Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2632/24.2T8PTM.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: PEDIDO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DECLARAÇÕES DE PARTE
ABANDONO DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: Sumário elaborado pela relatora:

I- Tendo o Autor (trabalhador) peticionado a condenação da Ré (empregadora) a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento ilícito até ao termo incerto do seu contrato ou, na eventualidade deste ocorrer posteriormente à prolação da sentença, até ao trânsito em julgado da mesma, nos termos previstos pelo artigo 393.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho, a circunstância de se tratar de um pedido genérico não obsta a que o tribunal fixe, na sentença, a condenação em montante líquido, resultante de simples cálculo aritmético, não constituindo tal situação excesso de pronúncia.

II- Embora as declarações prestadas pelas partes devam ser analisadas com especial rigor e exigência, nada impede que sejam consideradas para provar factos que lhes são favoráveis, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível.

III- Recai sobre a empregadora o ónus de provar que o trabalhador abandonou o trabalho.

IV- Não tendo sido provado o abandono do trabalho, a carta, a declarar a cessação do contrato de trabalho com fundamento em tal abandono, remetida pela empregadora ao trabalhador, constitui um despedimento ilícito, por não ter sido precedido de procedimento disciplinar, nos termos previstos pelo artigo 381.º, alínea c), do Código do Trabalho.

Decisão Texto Integral: P.2632/24.2T8PTM.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


Relatório


1. Na presente ação declarativa emergente de contrato de trabalho, sob a forma de processo comum, que AA intentou contra Timing People – Empresa Trabalho Temporário, Lda., foi prolatada sentença contendo o seguinte dispositivo:


«Em face do exposto, julga-se a presente ação declarativa comum, instaurada por AA contra “Timing People – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.” totalmente procedente e, consequentemente:


a) Declara-se a ilicitude do despedimento do autor, promovido pela ré;


b) Condena-se a ré a pagar ao autor, a título de créditos emergentes da relação laboral havida entre ambos, a quantia global de € 5.476,66 (cinco mil, quatrocentos e setenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa anual 4%, tal como foi


peticionado, contados desde a data da citação e até integral pagamento;


c) Condena-se a ré nas custas do processo, em função do seu total decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


Registe e notifique.


***


Com cópia, comunique à “Autoridade para as Condições do Trabalho”, para os efeitos tidos por convenientes, designadamente para a apreciação da eventual responsabilidade contraordenacional da ré, em face do disposto no artigo 263.º, n.º 3, 264.º, n.º 4, e 278.º, n.º 6, do Código do Trabalho.»


2. Inconformada, a Ré apresentou recurso, terminando com as seguintes conclusões:


«I - A Recorrente não se pode conformar com a sentença do Tribunal a quo, pois, a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, em conjugação com o direito aponta para uma decisão diametralmente oposta.


II - Falhou o Tribunal a quo ao considerar estarem provados os factos provados 7. A 16., pois, os mesmos assentam meramente nas declarações do Recorrido e não são corroborados por qualquer documento externo ao mesmo cuja veracidade tenha ficado comprovada e não tenham sido impugnados.


III - O facto 19. foi incorretamente julgado e deve ser substituído por outro com a seguinte redação:


Facto provado 19. Esta carta não foi recebida pelo autor, pois, este mudou-se para Coimbra.


IV - Atendendo, aos pontos acerca da matéria de facto que, supra foram indicados, a Recorrente mantém que a causa da cessação do contrato foi a denúncia do contrato de trabalho pelo Recorrido atendendo ao abandono do mesmo pelo Recorrido.


V - Pelo que, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por Acórdão que declare a presente ação ser julgada improcedente por não provada e em consequência a Recorrida ser absolvida dos pedidos formulados pelo Recorrido, pois, o contrato de trabalho cessou fruto do abandono do posto de trabalho por parte do Recorrido.


VI - 41.º - A douta sentença, ao substituir-se às partes na alegação e produção da prova de factos essenciais, e ao quantificar, sem base factual, um valor indemnizatório específico, incorreu em violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes, resultando, daí, a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, nos termos já citados.


Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida substituindo-se a mesma por Acórdão que julgue a presente ação ser julgada improcedente por não provada e em consequência a Recorrida ser absolvida dos pedidos formulados pelo Recorrido, pois, o vínculo laboral cessou pelo abandono do posto de trabalho do Recorrido. E, subsidiariamente, ainda tal não se considere, o que só a título de cuidado se considera, Que seja declarada a nulidade da sentença na parte relativa à condenação da Recorrente no pagamento da quantia de €4.920,00, por excesso de pronúncia.»


3. Não foram apresentadas contra-alegações.


4. A 1.ª instância não considerou verificada a arguida nulidade da sentença e admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.


5. O processo subiu ao Tribunal da Relação e a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, propugnando pela improcedência do recurso.


6. Não foi oferecida resposta.


7. O recurso foi mantido, e, depois de elaborado o projeto de acórdão, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre, agora, em conferência, apreciar e decidir.


*


Objeto do Recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).


Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são:


1. Nulidade da sentença.


2. Impugnação da decisão de facto.


3. Saber se o contrato de trabalho sub judice cessou por abandono do trabalho.


*


Matéria de facto


A 1.ª instância julgou como provados os seguintes factos:


1. A ré dedica-se à atividade de recrutamento de trabalhadores para o trabalho temporário.


2. Com data de 24-05-2024 a ré admitiu autor para desempenhar, sob a autoridade gestão e orientação da empresa “Oceanpanoply, S.A.”, em funções inerentes à categoria profissional de empregado de mesa de 2.ª, podendo acessoriamente desempenhar outras tarefas que lhe fossem indicadas e que tivessem afinidade funcional com aquelas.


3. Acordaram autor e ré que o contrato manter-se-ia até perfazer um máximo de doze meses, mas que a sua duração estimada seria até 31-12-2024.


4. Mais acordaram que o autor prestaria 40 horas semanais e 8 horas diárias, de acordo com o horário em vigor na empresa utilizadora.


5. Acordaram ainda que, como contrapartida do trabalho prestado, o autor auferiria a retribuição ilíquida de € 820,00 e subsídio de alimentação aplicável aos trabalhadores da utilizadora.


6. O autor iniciou funções na empresa “Oceanpanoply, S.A.” no dia 24-05-2024.


7. A partir de meados de Junho de 2024 a empresa utilizadora raramente atribuiu ao autor um horário completo de 8 horas diárias.


8. A ré detém um grupo de WhatsApp, onde diariamente informa os seus trabalhadores, do horário a praticar no dia seguinte, hora de entrada e de saída.


9. A partir de determinado momento o autor deixou de ser contactado para trabalhar.


10. Nessa sequência, o autor dirigiu-se, por várias vezes, às instalações da ré manifestando a sua preocupação e a disponibilidade para trabalhar.


11. O autor também contactou telefonicamente, por várias vezes, a ré com o mesmo objetivo.


12. No dia 24-06-20242 o autor dirigiu à ré o seguinte email:


«Olá bom dia, espero que esteja tudo bem convosco.


Sou o AA, trabalhador da empresa com o número do processo da contratação “NIPC ...” representado pelo QR code, aqui anexado.


Venho através desta, expor a minha situação, pois acontece que tenho o contrato full-time com a empresa, mas não estou a ter nem horário part-time. Acontece que, depois de assinar contrato convosco, tive inúmeras chamadas a me pedirem para fazer contrato, empresas essas concorrentes “em bom sentido” com a nossa, achei que seria um bocado irresponsável efetuar aquele ato (embora houve altura que pensei nisso por estar a pensar mais em trabalhar e fazer dinheiro), um dos maiores motivos que me trouxe cá, mas achei melhor não fazer pela questão do bom senso e ainda mais pelo respeito ao contrato que é uma fonte da obrigação, nesse caso “mútuo” e (sobretudo porque a empresa me acudiu quando mais precisei), visto que vocês é que têm de gerir a minha energia “força de trabalho”.


