Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
598/20.7T8OLH-A.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INIBIÇÃO DO FALIDO
PRAZOS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - nos casos previstos no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE é automática a qualificação da insolvência como culposa, não é necessária a prova de culpa, nem do nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, nem sequer se admite prova em contrário;
- a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal;
- não podem ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa sujeitos que não foram demandados no Incidente, nos termos previstos no artigo 188.º/4, do CIRE;
- o montante da indemnização devida aos credores pelas pessoas afetadas corresponde ao montante dos prejuízos sofridos, nunca ultrapassando o valor dos créditos não satisfeitos;
- o concreto montante indemnizatório determina-se por via da medida da contribuição do devedor da indemnização para a verificação dos danos patrimoniais em causa, apurando os prejuízos sofridos por causa e em consequência da conduta que determinou a qualificação da insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Afetado pela qualificação da insolvência como culposa: (…)
Insolvente: (…), Lda.
Credores: Banco (…), SA e outros

Os presentes autos consistem no incidente pleno de qualificação de insolvência.

Em face do teor do Relatório da Administradora da Insolvência prestado nos termos do disposto no artigo 155.º do CIRE, foi oficiosamente declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Do mencionado Relatório consta, designadamente, o seguinte:
- (…)não respondeu às interpelações feitas pelo AI mediante cartas registadas enviadas para as moradas conhecidas com o propósito de serem facultados os elementos contabilísticos e fiscais refe rentes aos anos de 2018 e 2019 e de serem entregues os bens da Insolvente;
- nos últimos 10 anos, a Insolvente foi gerida exclusivamente por (…), que foi casado com (…), filha dos sócios fundadores, e de quem se divorciou em 2018;
- na sequência da rutura das relações familiares, (…) decidiu deixar de pagar o salário a (…), decoradora da sociedade;
- a sócia … (e marido) tinha responsabilidades pessoais na sociedade por garantias prestadas à banca como forma de reforçar a capacidade de financiamento da Insolvente, cujo saldo devedor naquelas datas, ascendia a um valor de cerca de € 210.000,00;
- desde julho de 2018, o gerente (…) deixou de prestar quaisquer informações sobre o giro comercial e sobre a situação económica e financeira da insolvente, afastando por completo a outra sócia, impedindo que a mesma tivesse acesso a qualquer informação da empresa;
- no início de 2019, o gerente (…) procedeu ao encerramento do estabelecimento da sede da Insolvente, pondo termo ao respetivo contrato de arrendamento, levantou e removeu, não se sabendo onde foram colocadas, todas as existências em exposição no espaço de showroom, assim como todo o mobiliário e equipamentos, no valor de algumas dezenas de milhares de euros;
- em junho de 2019, o gerente (…) celebrou escritura de cessão da quota que detinha na sociedade, transmitindo a mesma a um terceiro, de nome (…), tendo posteriormente procedido ao registo da renúncia do cargo de gerente, não dando conhecimento do sucedido à sócia (…);
- o estabelecimento comercial que funcionava como loja showroom deixou de ter afixados os placards de identificação e publicidade da Insolvente e, no seu lugar foram afixados novos painéis publicitários referentes à empresa “(…) – Decoração (…), Sociedade Unipessoal, Lda.”, que foi constituída em agosto de 2018 por (…), irmã de (…), a qual reside a cerca de 350 kms de (…);
- a Insolvente viu transferido o estabelecimento comercial que possuía em (…), bem como todo o seu ativo, no valor de dezenas de milhares de euros, para a sociedade “(…)”, sendo que os computadores da marca Apple e outros meios e equipamentos como mobiliário e stocks fazem parte do imobilizado corpóreo daquela sociedade;
- os documentos e registos contabilísticos e fiscais, balancetes, fichas do imobilizado e livro de atas da sociedade, envolvendo os anos de 2018 e 2019, que foram apropriados por (…), a quem foram entregues a 25/03/2019 pelo ex-contabilista da empresa, Sr. (…), conforme termo de entrega junto com a p.i..
O Administrador da Insolvência apresentou Parecer no qual considera que os factos/informação apurados não constituem fundamento, só por si, para considerar a qualificação da insolvência como culposa, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. Salienta os seguintes dados:
- a apresentação à insolvência;
- a declaração escrita da sócia (…) de receção em espécie, do imobilizado e mercadoria da insolvente, quer o que se encontrava na loja em (…) quer o que estava na posse de (…), o que foi relacionado em inventário como dação em pagamento/reembolso de eventuais suprimentos;
- o acordo de pagamento e constituição de penhor celebrado com (…) – Instalações (…), Lda., atenta a dívida de € 34.419,35.
O Ministério Público, por sua vez, pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, requerendo que seja afetado por essa qualificação (…).
O Requerido apresentou oposição, sustentando que não deve ser qualificada de dolosa a insolvência da sociedade (…), Lda., nem ele próprio afetado por tal qualificação, porquanto foi o mau relacionamento entre si e a sócia … (mãe da sua ex-mulher), causado por esta, que o impossibilitaram de continuar a ser sócio e gerente da sociedade; não sonegou nem ocultou quaisquer bens da sociedade, nem encerrou os estabelecimentos de (…) e (…), nem retirou dos mesmos os equipamentos, mobiliário, dizeres publicitários e demais existências da sociedade insolvente.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando o incidente procedente, conforme segue:
«o Tribunal decide julgar totalmente procedente o presente incidente de qualificação da insolvência e, em consequência decide:
a) Qualificar a insolvência de (…), Lda. como culposa, tendo a Insolvente atuado com culpa grave;
b) Declarar (…) afetado pela qualificação da insolvência de (…), Lda. como culposa, em virtude de atuação com culpa grave;
c) Declarar (…) inibido para administrar patrimónios de terceiros durante um período de cinco anos;
c) Declarar (…) inibido para o exercício do comércio durante um período de cinco anos, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos de (…) sobre a insolvente e sobre a massa insolvente;
e) Condenar (…) a indemnizar os credores da insolvente, pelo valor dos danos sofridos até ao máximo de € 300.275,58, correspondente ao valor dos seus créditos reconhecidos e não satisfeitos, a liquidar.
f) Condenar (…) nas custas do incidente, que se fixam em 2 UC.»
Inconformado, o Requerido afetado pela qualificação apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que o absolva daquela afetação. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I. Não se conforma o Recorrente com a decisão ora sob recurso.
II. Apesar de o M.º P.º o referir, não se vislumbra nestes autos que o AI tenha, expressamente, qualquer requerimento ou parecer no sentido da presente insolvência ser qualificada de dolosa, pelo contrário, e de que o ora oponente fosse afetado por tal qualificação.
