Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA SUSPEITO CONHECIDO E LOCALIZÁVEL DISCRICIONARIEDADE TÁTICA DA INVESTIGAÇÃO PROPORCIONALIDADE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DE DEFESA | ||
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Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. As provas devem, por princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, sendo que as exceções a esta regra, como sucede nas declarações para memória futura (artigo 271.º, do CPP), não podem afetar os direitos de defesa. II. As declarações para memória futura constituem produção de prova testemunhal, e poderão ser valoradas em julgamento. III. Nos casos em que o inquérito corra contra pessoa não determinada – por o suspeito não estar ainda identificado – ou sendo conhecida a sua identidade, não tenha sido possível constitui-lo arguido, é admissível a recolha de declarações para memória futura. IV. Podendo excecionalmente admitir-se a realização de tal diligência antes da constituição de arguido, nas situações em que o suspeito sendo conhecido e localizável mas em que o MP, por razões de discricionariedade tática na investigação, opta por retardar o interrogatório e a constituição de arguido, se fundadamente se demonstrar ser proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material. V. Sem tal ressalva, quando o suspeito é conhecido e localizável e não foi constituído arguido, propositadamente, para que não exerça os direitos que lhe são garantidos pelos artigos 18.º, § 2.º, 20.º, § 4.º e 32.º, § 5.º da Constituição e 6.º, § 1.º da CEDH, não podem produzir-se tais declarações. | ||
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Decisão Texto Integral: | I – Relatório a. No âmbito de inquérito que corre termos na Procuradoria da República de …, o Ministério Público requereu ao Mm.o Juiz de Instrução Criminal, a realização de diligência para tomada de declarações para memória futura, relativamente a duas crianças de 7 anos de idade, no âmbito de crime de violência doméstica, alegadamente praticado sobre elas pela sua mãe, na sequência de denúncia apresentada pelo pai das crianças e ex-marido da suspeita. b. Perante tal requerimento, tendo em consideração os dados disponíveis, a Mm.a Juíza de Instrução Criminal proferiu o seguinte despacho: «Não obstante de todo concordarmos com a qualificação jurídica dos factos participados (perante a exposição de atos que não se dirigem às testemunhas), certo é que, sendo o suspeito, conhecido e facilmente encontrável, não se mostra constituído arguido. A diligência para memória futura na ausência de tal pessoa, por não constituída arguida, implica diminuição das garantias de defesa e do contraditório da suspeita, por a defesa de um qualquer defensor nomeado não puder abranger os factos e a versão factual que poderia ser trazida pela suspeita. Nestes termos, devolvam-se os autos, que se encontram em fase perfeitamente embrionária, a fim de a suspeita ser constituída arguida, sendo que o M.P. nem sequer justifica a diligência na ausência de tal constituição.» c. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público veio interpor o presente recurso, rematando-o com as seguintes conclusões1: - As ofendidas AA e BB são vítimas especialmente vulneráveis, desde logo, atenta a idade das mesmas (têm apenas seis anos de idade!) e bem assim porquanto ao testemunhar poderão ter de o fazer contra a progenitora. - A audição de AA e BB é fundamental para a descoberta da verdade material, sendo fundamental ouvir estas crianças sobre o que efetivamente aconteceu, de modo a descobrir a verdade e a que seja possível fazer justiça. - A tomada de declarações para memória tem sustentação legal por aplicação da lei de proteção de testemunhas (artigos 26º/2 e 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho), do artigo 33.º Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e da lei do estatuto de vítima (artigos 17º, 21º, 22º, 24º), em face da sua condição de vítima especialmente vulnerável (também segundo os artigos 1º/j) e 67º-A, n.º1, al.s i), iii), b), n.º 3 e n.º 4 do CPP). - Só ouvindo, desde já, as crianças ofendidas e em sede de declarações para memória futura se conseguirá evitar a repetição da audição daquelas crianças vítima (especialmente vulneráveis) e protegê-las do perigo de revitimização, evitando-se a sua vitimização secundária (artigo 17º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro). - As garantias de defesa e contraditório que assistem ao arguido sofrem limitações de modo a satisfazer outro interesse/valor igualmente relevante, o de garantir o interesse público da descoberta da verdade material e da realização da justiça “«cuja satisfação não raras vezes passa pela necessidade de aquisição e salvaguarda de prova que, ao não ser produzida de forma imediata, mesmo numa fase em que não há arguidos constituídos, pode ficar irremediavelmente perdida” d. