Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
123/23.8JAPTM-B.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE FUGA
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga, na mesma medida em que nem mesmo a ocorrência dessa condenação o permite, sendo que a condenação em pena de prisão efectiva, ainda que previsivelmente elevada (ou até muito elevada), não integra, por si só e sem mais, o perigo de fuga, como a jurisprudência de forma ao que cremos uniforme entende.

Os conceitos de fuga e de perigo de fuga traduzem “desaparecimento, debandada, desconhecimento de paradeiro, e devem estar associados ao incumprimento das obrigações de disponibilidade e comparência impostas pela lei processual penal” (acórdão do TRL de 19.09.2007 Carlos Almeida). Na ausência de qualquer outro facto que indicie em concreto que o detido se pretenda furtar à acção da justiça deve concluir-se pela inexistência do invocado perigo de fuga.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No processo de inquérito n.º 123/23.8JAPTM, do Juízo de Instrução Criminal (J…) de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, o arguido AA interpôs recurso do despacho do Sr. Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC) que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva, após 1.º interrogatório de arguido detido.

Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Por despacho datado de 19 de julho de 2023, o Mm. Juiz de Instrução Criminal e atenta a matéria factica nos autos concluiu estar fortemente indiciada a prática pelo arguido, pelo menos, de um crime de homicídio qualificado tentado, previsto e punido pelos arts. 131º e 132º nos 1 e 2 al. b), e 22º, 23º, e 73º, todos do Código Penal.

2. E, determinou que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva, nos termos previstos no artigo 202º do Código de Processo Penal.

3. Para sujeitar o arguido à medida de coacção mais gravosa no sistema penal português, o Mm. º Juiz de Instrução Criminal entendeu que analisados os pressupostos da sua aplicação, entendeu que se verifica perigo de fuga muito acentuado e perigo, mais moderado, de perturbação do decurso das fases seguintes (do inquérito ou da instrução) do processo. Desde logo, o crime fortemente indiciado é um crime grave (e assim é em qualquer dos enquadramentos jurídicos plausíveis no caso, mesmo no mais gracioso para o arguido), que redundará, tanto quanto pode neste momento antever-se, numa pena grave, com probabilidade séria de ser privativa da liberdade. Mais ainda se se considerar que o arguido regista condenações anteriores por vários crimes (ofensa à integridade física, ameaça), um dos quais de gravidade já assinalável (roubo) que desaguou na aplicação de prisão suspensa (consequência que não parece tê-lo demovido da delinquência). Além disso, o arguido não goza de um enraizamento social forte: não tem trabalho certo, não tem nenhum vínculo forte e estável de outra ordem à comunidade, e é bastante jovem. Uma mudança radical de lugar de vida não seria para si um ónus de grande monta. Acresce que os factos indiciam ainda que o arguido tem uma personalidade impulsiva e violenta. Ante a indiciação que golpeou a antiga namorada no pescoço completamente a despropósito, surpreenderia alguém que não tem deixar rasto? A resposta, de meridiana clareza é: absolutamente ninguém. Mutatis mutandis, indiciado que deu aqueles golpes no pescoço da antiga namorada, uma tentativa de influenciar com ofensas ou ameaças, tudo actos de que regista antecedentes alguma testemunha não constituiria também qualquer surpresa. Por fim, tudo o que se elenca fica ainda mais graduado ante a indiciação que os presentes autos não são a única questão de jaez criminal com gravidade que o arguido presentemente enfrenta.

4. Assim, resulta do despacho ora em crise que o Mmº Juiz de Instrução entendeu que apenas a medida de coacção de prisão preventiva é apta a obstar ao perigo de fuga existente. Com efeito, tão elevado é o perigo de que o arguido pretenda furtar-se às eventuais consequências penais dos seus actos, que se me afigura que apenas uma medida que constitua uma barreira física, um obstáculo tangível, a um desiderato de fuga é apta a responder de maneira suficiente às exigências do caso. Fica dessa forma afastada a bondade da aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade. Sublinhe-se: mesmo a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se me afigura insuficiente para fazer face ao perigo de fuga que se identifica no caso, uma vez que a eficácia de tal medida depende sempre de alguma motivação psicológica contrária à fuga.

Ora, havendo um propósito sério de fuga e no caso dos autos, como dissemos, tal perigo é elevadíssimo a medida de OPH, mesmo que fiscalizada à distância, poderia ser contornada sem dificuldades assinaláveis através de actuação física do arguido. Motivos pelos quais concluo que somente a prisão preventiva do arguido constituirá suficiente obstáculo físico ao identificado perigo de fuga, sendo pois necessária a sua aplicação. Acrescente-se ainda que atendendo à factualidade do caso concreto, entendemos que a aplicação de uma medida de coacção privativa da liberdade é proporcional à gravidade do crime indiciado e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas ao arguido.

5. Todavia, o arguido com todo o devido respeito que é muito, não se pode conformar.

6. Como se sabe, o Estado de Direito democrático e social, baseado na dignidade da pessoa humana, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão (artigo 1º e 2º da Constituição da República), impõe que o nosso processo penal, numa perspetiva jurídico-processual, tenha como finalidades, na aplicação da lei penal aos casos concretos, por meio processualmente admissíveis.

7. A protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos perante o Estado, o restabelecimento do crime e a reafirmação da validade da norma violada – procurando garantir, assim, como afirma o Prof. Germano Marques da Silva “que nenhum responsável passe sem punição (impunitum non relinqui factinus) nem nenhum inocente seja condenado (innocentum non condennan) – são seus corolários.

8. A realização da justiça pressupõe, pois, a descoberta da verdade material, pressuposto legitimador da necessidade e sujeição da sanção penal, que visa a proteção de bens jurídicos fundamentais, mas também a reintegração do agente do crime na sociedade, sendo certo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º Código Penal), e ainda o restabelecimento da paz jurídica comunitária, posta em causa através do cometimento do crime.

9. As medidas de coacção são meios processuais penais limitadores da liberdade pessoal de natureza meramente cautelar, aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios de um crime.