III. Pelo que desde logo, por este ponto, a douta decisão da qual aqui se recorre assenta em erradas considerações, desse logo esta; devendo por tal motivo ser procedente o recurso pois a douta decisão invoca uma premissa na qual assenta, mas que na realidade não existe.
IV. Na Fundamentação de Facto, e notadamente quanto à Consideração dos Factos Provados e não Provados, também a douta Sentença ora recorrida apresenta as maiores disparidades e vícios de fundamentação; pois que desconsidera em absoluto quer a documentação nos autos, documentação aliás não posta em crise nem de qualquer modo impugnada ou contrariada; quer a lógica conclusiva que resulta da própria elencagem de factos que a mesma sentença elabora.
V. Face ao acervo documental, o Tribunal a quo não pode que a sociedade insolvente foi constituída em 11 de Setembro de 2003; que o recorrente só foi sócio da sociedade e dela gerente a partir de 12 de Novembro de 2009 e até 12 de Junho de 2019; que a Requerente (…) foi desde o início (2003) sócia e gerente, de direito e de facto, da sociedade até 2018; e ainda que com interrupções quanto à gerência de direito, era-o à data da apresentação à insolvência, 17 de Agosto de 2020.; e que até ao ano de 2018 foram apresentadas e registadas as contas da sociedade, sem oposição de quem quer que fosse, de onde se conclui que sabia ela o estado financeiro e de solvência da sociedade até essa data, pelo menos.
VI. Ora, como resulta do próprio texto da Sentença, em sede de Fundamentação da decisão de facto, o Tribunal baseou a sua convicção na análise de toda a prova documental constante dos autos principais e dos seus vários apensos, (…); O que significa que na apreciação da prova disponível ao Tribunal, esta tinha que sustentar-se igualmente na documentação abundante junta aos autos (v. g. Doc. 1 junto ao requerimento do ora recorrente junto em 15.5.2024 e para o qual se remete dando-o por reproduzido).
VII. Da prova documental nos autos resulta que desde 4.1.2010, que por força de procuração emitida pelo recorrente à sócia (…) e à filha desta, (…), ambas tinham poderes para movimentação das contas bancárias, uso, endosso, emissão e movimentação de cheques, acesso à gestão dos contactos com clientes e fornecedores - ou seja, geriam efetivamente, de facto, a sociedade, pondo e disponde de valores e tomando as decisões financeiras que entendessem de modo efetivo e autonomamente; e tal poder fáctico de gerência, primeiro por direito, depois por gerência de facto e com procuração desde 2010, durou até 14 de Setembro de 2018, data em que o recorrente, revoga a procuração referida.
VIII. Após a saída do recorrente da sociedade por cessão da sua quota e renúncia à gerência, em 2019, a referida (…) retoma a gerência de direito cumulativamente com a gerência de facto que nunca deixou de exercer até à apresentação à insolvência.
IX. No acervo documental que tanto demonstra estão, indicados como Doc. n.º 4 à Oposição do recorrente, comunicações trocados entre ele a sócia e gerente (…) onde esta sócia afirma ser a responsável pela parte financeira da empresa desde 2003; e não contradiz o que nesse sentido afirma o recorrente; pelo que não podia o Tribunal, na Sentença, passar por cima desta evidência de que a prova documental dá conta;
X. Assim, o Tribunal a quo não pode ignorar, ademais dando como base da sua convicção o acervo documental dos autos, que (…) foi gerente de facto e de direito nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, sendo-o aliás no momento em que a ela se apresenta; o que importaria que a conduta da gerente (…) devesse ter sido apreciada para efeito da qualificação, aliás como requerido pelo ora recorrente na sua Oposição à Qualificação Mas essa conduta não foi apreciada nem sopesada no contexto da insolvência e do carácter fortuito ou culposo dela, apesar de o objeto da causa, como consta aliás dos primeiros parágrafos do texto decisório, ser o de aferir se a insolvência é fortuita ou culposa e extrair as devidas consequências.
XI. Na verdade, parece ter sido exclusivamente analisada a situação do Recorrente, e nada mais. Todavia, na Oposição, nos autos, o Recorrente apresentou um largo conjunto de factos que não vemos impugnados ou contrariados factualmente por nenhum dos demais intervenientes processuais em termos de afastar a realidade que nessa Oposição se descreve.
XII. Dessa peça e documentos que a acompanham resulta que
 Dentre 2009 e 2019, habilitadas para tanto por procuração, a sócia (…) e a sua filha (…), geriram efetivamente a sociedade quanto à sua vida financeira, stocks, pagamentos, contactos financeiros, etc., sendo o ora oponente um gerente somente de assinatura, portanto exercitando gerência formal, de direito, mas não efetiva;
 A partir do momento em que o casamento do ora oponente e da referida (…) se gorou, a sócia (…) entrou em conflito surdo com o ora recorrente, boicotando qualquer esforço deste para uma saudável continuação da atividade societária; pelo que se tornou impossível manter o convívio entre sócios, com o perigo de estagnação da atividade societária; o que levou o ora recorrente a revogar a procuração que emitira.
 Que já em 2019, a sócia (…) alegou a existência de suprimentos seus à sociedade e exigiu ser ressarcida deles; tendo recebido da sociedade em 12 de Fevereiro de 2019, a título de dação em pagamento de tais suprimentos, um conjunto largo de bens mobiliários que integravam o património e a existência da sociedade; o que foi pela própria declarado em Documento que com o n.º 1 se mostra nos autos, junto à aludida Oposição.
XIII. Não obstante a douta sentença vem considerar como Facto Provado 7 que foi o recorrente quem retirou desse estabelecimento todas as existências que estavam na loja e em exposição, todo o mobiliário e equipamentos, entre os quais computadores da marca Apple, bens que constituíam o património da insolvente, em valor não apurado mas superior a um milhar de euros. E bem assim como Facto Não Provado 1 que Entre 2009 e 2019, era (…) quem geria financeiramente e operacionalmente a Insolvente, sendo que (…) se limitava a assinar os documentos que lhe eram solicitados. Ou seja, desconsidera desse flagrante modo prova documental a que genericamente alude como fundamento da sua convicção; e nem sequer se lhe refere.