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação limitou-se a concordar com a posição assumida no recurso. e. Foi efetuado o exame preliminar. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. O recurso suscita apenas uma questão, que é a de saber se estão reunidos os pressupostos legais que permitem a tomada de declarações para memória futura às duas crianças identificadas, sem prévia constituição de arguido, que é a mãe de tais infantes. 2. Apreciando Não nos sobram dúvidas que ao requerer as declarações para memória futura das duas crianças, o requerente giza acautelar a prova do ilícito criminal enunciado, focando a sua estratégia no regime da proteção de testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de julho) e no estatuto de vítima (Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro). Mas, a nossos olhos, não elabora uma fundamentação suficientemente explicativa da bondade dessa estratégia, perante as circunstâncias concretas do caso, que são no essencial as seguintes: - as vítimas são duas irmãs gémeas, com 7 anos de idade; - a suspeita da prática do crime é a sua mãe; - sendo o denunciante é o pai das crianças, separado da mãe destas e com regime de exercícios das responsabilidades parentais já regulado; - e o objeto das declarações que se pretendem documentar para memória futura, respeitam ao que a mãe das referidas crianças lhes terá dito acerca do pai delas (pretende-se que as crianças repitam perante o juiz, em declarações para memória futura, o que alegadamente terão ouvido à sua mão e repetido ao seu pai); - e que tudo decorra sem prévia constituição de arguido. Não temos dúvidas que é ao titular da ação penal que cabe delinear a estratégia da investigação. Mas não estamos menos seguros de que é ao juiz de instrução criminal que cabe garantir os direitos fundamentais em presença (cf. artigos 27.º, § 2.º, 28.º, § 1.º, 32.º, § 4.º e 34.º, § 2.º da Constituição; 17.º, 268.º, 269.º CPP; e 119.º, § 1.º da LOSJ2). E isso, desde logo, pela elementar razão de que só o juiz se encontra descomprometido com a investigação, mas também em razão do seu estatuto (de órgão jurisdicional) impregnado da neutralidade que num Estado de direito democrático é suposta.3 No processo penal só o juiz é o «terceiro na discórdia» (usando a feliz expressão de Perfecto Andrés Ibañez4). Temos as maiores reservas de que a devida proteção das vítimas, sobretudo sendo crianças de tenra idade e, para mais, com o envolvimento dos seus progenitores, se faça (ou se faça apenas) através da mobilização dos instrumentos e normativos do Código de Processo Penal, indicados pelo recorrente! Melhor talvez seria fazer intervir as regras do direito civil (do direito da família) e apelar aos instrumentos e procedimentos da jurisdição de família. Atente-se que para as crianças de tenra idade (como o são as que têm 7 anos de idade) a sua mãe é o seu mundo. Daí que o abalo desse mundo exija cautelas extraordinárias, sobretudo quando se pretende que as crianças vão a juízo não apenas sem a sua mãe, mas depor contra ela. Compreende-se, claro, que há circunstâncias em que isso se impõe – podendo até esta ser uma delas. Cremos, porém, não terem as mesmas sido suficientemente explicitadas; pelo menos em termos de arredarem dúvidas elementares sobre a sua razoabilidade. Por outro lado, as razões adiantadas pelo Ministério Público para não constituir arguida a suspeita que é já conhecida - que é a mãe das duas testemunhas que são a única prova do caso - só aparentemente se mostram atendíveis (id est justificadoras da realização da produção da prova na ausência da suspeita propositadamente não constituída arguida). Diz-se que se a suspeita for constituída arguida e participar - como ordinariamente deve suceder na diligência de declarações para memória futura - haverá o risco de esta instruir as testemunhas (suas filhas de tenra idade)! Claro que esse risco existe. Não existirá esse mesmo risco de instrumentalização por banda do pai? Será razoável levar a juízo testemunhas de tão tenra idade - que têm até o direito de recusar prestar declarações - nas costas da sua mãe? Mas o ponto decisivo (ou o mais incisivo) é, porém, outro: aquele que justamente constitui o objeto do recurso, id est o fundamento alinhavado na decisão recorrida. Pois bem. Conforme decorre da lei (artigo 271.º, § 1.