar a casa do pai (disponibiliza-se inclusive a ver o pai na rua, mas refere que não deseja dormir com aquele nunca mais). IV – FUNDAMENTAÇÃO. O crime em investigação no NUIPC 173/24.7JAPTM é o de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo artigo 171º n.º 1 e 177º, n.ºs 1 al. a) e b), 7 do Código Penal. Dispõe o art.º 271º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe declarações para memória futura, que: “1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º 7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações. 8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”. No domínio dos crimes sexuais, “o recurso a declarações para memória futura procura: i) evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público e, ii) fixar os elementos probatórios relevantes a partir do primeiro relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova” (cfr. Cruz Bucho, em “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, Guimarães, 2012, pp. 36-40, disponível em www.trg.pt). O direito de audição antecipada, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a vitimização secundária e repetida e ainda quaisquer formas de intimidação e de retaliação e também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova. O artº 271º constitui uma excepção à norma geral da imediação e da oralidade que rege em sede de audiência de julgamento. Porém, consagrou, ainda, o legislador um regime especial relativamente ao artº 271º) que decorre do denominado Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015, de 04-09) que, no seu artº 24º, nº1 fixa um regime com pressupostos de aplicação menos restritivos do que os exigidos pelo artº 271º, pretendendo-se uma protecção acrescida da vitima na diligência com a finalidade de garantir uma maior espontaneidade e sinceridade nas suas respostas. Prescreve-se na citada norma (artº 24º, nº1) que, “O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”. Por outro lado, o nº 6 deste normativo estatui que: “Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”. Como se refere no Acórdão desta Relação de 23-04-2024 (Proc. 1296/23.5GBABF-A.E1), “(…) para a aplicação deste regime legal, basta que se esteja na presença de vítima especialmente vulnerável para que, em regra, se proceda à tomada das suas declarações para memória futura, pois estas só não devem ser colhidas antecipadamente se se concluir que, desse modo, se coloca em causa a saúde física ou psíquica da pessoa a depor e que o depoimento a prestar em julgamento se mostra indispensável à descoberta da verdade. Sendo seguro que este regime não é de aplicação automática, no sentido de o juiz não estar vinculado ao requerido pelo MP ou pela própria vítima, é contudo evidente, pela mera leitura das normas, que tratando-se de uma situação de uma vítima especialmente vulnerável, o juiz apenas pode recusar a prestação antecipada do seu depoimento se verificar uma das duas situações alinhadas pelo nº6 do Artº 24 da citada Lei: estar em risco a saúde física ou psíquica de declarante, ou a verdade material exigir, como indispensável, que o seu depoimento seja prestado em audiência de julgamento (Cfr, neste sentido, Ac. da Relação de Évora de 23/06/2020, Proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, da Relação do Porto, de 24/09/2020, Proc. 2225/20.3JAPRT-A.P1 e da Relação de Lisboa, de 10/09/20)”. Por seu turno, o artigo 67º-A, nº 1, als. a), i) iii), e b), do CPP considera “vítima” a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, a criança ou o jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação no âmbito da prática de um crime, e “vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade. A prestação de declarações para memória futura de vítima especialmente vulnerável constitui um direito da própria vítima (o direito à sua não revitimização) e, tratando-se de crianças, um direito expressamente consagrado na lei, como resulta do artº 22 do mesmo Estatuto, sob a epígrafe “Direitos das crianças vítimas”. O enquadramento da presente situação deve, assim, realizar-se no âmbito do regime fixado pela Lei 135/95, de 04-09, complementado pela Lei de Protecção de Testemunhas, aprovada pela Lei nº 93/99, de 14 de Julho. Em face do preceituado nas normas supra transcritas, nenhuma dúvida pode ter-se sobre a ocorrência de sustentação legal para realização da diligência de declarações para memória futura da menor Pandora Vieira, sendo certo que nos autos a mesma figura como vítima, por existirem suspeitas/indícios, que importa melhor aprofundar, de poder ser vitima de abuso sexual por parte do seu pai. Entrando claramente em campo reservado à direção do inquérito, ponderou o JIC que “que não existe matéria criminal indiciada”, concluindo não ser aplicável o artº 271º nº2 do CPP. O processo penal português tem uma estrutura essencialmente acusatória (em contraponto a uma estrutura de natureza inquisitória), desde logo por força do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que impõe uma separação dos poderes processuais de investigação e de julgamento, cabendo ao Ministério Público investigar e acusar, no exercício da ação penal (art.º 48º do Código de Processo Penal), e ao juiz julgar os factos que lhe são apresentados pelo Ministério Público (art.º 283º, do CPP) ou pelo assistente (art.