10. As medidas de coacção não devem confundir-se com as penas.

11. As finalidades das medidas de coação constam do artigo 204.º do CPP., que estabelece que: Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º (termo de identidade e residência), pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a)Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

12. No artigo 192.º do CPP dispõe-se sobre as condições gerais da aplicação das medidas de coacção que deve, no entanto, ser conjugado com o artigo 204.º (e artigo 227.º, para as medidas de garantia patrimonial), do mesmo diploma legal.

13. Para aplicação de uma medida de coacção, tornar-se necessário a imputação à pessoa que for dela objecto, de indícios (ou fortes indícios, nos casos dos artigos 200.º, 201.º, e 2022º do CPP) da prática de determinado crime, ou seja, como afirma o Dr. Germano Marques da Silva, “não pode ser aplicada uma medida de coação ou de garantia patrimonial se não se indiciarem os pressupostos de que depende a aplicação ao sujeito de uma pena ou medida de segurança criminais”.

14. Por outro lado, não basta a existência de indícios da prática do crime e os requisitos específicos definidos na lei para cada uma de tais medidas, importa ainda que se verifiquem os requisitos ou condições gerais referidas nas várias alíneas do artigo 204.º do CPP.

15. Estes requisitos ou condições gerais, enumerados nas alíneas a), b) e c).

16. Nos termos do artigo 204.º alínea a) fuga ou perigo de Fuga justifica a aplicação ao arguido de uma medida de coacção.

17. Todavia e, como nos ensina o Prof. Germano Marques da Silva, “importa ter bem presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, v.g. da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que incidem concretamente aquele perigo, nomeadamente, porque revelam a preparação para a fuga”.

18. Já o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução, prevista na alínea b) do artigo 204.º é outro dos requisitos gerais que tornam admissível a aplicação ao arguido de uma medida de coacção.

19. O perigo da perturbação da ordem e da tranquilidade publicas ou de continuação da actividade criminosa há-de resultar ou das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade.

20. Apenas das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou então da sua personalidade há-de resultar o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade publica, alarme social ou de continuação da actividade criminosa, elemento justificador da aplicação de uma medida de coação, maxime a prisão preventiva.

21. Ora, nos termos do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

22. Todavia, dispõe o número 2 do artigo 28.º da CRC que, A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.

23. A Prisão Preventiva apresenta natureza excepcional, subsidiária.

24. E, a respeito desta medida de coacção, o Código Processo Penal consagra o Princípio da Legalidade, o Princípio da Adequação, o Princípio da Proporcionalidade e o Princípio da Subsidiariedade que devem ser respeitados e que transpõem que só é de aplicar tal medida de coacção quando se mostrem inadequadas ou insuficientes as demais medidas de coacção.

25. Todo o regime legal supra enunciado, reclama para a prisão preventiva uma aplicação em concreto, um criterioso sentido das realidades e um casuístico ajustamento às próprias exigências do caso em si.

26. Ora, do despacho que ora se recorre, o Mm. º Juiz de Instrução Criminal sujeitou o arguido à medida de coacção de prisão preventiva.

27. Com todo o devido respeito que é muito, no nosso entendimento não entendemos que justifiquem a aplicação da referida medida de coacção.

28. Não se pode dizer, sem mais, que da moldura penal abstracta aplicável a determinado crime decorra ipso factum o receio ou a fuga, isto é, que por causa dessa moldura logo se verifica a aludida exigência cautelar. Com o devido respeito, não subscrevemos essa posição.

29. Não se pode escamotear que, queira-se ou não, existem alguns factores que também têm de ser tidos em conta na apreciação da verificação, ou não, do receio de fuga. E, tais factores são os seguintes: a circunstância de o arguido ter 21 anos, viver com a sua mãe e a prima menor de idade.

30. Mãe com quem trabalha, a fazer limpezas em apartamentos, no concelho de ….

31. Cidade, onde residem há longos anos, onde a prima menor frequenta o ensino escolar.

32. Pelo que, se pode considerar que é aqui que o arguido tem o seu centro de vida.

33. Mais, o arguido voluntariamente deslocou-se à Polícia Judiciária sita em …, no dia 25 de junho de 2023.

34. Data em que foi constituído arguido.

35. Na manhã de 17 de julho de 2023, desloca-se novamente à referida polícia, onde é notificado da realização de uma busca à sua residência, a qual acompanha e, posteriormente, é detido para ser ouvido em 1º interrogatório judicial. Ora, o arguido comparece de forma voluntária na Polícia Judiciária.

36. E, entre o dia 15 de junho de 2023 e o dia 17 de julho, o arguido já sabia dos factos que estavam em causa e da gravidade dos mesmos.

37. E, não fugiu!

38. E, não tentou fugir!

39. Motivo pelo qual, se entende que o perigo de fuga não é iminente e inexiste.

40. Tudo ponderado não se pode afirmar que é intenso o receio ou perigo de fuga e, com todo o devido respeito que é muito pelo douto Tribunal, entendemos que inexiste.

41. E, a existir é bastante reduzido.

42. Mais resulta dos autos, que o arguido no âmbito de outro processo em Investigação no mesmo DIAP, encontra-se sujeito à medida de apresentação periódicas no OPC da área da residência, o que sempre cumpriu até à data da detenção.

43. No entanto, entendeu o Mmº. Juiz de Instrução Criminal que, dos pressupostos para a aplicação de uma medida de coacção se verifica perigo de fuga muito acentuado e perigo, mais moderado, de perturbação do decurso das fases seguintes (do inquérito ou da instrução) do processo.

44. Desde logo, porque considera que, o crime fortemente indiciado é um crime grave … que redundará tanto quanto pode neste momento antever-se, numa pena grave, com probabilidade séria de ser privativa da liberdade.

45. E, entende o Mm Juiz de instrução Criminal que, apenas a medida de coacção de prisão preventiva é apta a obstar ao perigo de fuga existente. Com efeito, tão elevado é o perigo de que o arguido pretenda furtar-se às eventuais consequências penais dos seus actos, que se me afigura que apenas uma medida que constitua uma barreira física, um obstáculo tangível, a um desiderato de fuga é apta a responder de maneira suficiente às exigências do caso.