Entretanto não se está a verificar o cumprimento do contrato na parte horária, pois tinha de ter 40 horas semanais para trabalhar, o que não está a acontecer e que estou a tentar e já tentei reverter tanto pessoalmente como por via telefónica na empresa onde me passaram esse email. Acontece que eu tenho despesas para pagar, entretanto sei que terei o meu mínimo estipulado no contrato quanto ao aspeto salarial, mas pela boa-fé não tenciono só ficar em casa para receber isso, por isso, estou a entrar em contacto para saber realmente o que fazer.


Retiro dessa agradecendo a vossa disponibilidade e atenção.


Cordialmente».


13. Em 09-07-2024 o autor dirigiu à ré um novo email, com o seguinte teor:


«Olá boa tarde, espero que esteja tudo bem convosco.


Estou a entrar em correspondência mais uma vez, para explicar que devido a não obtenção da resposta à correspondência anterior estou a ver que fica escasso os recursos por mim conhecido, para que se possa fazer cumprir o contrato que tenho convosco, visto que já tentei inúmeras vezes tratar isso no escritório. Tendo em conta que sou grato pela oportunidade de emprego que me deram e pela minha boa fé, não tenciono recorrer a via judicial (o que é sempre bom) tendo em conta que é uma via pacífica para resolução de conflitos, mas acaba por ter a sua faceta negativa porque “nesse caso concreto” seria entre mim e a minha entidade patronal, algo que não levo de bom ânimo.


Então quero de antemão avisar que sinto que posso pôr em causa um dos meus importantes deveres, que além de ser um dever encaro-o como uma das minhas virtudes, que é o “dever da lealdade para com a entidade patronal”, o que consiste em não trabalhar por entidade em concorrência. Algo que aconteceu, pois já tive oportunidades de trabalho e não aceitei devido a esse dever, mas como podem constatar que não é pela minha vontade, mas sim pelos motivos explícitos na correspondência anterior e compilado com os de acima referidos e pela necessidade urgente da satisfação das minhas despesas vejo-me sem outra solução.


Estou a ver essas possibilidades.


Retiro dessa agradecendo a vossa disponibilidade e atenção dispensada.


Cordialmente.».


14. No dia 16-07-2024 o autor endereçou à ré o seguinte email:


«Olá bom dia, espero que esteja tudo bem convosco.


Queria saber se já me conseguem dar alguma informação sobre.


Cordialmente».


15. Nesse mesmo dia 16-07-2024 o autor enviou à ré a seguinte mensagem via WhatsApp:


«Olá boa tarde Sr. BB.


Espero que esteja tudo bem consigo.


Estou no aguardo sobre o trabalho e o dinheiro.».


16. O funcionário da ré, BB, respondeu ao autor da seguinte forma:


«Trabalho vê com o João que eu não tenho de momento, liguei-te no outro dia estavas desligado o dia todo».


17. Ao que o autor respondeu que não recebeu notificação no telemóvel sobre esse contacto.


18. Com data de 18-07-2024 a ré remeu ao autor uma comunicação registada, da qual constava que:


«(…)


Faro, 18 de Julho de 2024


Assunto: Cessação do contrato por abandono do posto de trabalho.


Vimos através da presente missiva, e no seguimento da sua ausência no seu posto de trabalho desde o dia 17/06/2024, sem que para tal tenha apresentado qualquer justificação plausível tendo recusado apresentar-se ao trabalho sempre que solicitado e referindo que ia passar residir em Coimbra, informar V. Exa., que somos obrigados a considerar que abandonou o seu posto de trabalho, nos termos do art. 403.º do Código do Trabalho e com as consequências previstas no arte 401.º do mesmo diploma legal.


Esta ausência já tem uma duração muito superior aos dez dias úteis seguidos. Desta forma, consideramos e não subsistem dúvidas que optou por cessar o contrato de trabalho, celebrado no dia 24/05/2024, por denúncia através de abandono do posto de trabalho, com os efeitos legais daí decorrentes, sendo-lhe aplicável as demais cominações legais e consequentemente cessou o vínculo laboral que nos unia. Esta presunção só pode ser ilidida por V. Exa. caso apresente prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da causa para a sua ausência ao local de trabalho.


Sem mais de momento,


Atenciosamente».