º CPP), as declarações para memória futura são produção de prova, concretamente produção de prova testemunhal, em termos tais que, produzida em inquérito, pode ser levada em conta em julgamento. Nestas circunstâncias não se compreende minimamente a razão pela qual sendo a suspeita conhecida se não constituiu a mesma arguida, possibilitando-lhe não apenas o pleno exercício dos seus direitos de defesa, como (eventualmente) dar explicações ou aventar razões que esclareçam o novelo que se adensa. Pretender – como é tese do recorrente - que a nomeação e presença de defensor, que não conhece e não conferenciou com a suspeita, é suficiente para assegurar o contraditório é uma simples falácia, não havendo (não podendo haver) em tais circunstâncias – como se afigura óbvio - verdadeiro contraditório. A estratégia delineada pelo titular da ação penal não poderá legitimamente fazer-se à custa dos direitos e garantias de defesa da suspeita, que é conhecida; e que não foi constituída arguida, propositadamente, para que não exerça os direitos que lhe são garantidos pelos artigos 18.º, § 2.º, 20.º, § 4.º e 32.º, € 5.º da Constituição e 6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - CEDH, vulnerando-se de passagem os artigos 271.º, § 3.º e 5.º ex vi 271.º, § 6.º e 61.º, § 1.º, al. a) e e) CPP. Sendo, em tais circunstâncias, desproporcionada a contração de tais direitos fundamentais, nomeadamente o de participar na diligência de declarações para memória futura das testemunhas indicadas. O que se deixou alinhavado foi, no essencial, devidamente sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 11out2017.5 Nesse aresto, que contudo versa sobre questão diversa (concretamente sobre a necessidade de leitura das declarações para memória futura em audiência para que o conteúdo respetivo possa ser nela valorado), diz-se o seguinte: «O princípio do contraditório é exercitado num primeiro momento, quando são tomadas as declarações para memória futura, dada a possibilidade de intervenção neste ato de todos os intervenientes processuais e obrigatoriamente com a presença do defensor do arguido e do MP (art. 271.º, n.º 3, do CPP), e ainda devido à possibilidade de formulação de perguntas diretamente à pessoa que presta as declarações (art. 271.º, n.º 5, do CPP) (…) O princípio do contraditório – lê-se no acórdão do STJ de 23-04-2014 (Proc. n.º 68/08.1GABNV.L1.S1 - 3.ª Secção) “impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões, antes de ser tomada qualquer decisão que o afete. Os elementos de prova devem, por princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, mas as exceções a esta regra, como as declarações para memória futura previstas no artigo 271.º, do CPP, não podem afetar os direitos de defesa. O direito de o arguido contrariar a prova decorrente das declarações para memória futura pode abranger o conteúdo do depoimento e os fatores que possam afetar a credibilidade da testemunha, como também as circunstâncias e o modo da sua prestação. Este direito deve ser exercido no ciclo processual próprio, ou seja, quando as declarações são prestadas e para as quais o defensor do arguido é convocado (…)”; - que “(…) a alteração introduzida ao artigo 271.º, do CPP, pela Lei n.º 48/2007 visou, como expressamente se consigna na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, garantir o contraditório «na sua plenitude» em todos os casos de declarações para memória futura, «uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento»”; - que (com subscrição da doutrina do Ac. do TC n.º 367/2014), “«Estando em causa declarações do ofendido – rectius, provas constituendas, ainda que documentadas em auto – o contraditório deve realizar-se aquando da respetiva aquisição, isto é, durante o interrogatório previsto nos n.º 3 e 5 do art. 271.º, do CPP. Apesar de este interrogatório não seguir os ditames do artigo 348.º, do CPP (cross-examination), certo é que é nesse momento que se revela mais importante conferir ao arguido, em cumprimento dos imperativos constitucionais, a possibilidade efetiva de contribuir para as bases da decisão (…)»”; - e ainda que “Numa síntese conclusiva quanto à dimensão e salvaguarda do princípio do contraditório no âmbito das declarações para memória futura, referenciando-se jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-11-2007, já citado: «As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (art. 271.º, n.º 1, do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório. O princípio do contraditório – com assento constitucional no art. 32.º, n.º 5, da CRP – impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete, designadamente que seja dada ao acusado a efetiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação. A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório leva a que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (…). A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do TEDH, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art. 6.º, § 1.