XIV. No contexto do CIRE, não se vê como poderia a sentença dar como Não Provado que a (…) tenha sido gerente de facto; e tenha tomado decisões financeiras; e recebido para si, a título de dação em pagamento por eventuais suprimentos bens móveis da sociedade; mas na verdade fê-lo, não se pronunciando sobre estes documentos juntos pelo então opoente e ora recorrente quer na Oposição à Qualificação, quer no seu requerimento de 15 de Maio de 2024.; ou pronunciando-se erradamente, como é o caso quando, referindo-se àquela declaração da sócia (…), a define como documento particular sem autenticação de assinatura, erro flagrante que demonstra que na elaboração da sentença o Mm. Juiz não analisou criticamente as provas, pois se o fizesse verificaria que essa declaração e os seus anexos contêm o reconhecimento notarial da assinatura da declarante; além de que esta nunca impugnou ou pôs em crise essa sua declaração, o seu conteúdo ou o seu significado.
XV. Assim, a sentença carece de análise crítica de provas ao seu dispor; não toma em consideração factos provados por documento e por confissão reduzida a escrito; e deste modo não compatibiliza toda a matéria de facto adquirida, desrespeitando o comando do n.º 4 do artigo 607.º do CPC; e o n.º 5 desse artigo, por, pois que os factos provados por documentos ou por confissão não podem ser abrangidos pela livre apreciação do julgador.
De onde decorre que o Mm.º Juiz invoca fundamentos que estão em plena oposição com a decisão; e daí decorre inevitavelmente ambiguidade decisória; e deste modo deixou o Mm.º Juiz de pronunciar-se sobre estas questões que deveria apreciar,
XVI. Notadamente sobre a questão de tal documento/declaração e seus anexos significarem uma confissão de que recebeu ela bens que, afinal, a sentença acaba por em claro erro e contradição declarar (Facto Provado 14) terem ficado na posse do recorrente: “encerrou a loja da Insolvente em (…), situada na Loja 1 do Edifício (…), na Av. (…), em (…), ficando na posse do seu recheio”.
XVII. Destes erros e vícios decorreu ainda necessariamente o afastamento por falta de apuramento de responsabilidades da sócia e gerente de facto (…) quanto à qualificação da Insolvência, se esta vier a ser considerada culposa e não fortuita.
XVIII. Ora, esta inobservância do cumprimento dos normas dos n.º 4 e 5 do artigo 607.º do CPC; e a verificação das situações atrás aludidas e previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, determina a Nulidade da Sentença, nos termos desse mesmo artigo 615.º, nulidade que aqui se deixa arguida e invocada para todos os efeitos legais e se requer seja declarada por V. Exas..
XIX. Igualmente o mesmo sucede com os factos dados por Provados 7, 8 e 14, pois existe nos autos prova documental de que em 05/04/2019, para regularizar uma dívida da sociedade, esta efetuou validamente um acordo de pagamento com a sociedade (…) – Instalações (…), Lda.. através de acordo em que bens da sociedade descritos no documento que se juntou como doc. 4, foram removidos pela aludida credora e ficaram à guarda dela; bens que não são os mesmos que a sócia (…) recebeu pelos eventuais suprimentos que eventualmente tivesse efetuado.
XX. Daí que seja ambígua e torne a decisão ininteligível a asserção contida na douta sentença, na Fundamentação da Decisão de Facto, pela qual (…) a versão do Requerido sobre os bens que constavam da loja de (…) é totalmente inverosímil e contraditória nos seus termos. Ou bem que os bens constantes de tal loja foram entregues para dação de reembolso de suprimentos a (…) – sendo certo que o doc. n.º 1 junto com a contestação, documento particular sem autenticação de assinatura, não permite ao Tribunal sustentar a sua fidedignidade, dada a oposição do seu conteúdo com o do documento n.º 4 junto com o mesmo articulado – ou bem que os bens ficaram na loja de (…), foram entregues em penhor a (…), Lda.. (…) Não há nada de inverosímil na versão do recorrente, aliás sustentada naqueles dois documentos que listam bens e a sua entrega a distintas pessoas; pois não são os mesmos os bens; e nenhuma das pessoas que os receberam são o recorrente, sendo porém, uma, a sócia (…); e, outra, a pessoa coletiva credora (…), Lda.; tendo porém o Tribunal a quo não se pronunciado sobre estes documentos juntos pelo então opoente e ora recorrente quer na Oposição à Qualificação, quer no seu requerimento de 15 de Maio de 2024,
XXI. Ignorando-os e apenas os referindo de modo infundamentado desprovido de sentido, desconsiderando-os, não os analisando criticamente, não se pronunciando sobre eles, e por isso elaborando a sentença em desrespeito das normas do n.º 4 e 5 do artigo 607.º do CPC ao não tomar em consideração tais factos provados por documento e por confissão escrita; desse modo resultando a incompatibilização de toda a matéria de facto adquirida e a abrangência (não permitida) pela livre apreciação do julgador de factos provados por documentos ou por confissão; invocando assim fundamentos que estão em clara oposição com a decisão; o que leva a ambiguidade decisória e a ter deixado o Mm.º Juiz de pronunciar-se sobre estas questões que deveria apreciar.
XXII. Esta inobservância do cumprimento dos normas dos n.º 4 e 5 do artigo 607.º do CPC; e a verificação das situações atrás aludidas e previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, determina a Nulidade da Sentença, nos termos desse mesmo artigo 615.º, nulidade que aqui se deixa arguida e invocada para todos os efeitos legais; e que deve ser declarada por V. Exas., o que se requer.
XXIII. Do que se deixa alegado decorre que inexiste qualquer sonegação ou ocultação de bens da sociedade por parte do Recorrente, sendo por isso totalmente inexatos os factos alegados nos pareceres do Administrador da Insolvência e o Ministério Público, que a douta sentença afinal recolhe com bases erradas e com desconsideração dos meios de prova documentais que demonstram o contrário do que a sentença declara; pelo que não estão verificados os requisitos e fundamentos para que a presente insolvência seja qualificada de dolosa, e muito menos para que o ora oponente seja afetado por tal qualificação.
XXIV. Mesmo que se considerasse não existirem as arguidas nulidades sempre existe erro flagrante da decisão relativa a matéria de facto. E embora o presente recurso não invoque quanto a fundamentos do erro na apreciação de provas meios probatórios que tenham sido gravados, vem-se impugnar a decisão quanto a matéria de facto nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, pois estão incorretamente julgados os seguintes pontos de facto: Factos Provados 5, 7, 8, 14 e 15.