19. Esta carta não foi recebida pelo autor.


20. A ré pagou ao autor, referente ao mês de Junho de 2024, apenas o montante de € 540,00.


21. O valor do subsídio de alimentação da utilizadora, para o ano de 2024, para os empregados de mesa de 2.ª era o seguinte:


✓ Refeições completas/mês: € 140,00;


✓ Refeições avulsas:


– pequeno-almoço: € 3,04;


– ceia simples: € 4,20;


– almoço, jantar ou ceia completa: € 5,96.


-


E julgou como não provados os seguintes factos:


1. Desde o dia 17-06-2024, sem qualquer aviso ou justificação, o autor tivesse deixado de comparecer no local de trabalho.


2. Que o autor tivesse pedido à ré para lhe facultar trabalho na cidade de Coimbra.


*


Nulidade da sentença


Arguiu a Recorrente a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, na parte que a condenou ao pagamento da quantia de € 4.920,00, correspondente às retribuições que o Recorrido deixou de auferir desde 18 de julho de 2024 até 31 de dezembro do mesmo ano.


Argumentou, em breve síntese, que o Recorrido, em sede de petição inicial, se limitou a formular um pedido genérico de reconhecimento do seu direito às retribuições vencidas entre o despedimento e o termo do contrato, sem especificação de qualquer montante. Ademais, não foram alegados, nem ficaram provados, factos essenciais relativos ao o valor em dívida a título de retribuições. Logo, concluiu, não poderia o tribunal a quo quantificar tal valor, em manifesta violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes, razão pela qual ocorreu um excesso de pronúncia.


Apreciemos.


A parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável por força da remissão prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho, prescreve que a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Esta causa de nulidade está em correspondência direta com o artigo 608.º, n.º 2, do mesmo código. Estabelece-se nesta norma que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Ora, no articulado inicial, foi peticionada a condenação da Ré, ora Recorrente, no pagamento das retribuições que o Recorrido deixou de auferir desde o despedimento ilícito até ao termo incerto do seu contrato ou, na eventualidade deste ocorrer posteriormente à prolação da sentença, até ao trânsito em julgado da mesma, nos termos previstos pelo artigo 393.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho.

Foi alegado, para o que ora releva, que a Recorrente pagava ao Recorrido a retribuição mensal de € 820,00 e que no mês de julho de 2024 – a cessação do contrato ocorreu em 18 de julho – não lhe foi pago qualquer vencimento (cf. artigos 7.º e 45.º a 47.º da p.i.).

Foi igualmente alegado que o contrato de trabalho celebrado entre as partes foi celebrado a termo incerto, com início em 24 de maio de 2024 e duração estimada até 31 de dezembro do mesmo ano (cf. artigo 5.º da p.i).

Atente-se que a materialidade essencial alegada foi julgada provada nos pontos 2, 3, 5, 18 do elenco dos factos provados: a retribuição mensal era de € 820,00; o contrato a termo celebrado terminaria em 31-12-2024; e o contrato cessou, conforme missiva remetida pela empregadora, em 18 de julho de 2024.

Acresce que a demonstração do pagamento da retribuição respeitante ao mês de julho constituía ónus da Recorrente – cf. Acórdão da Relação do Porto de 28-06-2024 (Proc. n.º 12277/22.6T8PRT.P1)3 - e a Recorrente não provou que tivesse procedido a tal pagamento.

Em face do exposto, é inequívoco que a apreciação do pedido de condenação da Recorrente no pagamento das retribuições intercalares, com fundamento no artigo 393.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho, foi uma questão submetida à apreciação do tribunal.

E, não obstante tenha sido formulado um pedido genérico, o tribunal a quo, face aos factos provados, considerou que tinha na sua posse os elementos necessários para proceder à liquidação – dependente apenas de cálculo aritmético - do valor em dívida.

No fundo, limitou-se a cumprir o disposto na parte final n.º 2 do artigo 609.º do Código de Processo Civil.