º da CEDH. Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as exceções a esta regra não poderão, no entanto, afetar os direitos de defesa, exigindo o art. 6.º, § 3.º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efetiva possibilidade de confrontar e questionar diretamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cf., v.g., entre muitas referências, o ac. Vissier c. Países Baixos, de 14-02-2002). Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório”.» Daremos ainda breve nota do que decidiu o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 23nov2016, no processo 382/15.0T9MTS.P1, do qual foi relator Manuel Soares: «(…) A tomada de declarações para memória futura foi requerida pelo MP (…) num momento em que (…) o suspeito estava perfeitamente identificado mas não tinha ainda sido constituído arguido. (…) A jurisprudência maioritária tem considerado que a proteção dos interesses na realização da justiça e da descoberta da verdade material levam a que se deva aceitar a possibilidade de se realizar a diligência de declarações para memória futura nos casos em que o inquérito corra contra pessoa não determinada ou contra pessoa determinada mas não localizável. Decidiu-se neste sentido nos seguintes acórdãos: STJ, de 25mar2009 (processo n.º 09P0486) e 16jun2004 (processo n.º 049721); TRP, de 1fev2006 (processo n.º 0515949), 12out2005 (processo n.º 0544648) e 13jul2005 (processo n.º 0540595); TRC, de 29out2010 (processo n.º 380/08.0TACTB-C.C1); TRL, de 7fev2012 (processo n.º 3610/10.4TAALM.L1.5) e 22mar2011 (processo nº 432/06.0JDLSB.L1.5) e TRE, de 7jul2011 (processo n.º 100/11.1YREVR).6 Dos estudos de António Gama (“Reforma do Código Processo Penal: Prova Testemunhal, Declarações para memória futura e reconhecimento”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 19, 2009) e de Cruz Bucho (“Declarações para Memória Futura - elementos de estudo”, 2012[1]) retiram-se os principais argumentos a favor desta solução interpretativa: (i) o artigo 271º não enumera como pressuposto da diligência que já tenha havido constituição de arguido ou que o inquérito corra contra pessoa determinada, pelo que a obrigatoriedade da convocatória e presença referidas no seu nº 3 só existe nessas situações; (ii) as declarações para memória futura não são exactamente uma antecipação parcial da audiência de julgamento, apesar do que consta na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da norma, dado que a prova aí recolhida pode nem vir a ser utilizada no julgamento, por exemplo por se ter tornado necessária, e que há outros desvios importantes em relação às regras da audiência; (iii) se o inquérito não corre contra pessoa determinada, não tem sentido falar em contraditório, porque por definição não há ainda um interesse cujo confronto possa ser assegurado e (iv) há outros casos em que a lei admite a produção de prova ainda subordinada ao princípio contraditório e ao respeito pelos direitos de defesa, em que a presença do arguido é dispensada, até contra a sua vontade. Aderimos claramente a esta solução interpretativa de admitir a possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que tenha havido constituição de arguido, nas situações em que o inquérito corra contra pessoa não determinada – em que o suspeito, portanto, não está ainda identificado – ou em que se conheça a identidade do suspeito mas não tenha sido possível constitui-lo arguido, por desconhecimento ou dificuldade de localização para notificação em tempo útil. Para além disso, ainda podemos conceber a realização daquela diligência antes da constituição de arguido, em situações em que o inquérito já determinou a sua identidade e o mesmo é localizável, mas em que o MP, por razões de discricionariedade tática na investigação, opta por retardar o interrogatório e constituição de arguido. Estas serão, porém, situações muito excecionais, a ver casuisticamente, nas que se possa aceitar como proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material. (…). Do nosso ponto de vista não havia razão ponderosa para retardar a constituição de arguido para momento posterior à tomada de declarações para memória futura no inquérito em que essa diligência foi requerida pelo MP. Uma vez que o suspeito estava determinado, era obrigatória a sua constituição como arguido e o seu interrogatório – art. 58.º, n.º 1, al. a), e 272.º, n.º 1, do CPP (…)» Por fim, tomar as declarações para memória futura às crianças, sem participação na diligência da suspeita já identificada, com a preterição de (verdadeiro, efetivo) contraditório, será sempre um poderoso fator conducente à chamada das vítimas a prestar novamente declarações em audiência – na medida em que, mesmo com os limites decorrentes dos artigo 271.º, § 8.