Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1223/22.7T8FAR-A.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PESSOA COLECTIVA
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A incompetência internacional, por se tratar de uma incompetência absoluta, nos termos dos artigos 96.º, alínea a) e 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
II – É de aplicar a desconsideração da pessoa coletiva quando indiciariamente se comprova que a requerente e o requerido adquiriram a totalidade das quotas de uma sociedade, que não tinha qualquer atividade e cujo único património era uma moradia, tendo, a partir desse momento, passado a residir nessa moradia, fazendo dela a sua casa de morada de família, sendo que ambos optaram por adquirir, deste modo, a referida moradia para não pagarem os impostos devidos pela sua aquisição.
III – É de atribuir a casa de morada de família provisoriamente ao requerido quando indiciariamente se prova que o mesmo foi vítima de violência doméstica por parte da requerente, tendo sido esse o motivo pelo qual o requerido se viu obrigado a sair da referida casa e indiciariamente se prova que a requerente efetuava subarrendamentos da casa de morada de família sem o consentimento do requerido, não dividindo com ele as rendas que obtinha e nem pagando com elas qualquer despesa da casa, obrigando o requerido a proceder ao pagamento de todas as despesas da referida casa, apesar de já lá não residir.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1223/22.7T8FAR-A.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
I - Relatório
AA veio, em incidente por apenso à ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, requerer a atribuição da casa de morada de família, contra BB, solicitando, a final, que o respetivo pedido seja julgado procedente por provado, atribuindo-se à requerente a casa de morada de família, sita na ..., Estrada ..., ..., ....
Para o efeito, e em síntese, alegou que entre a requerente e o requerido encontra-se pendente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, encontrando-se ambos casados sob o regime de separação de bens.
Mais alegou que a requerente permanece no lar conjugal, só dispondo da casa de morada de família para habitar, tendo aí residido ininterruptamente desde a respetiva aquisição, a qual constitui a sua única residência, local, aliás, onde possui todos os seus bens e pertences.
Alegou igualmente que o requerido abandonou o lar conjugal e separou-se de facto da requerente em abril de 2022, indo residir para a zona de ..., onde se instalou e continua a viver.
Alegou também que a requerente tem 49 anos, não tem trabalho e não tem qualquer rendimento, por ter ficado dependente do cônjuge requerido desde o casamento, visto ter deixado a sua carreira profissional em ... para vir morar em Portugal na referida casa de morada de família, tendo vendido em ... todos os seus bens móveis e imóveis para adquirir a referida casa.
Invocou, de igual modo, que o requerido tem estabilidade financeira para providenciar e manter nova residência, como, aliás, tem feito até agora.
Por fim, alegou que a quota parte pertencente ao outro cônjuge lhe deve ser dada de arrendamento, no valor mensal de € 450,00.
O requerido veio contestar, requerendo, a final, a nulidade do incidente de atribuição da casa de morada de família, ou, caso assim se não entenda, ser a contestação julgada procedente por provada e, em consequência:
a) Não ser atribuído à Requerente o direito a residir na casa de morada de família;
b) Ser reconhecido ao Requerido o crédito de € 991,54 (novecentos e noventa e um euros e cinquenta e quatro cêntimos) por cada mês em que a Requerente permaneça na habitação, a título de enriquecimento sem causa;
c) Ser determinada a venda da outrora casa de morada de família nos termos peticionados na petição inicial.

Alegou, sinteticamente, para o efeito, que o mandatário do requerido não foi notificado do presente incidente, o que constitui nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, nulidade essa que invoca.
Mais alegou que apenas saiu da casa de morada de família por ser impossível residir com a requerente, tendo esta se recusado a sair, sendo que também não possui qualquer outro imóvel, tendo residido, durante algum tempo, por favor, em casa de um amigo e residindo atualmente em casa arrendada, em ..., onde paga por mês a renda de € 707,00.
Alegou ainda que o imóvel onde a requerente reside foi adquirido exclusivamente com o dinheiro proveniente de um imóvel localizado em ..., da sua exclusiva propriedade.
Alegou igualmente que a Autora, apesar de ser a titular de 50% das quotas da Sociedade “Y... Limited”, proprietária da referida habitação, não adquiriu com capital próprio tais quotas, tendo o requerido lhe doado o equivalente a metade do imóvel, ou seja, 50% das quotas da referida sociedade, doação essa que deve caducar com o decretamento do divórcio.
Alegou também que a manutenção do referido imóvel comporta custos avultados que nenhuma das partes tem capacidade de suportar, sendo que a requerente não logrou provar a premente necessidade em que lhe seja atribuído a outrora casa de morada de família, ou seja, um imóvel cujo valor de mercado ronda aproximadamente um milhão de euros, em detrimento de um qualquer outro imóvel ou quarto.
Mais alegou que urge vender o referido imóvel, cujas despesas de manutenção se cifram em € 11.898,44, sendo que a requerente se encontra a arrendar quartos da propriedade a turistas, locupletando-se desses valores à custa do requerido, quando é este que procede ao pagamento de todas as despesas.