Anote-se que nos contratos a termo não se aplicam as deduções previstas no n.º 2 do artigo 390.º do Código do Trabalho, pelo que seria absolutamente irrelevante saber se o Recorrido auferiu outras retribuições ou subsídios entre a data do despedimento e a data do termo do contrato – cf. Acórdão desta Secção Social de 24-02-2022 (Proc. n.º 378/20.0T8EVR.E1) e Acórdão da Relação de Guimarães de 09-01-2025 (Proc. n.º 1909/24.1T8VNF.G1).4

Enfim, a liquidação do valor em dívida não consubstancia excesso de pronúncia porque não foi conhecida questão que o tribunal não pudesse conhecer.

Concluindo, improcede a arguida nulidade da sentença.

*

Impugnação da decisão de facto

A Recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto.

Especificamente, nas conclusões do recurso, impugnou os pontos 7 a 16 e 19 do elenco dos factos provados.

Nas alegações do recurso faz também menção ao ponto 17 (cf. pág. 13 do recurso).

No essencial, referiu que os factos impugnados foram considerados provados apenas atendendo às declarações do Recorrido, sem corroboração de outro meio probatório. Mais referiu que o depoimento da testemunha BB contrariou tais declarações, tendo indicado os excertos da gravação deste depoimento relevantes.

Percebe-se que pretende que seja dada diferente redação ao ponto 19 e que, quanto aos demais pontos impugnados, estes não sejam considerados provados.

Vejamos.


É consabido que a impugnação da decisão da matéria de facto constitui uma prerrogativa do recorrente.


Todavia, o legislador civil (e o legislador laboral, por subsidiariedade de aplicação do regime), sujeitou-a a determinadas condições.


O artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, prescreve o seguinte:


1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b. Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.


3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.


Sobre as exigências/condições impostas por esta norma, refere António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129: «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.».


Quanto à consequência prevista para o desrespeito do ónus de impugnação, resulta do citado artigo que é a rejeição do recurso.


Seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, esta Secção Social entende que para cumprimento do ónus de especificação imposto pelo n.º 1 do citado artigo, devem ser indicados nas conclusões do recurso, que delimitam o objeto do recurso, os concretos pontos de facto que são impugnados, podendo a especificação dos meios probatórios e a indicação da decisão alternativa constar do corpo das alegações – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27-02-2024 (Proc. n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1) e de 12-05-2016 (Proc. n.º 324/10.9TTALM.L1.S1). 5

Ora, no vertente caso, o ponto 17 do elenco dos factos provados não foi indicado nas conclusões do recurso, pelo que se rejeita a impugnação quanto a este ponto. Relativamente aos demais pontos impugnados considera-se que foi minimamente cumprido o ónus de impugnação.

Passaremos, então, de seguida, a apreciar a impugnação deduzida.

Antes, porém, consigna-se que ouvimos a gravação integral da prova produzida em julgamento e analisámos a prova documental apresentada.

Os pontos impugnados têm o seguinte teor:

7. A partir de meados de Junho de 2024 a empresa utilizadora raramente atribuiu ao autor um horário completo de 8 horas diárias.


8. A ré detém um grupo de WhatsApp, onde diariamente informa os seus trabalhadores, do horário a praticar no dia seguinte, hora de entrada e de saída.


9. A partir de determinado momento o autor deixou de ser contactado para trabalhar.


10. Nessa sequência, o autor dirigiu-se, por várias vezes, às instalações da ré manifestando a sua preocupação e a disponibilidade para trabalhar.


11. O autor também contactou telefonicamente, por várias vezes, a ré com o mesmo objetivo.


12. No dia 24-06-2024 o autor dirigiu à ré o seguinte email:


«Olá bom dia, espero que esteja tudo bem convosco.


Sou o AA, trabalhador da empresa com o número do processo da contratação “NIPC ...” representado pelo QR code, aqui anexado.


Venho através desta, expor a minha situação, pois acontece que tenho o contrato full-time com a empresa, mas não estou a ter nem horário part-time. Acontece que, depois de assinar contrato convosco, tive inúmeras chamadas a me pedirem para fazer contrato, empresas essas concorrentes “em bom sentido” com a nossa, achei que seria um bocado irresponsável efetuar aquele ato (embora houve altura que pensei nisso por estar a pensar mais em trabalhar e fazer dinheiro), um dos maiores motivos que me trouxe cá, mas achei melhor não fazer pela questão do bom senso e ainda mais pelo respeito ao contrato que é uma fonte da obrigação, nesse caso “mútuo” e (sobretudo porque a empresa me acudiu quando mais precisei), visto que vocês é que têm de gerir a minha energia “força de trabalho”.