XXV. Quanto ao ponto 5 de Factos Provados, o Tribunal louvou-se, para o considerar facto Provado, na análise da certidão do registo comercial da sociedade insolvente; de onde porém nada decorre que ponha em crise, os documentos que estão nos autos, portanto meios probatórios constantes do processo, que são os que se mostram juntos sob o n.º 4 com o requerimento do recorrente de 15.5.2024 e para o qual se remete dando-o por reproduzido; documentos nos autos que, impõem decisão diversa da recorrida, qual seja a de que o referido Facto seja considerado Não Provado, o que se requer. O mesmo se diz quanto aos Factos Provados 7 e 8, incorretamente julgados como provados quando os documentos constantes do processo e que são Docs. 1 e 4 juntos com a Oposição à Qualificação impõem decisão diversa e não têm entre si, esses documentos, contrariamente ao que afirma a Sentença, qualquer oposição entre os seus conteúdos; e o Tribunal a quo nem sequer atentou que os computadores de marca Apple referidos nestes pontos de Facto constam afinal na lista de bens Doc. 4 aludido, e ficaram na posse da credora (…), Lda..
XXVI. Devem esses Factos ser considerados Não Provados, o que se requer.
XXVII. Quanto ao facto Provado 14, está o mesmo incorretamente julgado, pois não só inexiste qualquer meio probatório que leve à conclusão de que o recorrente encerrou a loja de (...) e que ficou na posse do seu recheio, como existem meios probatórios que dizem o contrário, notadamente os atrás falados documentos Docs. 1 e 4 juntos com a Oposição à Qualificação, que impõem dever ser este facto considerado Não Provado. O que se requer.
XXVIII. Quanto ao Ponto 15 dos Factos Provados, também está ele incorretamente julgado, pois nunca o Recorrente admitiu fosse o que fosse quanto a ter ficado com qualquer recheio da loja, nem isso decorre da análise das fotografias e certidão do registo comercial juntas como documentos nºs 6, 7 e 8 com a petição inicial que instruiu o processo principal; e os documentos Docs. 1 e 4 juntos com a Oposição à Qualificação impõem dever ser este facto considerado Não Provado; o que se requer. Tudo nos termos do n.º 1, alínea b) do artigo 640.º do CPC., o que se refere quanto a todos estes pontos de facto.
XXIX. Também quanto aos Factos Provados 17, 18, 19 e 20, onde a sentença recorrida imputa ao recorrente uma série de assim designadas omissões, as quais significariam uma falta absoluta de comunicação à outra sócia quanto ao seu desligamento da atividade e o estado da empresa e de que teria ele, recorrente conhecimento que estava a contribuir para a ingovernabilidade da sociedade e para a sua degradação financeira, afigura-se-nos estarmos ante conclusões e não factos. Mas ainda que se considere que tais pontos são factos, estão eles incorretamente julgados, pois existem concretos meios de prova constantes no processo que impõem decisão diversa, qual seja a de considerar tais Factos como Não Provados.
XXX. São tais meios probatórios a carta registada de 24.9.2019 que está nos autos como Doc. n.º 2 junto à Oposição à Qualificação e que aqui se dá por totalmente reproduzida, para ela se remetendo. A sócia recebeu essa comunicação; nada respondeu, nada perguntou; questão alguma levantou; e bem assim a carta registada de 07.06.2019, Doc. 3 junto à Oposição à Qualificação, que aqui se dá por totalmente reproduzida, para ela se remetendo, a que também a sócia nada respondeu, nada questionou, nada quis saber.
XXXI. Qualquer outra informação adicional era irrelevante, supérflua e inócua, pois a sócia – que gerira a sociedade de facto até poucos meses antes, conhecia efetivamente e melhor até que o recorrente o estado societário e financeiro da sociedade, de quem vinha há anos sendo, como ela mesma diz nos autos, responsável financeira; o que aliás decorre documentalmente dos autos, notadamente dos docs. 2, 4, 6 e 7, juntos com o requerimento do ora recorrente de 15.05.24, para os quais se remete por estarem no processo. O que significa que estes factos dados por Provados em 17 a 20 estão incorretamente julgados, pois não só inexiste qualquer meio probatório que leve às conclusões nele ínsitas, como existem meios probatórios que dizem o contrário, notadamente os atrás falados documentos 2, 4, 6 e 7, juntos ao requerimento do ora recorrente de 15.05.24, constantes no processo, que que impõem deverem ser estes factos considerados Não Provados. O que se requer; e se refere nos termos do n.º 1, alínea b), do artigo 640.º do CPC.
XXXII. E por todos os meios probatórios que se vieram aludindo para considerar incorretamente julgados os Factos considerados Provados; e pelos mesmos motivos, estão incorretamente julgados os Factos não Provados 1 e 2, devendo ser julgados como Provados, uma vez que os documentos juntos sob o n.º 4 com o requerimento do recorrente de 15.05.2024; os Docs. 1 e 4 juntos com a Oposição à Qualificação; o Doc. n.º 2 e 3 juntos à Oposição à Qualificação; todos que aqui se dão por totalmente reproduzidos, para eles se remetendo, constantes dos autos, impõem essa diversa decisão, a qual se requer; e se refere nos termos do n.º 1, alínea b) do artigo 640.º do CPC.
XXXIII. Não existe qualquer falta de colaboração do Recorrente com o AI; pois que à data da apresentação à Insolvência já o recorrente não era sócio, nem gerente, da sociedade; não detinha na sua posse nenhum documento da sociedade; ignorava qual era então o exato estado societário. Não alcança pelos autos em que ponto qualquer conduta sua agravou ou causou eventualmente a insolvência.
XXXIV. Sendo a loja de (…) arrendada a um proprietário, e ficando ela vazia e sem uso para a sociedade, foi a mesma arrendada então à sociedade “(…) – Decoração e (…), Unipessoal, Lda.”, tendo o recorrente nisso não tido qualquer outro papel do que intermediar os contactos entre o senhorio e empresa “(…) – Decoração e (…), sociedade que é detida pela irmã do arguido, uma vez que conhecia uma e outra das partes, como decorre, a nosso ver cristalinamente, dos meios documentais nos autos, afinal ignorados ou equivocadamente interpretados pelo Tribunal a quo.
XXXV. Mudando a matéria de facto como requerido, a decisão de Direito não pode ser aquela que é, ou aplicar-se ao recorrente afetação decorrente da qualificação que venha a ser decidida após o recurso.
XXXVI. Ora, devendo serem os Factos Provados e Não Provados alterados nos termos do presente recurso, face aos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, como se requer, não poderá deles deduzir-se a censurabilidade que ora a sentença imputa ao recorrente.
Ainda que assim não seja o que não se admite, sempre se dirá apenas por dever de cautela e por cuidado de patrocínio,
XXXVII. O Mm.º Juiz a quo subsume as condutas do recorrente nas alíneas a), d) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e por uma questão de economia processual damos aqui por reproduzido as alegações constantes dos artigos supra.