Alegou, de igual modo, que tem direito à totalidade dos montantes arrecadados pela requerente a título de rendas pagas pelo arrendamento de quartos do imóvel, visto tais arrendamentos terem gerado despesas integralmente pagas pelo requerido.
Alegou ainda que a requerente tem curso superior e perfeito domínio da língua inglesa, podendo, por isso, trabalhar e prover à sua subsistência, sendo que o requerido tem 74 anos, vê a sua saúde a deteriorar-se e não vislumbra poder ver os seus rendimentos ampliados, auferindo, por mês, € 2.879,17, e pagando todas as suas despesas, bem como todas as despesas com a outrora casa de morada de família.
Concluiu, por fim, que conseguindo a requerente dispor de todos os meios para prover à sua subsistência, não deverá a outrora casa de morada de família ser-lhe entregue de arrendamento.
Por despacho judicial de 13-10-2022 foi indeferida a invocada nulidade.
Realizada, em 23-11-2022, a tentativa de conciliação, não foi possível obter acordo.
O requerido veio, em 29-11-2022, solicitar que o cônjuge a quem seja atribuído o direito a habitar o imóvel seja responsável pelas despesas do mesmo, devendo ainda a requerente transferir, para a conta do requerido, metade do pagamento do IMI, ou seja, o montante de € 159,17.
Por despacho judicial de 16-12-2022, o juiz da 1.ª instância notificou as partes para juntarem aos autos certidão de registo predial do imóvel alegadamente casa de morada de família, bem como eventual contrato de arrendamento celebrado entre eles e a sociedade alegadamente proprietária do dito imóvel.
O requerido veio responder alegando nunca ter celebrado qualquer contrato de arrendamento com a dita sociedade.
A requerente veio alegar que sendo a proprietária da casa de morada de família uma sociedade detida exclusivamente pelos requerente e requerido, na proporção de 50% cada, não pode a mesma ser considerada um terceiro, sendo que, em último caso, deverá considerar-se que ambos têm habitado a casa de morada de família em regime de comodato formal, visto a sociedade se confundir com os dois.
Invocou ainda que não sendo possível atribuir a casa de morada de família nos termos requeridos, deverá o tribunal fazê-lo nos termos do artigo 1793.º do Código Civil e dar de arrendamento a metade do rendimento do cônjuge requerido na casa, mediante renda mensal de valor a apurar em avaliação judicial, o que peticionou.
Mais referiu que a referida casa foi comprada pela sociedade “Y... Limited” por questões fiscais, confundindo-se o direito à propriedade da casa, desde o momento da sua compra, com a titularidade da sociedade, sendo, por isso, a casa de morada de família um bem comum do casal, embora titulada pela referida sociedade, pelo que a requerente nunca poderá ser desalojada da referida casa, por ser dela dona na proporção de 50%.
Em 10-07-2023 foi proferida decisão provisória sobre o uso da casa de morada de família, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, decide o Tribunal provisoriamente nos termos do n.º 7 do artigo 931.º do CPC:
I. Atribuir o uso da casa de morada de família correspondente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...84, da freguesia ..., concelho ... e na respetiva matriz predial urbana sob o artigo matricial n.º ...51, bem como sob a matriz predial rústica sob o artigo ...13, da aludida freguesia e concelho, ao Requerido, BB, a partir da data de 1/9/2023.
II. Determinar que a Requerente, AA, entregue ao Requerido, o imóvel aludido em I), correspondente à casa de morada de família, até ao dia 1/9/2023, livre de pessoas e bens.
III. Proibir o subarrendamento, total ou parcial, do imóvel, salvo consentimento escrito do outro cônjuge, nos termos do artigo 1682.º-B do CC.
IV. Determinar que o Requerido pague, a título de renda / contrapartida pelo uso exclusivo do imóvel, à Requerente, a quantia mensal de € 900,00, a qual será paga até ao dia 8 de cada mês. Sem prejuízo, deverá ainda o Requerido pagar 2 meses adiantados (€ 1.800,00) até ao dia 1/9/2023 e contra a entrega do imóvel por parte da Requerente, sendo uma das rendas correspondente ao primeiro mês e a outra correspondente a caução, sendo devolvida pela Demandante aquando da saída do imóvel (por exemplo, na sequência de venda ou partilha do bem).
V. Determinar que todas as despesas do imóvel sejam suportadas pelo Requerido a partir de 1/9/2023.
Inconformada com a decisão proferida, veio a requerente interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
I) 0 Tribunal recorrido é territorial e internacionalmente incompetente para constituir de arrendamento o imóvel propriedade da sociedade Y... LLC com sede em ..., a qual não deu o seu consentimento nem foi notificada nos termos do artigo 63.º, alínea b), do CPC. Os sócios não são portugueses, a sociedade é ..., onde aí tem a sua sede, pelo que de acordo com as regras do direito internacional privado, são os Tribunais ... ou britânicos os competentes para apreciar e dirimir o litígio.
II) Para o caso de o Tribunal entender por interpretação extensiva que a sociedade e os sócios têm a mesma personalidade jurídica, deve a casa de morada de família ser entregue à recorrida com os fundamentos agora alegados.