Entretanto não se está a verificar o cumprimento do contrato na parte horária, pois tinha de ter 40 horas semanais para trabalhar, o que não está a acontecer e que estou a tentar e já tentei reverter tanto pessoalmente como por via telefónica na empresa onde me passaram esse email. Acontece que eu tenho despesas para pagar, entretanto sei que terei o meu mínimo estipulado no contrato quanto ao aspeto salarial, mas pela boa-fé não tenciono só ficar em casa para receber isso, por isso, estou a entrar em contacto para saber realmente o que fazer.


Retiro dessa agradecendo a vossa disponibilidade e atenção.


Cordialmente».


13. Em 09-07-2024 o autor dirigiu à ré um novo email, com o seguinte teor:


«Olá boa tarde, espero que esteja tudo bem convosco.


Estou a entrar em correspondência mais uma vez, para explicar que devido a não obtenção da resposta à correspondência anterior estou a ver que fica escasso os recursos por mim conhecido, para que se possa fazer cumprir o contrato que tenho convosco, visto que já tentei inúmeras vezes tratar isso no escritório. Tendo em conta que sou grato pela oportunidade de emprego que me deram e pela minha boa fé, não tenciono recorrer a via judicial (o que é sempre bom) tendo em conta que é uma via pacífica para resolução de conflitos, mas acaba por ter a sua faceta negativa porque “nesse caso concreto” seria entre mim e a minha entidade patronal, algo que não levo de bom ânimo.


Então quero de antemão avisar que sinto que posso pôr em causa um dos meus importantes deveres, que além de ser um dever encaro-o como uma das minhas virtudes, que é o “dever da lealdade para com a entidade patronal”, o que consiste em não trabalhar por entidade em concorrência. Algo que aconteceu, pois já tive oportunidades de trabalho e não aceitei devido a esse dever, mas como podem constatar que não é pela minha vontade, mas sim pelos motivos explícitos na correspondência anterior e compilado com os de acima referidos e pela necessidade urgente da satisfação das minhas despesas vejo-me sem outra solução.


Estou a ver essas possibilidades.


Retiro dessa agradecendo a vossa disponibilidade e atenção dispensada.


Cordialmente.».


14. No dia 16-07-2024 o autor endereçou à ré o seguinte email:


«Olá bom dia, espero que esteja tudo bem convosco.


Queria saber se já me conseguem dar alguma informação sobre.


Cordialmente».


15. Nesse mesmo dia 16-07-2024 o autor enviou à ré a seguinte mensagem via WhatsApp:


«Olá boa tarde Sr.BB


Espero que esteja tudo bem consigo.


Estou no aguardo sobre o trabalho e o dinheiro.».


16. O funcionário da ré, BB, respondeu ao autor da seguinte forma:


«Trabalho vê com o CC que eu não tenho de momento, liguei-te no outro dia estavas desligado o dia todo».


19. Esta carta não foi recebida pelo autor.

O tribunal a quo motivou assim a sua convicção:

«A demonstração dos factos provados deveu-se ao consenso das partes quanto à sua verificação, acordo que se mostra corroborado também pelos documentos que foram juntos aos autos, designadamente o «contrato de trabalho» celebrado entre o autor e a ré e as várias comunicações trocadas entre as partes, que se conjugam com as declarações de parte do autor e com o depoimento de BB, funcionário da ré, tudo como se passa a explicitar.

Não se desconhece, para efeitos probatórios, a singularidade que assumem as declarações prestadas pelas partes, atento o seu interesse direto no desfecho do processo, que devem ser analisadas com especial rigor e exigência e corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível, para que possam ser consideradas para provar factos que lhes são favoráveis.

Na situação em apreço, as declarações prestadas pelo autor reputaram-se espontâneas, contextualizadas, credíveis, coerentes e foram corroboradas por outros meios de prova, designadamente por todas as comunicações, via email e WhatsApp, que dirigiu à sua entidade patronal, no sentido de lhe ser atribuído um horário de trabalho completo, aliás em cumprimento do acordado entre ambos.

