Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
56/24.0T8STR.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
REGISTO COMERCIAL
CESSÃO DE QUOTA
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Dispondo o artigo 128.º, n.º 1, alínea h), da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (lei da organização do sistema judiciário) que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as ações a que se refere o Código de Registo Comercial, o seu sentido, atenta a amplitude da norma, deve ser o de abranger todas as ações referenciadas no referido Código, nomeadamente aquelas que estão sujeitas a registo comercial nos termos da alínea b) do seu artigo 9.º.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 56/24.0T8STR.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

AA, com residência em .... ...23 8QT, ..., ..., instaurou no Juízo de Comércio ..., ação declarativa de condenação contra BB, com residência na Rua ..., ...85 - 1.º Direito, ... ... pedindo para se:
«a) Julgar a presente ação procedente, por provada;
b) Anular o contrato de cessão de quotas de junho de 2022, condenando o Réu BB a reembolsar o Autor a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros calculadas à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;
c) Condenar o Réu a indemnizar o Autor na quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), referente ao montante que entregou ao Réu para o aumento de capital de agosto de 2022, acrescida de juros calculadas à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
d) Condenar o Réu no pagamento das custas processuais e de procuradoria».

Para o efeito alega, em síntese, ter adquirido no dia 21 de junho de 2022, ao Réu uma quota com o valor nominal de € 3.000,00 (três mil euros), na sociedade comercial H..., Lda., (doravante ...), tendo pago ao Réu a quantia de € 25.000,00 pela aquisição da referida quota.
Aquando da negociação, o Réu, assegurou, garantiu, prometeu ao Autor que a referida sociedade comercial ... era gerida de forma diligente e cristalina pelo Réu, tinha atividade comercial real e efetiva; tinha clientes a quem prestava os seus serviços; não possuía dívidas, estando totalmente solvente e tinha rentabilidade financeira.
Mais tarde, a dia 12 de agosto de 2022, o Réu, convenceu o Autor a subscrever um aumento de capital no valor de € 37.500,00, tendo o A. pago efetivamente tal quantia ao Réu.
Em março de 2023, o Autor, após ter sido notificado de um projeto de reversão movido pela Segurança Social, começou a inteirar-se da situação da empresa junto do Réu, tendo descoberto que a sociedade ... estava totalmente descapitalizada, estava largamente endividada, sendo desconhecido o paradeiro do dinheiro referente ao aumento do capital social.
Mais alega: se o Autor soubesse que a sociedade se encontrava sobre endividada, nunca teria aceite participar no capital social da mesma, perdendo todo o seu investimento, como nunca aceitaria ser gerente, sujeitando-se a reversões.
O Réu criou factos artificiosamente, sabendo serem falsos, para levar o Autor a adquirir a referida quota e a subscrever o aumento de capital, numa sociedade que não tem ativo, apenas possuindo dívidas e potenciais problemas com a Justiça Penal.
O referido dinheiro da aquisição da quota foi entregue ao Réu e o montante do aumento de capital que deveria ter entrado na sociedade nunca entrou, tendo-se o Réu apropriado do mesmo.
Em face deste enquadramento, existindo erro-vício na base do negócio (artigos 247.º e 251.º do CC), peticiona o A. que seja anulado o negócio de aquisição da quota ao Réu, devendo, este ser condenado a devolver ao Autor a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) referente ao contrato de cessão de quotas, bem como a reembolsar € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) que o Autor entregou ao Réu para o aumento de capital de agosto de 2022.

Por despacho liminar, ou seja, antes de exercido contraditório e completado o processo com os respetivos articulados, foi decidido ordenar a notificação do requerente para informar o que tivesse por conveniente quanto à competência material do juízo do comércio para apreciar a ação, considerando os pedidos e causa de pedir por si alegados, relativos a responsabilidade pré-contratual, e a previsão do artigo 128.º da Lei n.º 62/2013.

O requerente correspondeu ao convite alegando, entre o mais, que a competência do tribunal de comércio foi determinada pelo Mm.º Juiz de Direito do Juiz ... do Juízo Central Cível ..., no processo n.º 1919/23...., que considerou incompetentes para a ação os juízes cíveis, conforme certidão que juntou.

Mais referiu que:
“Perfilhando do entendimento do Tribunal Central Cível ..., então concluímos que o Juízo de Comércio é materialmente competente para conhecer do mérito da ação, sob pena de, existirem dois Tribunais que se julgam incompetentes e ser denegada a Justiça ao Autor, o que constituiria uma inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.”

Seguidamente foi proferida sentença que decidiu julgar o tribunal de comércio “materialmente incompetente para os termos da presente ação, assim se absolvendo o Réu da instância (artigo 99.º/1, do CPC).”
Sentença que atribuiu a respetiva competência aos juízes cíveis.