III) Quaisquer litígios sobre imóveis da sociedade, devem ser dirimidos entre a sociedade e os sócios, no âmbito das estritas relações entre os sócios e a sociedade, não tendo pois o tribunal a quo competência no âmbito destes autos poderes para se imiscuir na administração da sociedade.
IV) A douta decisão recorrida que decidiu atribuir provisoriamente a casa de morada de família ao recorrido baseou-se em factos controversos, devendo os mesmos serem apurados em sede de audiência de julgamento final, pelo que deve ser revogada, mantendo-se o "status quo" existente até à decisão final.
V) A necessidade da casa ( ou melhor, a premência da necessidade) é o fator principal e determinante a atender na decisão judicial, por que é o cônjuge em maior dificuldades económicas é que deve ser mantido na casa, neste caso a recorrente. A recorrente tem 50 anos de idade, não tem trabalho, não tem qualquer rendimento, porquanto ficou dependente do recorrido desde o casamento. Vive em situação de miséria extrema, sem dinheiro para prover às necessidades básicas, designadamente alimentar-se. Ao invés, o recorrido tem estabilidade financeira para providenciar e manter nova residência como tem feito até agora.
VI) A douta decisão violou por má interpretação o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), artigo 607.º n.º 4, artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), artigo 931.º, n.º 4 e n.º 7, e artigo 990.º, todos do CPC e artigo 1793.º do Código Civil.
Termos em que V. Exas. concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos das presentes alegações, farão inteira JUSTIÇA!
O requerido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida, terminando com as seguintes conclusões:
A. Não existe contradição alguma entre os factos provados e os fundamentos da decisão de mérito do Tribunal a quo.
B. O Tribunal a quo andou bem ao considerar o instituto jurídico da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Y... Limited.
C. E nessa consequência a atribuir a casa de morada de família ao Recorrido, constituindo para o efeito um contrato de arrendamento.
D. O Tribunal é territorial e materialmente competente para decidir, não existindo qualquer incompetência internacional, uma que se trata de matérias abrangidas pelo Direito da Família, não existindo qualquer questão de direito societário a dirimir nos presentes autos.
E. O Recorrido foi forçado a sair da casa de morada de família e a intentar uma ação de divórcio contra a Recorrente em contexto de violência doméstica, agressões físicas, ameaças e injúrias contra si sofridos e praticados pela Recorrente.
F. O Recorrido não tem estabilidade financeira, vivendo com dificuldades e sem uma habitação permanente desde que saiu da casa de morada de família.
G. A Recorrente nunca procurou emprego desde que se separou de facto do Recorrido, sendo este a suportar todas as despesas com o imóvel.
H. Por uma questão de manifesta equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 2016.º do Código Civil, deve o Recorrido ser absolvido do pedido reconvencional da fixação de alimentos deduzido pela Recorrente.
Nestes termos e nos mais de Direito que V.ªs Ex.ªs. mui doutamente provirão:
a) Deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente, por todos os motivos expostos, quanto ao mérito dos argumentos aduzidos, em sede de alegações mantendo-se a douta decisão recorrida.
FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Consignamos que, apesar de a recorrente ter referido, nas suas conclusões, que a decisão recorrida se baseou em factos controversos (conclusão IV), o que poderia indiciar a intenção de os impugnar, não fez aí, como lhe competia, qualquer menção a que factos se referia, pelo que não se apreciará qualquer eventual intenção de impugnação fáctica.
Consignamos ainda que, apesar de na conclusão VI se invocar a violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do Código de Processo Civil, por no descritivo de tais conclusões inexistir qualquer menção às nulidades constantes de tais alíneas, não se procederá à analise de nulidades não invocadas, apesar da menção ao referido artigo.
Assim, no caso em apreço, as questões a decidir são:
1) Incompetência territorial e internacional;
2) Impossibilidade de atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges, por aquela ser propriedade de uma sociedade; e
3) Preenchimento dos requisitos para que a casa de morada de família seja entregue à requerente.
III – Matéria de Facto
O tribunal da 1.ª instância deu como indiciados os seguintes factos:
1. Autor e Ré casaram, um com o outro, em 10 de setembro de 2011, na ... em ..., ..., ....
2. À data do casamento o Autor era viúvo e tinha 63 anos.
3. Sendo que a sua primeira mulher do Autor havido falecido em 2009 devido a doença prolongada.
4. Sendo essa igualmente a data em que Demandante e Demandada se conheceram.
5. Em 2009 a Ré residia em ..., ..., com a sua filha, menor, numa casa arrendada e a renda mensal da aludida habitação perfazia o valor aproximado de € 2.500,00 ....
6. Auferindo a Demandada, a qual, na altura, trabalhava na área de recursos humanos, tendo posteriormente, passado a trabalhar para uma Câmara Municipal, vencimento anual de € 28.000,00 ....
7. Em 2014, e na sequência da sua aposentação, o Autor vendeu a sua habitação própria e permanente em ..., ..., por £ 850.000,00 (oitocentos e cinquenta mil ...).
8. Com o objetivo de, com exclusivo recurso ao produto da referida venda, adquirir um imóvel, imóvel esse que seria habitação permanente do Autor e da Ré em Portugal.