XXXVIII. O Recorrente de acordo com o Parecer do AI, nos termos do artigo 191.º do CIRE, mais não fez que entregar em dação em pagamento bens da insolvente (que estavam na loja de … e ainda os que estavam na posse da filha …) à sócia (…) em 12.02.2019 (4 meses antes de renunciar à gerência) e entregar bens com acordo de pagamento e constituição de penhor à credora (…) para solver uma dívida que a sociedade tinha para com aquela (docs. 1 e 4 já acima referidos); o Recorrente como exaustivamente se referiu não destruiu não danificou, inutilizou ou fez desaparecer no todo ou em parte considerável o património do devedor.
XXXIX. Tanto assim é que quer a sócia (…) quer o credor (…) não vieram reclamar créditos na insolvência, nem nunca a sócia (…) alguma vez veio aos autos afirmar que a sociedade teria mais bens do que aqueles constantes destes dois documentos.
XL. Também não existe qualquer facto dado como provado que mencione que (…), ora recorrente, tenha disposto dos bens da sociedade em proveito pessoal ou de terceiros; pelo acima exposto o Recorrente não ficou na posse de quaisquer bens e ainda que tenha ficado na sua posse nada consta dos Factos Provados que demonstre que os tenha disposto em proveito pessoal e muito menos de terceiros.
XLI. Assim, tendo em conta esta materialidade não se nos afigura estar demonstrada uma efetiva situação de dissipação reconduzível à citada alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE (que pressupõe, para a sua afirmação, uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor), sendo certo que, conforme se vem entendendo, a prova dos elementos de facto tendentes ao preenchimento dessa previsão normativa, mormente do facto base da presunção nela contemplada, impenderia sobre os credores, o Ministério Público e/ou o Administrador da Insolvência – isto porque a lei não presume a dissipação dos bens, apenas presume a culpa e o nexo de causalidade na insolvência ou seu agravamento caso aquela materialidade esteja demonstrada, sendo este o verdadeiro sentido e alcance da presunção legal.
XLII. Também quanto à alíneas d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se dirá que o proveito aludido nessa norma tem em si a ideia de favorecimento/vantagem ou benefício ilegítimo, de repercussão negativa no património do insolvente e basta uma simples leitura da sentença para perceber que não foram dados como provados quaisquer factos que permitam tirar esta conclusão, ou seja não existe alegação e prova, quer do A.I., quer do M.º P.º, quer do credor hipotecário, de que foi ocultado património do devedor nos 3 anos que antecederam o início do processo de insolvência, o que assume manifesta relevância em matéria de não qualificação de insolvência como culposa, vide n.º 1 do artigo 186.º do CIRE.
XLIII. O AI conclui que que não devem ser de considerar os factos/informação enunciados com fundamento, só por si, para considerar a qualificação da insolvência como culposa nos termos considerados nas alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
XLIV. E o M.º P.º alega mas não prova o que invoca para a qualificar como culposa.
XLV. Nenhum credor veio aos autos alegar o que quer que seja e muito menos qualquer prejuízo sofrido ou qualquer outro facto no âmbito destes autos.
XLVI. E, na própria sentença não foi dado como provado qualquer destes factos nem que (…) se apropriou de bens da insolvente em proveito próprio nem que os integrou no património da sociedade (…) – Decoração de (…), Sociedade Unipessoal, Lda..
XLVII. E ainda, aquando da apresentação à insolvência, requerida pela sócia (…) em 17.08.2020, já o recorrente há muito havia renunciado à gerência e estava desligado da sociedade devedora, sendo que as obrigações impostas pelo artigo 83.º do CIRE se destinam ao devedor insolvente.
XLVIII. Apenas no segmento final do Facto Provado 17 da sentença recorrida se refere que nem entregou tais elementos nem prestou qualquer informação ao administrador de insolvência neste processo.
XLIX. Todavia, no seu Parecer o AI afirma que o mesmo teve por base as suas diligências bem como a informação prestada pelo ex-gerente (…) e também os documentos juntos pelo mesmo; por aqui concluímos que (…) prestou informação e entregou documentos.
L. Também não se mostra provado na sentença recorrida a reiteração do seu eventual incumprimento, exigida por esta alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
LI. Pelo que mal andou o Mmo Juiz a quo ao subsumir a conduta do recorrente nesta alínea a), d) e i) do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE.
LII. Cremos que a alteração da matéria de facto deverá prosseguir e, a final, qualificar-se a insolvência como fortuita mas, mais uma vez assim não sendo e por dever de patrocínio sempre se dirá que a inibição por 5 anos não se mostra equilibrada.
LIII. Mais uma vez a sentença recorrida é parca em Factos Provados nada mencionando sobre o grau de ilicitude e culpa de (…) nem qual o contributo da sua atuação para a criação ou agravamento do estado de insolvência do devedor – os Factos Provados 18, 19 e 20 mais não são do que conclusões.
LIV. Por outro lado, nas reclamações de créditos constantes dos autos de insolvência são evidentes as garantias pessoais prestadas, por (…), (…) e seu esposo (…), aos credores que assim nunca terão qualquer prejuízo e que talvez por isso nada disseram no incidente de qualificação.
LV. Quanto às dividas da Fazenda as mesmas reverteram para (…) e estão em discussão.
LVI. A não proceder a qualificação como fortuita, o que apenas se concede por dever de patrocínio, entendemos desproporcional a fixação em 5 anos da inibição para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
LVII. Por outro lado, por via da extensão dos artigos 188.º e 189.º do CIRE, também têm de ser afetados por essa qualificação os eventuais gerentes de facto, isto é, os que exercem efetiva e materialmente as funções de gerência do devedor apesar de não se encontrarem validamente nomeados para o cargo de gerência; tal a situação precisamente de (…) enquanto gerente de facto.
LVIII. Seguindo o Ac. do STJ de 16.11.2023, in www.dgsi.pt, Em causa está a aplicação no artigo 189.º, n.º 2, quando a insolvência seja qualificada como culposa, importando os termos da alínea e) a condenação das pessoas afetadas, como o Recorrente a indemnizarem os credores da Insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património, reportando o n.º 4, do mesmo preceito. Ao fazê-lo, o juiz deve fixar o valor da indemnização, ou caso tal não seja possível por não dispor dos elementos necessários para calcular os prejuízos sofridos, os critérios para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”.
LIX. Nada se apurou quanto ao património pessoal do recorrente. E também nada se apurou, em concreto quanto aos prejuízos efetivamente sofridos pelos credores da insolvente por via da atuação culposa do recorrente, e por tal a sentença, manda para liquidação sem no entanto indicar os critérios para a sua qualificação.