Na verdade, para além das declarações do autor, o depoimento de BB, mostrou-se hesitante, vago e nada convincente quando afirmou que o autor estava incontactável, não sendo possível colocá-lo em qualquer (outra) empresa utilizadora que necessitasse do seu trabalho.

Aliás, resulta dos autos exatamente o contrário, designadamente da insistência com que o autor contactou para esse efeito a sua entidade empregadora, quer fisicamente, quer por via eletrónica, sendo certo que a ré dispunha de um grupo de WhatsApp, onde diariamente informava os seus trabalhadores, do horário a praticar no dia seguinte, da hora de entrada e de saída, nenhuma dúvida subsistindo acerca da capacidade entrar em contacto com o autor por esse meio.

Com efeito, quando confrontado com essa situação, BB afirmou desconhecer os demais contactos entre o autor e a empresa, afirmando que era apenas responsável pela colocação dos trabalhadores nas empresas utilizadoras, remetendo quanto a outros aspetos para o departamento de recursos humanos da ré, onde outras pessoas tratariam desses assuntos.

Em qualquer caso, a referida testemunha, pelo carácter vago e pouco credível do depoimento que prestou, não abalou minimamente a convicção extraída das declarações do autor e dos elementos documentais que os autos encerram, que são absolutamente convergentes para a versão dos factos que veio a ser considerada.»

Após análise e ponderação da prova produzida, subscrevemos inteiramente a análise crítica que o tribunal a quo realizou da mesma.

Desde logo, o depoimento prestado pela testemunha BB não é merecedor de qualquer credibilidade, por ter sido absolutamente vago, genérico e ter revelado falta de isenção.

A testemunha, que continua a ser trabalhador subordinado da Recorrente, não conseguiu concretizar as datas das tentativas de contacto, que disse ter feito, com o propósito de instar o Recorrido a comparecer ao trabalho. Também não foi junto ao processo qualquer print de mensagem enviada pela testemunha com o mesmo propósito.

Além disso, referiu que era o trabalhador que fazia a ponte entre os clientes e os Recursos Humanos da Recorrente, mas que nunca chegaram ao seu conhecimento os emails enviados pelo Recorrido para o endereço eletrónico ---@timing.pt, o que é não deixa de nos suscitar dúvidas, até porque no email enviado ao Recorrido datado de 26 de junho de 2024 (documento n.º 5 junto com a p.i) é referido pela subscritora desse email que iriam entrar em contacto com o “colega responsável” que, supostamente, seria a testemunha, uma vez que era ela quem geria a colocação dos trabalhadores junto dos clientes.

Enfim, o depoimento de BB não pode ser considerado para afastar ou pôr em causa a demais prova produzida, que foi consistente.

Efetivamente, as declarações prestadas pelo Recorrido afiguraram-se-nos espontâneas, sinceras e, sobretudo, mostram-se corroboradas pelos documentos n.ºs 2 a 6 juntos com a p.i, que revelam uma persistente insistência (escrita) do Recorrido, junto da Recorrente, a partir de junho e até 16 de julho de 2024, para que lhe fosse atribuído trabalho.

Quanto à parte das deslocações pessoais do Recorrido às instalações da empregadora – que não têm suporte documental -, a sinceridade com que a situação foi relatada e tendo em conta o contexto, corroborado pelos documentos apresentados, afigura-se-nos credível.

Em suma, não obstante as declarações prestadas pelas partes devam ser analisadas com especial rigor e exigência, nada impede que sejam consideradas para provar factos que lhes são favoráveis, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível.

Por conseguinte, afigura-se-nos que existe suporte probatório sólido para terem sido dado como verificados os pontos 7 a 16 do elenco dos factos provados.

Relativamente ao ponto 19, pretende a Recorrente que seja acrescentada à sua redação o seguinte esclarecimento »pois este [o Autor] mudou-se para Coimbra».

Ainda que possa considerar-se que a alegação deste facto está inserta na contestação, não foi apresentada prova sólida sobre a sua verificação, pois o depoimento da testemunha BB não merece credibilidade e o Recorrido, nas suas declarações, negou o facto.