9. O imóvel objeto da aquisição encontrava-se e encontra-se registado em nome da Sociedade Y... Limited, na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...84, da freguesia ..., concelho ... e na respetiva matriz predial urbana sob o artigo matricial n.º ...51, bem como sob a matriz predial rústica sob o artigo ...13, da aludida freguesia e concelho.
10. CC era o beneficiário efetivo da totalidade das ações da Sociedade Y... Limited, proprietária do imóvel.
11. Em 15 de julho de 2014 CC vendeu ao Autor e à Ré a posição de beneficiário efetivo da Sociedade, pelo valor de € 570.000,00.
12. Não obstante, a totalidade do preço pago ser proveniente da venda de um bem próprio do Autor, designadamente, da venda aludida em 7).
13. Após a mudança para Portugal a Ré começou a beber em excesso de forma reiterada, o que já acontecia desde 2011, mas se foi agravando ao longo do tempo.
14. Sistematicamente a Ré permanecia num estado de total embriaguez pelo período de dez dias sem praticamente se alimentar.
15. Tornando-se agressiva para com o Autor em alguns desses momentos.
16. Designadamente, no dia 4/7/2016, por volta das 17h30, depois de o Autor ter-se oferecido para ajudar a Ré a transportar uma mesa de vidro, perante o facto de Demandada ter querido fazê-lo sozinha e ter deixado cair a mesa, partindo-se os vidros desta, a Ré atribuiu as culpas ao Autor, dando-lhe um soco na cara e partindo-lhe os óculos, nessa sequência, atacando-a ainda com uma sandália várias vezes e colocando a sua roupa no exterior da casa, o que motivou o Demandante a deslocar-se à GNR a fim de pedir ajuda.
17. Nessa noite, o Autor preferiu dormir no quarto por razões de segurança, tendo regressado a casa no dia seguinte, altura em que a Ré saiu de casa para comprar bebidas alcoólicas que consumiu durante a tarde, voltando a sair pelas 17h30.
18. Regressando passados 15 minutos e atirando-lhe as chaves do carro, dizendo que este tinha ficado na rua.
19. Nessa sequência, saindo o Autor à rua e verificando que aquela havia embatido com o automóvel num bloco grande de cimento, estando as duas rodas da frente da viatura em cima de tal bloco de cimento e o automóvel com graves danos, tendo ainda os airbags disparado na sequência do embate.
20. Em 1/12/2016, a Ré colocou o rádio no volume máximo, não deixando o Autor dormir, chamando-lhe “piece of shit” e “you are a fucking asshole”, ao que o Demandante baixou o volume do rádio e a Ré lhe atirou uma garrafa de água contra a sua cabeça, não o atingindo por acaso.
21. Nesse seguimento, a Ré deu-lhe um pontapé nas partes íntimas e bateu-lhe com o rádio nas costelas, arranhando-o ainda no peito com as unhas, nesse momento, tendo o Autor de fugir do local, tendo ainda nessa ocasião queimado as roupas do Demandante e atirado as mesmas ao lixo.
22. Em 3/12/2016, pelas 15h30, o Autor tentou recolher as suas roupas para sair da residência, tendo, nessa sequência, a Ré desferido um murro com a mãe direita no sobrolho e no nariz daquele, tendo o Demandante saído de casa.
23. Mas tendo tido de regressar, porque ainda lhe faltavam malas para carregar, nessa altura, atacando-o a Ré com um taco de golfe que desferiu na parte esquerda do tronco do Autor, o que o levou a tentar recolher as malas à pressa, mas desistir posteriormente, saindo de casa sem as malas por receio de ser novamente agredido.
24. Na sequência do episodio descrito em 22) e em 3/12/2016, pelas 16h34, o Autor foi observado no Hospital, apresentando nessa data as seguintes lesões: na região supraciliar,, hematoma subcutâneo com até 2 cm. de diâmetro e ferida até 1 cm; hematomas superficiais na região torácica; contusão da parede torácica.
25. Na sequência do referido em 16) a 24) foram instaurados os inquéritos criminais n.º 23/19.... e 667/19.....
26. Ambos os inquéritos foram arquivados, porquanto o Autor / ofendido declarou não querer prestar declarações, nem pretender o prosseguimento do procedimento criminal.
27. Nessa altura, a partir de 2016, o Autor tentou que a Ré obtivesse tratamento para a dependência do álcool.
28. Tendo também a GNR sugerido à Demandada que fizesse tratamento na Unidade de Desabituação de ..., não tendo esta comparecido a uma consulta a fim de obter acompanhamento.
29. Sendo que o Autor também tentou que a Ré fosse a reuniões dos alcoólicos anónimos, só tendo esta comparecido a duas reuniões e desistido de ir depois.
30. Não obstante, por diversas vezes, chamou a ambulância para acudir a Ré, tendo esta estado a soro por duas ocasiões na sequência de consumo excessivo de álcool.
31. Em data incerta, mas ocorrida em 2021-2022, a Ré derrubou uma porta interna da habitação, atirou a maioria das roupas do Autor para a piscina e levou alguns dos seus bens pessoais para o lixo, entre os quais, os óculos de leitura e a escova de dentes elétrica.