Inconformado com tal decisão veio o Autor recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:
A) O Autor intentou uma ação declarativa de condenação em que pedia o seguinte: “assim, nestes termos e nos demais de direito que V. Exa., doutamente suprirá, deve: a) julgar a presente ação procedente, por provada; b) anular o contrato de cessão de quotas de Junho de 2022, condenando o Réu BB a reembolsar o Autor a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros calculados à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral e efetivo pagamento; c) condenar o Réu a indemnizar o Autor na quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), referente ao montante que entregou ao Réu para o aumento de capital de Agosto de 2022, acrescida de juros à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral e efetivo pagamento; d) condenar o Réu no pagamento das custas processuais e de procuradoria.”
B) Porém, entendeu o Tribunal a quo, a nosso ver mal, que a secção de comércio do Tribunal é incompetente materialmente para conhecer dos pedidos.
C) Refere-se o Tribunal a quo dizendo que “cumpre aferir da competência deste Juízo de Comércio para a tramitação da ação em causa, considerando que o pedido e a causa de pedir da mesma cingem-se à existência de erro-vício na base do negócio celebrado entre Autor e Réu, nos termos plasmados nos artigos 247.º e 251.º do CC.”
D) O Recorrente já havia intentado a mesma ação nos juízos cíveis de ..., cuja ação corre termos sob o n.º 1919/23...., no Juiz ... do Juízo Central Cível ..., Tribunal Judicial da Comarca ....
E) O aqui Recorrente, não se conformando, recorreu da referida decisão do Juízo Cível ... de negar ser materialmente competente, estando a aguardar decisão.
F) Ora, perfilhando do entendimento do Tribunal de Comércio ..., então concluímos que o Juízo Cível é materialmente competente para conhecer do mérito da ação, sob pena de, existirem dois Tribunais que se julgam incompetentes e ser denegada a Justiça ao Autor, o que constituiria uma inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
G) Ora, foi neste sentido que, em 12 de Janeiro de 2024, o Recorrente suscitou, junto deste Tribunal a quo, nos termos e para os efeitos dos artigos 109.º e seguintes do Código de Processo Civil, que o Tribunal a quo resolvesse o conflito de competência, a fim de assegurar ao Recorrente o acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva.
H) Pedido este que foi ignorado pelo Tribunal a quo e, por conseguinte, o Tribunal a quo não assegurou o acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, tal como havia sido solicitado e era um dever do Tribunal a quo assegurar.
I) Razão pela qual, deve julgar-se a presente apelação procedente, por provada e, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida e substituí-la por outra que proceda à resolução do conflito, nos termos e para os efeitos dos artigos 109.º e seguintes do Código de Processo Civil..
A final requer seja revogada a decisão recorrida, dando-se o tribunal de comércio por competente.
II
Considerando as conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), é a seguinte a questão a decidir:

- Da competência material (do tribunal de comércio) para conhecer e decidir o atual litígio.


III

A factualidade a considerar resulta do relatório supra.

Apreciando.


IV

Fundamentação.

Está em causa um pedido de anulação de um contrato de cessão de quotas e de um contrato de aumento do capital social, com fundamento em erro vício.

O Autor deparou-se com dois diferentes entendimentos quanto à competência dos tribunais de comércio para conhecer duma ação com pedido de anulação de contrato de cessão de quotas e de aumento de capital social com base em erro vício e, correspondentes efeitos.

Um primeiro entendimento expresso pelo Mmº Juiz do tribunal cível, no sentido de serem os tribunais de comércio os competentes para a presente ação. Tal decisão não transitou em julgado, foi objeto de recurso que, segundo informação recente, colhida nos autos, ainda não subiu a recurso.

Um segundo entendimento, expresso pelo Mmº juiz do Tribunal de Comércio que remete a competência deste litígio para os tribunais cíveis. Esta a decisão em recurso.

Vejamos pois.

Estabelece este o artigo 128.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (lei da organização do sistema judiciário) que:

«1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades;

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.»

Está em causa possibilidade de integrar (ou não) esta ação na alínea h) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ e, por essa via, atribuir (ou não) ao tribunal de comércio, competência para decidi-la.

Conforme certidão junta, o entendimento que esteve na base da decisão proferida no juízo cível foi o seguinte:

«Referem o artigo 3.º, n.º 1, alíneas c) e r), do Código de Registo Comercial que “estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial:

c) A unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples;

r) A prorrogação, fusão interna ou transfronteiriça, cisão, transformação e dissolução das sociedades, bem como o aumento, redução ou reintegração do capital social e qualquer outra alteração ao contrato de sociedade;

E de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal

Estão sujeitas a registo:

b) As ações que tenham como fim, principal ou acessório, declarar, fazer reconhecer, constituir, modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos nos artigos 3.º a 8.º».