LX. Na verdade, a sentença recorrida neste conspecto – obrigação de indemnizar – depois de transcrever exaustivamente os dispositivos legais apenas refere quanto ao caso concreto que está claramente demonstrado o nexo de causalidade da conduta culposa do gerente (…) e o agravamento da situação de insolvência da sociedade (…), Lda..
LXI. Mas compulsados novamente os Factos Provados não encontramos nenhum facto que justifique esta conclusão.
LXII. No caso, o processo foi encerrado com fundamento em insuficiência de bens na sequência de pesquisas realizadas pelo administrador da insolvência; nenhum credor veio alegar e demonstrar a dissipação de património suscetível de satisfazer pelo menos parte do passivo; e o grosso do passivo corresponde a dívidas a credores com garantias pessoais (livrança com aval) não permitindo estabelecer um nexo de causalidade entre as referidas condutas qualificadoras da insolvência e o prejuízo sofrido pelos credores da insolvência, sempre seria exigível a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor – nexo que não existe – e que no caso não está sequer demonstrado; nem, aliás, uma tal exigência surge sequer individualizada na sentença apelada nem em qualquer facto relativo.
LXIII. Nestes termos, a decisão recorrida viola os artigos 186.º, n.º 1, alíneas a), d) e i), do CIRE; os n.º 4 e 5 do artigo 607.º do CPC; as alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, e o mesmo artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Devendo por isso o recurso proceder.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da sentença recorrida, que não padece de qualquer dos vícios que lhe são apontados.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da nulidade da sentença;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da afetação do Recorrente pela qualificação da insolvência como culposa;
- da desproporcionalidade dos 5 anos de inibição fixados;
- da afetação de (…) pela qualificação da insolvência como culposa;
- da obrigação de indemnizar.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1- A 17/08/2020, a sociedade (…), Lda., representada pela sua sócia e única gerente (…), veio apresentar-se à insolvência, que foi declarada por sentença de 18/08/2020, transitada em julgado.
2 - A sociedade (…), Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC (…), e com sede na Rua (…), n.º 949-A, em 8135-016 (…).
3 - A sociedade (…), Lda. foi constituída em 29.09.2003.
4 - Desde 12/11/2009 e até 12/06/2019 o Requerido (…) foi sócio da sociedade (…), Lda..
5 - Desde 12/11/2009 e até 22/06/2019, o Requerido (…) foi o único gerente da sociedade (…), Lda..
6 - No início do ano de 2019, por motivos relacionados com um litígio existente entre o Requerido (…) e a sócia (…), (…) encerrou o estabelecimento comercial da insolvente situado em (…).
7 - E retirou desse estabelecimento todas as existências que estavam na loja e em exposição, todo o mobiliário e equipamentos, entre os quais computadores da marca Apple, bens que constituíam o património da insolvente, em valor não apurado mas superior a um milhar de euros.
8 - Tais bens foram levados por (…) para a loja da Insolvente situada em (…).
9 - Por carta datada de 04/02/2019 dirigida pela sociedade Insolvente à sociedade (…) – Consultadoria de (…), Lda., (…) informou esta sociedade que “sou o único gerente da empresa (…, Lda.) (…) reforçar que toda e qualquer informação contabilística e fiscal referente à supracitada empresa, deverá ser remetida única e exclusivamente para a minha pessoa, estando os senhores apenas autorizados a prestar informação e esclarecimentos à gerência.”
10 - A 25/03/2019, a sociedade de contabilistas (…) – Consultadoria de (…), Lda. remeteu todos os elementos da contabilidade e livro de atas da Insolvente a (…).
11 - No dia 07/06/2019, o gerente (…) celebrou escritura pública de cessão de quota, transmitindo a (…) a quota que detinha na sociedade Insolvente.
12 - (…) é pedreiro de profissão, não tem quaisquer habilitações para gerir uma empresa e nunca teve qualquer vontade de se tornar sócio da Insolvente.
13 - E no dia 25/06/2019, procedeu ao registo da renúncia do cargo de gerente que exercia na sociedade Insolvente.
14 - Nessa data, (…) encerrou a loja da Insolvente em (…), situada na Loja 1 do Edifício (…), na Av. (…), em (…), ficando na posse do seu recheio.
15 - No início de julho de 2019, (…) retirou todos os placards e publicidade da loja da insolvente situada em (…) e no seu lugar afixou publicidade de uma sociedade denominada (…) – Decoração (…), Sociedade Unipessoal, Lda., constituída em 17/08/2018 e da qual é sócia única e também gerente a sua irmã, (…).
16 – (…) reside na Rua Dr. Francisco Sá Carneiro, n.º 25, em (…), concelho de (…).
17 - Em Junho de 2019, (…) desligou-se da atividade da sociedade e não comunicou à outra sócia, (…), qualquer informação sobre o estado da empresa, designadamente sua situação financeira, nem lhe entregou a contabilidade da sociedade, nem bens da sociedade que tinha na sua posse, nem entregou tais elementos nem prestou qualquer informação ao administrador da insolvência neste processo.
18 - Ao alienar a sua quota e ao abandonar a gerência, nos termos descritos, sem informar a sócia (…) da situação da sociedade, e ao omitir-lhe a entrega da contabilidade e bens da sociedade, (…) tinha conhecimento que estava a contribuir para a ingovernabilidade da sociedade e para a sua degradação financeira.
19 - Ainda assim, agiu do modo descrito.
20 - Por causa de tais omissões, a situação de insolvência da sociedade agravou-se.

B – O Direito
Da nulidade da sentença
O Recorrente sustenta que a sentença enferma de nulidade porquanto assenta em erradas considerações ao mencionar que o AI emitiu Parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, quando tal circunstância não se verifica.
Se bem que tal menção conste da sentença e que do Parecer conste o contrário, certo é que se trata de questão irrelevante para a decisão proferida. Consubstancia tão só a enunciação de um dado (incorreto, é certo), que integra o relato do processado mas que não constitui fundamento da decisão. O Parecer não é vinculativo, pois a posição assumida pelo AI não determina o sentido da decisão a proferir relativamente à qualificação da insolvência como culposa.
Não implica, assim, a nulidade da sentença.
Segue o Recorrente apontando a nulidade da sentença com fundamento na desconsideração de meios de prova de índole documental e na deficiente análise crítica das provas produzidas, o que, no entender do Recorrente, conduziria a que outro fosse o rol dos factos provados, resultando afirmada a responsabilidade da sócia (…).
Ora, diversamente do alegado pelo Recorrente, tais circunstâncias, a verificarem-se, relevam em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não acarretam a nulidade da sentença, cujos fundamentos constam do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Termos em que não se acolhem as alegações atinentes à nulidade da sentença.

Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A reapreciação do julgamento realizado em 1.ª Instância, no que respeita à matéria de facto, visa apurar se os factos objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. artigos 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 662.º, n.º 1, do CPC.
Por via de tal regime legal, «Incumbe ao recorrente a demonstração de que o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento. Para tanto, não lhe basta indicar determinado meio de prova que, no seu entendimento, sustente a versão factual que considere ser a verdadeira, como se nenhum outro existisse. Se se limitar a fazer essa indicação, o recorrente não terá, sequer, tentado demonstrar a existência de erro de julgamento. Tendo o tribunal recorrido formado a sua convicção sobre determinado facto com fundamento num conjunto de meios de prova, incumbe ao recorrente fundamentar a sua discordância em relação a todo o processo de formação da convicção daquele tribunal sobre o mesmo facto. Tal fundamentação passa, necessariamente, pela referência a todos os meios de prova de que o tribunal recorrido se serviu para formar a referida convicção e pela análise crítica dos mesmos, pois só assim o recorrente poderá sustentar devidamente a sua pretensão de alteração da matéria de facto. No fundo, é tarefa do recorrente propor uma análise crítica da prova (entenda-se, de toda a prova relevante para a formação da convicção sobre determinado facto) diversa daquela a que o tribunal recorrido procedeu, procurando, assim, convencer o tribunal de recurso de que é a sua a correta. Só se lograr esse convencimento, o recorrente terá demonstrado a existência de um erro de julgamento por parte do tribunal recorrido. E, como acima referimos, apenas nessa hipótese poderá a Relação alterar a decisão do tribunal de primeira instância.»[1]
Ora vejamos.
Relativamente ao n.º 5 dos factos provados, o Recorrente pretende que a factualidade nele referida seja considerada não provada.
Está em causa a afirmação de que o Recorrente foi o único gerente da sociedade entre 12/11/2009 e 22/06/2019, com fundamento no teor da certidão do registo comercial.
Entende o Recorrente que tal afirmação é abalada pelo teor do doc. n.º 4 por si junto, que consubstancia a declaração prestada pela sócia (…) no sentido de que desde 2003 é a responsável financeira, pelo que não entende o motivo pelo qual o Recorrente se dirigiu ao Banco e cancelou o acesso online à contra da empresa. Ao que o Recorrente respondeu que, na qualidade de sócio-gerente, foi forçado a tomar tal atitude para restabelecer normas e boas práticas de organização empresarial em pro, da saúde financeira da empresa.
Ora, tais elementos documentais não revelam que não corresponda à realidade o versado no n.º 5 dos factos provados, em consonância com os elementos exarados na certidão do registo predial. Antes corroboram a factualidade em causa: a função de responsável financeira não equivale à qualidade de gerente da sociedade; só a qualidade de gerente do Recorrente, que este reconhece ter, lhe permitiu atuar nos moldes referidos junto do Banco relativamente à conta da sociedade.
Qualidade de gerente que decorre ainda do documento n.º 4 junto pelo Recorrente com a Oposição ao incidente, atuando ele em representação da sociedade, vinculando esta a acordo de pagamento e constituição de penhor celebrado com outra sociedade.
Termos em que se mantém o n.º 5 nos seus precisos termos.
Relativamente aos n.ºs 7 e 8 o Recorrente sustenta que foram incorretamente julgados como provados, devendo ter-se como não provados, já que os documentos juntos com a oposição ao incidente demonstram que os computadores ficaram na posse da (…), Lda., que foi reconhecida a assinatura da declarante (…) e que os bens que foram entregues a (…) não são os mesmos que foram entregues a (…), Lda..
Quanto ao n.º 14, o Recorrente invoca que inexiste meio de prova que sustente o que ali é versado, e que os documentos juntos com a Oposição demonstram o contrário, o destino que tiveram os bens.
O que é referido nos n.ºs 7 e 8 dos factos provados é que o Recorrente retirou os bens que estavam na loja em (…) levando-os para a loja de (…). O que não é contrariado pela alegação de que parte desses bens foram recebidos por … (diga-se que o reconhecimento de assinatura constante de fls. 44 verso não contém dados suficientes que permitam tomar como certo que se reporta à assinatura aposta na declaração de fls. 36 verso) e que outros foram entregues a (…), Lda. no âmbito de denominado acordo de pagamento e constituição de penhor. Factos que poderiam ter tido lugar depois de transitados para a loja de (…).
No entanto, a convicção deste Tribunal é no sentido de que é destituída de sentido a narrativa do Recorrente, tal como ajuizado em 1.ª Instância, de nada lhe valendo os referidos documentos juntos, a saber, as listagens de bens alegadamente assumidos pela sócia (…) e pela sociedade (…), Lda.. O que, desde logo, decorre do depoimento prestado em audiência pelo Recorrente.
Vejamos.
Afirmou que deixou a loja de (…), deslocou-se para (…), a loja de (…) ficou fechada durante largos meses; depois, a loja foi entregue ao senhorio, com o material que estava lá dentro, o recheio da loja ficou lá; a sócia (…) assinou o documento a dizer que o recheio ficava para ela; a loja foi entregue ao senhorio, (…) sabia que os bens estavam lá dentro.
Afirmou também que dos bens que estavam na loja de (…), alguns foram para pagar dívida da sociedade; a sociedade (…) é da sua irmã, mas ele é que a gere; foram tirados os placards e menções alusivos à (…) e colocados os identificativos da (…).
Seguiu afirmando que não ficou com o recheio da loja de (…): o recheio que está na loja (…) foi emprestado pela empresa (…), foi o que combinou com o gerente desta empresa, foi um empréstimo, pois este disse-lhe “Ó (…), tenho o armazém cheio…”; como tinha o armazém cheio, combinaram que o recheio ficava na loja.
Foi o que respondeu à questão de saber como iniciou a atividade da (…), com que bens.
Tal como exarado na sentença proferida em 1.ª Instância, não nos merece credibilidade a versão do Recorrente, alicerçada nos documentos juntos com a Oposição que pretendiam titular a receção de bens pela sócia (…) e de outros bens pela (…), Lda.. Na verdade, não se concebe que os bens tenham sido disponibilizados à sócia para pagamento de eventuais suprimentos que possa eventualmente ter efetuado à firma[2] e que a loja tenha sido entregue ao senhorio com os bens lá dentro. Não se concebe ainda como plausível que bens tenham sido entregues a título de dação em pagamento a sociedade e que esta os disponibilize a nova sociedade, a título de empréstimo, para esta exercer a sua atividade comercial.
De todo o modo, confessou o Recorrente que é gerente da sociedade (…) e que esta sociedade tem estabelecimento comercial na loja de (…) onde estava implantada a Insolvente, e que o exercício da atividade comercial pela (…) se processa através dos bens que àquela pertenciam.