32. Em 9 de janeiro de 2022 a Ré embateu com o veículo automóvel contra uma palmeira na zona envolvente à residência do Autor.
33. Durante o período de convivência comum, fruto do consumo de álcool, a Ré frequentemente partiu objectos em casa, designadamente, garrafas de água de colónia, portas de cozinha, 2 serviços.
34. Actualmente, o Autor, por força de duas pensões que recebe do Estado ..., aufere cerca de 2500 ... mensais.
35. Na sequência da separação em 14/2/2022, altura em que deixou a casa onde ambos viviam, não mais tendo partilhado mesa, tecto ou leito com a Ré, o Autor tem vivido em vários apartamentos, designadamente, num que lhe foi emprestado por um amigo e noutro que arrendou em ... pelo valor de € 707,00 de renda, sendo que a Ré ficou a viver na moradia onde o casal vivia aludida em 8).
36. A referida moradia dispõe de área coberta de 78 metros quadrados, na qual se divisam 4 quartos, possuindo ainda jardim e piscina.
37. Já depois do referido em 35), a Ré, sem o consentimento do Autor, tem vindo a arrendar alguns dos quartos da casa mencionada em 36), auferindo € 450,00 - € 550,00 por mês de renda por cada quarto e tendo arrendados, por regra, 1-2 de cada vez.
38. Não obstante o referido em 37) é o Autor quem paga as taxas e os impostos da casa, bem como pagava igualmente os serviços do jardineiro (que tratava do jardim) e da empregada doméstica (que cuidava da casa) até que estes foram recentemente despedidos pela Ré.
39. Pese embora os consumos de água e electricidade fossem da responsabilidade da Ré, como esta não paga tais despesas, o Autor está a ver-lhe ser exigido o pagamento de dívidas relacionadas com tais consumos, dívidas essas que aumentaram por força do arrendamento dos quartos descrito em 37).
40. As despesas para a manutenção do imóvel cifram-se em € 11.898,44 anuais (onze mil, oitocentos e noventa e oito euros e quarenta e quatro cêntimos), das quais: € 557,28 (quinhentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) anuais devidos à empresa responsável pelo alarme do imóvel; aproximadamente € 75,00 (setenta e cinco euros) mês de água, o que perfaz € 900,00 (novecentos euros) por ano de água; € 278,00 (duzentos e setenta e oito euros) mês de eletricidade, o que perfaz € 3.336,00 (três mil, trezentos e trinta e seis euros) por ano de eletricidade; € 46,49 (quarenta e seis euros e quarenta e nove cêntimos) de serviço MEO, o que perfaz € 557,88 (quinhentos e cinquenta e sete euros e oitenta e oito cêntimos) de serviço MEO por ano; € 955,05 (novecentos e cinquenta e cinco euros e cinco cêntimos) aos quais acresce € 1.273,13 (mil, duzentos e setenta e três euros e treze cêntimos) de IMI; € 2.700,00 (dois mil e setecentos euros) anuais de remuneração do jardineiro; € 768,00 (setecentos e sessenta e oito euros) anuais de remuneração da empregada doméstica; € 476,10 (quatrocentos e setenta e seis euros e dez cêntimos) de seguro; € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros) de representação fiscal.
41. A Ré recusou propostas de emprego – uma no Dubai – que lhe foram apresentadas em 2015- 2016, sendo que, actualmente, se encontra desempregada, não auferindo rendimentos para além dos referidos em 37).
E deu como não indiciados os seguintes factos:
A. Que a Ré tivesse vendido propriedades em ... a fim de financiar a compra do imóvel aludido em 8).
B. Que, durante a convivência comum, o Autor tivesse deixado de contribuir para as despesas do lar conjugal, começando a beber e a desrespeitar a Ré em privado e em público, de tal forma que o A. tornou impossível a convivência e a relação conjugal.
C. Que o Autor fosse agressivo para com a Ré e que, por força disso mesmo, esta tivesse tido que apresentar várias queixas criminais contra aquele.
D. Que o Autor tivesse forçado a Ré a deixar de trabalhar aquando da sua vinda para Portugal.
E. Que, na sequência da vinda para Portugal, o Autor tivesse isolado a Ré, exercendo controlo financeiro e emocional sobre esta desde 2014 a 2022.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso são as questões supra elencadas.
1 – Incompetência territorial e internacional
Considera a requerente que o tribunal a quo é territorial e internacionalmente incompetente para constituir arrendamento sobre um imóvel que é propriedade de uma sociedade com sede nos Estados Unidos da América, tendo, desse modo, sido violado o disposto no artigo 63.º, alínea b), do Código de Processo Civil.
Vejamos.
Relativamente à incompetência territorial, importa referir que a recorrente é a requerente deste apenso, ou seja, é o equivalente à Autora, sendo que, em sede de requerimento inicial de interposição do incidente de atribuição da casa de morada de família, não invocou, como aliás parece normal, qualquer incompetência territorial relativamente ao requerimento que acabara de interpor.