º CPP e 24.º, § 6.º do Estatuto da Vítima importará, tanto quanto possível e face à respetiva preterição no ato das declarações para memória futura, garantir a final a sua plenitude. Adensando-se esse risco com a preterição da participação da arguida e consequente limitação do contraditório não fundado em razões inequívocas. Em tais circunstâncias as declarações para memória futura estariam a tentar um objetivo que, mercê das específicas condições delas, se veria do mesmo passo fortemente minado!7 Em suma: o recurso não se mostra merecedor de provimento. III - Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a decisão recorrida. b) Sem custas, por o recorrente estar delas isento (artigo 522.º CPP). Évora, 28 de janeiro de 2025 J. F. Moreira das Neves (relator por vencimento) Mafalda Sequinho dos Santos Carla Francisco (vencida - com declaração anexa) VOTO VENCIDO Nos presentes autos está em causa o deferimento ou o indeferimento de um requerimento feito pelo Ministério Público para tomada de declarações para memória futura, durante o inquérito, a duas vítimas de um crime de violência doméstica, em investigação, menores de idade e filhas da agressora. Atento o disposto no art.º 271º do Cód. Proc. Penal, a tomada de declarações para memória futura constitui um meio de produção antecipada de prova, com vista a assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, prevenindo o perigo da impossibilidade da sua produção em sede de julgamento. Estando em causa a investigação de um crime de violência doméstica, a produção antecipada de prova não se deve tanto ao perigo adveniente da impossibilidade da sua produção na audiência de julgamento, mas antes tem por finalidade a protecção da própria vítima, a fim de minimizar a vitimização secundária e repetida, prevenir quaisquer formas de intimidação e de retaliação e evitar também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova. Há que ter em conta que determinadas circunstâncias, como o lapso de tempo decorrido entre a formalização das denúncias e a tomada de declarações, a fragilização emocional e a ambivalência das vítimas, muito presentes nestas situações, e a sua dependência emocional do agressor podem influenciar negativamente os depoimentos, os quais devem ser recolhidos tão cedo quanto possível. O art.º 33º da Lei nº 112/2009, de 16/09, permite que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura, mas não estabelece a obrigatoriedade da prática desse acto, pelo que é necessário definir um critério que permita determinar os casos em que tal situação deve ocorrer. Esse critério deve resultar da ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável às finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. Nos presentes autos foi atribuído a AA e BB o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis. Resulta indiciado que ambas as vítimas são crianças, de 7 anos de idade, que se encontram no meio de um conflito parental, com dois progenitores desavindos em pleno processo de divórcio, tendo seguramente sido estabelecido, ou indo ser a breve trecho, um regime de convívios das vítimas com a agressora, sua mãe. Independentemente de se saber se existe já ou irá existir um processo de promoção e protecção relativamente a estas duas crianças, com monitorização ou não dos convívios com a sua mãe, o certo é que a mãe é uma figura central na vida das filhas, com as quais irá conviver ou, de algum modo, privar até ao desfecho final do presente processo. Resulta também dos autos que ambas as vítimas se encontram psicologicamente fragilizadas, surgindo a tomada de declarações para memória futura como um mecanismo que as pode proteger do perigo de revitimização, evitando, à partida, a repetição da sua audição, e podendo ainda acautelar a genuinidade dos seus depoimentos em tempo útil, sobretudo, como salienta o Ministério Público, antes da constituição da suspeita como arguida, facto que pode alterar o comportamento desta última, provocando o recrudescimento das ameaças e justificando inclusive a aplicação de medidas de coação. Nestes casos, quanto mais cedo for colhido o depoimento das vítimas, mais completo e fidedigno o mesmo é e menos condicionado por eventuais ameaças e pressões psicológicas por parte da suspeita, tendo em conta a demora previsível e habitual da investigação deste tipo de crimes e a necessidade de precisão e rigor na condução da mesma, com vista à descoberta da verdade. É também sabido que quanto mais tardiamente forem tomadas declarações às vítimas, mais se intensificam as perturbações de memória advenientes do trauma, sobretudo relativamente a crianças de tenra idade. A tomada de declarações para memória futura permite ainda aliviar as vítimas da pressão psicológica de terem que prestar