46. E, acrescenta ainda que, afasta a bondade da aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade. Sublinhe-se: mesmo a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se me afigura insuficiente para fazer face ao perigo de fuga que se identifica no caso, uma vez que a eficácia de tal medida depende sempre de alguma motivação psicológica contrária à fuga. Ora, havendo um propósito sério de fuga e nos casos autos, como dissemos, tal perigo é elevadíssimo a medida de OPH, mesmo que fiscalizada à distância, poderia ser contornada sem dificuldades assinaláveis através de actuação física do arguido.

47. Com todo o devido respeito que é muito, não se pode dizer, sem mais, que da moldura penal abstracta aplicável a determinado crime decorra ipso factum, o receio ou a fuga, isto é, que por causa dessa moldura logo se verifica a aludida exigência cautelar. Com o devido respeito não subscrevemos essa posição.

48. Assim, a gravidade do crime imputado ao arguido é, por si só, manifestamente insuficiente para consubstanciar a fuga ou o perigo de fuga.

49. A existência em concreto do perigo de fuga por parte do arguido, deriva segundo o despacho recorrido da circunstância de o crime em causa ser punido com pena de prisão.

50. Importa lembrar a propósito que, a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v.g. a gravidade do crime – assim acentua o Acórdão do TEDH de 17.3.97, caso «Muller c/França» o risco de fuga não pode decorrer apenas da gravidade da pena [Gil Moreira dos Santos, O Direito Processual Penal, 281 (355)] – mas em elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação da fuga. Ora isso não ocorre no caso, nada indicia o perigo de fuga.

Importa também não olvidar que a fuga, por aquilo que representa em termos económicos, não está à disposição de todos; pressuposto normal para se poder falar em perigo de fuga - salvo casos de estrangeiros, pessoas com familiares noutro país, etc. - é ter o arguido capacidade financeira para tal. – cfr. Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 22/03/2006, Processo n.º 0640699.

51. Mais, para consubstanciar o perigo de fuga é necessário que os autos contenham elementos de prova que objectivamente demonstrem a sua probabilidade.

52. Aliás, conforme já se referiu, o arguido desde o início destes autos colaborou com a justiça, deslocando-se de forma voluntária duas vezes à Polícia Judiciária.

53. E, um jovem de 21 anos que não tem um vínculo laboral poderá fugir e estabelecer se num outro pais, assim tão facilmente? Não nos parece.

54. Fugir e restabelecer-se num outro país não está á disposição de todos, por falta de meios económicos para tal, é o caso do ora arguido.

55. Salvo melhor entendimento, o perigo de fuga não se afere mediante a prognose de aplicação de uma pena de prisão efetiva, sob pena de violação do princípio da presunção da inocência (cfr. n.° 2 do Artigo 32.° da C.R.P.).

5.–Segundo Rui da Fonseca e Castro e Fernando da Fonseca e Castro, in Medidas de Coação e de Garantia Patrimonial, Quid Juris, 2013, página 110 e 114, respetivamente, "(...) O perigo de fuga deve traduzir-se, pelo menos, numa intenção do arguido de se colocar numa situação de fuga (...) e "não se pode partir da possibilidade de aplicação de uma pena, pois tal circunstância é inerente à natureza do processo criminal, não podendo, em caso algum, servir para consubstanciar a fuga ou o perigo de fuga (...)".

6.–Já Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, in Medidas de Coação no Processo Penal Português, Almedina, 2011, página 60, refere que "(...) a lei não presume o perigo de fuga, exigindo que esse perigo seja real ou concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga, deduzida de abstratas e genéricas presunções (…)".

56. Pelo que, a fundamentação do Tribunal a quo viola o princípio da presunção da inocência (consagrado no n.°2 do Artigo 32. ° da C.R.P.), na medida em que, perante a mera probabilidade de vir a ser aplicada ao arguido uma pena de prisão, levaria que sobre o arguido recaísse um dever apresentar garantias de que se encontrará sempre à disposição do processo.

57. Dos autos não se extrai qualquer facto concreto que reflita a existência de um elemento volitivo quanto a uma eventual fuga por parte do arguido.

58. Contrariamente, os factos em causa remontam ao início do mês de junho de 2023, a investigação iniciou-se e, no desenvolvimento da mesma, o arguido sempre se deslocou de forma voluntária à Polícia Judiciária, tendo sido controlado pela PJ e não houve qualquer notícia de o mesmo sequer ter tentado ausentar-se do país ou dado a entender essa pretensão.

59. Assim, não é o mero facto de este poder vira cumprir a pena de prisão que determina a existência de um perigo de fuga.

60. Não é o mero facto de este poder vir a cumprir pena de prisão efetiva que determina a existência de um forte perigo de fuga.

61. O arguido não fugiu anteriormente.

62. Portanto, por este motivo não é de se lhe aplicar esta medida de coacção por esse fundamento.

63. Quanto à verificação do perigo de fuga, importa ter bem presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v.g., da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação da fuga.

64. E esta não pode deduzir-se da gravidade do crime.

65. Não é necessariamente um crime grave e susceptível de pena pesada que predispõe o arguido à fuga.

66. Nada se infere também do inquérito, que haja perigo de fuga.

67. A medida de coacção é uma medida cautelar e não a priori sancionatória.

68. E, não pode a mesma servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuação a actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado.

69. O perigo de fuga tem de ser real e não presumido, não se bastando com a existência de condenação numa pena de prisão, mesmo que pesada, pois só desse modo se salvaguardarão as garantias de defesa e, mormente, a excepcionalidade da prisão preventiva na sua compatibilização com a presunção da inocência, ainda que, segundo o disposto naquele art.193.º, seu n.º. 1, a gravidade do crime e a previsibilidade da sanção sejam factores atendíveis.

70. Com efeito, o perigo de fuga deve ser real e avaliado em concreto. A jurisprudência é pacífica no sentido de que ele não deve ser presumido.