De qualquer modo, mesmo para o requerido e até para o tribunal oficiosamente apreciar a incompetência em razão do território, há muito que se mostram precludidos tais prazos, por força do disposto nos artigos 102.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Atente-se que para o requerido, a sua invocação seria até ao prazo da apresentação da oposição e para o tribunal oficiosamente apreciar tal incompetência apenas o poderia fazer até ao despacho saneador ou, inexistindo este, até à prolação do primeiro despacho subsequente ao termo dos articulados.
Assim, em sede de recurso, a invocação, ainda por cima de quem interpôs o presente incidente, da incompetência em razão do território, mostra-se manifestamente improcedente, por falta de legitimidade para a interpor e por intempestiva, sendo, por isso, improcedente, nesta parte, a pretensão da recorrente.
Relativamente à incompetência internacional, por se tratar de uma incompetência absoluta, nos termos dos artigos 96.º, alínea a) e 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, como é a situação destes autos.
Toda a incompetência se afere em face do modo como o Autor configura a relação jurídica controvertida, sendo também esse o caso nas situações de incompetência internacional.[2]
Assim, a incompetência internacional invocada pela recorrente deverá aferir-se de acordo com a configuração da relação jurídica controvertida que a recorrente fez quando deduziu o presente incidente de atribuição de casa de morada de família, apenso à ação de divórcio, à data, em curso (artigo 990.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
De acordo com tal requerimento estamos perante um incidente de atribuição de casa de morada de família quer em face da causa de pedir quer em face do pedido formulado. E, a ser assim, as regras de competência internacional são as que constam das alíneas a) e b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, as quais atribuem a competência aos tribunais portugueses, ainda que relativamente a cidadãos estrangeiros, quando assim seja atribuído em face das regras portuguesas de competência territorial ou quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir da ação, ou algum dos factos que a integram.
No caso em apreço, correndo este incidente por apenso à ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, importa apurar quais são as regras portuguesas de competência territorial nas ações de divórcio. Ora, nos termos do artigo 72.º do Código de Processo Civil a competência territorial é atribuída, em ações de divórcio, ao tribunal do domicílio ou da residência do Autor. Ora, residindo o requerido em Portugal, tendo sido ele a interpor a respetiva ação de divórcio, nos termos conjugados dos artigos 62.º, alínea a) e 72.º do Código de Processo Civil, não existe qualquer violação das normas de competência internacional, sendo o tribunal português competente. O mesmo se diga relativamente à alínea b) do mencionado artigo 62.º, visto que basta atentar à petição inicial da ação de divórcio,[3] para se constatar que todos os factos que constituem a causa de pedir do mesmo ocorreram em território português.
De igual modo, e relativamente ao incidente de atribuição da casa de morada de família, importa referir que a referida casa se situa igualmente em Portugal, País onde o casal reside desde 2014.
Nesta conformidade, apenas nos resta concluir, também, pela improcedência da invocada incompetência internacional.

2 – Impossibilidade de atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges, por aquela ser propriedade de uma sociedade
Considera a recorrente que o tribunal de família não se poderia ter imiscuído na administração da sociedade proprietária da casa de morada de família, nem nas relações entre os seus sócios e a sociedade.
Em primeiro lugar, importa referir que aquilo que a recorrente vem, em sede de recurso, considerar ilegal, foi exatamente o que veio defender como legal no presente incidente.
Posto isto, vejamos a lei.
Dispõe o artigo 1793.º do Código Civil que:
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

Estatui igualmente o artigo 1105.º do mesmo Diploma Legal que:
1 - Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles.
2 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes.
3 - A transferência ou a concentração acordadas e homologadas pelo juiz ou pelo conservador do registo civil ou a decisão judicial a elas relativa são notificadas oficiosamente ao senhorio.

Determina, por fim, o artigo 990.º do Código de Processo Civil, que:
1- Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.os 1, 7 e 8 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º.
3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.
4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.

Com base neste quadro legal, a decisão recorrida apresentou a seguinte fundamentação:
Decorre, pois, das normas vindas de citar, bem como do próprio conceito de casa de morada de família que tal imóvel deve integrar o património conjunto do casal ou, pelo menos, o património próprio de algum dos cônjuges ou ainda estar no uso de ambos ou de algum deles por via de contrato de arrendamento celebrado por ambos ou por algum deles na qualidade de arrendatário e o senhorio, titular do prédio.
Vale dizer que, à partida, apenas seria possível atribuir o uso de casa de morada de família em duas hipóteses: 1) ou o imóvel seria bem comum ou bem próprio de algum dos cônjuges; 2) ou o imóvel pertenceria a terceiro, mas estaria arrendado aos cônjuges ou a algum deles.
No caso dos autos, tanto quanto se pode apurar em face das posições assumidas pelas partes nos articulados e na conferência realizada, o imóvel, embora sendo usado pela aqui Requerente, DD, pertence à referida sociedade Y... Limited, sociedade essas detida em partes iguais pelos litigantes sem que exista aparentemente contrato de arrendamento celebrado entre tal sociedade e os cônjuges ou algum deles.
Ora, se terminássemos a análise neste ponto, não estaria preenchido nenhum dos supra referidos pressupostos para que se pudesse falar de “casa de morada de família”, uma vez que: 1) o imóvel não é, pelo menos, em termos registrais, propriedade de ambos ou de algum deles; 2) não está aparentemente arrendado a ambos ou a algum deles.