declarações em julgamento, mesmo que tal não ocorra na presença do arguido, porquanto a ida a julgamento é sempre intimidatória, sendo as declarações prestadas num ambiente formal e solene, desconforto que se pretende evitar relativamente a este tipo de vítimas, minimizando a vitimização secundária. No caso das menores, uma eventual ida a julgamento, depor contra a sua mãe, será sempre uma situação traumatizante e estigmatizante, que pode causar mais sequelas no equilíbrio psicológico e na formação da personalidade das menores, que o instituto de tomada de declarações para memória futura pretende prevenir. A tomada de declarações para memória futura o mais cedo possível permite à vítima depor com maior pormenor, prestar um depoimento mais completo e fidedigno e tem também como escopo evitar a repetição da tomada de declarações durante o inquérito e também nas fases de instrução e julgamento. O despacho em apreço considera que a tomada de declarações para memória futura antes da constituição da suspeita como arguida, poderá pôr em causa os direitos de defesa desta última. Ora, sendo as declarações para memória futura um meio antecipado de produção de prova e simultaneamente um meio de proteção da vítima, devendo ser tomadas no mais breve espaço de tempo possível, pelas razões supra referidas, resulta evidente, e não contende com nenhuma disposição legal, que as mesmas podem ter lugar antes da constituição de um suspeito como arguido. A tomada de declarações para memória futura é também um direito da vítima, sobretudo da vítima especialmente vulnerável, o qual não contende com qualquer direito do arguido, maxime do direito ao contraditório, uma vez que o mesmo pode sempre exercer este direito através de defensor que lhe seja nomeado. Por outro lado, no decurso do inquérito será sempre dado conhecimento aos arguidos de todos os elementos probatórios aquando seu interrogatório, conforme previsto nos arts.º 61º, nº 1, alínea c), 141º, nº 4, alíneas d) e e) e 143º, nº 2 do Cód. Proc. Penal. Acresce que, para a constituição de arguido se exige a suspeita fundada da prática de crime e não uma mera suspeita da sua prática, nos termos previstos no art.º 58º, nº 1, alínea a) do Cód. Proc. Penal. Ora, a notícia do crime resulta da denúncia, geralmente por parte da vítima, e é, sobretudo, através das declarações desta última que se conseguem apurar as circunstâncias em que os factos ocorreram, o que revela também a extrema importância das suas declarações. Daqui se conclui que, não só as declarações para memória futura não dependem da prévia constituição do suspeito como arguido, como também as mesmas podem ajudar a identificar o suspeito e a reconstituir os factos que lhe são imputados. No sentido do decidido, podem-se confrontar os seguintes acórdãos, todos consultáveis in www.dgsi.pt: Acórdão do TRL, datado de 7/03/23, proferido no processo nº 658/22.0T9LRS-A.L1-5, em que foi relatora Maria José Machado, Acórdão do TRC, datado de 07-04-2021, proferido no processo nº 86/20.1T90FR-A.C1, em que foi relatora Isabel Valongo, Acórdão do TRL, datado de 4/06/2020, proferido no processo nº 382/19.0PASXL-A.L1, em que foi relatora Leonor Botelho, Acórdão do TRP datado de 21/03/2018, proferido no processo nº 199/17.7GCOAZ-A.P1, em que foi relator Francisco Mota Ribeiro, Acórdão do TRL datado de 30/04/2020, proferido no processo nº 14/20.4PBRGR-A.L1, em que foi relatora Maria do Carmo Ferreira. Em face do exposto, entende-se que seria de conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido. Carla Francisco
.............................................................................................................. 1 Extraindo-se apenas as verdadeiras «conclusões», que nos termos da lei e da melhor exegese desta, constituem apenas: o «resumo das questões discutidas na motivação» (por todos cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, p. 1136, nota 14). 2 Lei de Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. 3 Sobre a distinção da função jurisdicional relativamente a outras funções do Estado, cf. Maria de Fátima Mata-Mouros, Juiz das liberdades – Desconstrução de um mito do processo penal, Almedina, 2011, pp. 65 ss. 4 Perfecto Andrés Ibañez, Tercero en discordia – Jurisdición y juez del Estado Constitucional, Editorial Trotta, 2015. 5 Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017, tirado no proc. 895/14.0PGLRS.L1-A.S1, relator Manual Augusto de Matos: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/836B6B0109F0126B802581B80050A5F2 6 Todos acessíveis na base de dados documentais da DGSI www.dgsi.pt 7 Sobre este particular aspeto cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 18out2018, proc. 207/14.3PATVR.E2, relator José Proença da Costa. |