71. A verdade é que no despacho recorrido ele nem sequer foi presumido, antes foi idealizado, pois o tribunal tinha elementos justificativos que ignorou e iam justamente no sentido contrário do que deixou consignado no despacho em crise.

72. Consequentemente, errou claramente na apreciação que fez dos factos, tendentes à verificação, em concreto, do perigo de fuga, que claramente não existia.

73. Já o perigo de perturbação do decurso do inquérito [O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo tem um significado alargado não só o inquérito e a instrução propriamente dita, mas toda a actividade de recolha e produção de prova no processo, quer decorra na fase do inquérito, quer no julgamento, quer no recurso, como realça Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 266, sendo esse perigo, em regra, maior nas fases preliminares do processo e sobretudo na fase de inquérito], contrariamente ao que o Mmº Juiz de instrução considerou, entendemos que não se mostra indiciado.

74. Dos autos, nada resulta que permita concluir a existência de tal perigo.

75. Quanto ao perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, art.º 204º al. c.) do Código Processo Penal, diremos que a função cautelar da medida de coacção é atinente ao próprio processo, e não pode revestir a natureza de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada .

76. Assim o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, há-de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade.

77. A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado.

78. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual actividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado

79. Pois, como justamente observa Maria João Antunes [O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, Liber Discipulorum, p. 1253.], a natureza processual das exigências cautelares (...) não permite que, à luz da alínea c.) do art.º 204º do Código Processo Penal, seja afirmada a possibilidade de aplicação de uma qualquer medida de coacção sempre que nesse sentido apontar uma ideia de prevenção geral de intimidação ou de prevenção especial, sendo dado a estas expressões o conteúdo que encontramos em matéria de fina das penas.

80. Face ao exposto, somos o entendimento que tal perigo não existe e a aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuação a actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado.

81. Todavia, a verificar-se a existência dos referidos perigos, tento em conta o supra referido, os mesmos conseguiriam ser acautelados caso o arguido ficasse sujeito à medida de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica.

82. Assim e face ao supra exposto, somos do entendimento que o Tribunal a quo aplicou erradamente as alíneas a), b) e c) do Artigo 204. ° do C.P.P. e procedeu a uma errada exclusão da medida de OPHVE com base na existência de um perigo de fuga que não podia ser acautelado mediante a execução da mesma.

83. Com esta medida de coacção, o Tribunal teria controlo sobre o arguido.

84. Pelo que, deverá a medida aplicada de prisão preventiva ser substituída por outra, que se reputa mais adequada e proporcional aos factos de que o arguido vem indiciado, medidas essas quais sejam a de obrigação de permanência no domicílio com vigilância electrónica, uma vez que esta se revela manifestamente mais adequada e proporcional às exigências cautelares, ficando igualmente acauteladas as finalidades de prevenção geral e especial.”

Termina pedindo:

“Nestes termos e nos demais de Direito, e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deverá o douto Despacho do Tribunal A quo ser revogado e substituído por outro que, considerando a factualidade exposta, revogue a medida de coacção (Prisão Preventiva) aplicada ao arguido e que a mesma seja substituída por outra, designadamente, a obrigação de permanência no domicílio com vigilância electrónica, uma vez que esta se revela manifestamente mais adequada e proporcional às exigências cautelares (…).”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. Inconformado com o despacho judicial de 19.07.2023, proferido em sede de interrogatório judicial, que lhe aplicou, para além das obrigações decorrentes do TIR, a medida de coacção de prisão preventiva, dele veio o arguido interpor recurso.

2. Para tanto, o recorrente/arguido alega que não se verificam quaisquer dos perigos enunciados no artigo 204.º, do Código de Processo Penal e que, caso se verificassem, seriam acautelados se o arguido ficasse sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica ou a apresentações periódicas.

3. Concatenando o facto de o arguido estar fortemente indiciado pela prática de factos que poderão integrar a prática de um crime de homicídio, que há uma forte probabilidade de lhe vir a ser aplicada uma pena grave (privativa da liberdade), que o arguido revela uma personalidade impulsiva e violenta, que não tem estabilidade profissional nem qualquer vínculo forte e estável à comunidade, que é bastante jovem, que já foi condenado por crime de roubo em pena de prisão suspensa na sua execução, que estava sujeito a medida de coacção de apresentação periódicas no âmbito de outros autos, há sérias razões para crer que poderá subtrair-se à acção da justiça e às suas responsabilidades criminais, pelo que está verificado o perigo de fuga.

4. Por outro lado, os factos fortemente indiciados demonstram a facilidade com que o arguido se determina a realizar actos ilícitos – não aceitando o término do namoro dirige-se à casa da vítima com uma navalha -, reagindo de forma violenta a qualquer contrariedade, situação de tensão ou provocação de terceiros, não se podendo também ignorar o passado criminal do arguido, sendo certo que, atenta a elevada gravidade da concreta conduta ilícita indiciada, é expectável que o alarme e a intranquilidade rapidamente se propaguem na comunidade e potenciem um grau acentuado de perturbação da paz social, o que leva a concluir no sentido do perigo efectivo de, em liberdade, o arguido perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

5. Embora não se revele com a mesma intensidade que a dos outros perigos acima mencionados, estão reunidas as condições para se concluir que o acervo factual indiciado fornece elementos que suportam a existência de um perigo suficientemente concreto de perturbação do inquérito, reconhecendo-se como possível que a investigação venha a sofrer importantes entraves caso o arguido continue a poder movimentar-se livremente, procurando condicionar a versão de testemunhas, exercendo pressão sobre estas, levando-os a alterar os relatos que já prestaram nos autos.

6. Verificados os mencionados perigos, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva foi suficiente e adequada às exigências cautelares do caso concreto, sendo certo que a medida de medida de coacção de apresentações periódicas - à qual o arguido já estava sujeito no âmbito de outro processo quando praticou os factos que deram origem a estes autos - e a obrigação de permanência na habitação não acautelariam os perigos supra descritos.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Termos em que deverá o recurso improceder, confirmando-se integralmente a decisão recorrida, assim fazendo V.ªs Ex.ªs a costumada JUSTIÇA.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de “que o recurso não deve obter provimento.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“FACTOS IMPUTADOS; FACTOS INDICIADOS; JUÍZO DE INDICIAÇÃO

Os factos imputados ao arguido são os que foram já comunicados, um por um, ao arguido antes do interrogatório, e que aqui damos por integralmente reproduzidos.