Deste modo, o que decorre da prova produzida é que não ficou demonstrado que o facto relatado no ponto 19, tivesse sucedido por o Recorrido se ter mudado para Coimbra.

Em conformidade, adita-se, ao abrigo do artigo 661.º do Código de Processo Civil, ao elenco dos factos não provados o ponto 3, com a seguinte redação:

- Que o facto mencionado no ponto 19 ocorreu porque o Autor se mudou para Coimbra.

Concluindo, a impugnação de facto deduzida improcede na totalidade.

Enquadramento jurídico

Pugna a Recorrente para que seja declarado que o contrato de trabalho sub judice cessou por abandono do trabalho por parte do Recorrido e para que, consequentemente, seja revogada a decisão que declarou ter ocorrido um despedimento ilícito.

Contudo, com arrimo nos factos assentes, esta sua pretensão não pode proceder.

Apesar do teor da carta mencionada no ponto 18 comunicar a cessação do contrato de trabalho por abandono do trabalho, o certo é que a Recorrente não logrou provar a verificação do abandono (cf. artigo 403.º do Código do Trabalho), e o ónus dessa prova recaía sobre si.

Aliás, o que se provou foi que o contrato de trabalho celebrado teve o seu início em 24-05-2024, mas que, a partir de junho de 2024, o Recorrido deixou de ter um horário completo e que em determinado momento deixou de ser contactado para trabalhar, tendo então iniciado diversas tentativas junto da Recorrente para lhe ser dado trabalho.

Não demonstrado, portanto, o abandono do trabalho, por parte do trabalhador, bem andou o tribunal a quo ao decidir que a carta aludida no ponto 18 consubstancia um despedimento ilícito, por não ter sido precedido de procedimento disciplinar, nos termos previstos pelo artigo 381.º, alínea c), do Código do Trabalho.

Por se concordar inteiramente, transcreve-se a fundamentação constante da decisão recorrida:

«Uma vez que o despedimento se traduz num facto constitutivo do direito a que o trabalhador se arroga, cumpre a este fazer prova de que se verificou (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, em face da factualidade assente e que já se identificou, é forçoso concluir que a ré procedeu ao despedimento do autor, na medida em que, de forma inequívoca, em 18-07-2024, comunicou-lhe que cessaria o desempenho das suas funções, ou seja, adotou um comportamento que constitui uma demonstração clara de que não pretendia manter a relação laboral para além da referida data.

Nesse sentido, ocorreu um despedimento, que é ilícito porquanto não foi precedido de qualquer procedimento (artigo 381.º, alínea c), do Código do Trabalho).

Por outro lado, além da ausência de qualquer processo disciplinar, pelas razões já aduzidas, não pode ser acolhida a alegação de ausência/abandono injustificados do posto de trabalho, que lhe foi comunicada pela sua entidade empregadora – cfr. o fundamento de facto n.º 18 da presente sentença.

Em conclusão, estamos, pois, inequivocamente perante um despedimento ilícito, uma vez que a cessação do contrato de trabalho do autor, nos termos dados como provados, teve por base uma decisão unilateral da entidade empregadora e não foi precedida de processo disciplinar, com as formalidades legais que lhe estão associadas (cfr. artigos 344.º, n.º 1, 381.º, alínea c), do Código do Trabalho).»

Em suma, a sentença recorrida não merece reparo quanto à questão agora analisada.

-

Concluindo, o recurso improcede totalmente.

As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente, nos termos previstos pelo artigo 527.º do Código de Processo Civil.

*


Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.


Custas do recurso pela Recorrente.


Notifique.


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Évora, 18 de setembro de 2025


Paula do Paço


Emília Ramos Costa


Mário Branco Coelho

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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho↩︎

2. Procedemos à correção do manifesto lapso de escrita referente à data, pois constava, na sentença recorrida, a data 26-06-2024 e a data do email é 24-06-2024.↩︎

3. Acessível em www.dgsi.pt.↩︎

4. Consultáveis em www.dgsi.pt.↩︎

5. Acessíveis em www.dgsi.pt.↩︎