Coloca-se, portanto, a questão de saber se nas ações a que se refere o Código do Registo Comercial, se incluem as previstas na alínea b) do artigo 9.º daquele Código, ou seja, aquelas que têm como fim principal ou acessório, declarar, fazer reconhecer, constituir, modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos nos artigos 3.º e 8.º.

Conforme se disse o artigo 3.º, n.º 1, alínea c), do Código do Registo Comercial, refere que estão sujeitos a registo “a unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples”.

Isto é, este tipo de ações subsume-se, de forma clara, àquelas a que se refere o Código do Registo Comercial, logo são de enquadrar no artigo 128.º, n.º 1, alínea h), da LOSJ, sendo competentes para as apreciar os Tribunais de Comércio.

E o mesmo se diga relativamente à alínea r) do n.º 3 do mesmo artigo do Código de Registo Comercial.

O pedido indicado em b) respeita à anulação de cessão de quotas – ainda que se não peça o cancelamento de tal cessão que sempre terá que ocorrer sob pena de se manter o Autor registado como sócio – motivo pelo qual se trata de uma ação a que se refere o Código do Registo Comercial.

E o pedido indicado em c) respeita a indemnização referente a aumento de capital, pelo que tem amparo na alínea r), ainda que não se peça o cancelamento de parte do aumento de capital, não sendo por ora parte na demanda a sociedade.

Deste modo, estamos perante pretensões cuja competência para as conhecer incumbe aos Tribunais do Comércio, por força do artigo 128.º n.º 1, alínea h), da LOSJ.”

Ou seja, o juízo cível estabeleceu o seguinte juízo interpretativo: - uma vez que os factos: cessão de quotas e aumento do capital social (integrantes da causa de pedir) são, por força do artigo 3.º, n.º 1, alíneas c) e r), do Código de Registo Comercial, factos sujeitos a registo, e estando sujeitas a registo as ações que visem extinguir ou modificar os direitos advenientes desses factos, conforme o artigo 9.º, alínea b), do mesmo Código, então, a competência material para conhecer desta ação é, por força da alínea h) do n.º 1 do artigo 128.º da LOTJ dos tribunais de comércio.

Posição diferente tem a decisão recorrida:

Lê-se na mesma:
“Da análise do elenco das competências enumeradas neste artigo (128.º da LOTJ), bem como da exposição de motivos e dos trabalhos preparatórios que estiveram na génese dos Tribunais de Comércio (proposta de Lei n.º 182/VII, DR de 12 de junho de 1998, IIª série, n.º 59), conclui-se que a competência dos tribunais de comércio respeita aos conflitos que envolvem o contencioso das sociedades.
A vertente ação não tem enquadramento possível nas competências dos juízos de comércio, uma vez que não está em causa conflito que envolva contencioso das sociedades, mas sim um conflito entre duas pessoas singulares, referente a vícios da vontade existentes na base dos contratos firmado entre as mesmas e, nessa medida, a anulação dos mesmos.
Não é porque os contratos em causa tiveram por objeto uma cessão de quotas e entrega de dinheiro para um aumento de capital (que não existiu), que a causa de pedir e pedido passam a integrar a competência dos tribunais de comércio. Não estão em causa direitos sociais.”

A decisão em recurso assenta no entendimento de que a competência do tribunal de comércio tem na sua génese um litígio entre direitos sociais, que não ocorre no presente caso.

Temos como excessivamente restritiva essa interpretação, face à letra da lei, que é clara.

O artigo 128.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (lei da organização do sistema judiciário) estabelece que:

«1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;»

Se outro fosse o entendimento do legislador, tê-lo-ia dito a fim de prevenir a arbitrariedade interpretativa que pode resultar da interpretação restritiva, considerando umas e não outras as ações incluídas no preceito.

Por outro lado, as ações relativas ao exercício de direitos sociais têm uma previsão específica e individualizada na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOTJ, em concorrência com outras ações que, nada tendo a ver com exercício de ações sociais, se mostram contempladas nessa esfera de competência, como por exemplo, os processos de insolvência ou as ações de impugnação dos despachos dos conservadores de registo comercial.

Em suma: (…)


V

Em consequência acorda-se em julgar procedente a apelação, considerando-se o tribunal de comércio competente para conhecer a presente ação.

Sem custas.

Évora, 09 de maio de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

José Tomé de Carvalho (1º Adjunto)

Maria Domingas Simões (2ª Adjunta)