Atentos os elementos constantes dos autos, estão fortemente indiciados os factos relevantes imputados ou seja, os seguintes 1 factos:

1 Sobre a matéria indicada a fls. 293, e comunicada no início do interrogatório, que não nos pronunciamos de seguida, tal sucede porque a mesma se reporta a meras questões de direito, encerra teor conclusivo, ou não tem relevância (criminal, ou sequer circunstancial) para a presente decisão.

1. O arguido AA e BB mantiveram um relacionamento de namoro durante cerca de um ano, entre Maio de 2022 e até por volta da segunda semana de Junho de 2023.

2. Durante o período de namoro o arguido e BB por diversas vezes discutiram; algumas discussões foram motivadas pelos ciúmes que o arguido sentia.

3. O arguido não se conformou com o fim da relação e, por diversas ocasiões, tentou reatar o namoro, enviando mensagens e vídeos através das redes sociais WhatsApp e Instagram. Em 12 ou 13 de Junho de 2023, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho de BB, onde falou com a mesma.

4. No dia 15 de Junho de 2023, cerca das 08h 26m, o arguido dirigiu-se a casa de BB munido de uma navalha.

5. Nas imediações da casa, o arguido viu BB no exterior a caminhar para uma viatura e decidiu abordá-la.

6. Enquanto o arguido falava, BB continuou a dirigir-se para a referida viatura, abriu a porta e sentou-se no lugar do condutor.

7. Seguidamente, o arguido debruçou-se sobre o banco onde estava BB.

8. Acto contínuo e, sem nada que o fizesse prever, o arguido empunhou a sobredita navalha, e com ela golpeou BB atingindo-a no pescoço, causando-lhe duas feridas incisas com cerca de 0,5cm, ao mesmo tempo que disse “Se não és minha, não és de mais ninguém”.

9. BB fechou de imediato a porta do condutor e trancou todas as portas da viatura, impedindo o arguido de aceder ao seu interior.

10. De seguida, colocou o veiculo automóvel em andamento, fugindo do local.

11. Ao agir da forma descrita, desferindo aqueles golpes com a dita navalha, o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a BB.

12. O arguido praticou os factos descritos motivado pelos ciúmes que tinha de BB, por não aceitar que esta quisesse deixar de namorar consigo.

13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

14. Os sobreditos ferimentos determinaram o socorro de BB pelos Bombeiros Voluntários de … e o seu imediato transporte para o Centro Hospitalar …, local onde foi assistida, tendo sido realizada a limpeza e desinfecção das zonas atingidas, com colocação de penso.

15. BB teve alta hospitalar no dia 15.06.2023.

16. BB veio a ser internada no dia 22.06.2023, no CH… e, posteriormente, foi helitransportada para o Hospital … (Serviço de Medicina Intensiva), local onde acabou por falecer, no dia 23.06.2023, pelas 21h 49m, em consequência de um abcesso cervicomediastínico pós-traumático, complicado de sépsis, surgido como complicação das lesões traumáticas no pescoço causadas pelos golpes supra referidos.

*

Estão ainda fortemente indiciados, sem prejuízo da ressalva que se fará infra, os seguintes factos:

17. O arguido faz trabalhos ocasionais em limpezas, sem vínculo contratual, auferindo € 10 à hora.

18. O arguido não tem filhos.

19. O arguido vive com a mãe e uma prima.

20. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais: Por decisão transitada em julgado em 12/11/2018, proferida no processo nº 1206/18.1… do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado pela prática, em 30/08/2018, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 50 dias de multa; Por decisão transitada em julgado em 08/03/2019, proferida no processo nº 134/18.5… do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e, em 20/03/2018, de um crime de ameaça na pena de 100 dias de multa; Por decisão transitada em julgado em 07/06/2021, proferida no processo nº 1500/18.1… do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado pela prática, em 07/10/2018, de um crime de roubo na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução por igual período.

21. No âmbito de outros autos judiciais o arguido está presentemente sujeito a medida de coacção de apresentação periódica perante as autoridades.

*

Ressalvamos que quanto ao último dos factos elencados (sujeição do arguido a medidas de coacção noutros autos de jaez criminal) entendemos que a indiciação é suficiente, ou seja, tal matéria está efectivamente indiciada (assim se indicia das inquirições da ofendida) mas a indiciação não tem um grau que no momento presente consideramos forte.

* * *

Para formar o juízo sobre a indiciação da matéria supra mencionada valorámos os seguintes elementos instrutórios:

Declarações do arguido, prestadas sobre as suas condições de vida;

Documentos

comunicação de notícia de crime de fls. 20/21, auto de notícia/relatório de fls. 22/25, relatório da Polícia Judiciária de fls. 32/41 (incluindo as fotografias de fls. 38-40), auto de inquirição de fls. 43/47 (BB), fotografias de mensagens de fls. 56/62, cota de fls. 70, cota de fls. 71, auto de inquirição de fls. 73/75 (CC), cota de fls. e 89/90, certificado de registo criminal do arguido de fls. 125/129, documentação clínica de fls. 158/170, documentação clínica de fls. 173/186, pesquisa na base de dados da Segurança Social de fls. 188, documentação clínica de fls. 191/193 documentação clínica de fls. 195/208, relatório de autópsia médico-legal de fls. 210/213, auto de busca e apreensão, de fls. 255, fotografias de fls. 258-261.

*

No que toca à matéria que enquadra os eventos de 15 de Junho (a relação entre arguido e ofendida, o terminus da relação, e os traços frequentemente atribulados nesse relacionamento) os elementos instrutórios (designadamente as inquirições feitas e as fotos de mensagens de fls. 56 e seguintes) são plenamente unânimes.