Sucede que ambos os litigantes consideram aparentemente que o bem é deles. No caso, do Requerido, como alegado no processo de divórcio, o prédio seria bem próprio dele, uma vez que a aquisição pela Requerente de quota da sociedade detentora do imóvel configuraria uma doação feita na pendência do casamento, doação essa que seria revogada na sequência do divórcio, como tal, fazendo com que o prédio integrasse apenas a sua esfera jurídica. No caso da Demandante, alegando que ambos figurariam como titulares de quotas de 50% cada da sociedade detentora do imóvel, pelo que ambos seriam donos, em partes iguais, do prédio, sendo este bem comum do casal. Acresce, neste ponto, que ambos os litigantes referiram, em sede de tentativa de conciliação, não ter ficado o prédio em seu nome meramente por razões fiscais, tendo assim a aquisição das quotas da sociedade um objectivo meramente de evitar o pagamento de impostos.
Sendo essa uma questão a decidir a final, ainda assim, verdade é que a referida sociedade não parece ter qualquer actividade – nomeadamente, lucrativa –, tendo apenas o imóvel como único bem por si detido e estando este ao serviço do casal para fins de habitação própria, sem estar, pois, consignado a qualquer actividade comercial, o que, de facto, indicia tratar-se, na verdade, o referido prédio de bem comum ou próprio do Requerido (caso em julgamento se confirme a tese deste), existindo tal sociedade, na verdade, apenas como “fachada”. Ora, como referido no acórdão STJ de 7/11/2017 (relator: Alexandre Reis): “Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.”
Nesse sentido, ao abrigo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade detentora do prédio (artigo 334.º do CC) é possível entender-se ser possível atribuir o uso do imóvel enquanto casa de morada de família a um dos cônjuges por ter sido essa a utilização do prédio desde a aquisição das referidas quotas por parte dos litigantes e por ser esse também o destino do mesmo pretendido por ambos os cônjuges, donos em exclusivo da referida sociedade.

Desde já, afirmamos total concordância com a citada fundamentação.
Efetivamente, em face dos factos indiciariamente provados, aliás, invocados, inclusive, pela recorrente, resulta que, apesar de a casa de morada de família ser propriedade da sociedade “Y... Limited”, foi através da aquisição das quotas desta sociedade (50% ficou na titularidade da requerente e 50% ficou na titularidade do requerido) que a requerente e o requerido adquiriram a casa, que ambos denominam de casa de morada de família, e onde passaram a viver desde tal aquisição, não constando da matéria indiciaria que a referida sociedade possua qualquer atividade, detendo apenas como património o referido bem imóvel.
Ora, conforme bem refere o acórdão do STJ proferido em 07-11-2017:[4]
I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.
II - Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.

No caso em apreço, em face da matéria indiciária, tudo aponta para ser esse o caso nos presentes autos, visto inexistir qualquer separação de património entre a referida sociedade e a requerente e o requerido, sendo que tal sociedade aparentemente não possui qualquer atividade, possuindo apenas no seu património o bem imóvel que foi adquirido pelas partes aquando da aquisição das quotas dessa sociedade, passando, desde então, ambos a aí residir, fazendo desse imóvel a sua casa de morada de família.
Deste modo, não se nos afigura ilegal o recurso, ainda que, por ora, em termos meramente provisórios, ao instituto de desconsideração da pessoa coletiva, visto a própria recorrente ter confessado que quer ela quer o requerido apenas se serviram da compra das quotas da referida sociedade para, desse modo, adquirem a sua residência familiar, por motivos de ordem fiscal, ou seja, com o objetivo de não procederem ao pagamento dos impostos devidos pela aquisição daquela casa.
Estamos, assim, no caso de tais factos efetivamente se provarem, perante uma situação de manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
Pelo exposto, improcede também, nesta parte, a pretensão da recorrente.

3 – Preenchimento dos requisitos para que a casa de morada de família seja entregue à requerente
Considera a recorrente que a casa de morada de família lhe deve ser entregue, por ser a requerente quem dela mais necessita e a necessidade da casa ser o fator determinante a atender na decisão judicial.
Mais referiu que tem 50 anos de idade, não tem trabalho e não possui qualquer rendimento, por ter ficado dependente do recorrido, vivendo, por isso, numa situação de miséria extrema, sem dinheiro para prover às necessidades básicas, designadamente com a alimentação, sendo que, ao invés, o requerido tem estabilidade financeira para providenciar e manter uma outra residência, como, aliás, tem feito.
Estipula o artigo 1682.º-B do Código Civil que:
Relativamente à casa de morada de família, carecem do consentimento de ambos os cônjuges:
a) A resolução, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário;
b) A revogação do arrendamento por mútuo consentimento;
c) A cessão da posição de arrendatário;
d) O subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial.

Apreciemos.
Perante a factualidade indiciariamente provada, constata-se que a casa de morada de família é uma moradia que dispõe de área coberta de 78 metros quadrados, possuindo quatro quartos, jardim e piscina, cuja manutenção implica o gasto anual de € 11.898,44, dos quais se destaca, a quantia anual de € 1.273,13 em IMI; a quantia anual de € 476,10 em seguros e a quantia anual de € 375,00 em representação fiscal.