º 285º, do CPP). Essa estrutura acusatória do processo penal permite ganhos em matéria de autonomia e imparcialidade, estando também intimamente relacionada com a autonomia do Ministério Público, também ela consagrada na Constituição (artigo 219º da CRP). Uma vez que o exercício da acção penal, em todas as vertentes em que se decompõe a direção e realização do inquérito (cfr. artigos 53º, 262º, 263º e 267º, todos do Código de Processo Penal), cabe em exclusividade ao Ministério Público, é sua a prorrogativa da definição do objeto do inquérito, da escolha das diligências de prova a realizar e do momento da sua realização. Nesse domínio, em que o Ministério Público se moverá sempre orientado por critérios de legalidade, não pode o Juiz (seja o Juiz de Instrução Criminal, seja qualquer outro juiz, mesmo de tribunal superior) interferir no exercício dessas competências. No domínio dos actos de inquérito, apenas se ressalvam os atos previstos nos artigos 268º e 269º do CPP, atos a praticar, ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução. Porque se impõe respeitar a estrutura acusatória do processo penal, os poderes do juiz sobre a matéria referente às diligências de produção de prova a produzir em sede de inquérito - quer quanto à natureza das mesmas, quer quanto à sua extensão, quer quanto à ordem de produção e à oportunidade temporal de realização - ficam fortemente limitados. Não compete ao juiz de instrução impor ao Ministério Público que proceda ou não proceda à realização desta ou daquela diligência investigatória, sendo o Ministério Público autónomo e livre para, com observância das exigências decorrentes do princípio da legalidade e da obrigatoriedade da prática de certos atos de inquérito, realizar as diligências investigatórias que entender necessárias em vista de proferir despacho de encerramento do inquérito, seja de arquivamento ou de acusação, e bem assim a expor os factos que entender suficientemente indiciados no libelo acusatório, qualificando-os juridicamente com autonomia. Estas considerações valem quanto ao momento em que cada uma das diligências de prova deve, em sede de inquérito, ser realizada, designadamente no que se reporta à tomada de declarações para memória futura. Impõe-se constatar que a menor não foi ainda ouvida em sede de inquérito, sendo que a sua audição se reveste de importância fundamental para o desenvolvimento do processo. A requerida e indeferida diligência configura, exactamente, a produção de prova com vista a corroborar, ou não, os factos participados, assim se atribuindo, ou não, credibilidade aos mesmos. Até porque, como refere o Ministério Público na sua motivação “indeferir a tomada de declarações para memória futura é, também, abrir a porta para que a ofendida preste declarações prévias, perante Magistrado do Ministério Público (ou OPC), levando a que se revitimize a vítima”. Compreendem-se as reservas do Senhor Juiz de Instrução Criminal, mas discorda-se do teor da decisão em recurso, pois, a ponderação da desnecessidade da realização da tomada de declarações para memória futura da menor no âmbito do inquérito não é permitida ao Juiz de Instrução Criminal, por violação do poder de direção do inquérito que cabe exclusivamente ao Ministério Público. É a este que compete, dentro dos seus poderes-deveres, promover as diligências necessárias, no tempo que considere adequado, com vista a dotar o inquérito de elementos para fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar o inquérito (com ressalva, naturalmente, dos actos cuja prática é obrigatória no decurso do inquérito). A inquirição antecipada em apreço constitui uma inquirição qualificada porque presidida pelo juiz de instrução e sujeita a uma estrutura contraditória que conta com a participação do próprio Ministério Público e de Defensor nomeado ao denunciado, realizada em ambiente informal e reservado, sendo certo que o depoimento só será repetido em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da vitima (artº 24º da Lei nº 130/2015). Pelo que não se revela, objectiva e manifestamente, total desnecessidade na recolha antecipada de prova, sendo certo que, a circunstância da menor se recusar a ir passar os fins de semana a casa do pai por este a obrigar a dormir consigo na mesma cama aliada à situação relatada pela directora de turma da escola que frequenta quanto à sua baixa de rendimento escolar e à suspeita que esta levanta de algo de estranho se poder estar a passar, é desde logo indiciador de que algo de anormal (que pode não se limitar a um simples desconforto) se pode estar a passar e que urge averiguar e não ignorar. Inexiste, pois, justificação legal plausível para o indeferimento da tomada de declarações para memória futura da menor A, declarações que deverão ser prestadas com recurso a profissional com competência para colaborar na inquirição, nos termos do artº 24º, nº 5 do Estatuto da Vítima. * Procede, assim, o recurso.V. DECISÃO Pelo exposto acordam as Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em revogar o despacho proferido em 30 de Outubro de 2024, que deverá ser substituído por outro que, deferindo o requerimento do Ministério Público, designe data para a tomada de declarações para memória futura da menor A. * Sem custas.* Comunique a presente decisão, de imediato, ao Processo de Inquérito NUIPC 173/24.7JAPTM.O presente acórdão foi elaborado pela Relatora e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.). Évora, 03 de dezembro de 2024 Filipa Valentim Maria Perquilhas Renata Whytton da Terra |