Quanto ao desenrolar dos eventos de 15 de Junho, o lastro instrutório é também bastante claro, e tem também um só sentido. Dos vastos elementos clínicos recolhidos e da reportagem de fls. 38/40 decorre, sem sobressalto, que a ofendida sofreu nesse dia duas lesões no pescoço, de pequenas dimensões.

A autoria da produção daquelas lesões (e o respectivo contexto e, ainda, a forma como foram produzidas) tem também no acervo instrutório pleno assento — desde logo, assim o relatou a própria ofendida em sequência aos factos.

Relativamente à vontade do arguido de matar a ofendida, estribámos o juízo indiciário na conjugação das inquirições da ofendida (fls. 22 e seguintes; fls. 43 e seguintes) com o resultado objectivo da actuação do arguido (os concretos ferimentos, que como se disse têm sustento em diversa documentação clínica e algumas fotos).

Destes elementos resulta que:

O arguido produziu duas lesões no pescoço da ofendida com uma navalha, actuação que tem sempre elevado perigo de causação de danos graves, designadamente a morte,

Quando produziu aquelas lesões com o objecto cortante que empunhava o arguido disse à ofendida que se não fosse dele, não era de mais ninguém, palavras que indiciam de forma clara a intenção de fazer terminar a sua vida,

Após produzir aquelas lesões, tendo a ofendida trancado o carro onde estava para se refugiar da actuação daquele, o arguido ainda tentou forçar a entrada no veículo onde estava a ofendida, actuação que indicia estar animado do propósito de continuar a agressão que iniciara, sem se ficar pelos pequenos cortes que já lograra.

No que toca à evolução dos ferimentos sofridos pela ofendida, e ao seu decesso posterior, foi na documentação clínica e no relatório pericial onde assentámos conclusão.

Os factos indiciados respeitantes às condições de vida do arguido assentam nas suas declarações, inexistindo nos autos elementos que lhes lancem dúvida.

Os antecedentes criminais do arguido decorrem do CRC de fls. 125.

QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS INDICIADOS

A matéria fáctica supra referida leva a concluir estar fortemente indiciada a prática pelo arguido, pelo menos, de um crime de homicídio qualificado tentado, previsto e punido pelos arts. 131º e 132º nos 1 e 2 al. b), e 22º, 23º, e 73º, todos do Código Penal.

Com efeito, da matéria supra elencada decorre que o arguido, pelo menos, tentou matar a ofendida, com quem antes manteve namoro, com golpes de lâmina no pescoço.

*

No que à qualificação jurídica da matéria indiciada diz respeito importa assinalar, com brevidade, o seguinte.

Como se indicou, está fortemente indiciado, pelo menos, um homicídio tentado; E assim porque se indiciou que o arguido agiu como agiu, com dolo de matar. Os elementos dos autos suscitam, todavia, uma outra questão, a respeitante ao nexo de causalidade juridicamente adequada entre actuação do arguido e o resultado de falecimento da ofendida. Designadamente, no direito, o problema de saber se as complicações das lesões traumáticas sofridas pela vítima (abcesso cervicomediastínico pós-traumático, e sépsis) foram um desenvolvimento não anormal das lesões produzidas. Em caso afirmativo, estaremos perante um homicídio consumado2, e em caso negativo, estaremos perante um homicídio somente tentado, por não ser imputável ao arguido a efectiva causação do resultado morte previsto na forma consumada do crime. Quanto à indiciação deste nexo de causalidade efectiva da morte diremos que a conclusão que extraímos dos elementos instrutórios é positiva, mas não tem a mesma o grau de força, para o possamos dar como cabal. Por um lado, a indiciação é manifesta. Desde logo, porque a agressão se consumou através de cortes causados no pescoço, uma das áreas mais sensíveis do corpo (e provavelmente a mais sensível a cortes), em que qualquer lesão (um simples murro, por exemplo) é apta a causar a morte. Além disso, neste mesmo sentido parece concluir o relatório da autópsia (ainda que se admita que o relatório se reporte tão somente a uma causalidade meramente naturalística; sem esclarecimentos periciais adicionais não será clara a conclusão). Mas (…)

2 Note-se que a questão apontada não suscita, in casu, qualquer problema adicional no plano do tipo subjectivo do ilícito. Com efeito, o conhecimento e a vontade do arguido relativamente ao resultado produzido não têm de acompanhar todo e qualquer detalhe do percurso causal que levou ao resultado — se o resultado (pretendido e adequadamente causado) for um resultado não anormal da actuação levada a cabo, haverá dolo.

(…) diga-se sem qualquer subterfúgio que (obstaculizando uma conclusão de indiciação mais forte) as feridas produzidas parecem muito pequenas (fotos de fls. 39/40), aparentam superficialidade (elementos clínicos), e a ofendida teve alta clínica depois de ter sido assistida em meio hospitalar (também aqui, elementos clínicos). Parece-nos que neste específico quadro, na falta de prova pericial que possa dar maior luz ao que se aponta, o juízo indiciário de um homicídio consumado é suficiente mas fica ainda, por ora, aquém de forte.

MEDIDAS DE COACÇÃO

Pressupostos de aplicação

(…)

Perigos no caso

No caso dos autos entendo que se verifica perigo de fuga muito acentuado e perigo, mais moderado, de perturbação do decurso das fases seguintes (do inquérito ou da instrução) do processo.

E assim concluo por diversos motivos concorrentes.

Desde logo, o crime fortemente indiciado é um crime grave (e assim é em qualquer dos enquadramentos jurídicos plausíveis no caso, mesmo no mais gracioso para o arguido), que redundará, tanto quanto pode neste momento antever-se, numa pena grave, com probabilidade séria de ser privativa da liberdade. Mais ainda se se considerar que o arguido regista condenações anteriores por vários crimes (ofensa à integridade física, ameaça), um dos quais de gravidade já assinalável (roubo) que desaguou na aplicação de prisão suspensa (consequência que não parece tê-lo demovido da delinquência).