A requerente não aufere atualmente qualquer rendimento, a não ser o que obtém com o subarrendamento de dois quartos da casa de morada de família, cujo montante rondará, no máximo, em € 1.100,00, e do qual usufrui exclusivamente, sem repartir com o requerido, subarrendamento esse que, de qualquer modo, é ilegal, por não respeitar o disposto no citado artigo 1682.º-B, alínea d), do Código Civil, ou seja, por não ter a autorização do requerido.
Em contrapartida, o requerido aufere, por mês, cerca de 2500 ... mensais e paga atualmente de renda de casa mensal a quantia de € 707,00. É também o requerido quem paga todas as despesas de manutenção da casa de morada de família, uma vez que a requerente, apesar de lá viver e de ter em seu nome as contas da água e da eletricidade, não procede sequer a tais pagamentos, vendo-se o requerido obrigado a proceder também a estes pagamentos, caso pretenda, como pretende, que a moradia se mantenha sem dívidas. Resultou ainda indiciariamente provado que o consumo de água e de eletricidade subiu bastante devido ao subarrendamento levado a cabo pela requerente. De igual modo, resulta dos factos indiciariamente provados que a requerente despediu recentemente o jardineiro e a empregada doméstica, no entanto, até então, era o requerido quem lhes pagava as retribuições mensais.
Dessa matéria indiciária constata-se também que a separação do casal, e posterior divórcio, ocorreu devido ao consumo excessivo de álcool por parte da requerente, que sempre recusou qualquer tratamento, e à circunstância de agredir física e psicologicamente o requerido, várias vezes, quando se encontrava alcoolizada.
Acresce que o requerido, à data da decisão recorrida, teria cerca de 75 anos e a requerente cerca de 50 anos, ou seja, sendo o requerido 25 anos mais velho que a requerente, tendo sido ainda indiciariamente provado que a requerente, em 2015-2016, recusou propostas de emprego, designadamente, uma para o Dubai.
Em face do contexto indiciariamente analisado, efetivamente afigura-se, por um lado, que a requerente não possui condições para assegurar a manutenção da casa de morada de família, uma vez que não aufere qualquer rendimento, a não ser os rendimentos ilegais, através dos subarrendamentos, implicando, porém, a casa de morada de família despesas anuais muito elevadas. E, por outro, que a entrega da casa de morada de família ao requerido, pessoa que efetivamente já paga todas as despesas de manutenção da referida casa, sempre permitiria à requerente auferir o rendimento mensal de € 900,00 pelo arrendamento da sua parte na referida casa, rendimento esse que, contrariamente ao resultante dos subarrendamentos, seria legal. Acresce que com esse montante a requerente teria capacidade económica para arrendar um quarto ou uma casa e poder fazer face às suas despesas básicas. Importa ainda referir que não resulta dos autos que a requerente não possa trabalhar, sendo que o tratamento do problema de alcoolismo de que padece sempre dependerá de decisão sua.
Por sua vez, não se revela nem adequado, nem justo, que o requerido, apesar de possuir condições económicas mais favoráveis do que a requerente, seja obrigado a arcar com todas as despesas da casa de morada de família, inclusive com aquelas que resultam de subarrendamentos ilegais, apesar de não viver na casa, e isto caso pretenda que a casa não se degrade e ainda seja economicamente rentável em situação de venda.
Por fim, mas não menos importante, não pode deixar de se valorar a circunstância de o requerido, conforme factos indiciariamente provados, ter sido vítima de violência doméstica, sendo a requerente a agressora, o que levou a que aquele se visse obrigado a abandonar a casa de morada de família, não podendo, por isso, a requerente ser beneficiada perante a gravidade dos comportamentos que adotou para com o requerido.
Na esteira da decisão requerida, dir-se-á ainda que, apesar de ser relevante na atribuição da casa de morada de família as necessidades de cada um dos cônjuges, tal fator não é determinante, devendo sempre ser complementado com toda a situação envolvente. De qualquer modo, mesmo atentas as necessidades de cada um dos cônjuges, afigura-se mais adequado a requerente passar a auferir um rendimento lícito para suprir às suas necessidades, do que ter de optar entre deixar de auferir qualquer rendimento ou manter-se em violação da lei, recorrendo aos subarrendamentos ilegais.
Nesta conformidade, improcede, também nesta parte, a pretensão da recorrente.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da requerente/recorrente (artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 9 de maio de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Vítor Sequinho dos Santos

Ana Margarida Pinheiro Leite

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Vítor Sequinho dos Santos; 2.ª Adjunta: Ana Margarida Pinheiro Leite.

[2] Vejam-se os acórdãos do STJ, proferidos em 20-06-2023 no âmbito do processo n.º 23384/19.2T8LSB.L1.S1; em 15-02-2023 no âmbito do processo n.º 4239/20.4T8STB.E1.S1; e em 07-06-2022 no âmbito do processo n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.

[3] Com acesso através do sistema CITIUS.

[4] No âmbito do processo n.º 919/15.4T8PNF.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.