Além disso, o arguido não goza de um enraizamento social forte: não tem trabalho certo, não tem nenhum vínculo forte e estável de outra ordem à comunidade, e é bastante jovem. Uma mudança radical de lugar de vida não seria para si um ónus de grande monta.

Acresce que os factos indiciam ainda que o arguido tem uma personalidade impulsiva e violenta. Ante a indiciação que golpeou a antiga namorada no pescoço completamente a despropósito, surpreenderia alguém se “amanhã” o mesmo, que não tem trabalho fixo ou qualquer laço forte ao local onde vive e a Portugal, decidisse “sumir” sem deixar rasto? A resposta, de meridiana clareza é: absolutamente ninguém.

Mutatis mutandis, indiciado que deu aqueles golpes no pescoço da antiga namorada, uma tentativa de influenciar —com ofensas ou ameaças, tudo actos de que regista antecedentes— alguma testemunha não constituiria também qualquer surpresa.

Por fim, tudo o que se elenca fica ainda mais graduado ante a indiciação que os presentes autos não são a única questão de jaez criminal com gravidade que o arguido presentemente enfrenta.

Medidas de coacção a aplicar no caso

No caso dos autos entendo que apenas a medida de coacção de prisão preventiva é apta a obstar ao perigo de fuga existente. Com efeito, tão elevado é o perigo de que o arguido pretenda furtar-se às eventuais consequências penais dos seus actos, que se me afigura que apenas uma medida que constitua uma barreira física, um obstáculo tangível, a um desiderato de fuga é apta a responder de maneira suficiente às exigências do caso.

Fica dessa forma afastada a bondade da aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade. Sublinhe-se: mesmo a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se me afigura insuficiente para fazer face ao perigo de fuga que se identifica no caso, uma vez que a eficácia de tal medida depende sempre de alguma motivação psicológica contrária à fuga. Ora, havendo um propósito sério de fuga — e no caso dos autos, como dissemos, tal perigo é elevadíssimo — a medida de OPH, mesmo que fiscalizada à distância, poderia ser contornada sem dificuldades assinaláveis através de actuação física do arguido.

Motivos pelos quais concluo que somente a prisão preventiva do arguido constituirá suficiente obstáculo físico ao identificado perigo de fuga, sendo pois necessária a sua aplicação.

Acrescente-se ainda que atendendo à factualidade do caso concreto, entendemos que a aplicação de uma medida de coacção privativa da liberdade é proporcional à gravidade do crime indiciado e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas ao arguido.

* * *

Nos termos antes expostos, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva, nos termos previstos no artigo 202º do Código de Processo Penal.””

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

1.ª Questão – Verificação dos perigos legais que fundamentam a aplicação da medida de prisão preventiva.

2.ª questão – Da substituição da prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE).

***

1.ª Questão – Verificação dos perigos legais que fundamentam a aplicação da medida de prisão preventiva.

De sublinhar, antes de mais, que o recorrente não está, ao invés do por si alegado (ponto 32 da motivação), a “cumprir” uma prisão preventiva, pois só as penas se cumprem, não as medidas de coacção. Assim, está apenas a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a uma medida de coacção que é a prisão preventiva. Nesta sede, parece-nos que é importante salvaguardar o devido rigor conceptual.

Para realizar o processo penal são indispensáveis ingerências na esfera individual dos cidadãos (materializadas na intromissão num direito fundamental) “tanto para assegurar o processo de conhecimento como para assegurar a execução penal” (2). As medidas de coacção têm, por conseguinte, uma natureza instrumental quanto às finalidades prosseguidas pelo processo penal (3).

Têm requisitos formais e substanciais:

Requisitos formais:

I - Prévia constituição como arguido (art.º 192.º, n.º 1);

II – Prévia existência de um processo criminal.

Requisitos substanciais:

I - Juízo indiciário do cometimento de infracção criminal (4) (artigos 197.º, 198.º, 199.º, 200.º, 201.º, n.º 1 in fine, 202.º);

II – Previsibilidade da aplicação de uma pena (art.º 193.º, n.º 1).

“Por último, do princípio da presunção de inocência (afirmado nos art. 11º da D.U.D.H., art. 6º, nº 2 da C.E.D.H., art. 14º, nº 2 do P.I.D.C.P. e art. 32º, nº 2 da C.R.P.) resulta que seja sempre aplicada a medida de coacção menos gravosa de entre todas as admissíveis, com respeito pelos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade (art. 193º, nº1 do CPP) e intervenção mínima (num critério de concordância prática). (…)

Do exposto nas conclusões de recurso, resulta com toda a clareza que os requisitos formais e substanciais acima mencionados se mostram preenchidos e não são colocados em causa pelo recorrente.

O que o recorrente coloca nuclearmente em causa é a verificação dos três perigos legais que fundamentam a aplicação da medida de prisão preventiva.

Considerando o anteriormente afirmado, foi considerada fortemente indiciada a prática do crime de homicídio tentado.

Quanto à existência dos perigos de fuga e perigo de perturbação do inquérito / instrução, discorda o recorrente, afirmando que tais perigos não existem.

Vejamos.

Importa, desde logo, lembrar que estamos perante um fortemente indiciado crime de homicídio tentado, caracterizado pela impulsividade do arguido, que demonstrou à saciedade possuir grande facilidade na transposição do pensamento para o acto, sem qualquer filtro que, de forma consistente, tivesse impedido o último, aqui em causa, sendo certo que, quer os actos agora fortemente indiciados, quer os seus antecedentes criminais (de onde avultam condenações por actos de violência, sublinhando-se a última condenação em pena de prisão suspensa, cujo período terá (?) terminado pouco tempo antes dos factos aqui em causa.

Recorde-se que, a este propósito, escreveu-se na decisão recorrida:

“Desde logo, o crime fortemente indiciado é um crime grave (e assim é em qualquer dos enquadramentos jurídicos plausíveis no caso, mesmo no mais gracioso para o arguido), que redundará, tanto quanto pode neste momento antever-se, numa pena grave, com probabilidade séria de ser privativa da liberdade. Mais ainda se se considerar que o arguido regista condenações anteriores por vários crimes (ofensa à integridade física, ameaça), um dos quais de gravidade já assinalável (roubo) que desaguou na aplicação de prisão suspensa (consequência que não parece tê-lo demovido da delinquência).

Além disso, o arguido não goza de um enraizamento social forte: não tem trabalho certo, não tem nenhum vínculo forte e estável de outra ordem à comunidade, e é bastante jovem. Uma mudança radical de lugar de vida não seria para si um ónus de grande monta.

Acresce que os factos indiciam ainda que o arguido tem uma personalidade impulsiva e violenta. Ante a indiciação que golpeou a antiga namorada no pescoço completamente a despropósito, surpreenderia alguém se “amanhã” o mesmo, que não tem trabalho fixo ou qualquer laço forte ao local onde vive e a Portugal, decidisse “sumir” sem deixar rasto? A resposta, de meridiana clareza é: absolutamente ninguém.

Mutatis mutandis, indiciado que deu aqueles golpes no pescoço da antiga namorada, uma tentativa de influenciar — com ofensas ou ameaças, tudo actos de que regista antecedentes — alguma testemunha não constituiria também qualquer surpresa.

A alínea a) do art.º 204.º estabelece como requisito geral das medidas de coacção a fuga ou perigo de fuga, prevendo, ex post, a fuga já concretizada, ou, ex ante, a possibilidade de tal fuga vir a ocorrer. Neste segundo caso, deverá tratar-se de um perigo concreto, ou seja, de um perigo não abstractamente presumido e sim concretamente justificado – “nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no art. 196º do CPP, pode ser aplicada se em concreto se não verificar…” (corpo do art.º 204.º). Assim, a mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga, na mesma medida em que nem mesmo a ocorrência dessa condenação o permite, sendo que a condenação em pena de prisão efectiva, ainda que previsivelmente elevada (ou até muito elevada), não integra, por si só e sem mais, o perigo de fuga, como a jurisprudência de forma ao que cremos uniforme entende. Os conceitos de fuga e de perigo de fuga traduzem “desaparecimento, debandada, desconhecimento de paradeiro, e devem estar associados ao incumprimento das obrigações de disponibilidade e comparência impostas pela lei processual penal” (acórdão do TRL de 19.09.2007 Carlos Almeida). Na ausência de qualquer outro facto que indicie em concreto que o detido se pretenda furtar à acção da justiça deve concluir-se pela inexistência do invocado perigo de fuga. (5) No caso dos autos não é abundante a factualidade que integre o aludido perigo de fuga, como, aliás, dá conta (implicitamente) a decisão recorrida. Mas, como também ali se dá conta, o arguido não desfruta enraizamento social forte, não tem uma ocupação laboral certa, não se lhe conhece qualquer vínculo “forte e estável” de outra ordem à comunidade, avultando a sua juventude. Desta forma, a sua mais do que demonstrada impulsividade indicia como possibilidade forte e evidente aquilo a que ali se chamou uma “mudança radical de lugar de vida”, sem qualquer ónus que especialmente o onerasse. Do exposto flui que entendemos existir uma base factual mínima (mas segura) para considerar indiciado o aludido perigo de fuga.

Também quanto ao perigo de perturbação do inquérito / instrução, apesar da pouca abundância indiciária (também mencionada na decisão recorrida), entendemos que a personalidade do arguido e as acções dadas como provadas acima mencionadas o integram de forma inequívoca.

2.ª questão – Da substituição da prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE).

Importa sublinhar, uma vez que se discute o decretamento da prisão preventiva, que rege nesta sede o princípio da subsidiariedade, ou seja, de acordo com o art.º 193.º, n.º 2: “… só pode[ ] ser aplicada[ ] quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”).

A resposta à questão em causa determina que se proceda a um juízo de reponderação sobre o perigo (pericula libertatis) que, em concreto, justificou a decisão de aplicação da medida de prisão preventiva.

Na decisão recorrida afirmou-se o seguinte, quanto a esta questão:

“Fica dessa forma afastada a bondade da aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade. Sublinhe-se: mesmo a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se me afigura insuficiente para fazer face ao perigo de fuga que se identifica no caso, uma vez que a eficácia de tal medida depende sempre de alguma motivação psicológica contrária à fuga. Ora, havendo um propósito sério de fuga — e no caso dos autos, como dissemos, tal perigo é elevadíssimo — a medida de OPH, mesmo que fiscalizada à distância, poderia ser contornada sem dificuldades assinaláveis através de actuação física do arguido.

Motivos pelos quais concluo que somente a prisão preventiva do arguido constituirá suficiente obstáculo físico ao identificado perigo de fuga, sendo pois necessária a sua aplicação.

As razões invocadas na decisão recorrida para fundamentar o mencionado perigo são consistentes e válidas. Com efeito, apesar é óbvio que as preocupações de confinamento do arguido são, em função do afirmado, fortíssimas, mantendo-se as preocupações evidenciadas na decisão recorrida. Por tudo, sendo insubsistentes as razões invocadas pelo recorrente, os indícios fortes e os perigos que o despacho recorrido considerou fundadamente existirem, a prisão preventiva mantém-se adequada às exigências cautelares requeridas no caso e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

O recurso é, pois, improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

.................................................................................................

1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Claus Roxin, Derecho Procesal Penal (tradução da 25.ª edição alemã), Editores Del Puerto, Buenos Aires, 2006 (3.ª reimpressão), página 249 (tradução nossa). Essencialmente no mesmo sentido, vide Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal II, Editorial Verbo, Lisboa, 2008, páginas 285 /286): “As medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial (…) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias”.

3 Ou seja, as “exigências processuais de natureza cautelar” previstas no art.º 191.º, n.º 1, estando vedada a valoração de quaisquer outros fins, nomeadamente substantivos, retributivos ou preventivos.

4 Fumus comissi delicti.

5 Neste sentido, vide o Acórdão, que seguimos de perto, proferido neste TRE em 13.11.2012, processo n.º 148/12.9JBLSB-C.E1, disponível em www.dgsi.pt.