Termos em que se mantém a factualidade elencada nos n.ºs 7, 8 e 14 dos factos provados nos seus precisos termos.
Relativamente ao n.º 15, o Recorrente sustenta que deve dar-se o seu teor como não provado.
Não lhe assiste razão, pois trata-se de matéria factual por si afirmada no interrogatório feito pelo Juiz de 1.ª Instância.
Relativamente aos n.ºs 17 a 20, o Recorrente considera que devem ser dados como não provados por força das comunicações remetidas à sócia, juntas com a Oposição. Considera que não esteve em falta com o AI porquanto, quando foi abordado, já não era sócio, e uma vez que tinha entregado toda a documentação ao sujeito a quem vendeu a sua participação social.
No entanto, a prova produzida em audiência implica se rejeite tal pretensão.
O Recorrente afirmou, é certo, que o imobilizado da empresa ficou para a sócia (foi entregue ao senhorio com a entrega da loja) e para a (…), Lda. (tendo sido destinado a permitir o exercício do comércio pela …); que a documentação da contabilidade entregou ao sócio que comprou a sua participação.
No que respeita ao adquirente da quota, disse que queria vender a quota por causa do conflito familiar; que houve uma pessoa que telefonou porque estava interessada em adquirir, queria desenvolver um modelo de negócio na empresa; o comprador pagou em dinheiro (€ 15.000,00) mas a sua companheira (dele, Recorrente) passou um cheque para apresentar na escritura; perguntado porque que é que cheque foi apresentado a pagamento, respondeu não saber porque o fez.
Relativamente ao AI, referiu que, quando foi contactado por este, já não era sócio, e já não tinha documentação da sociedade, que tinha entregado ao adquirente da quota.
Ora, apurou-se através do depoimento de (...) que, estando com dificuldades financeiras, foi auscultado por um advogado no sentido de saber se, mediante o pagamento de € 500,00, aceitava assinar uma ata para comprar a quota, que depois seria comprada outra vez; aceitou, e recebeu a quantia de € 500,00, nada pagou.
Neste enquadramento circunstancial, de nada vale ao Recorrente afirmar que entregou a documentação contabilística da sociedade ao comprador da quota. Ainda que o tenha feito, uma vez que se tratava de pessoa que declarou adquirir a quota apenas para receber € 500,00, é manifesto que tal ato, a ter tido lugar, consubstancia o descaminho da referida documentação.
O expediente de que se socorreu o Recorrente para deixar de figurar como sócio da sociedade implica se tenha que considerar que não atuou com lisura no seu afastamento da sociedade e que não foi diligente relativamente aos bens e documentos que tinha à sua guarda.
Mantém-se, pois, o teor dos n.ºs 17 a 20 nos seus precisos termos.
Os factos n.ºs 1 e 2 dados como não provados não evidenciam erro na apreciação da prova, conforme decorre do que se deixou exarado a propósito do n.º 5 dos factos provados.

Da afetação do Recorrente pela qualificação da insolvência como culposa
O artigo 186.º do CIRE regula a insolvência culposa nos seguintes termos:
1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4. O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5. Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
No n.º 2 do artigo 186.º do CIRE é feita a enunciação taxativa de factos que, uma vez provados, conduzem a uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa; não se admite prova em contrário, atento o advérbio empregue – “sempre”. No n.º 3 é que se enunciam situações que fazem presumir a existência de culpa grave dos administradores de direito ou de facto, sendo necessário provar que tal atuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência; a qualificação da insolvência como culposa, limitada às situações de dolo ou culpa grave, exige um comportamento censurável do devedor e uma relação de causalidade entre a conduta do devedor e o estado declarado de insolvência, uma vez que o devedor pode ter atuado dolosamente mas não ter contribuído para a “criação” ou o “agravamento” da insolvência.
Assim;
- nos casos previstos no n.º 2 é automática a qualificação da insolvência como culposa, não é necessária a prova de culpa, nem do nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, nem sequer se admite prova em contrário;
- no âmbito do n.º 1 tem de resultar afirmada a culpa efetiva e no âmbito do n.º 3, a culpa presumida, impondo-se, nestes casos (n.ºs 1 e 3) a demonstração do nexo de causalidade para que a insolvência possa ser qualificada como culposa.
Em 1.ª Instância considerou-se existir fundamento para a qualificação da insolvência como culposa à luz das alíneas a), d) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, atenta a conduta desenvolvida pelo sócio gerente Recorrente.
Apurou-se que:
- no início do ano de 2019, por motivos relacionados com um litígio existente entre o Requerido (…) e a sócia (…), (…) encerrou o estabelecimento comercial da Insolvente situado em (…);
- retirou desse estabelecimento todas as existências que estavam na loja e em exposição, todo o mobiliário e equipamentos, entre os quais computadores da marca Apple, bens que constituíam o património da Insolvente, em valor não apurado mas superior a um milhar de euros;
- tais bens foram levados por (…) para a loja da Insolvente situada em (…);
- no dia 25/06/2019, (…) encerrou a loja da Insolvente em (…), ficando na posse do seu recheio;
- no início de Julho de 2019, (…) retirou todos os placards e publicidade da loja da insolvente situada em (…) e no seu lugar afixou publicidade de uma sociedade denominada (…) – Decoração de (…), Sociedade Unipessoal, Lda., constituída em 17/08/2018 e da qual é sócia única e também gerente, a sua irmã, (…), que reside em (…);
- a sociedade (…) – Decoração de (…), Sociedade Unipessoal, Lda. passou a dispor dos bens que se encontravam na loja da Insolvente em (…) como se fossem seus;
- (…) declarou ao administrador da insolvência não ter na sua posse qualquer documentação contabilística ou outra que tivesse que ver com a sociedade insolvente, alegando ter entregue todos os documentos ao novo sócio que adquiriu a sua quota;
- (…) nunca teve vontade de adquirir a quota;
- em 25/03/2019, a empresa de contabilidade (…) – Consultadoria de Gestão, Lda. remeteu todos os elementos da contabilidade e livro de atas da Insolvente a (…);
- (…) não entregou a contabilidade da sociedade nem prestou qualquer informação ao AI neste processo;
- ao declarar alienar a sua quota nos moldes referidos e ao abandonar a gerência, ao omitir a entrega dos documentos da contabilidade e ao apropriar-se de bens da sociedade, (…) tinha conhecimento que estava a contribuir para a ingovernabilidade da sociedade e para a sua degradação financeira, o que agravou o estado de insolvência da sociedade.
Em face deste enquadramento circunstancial, é de concluir não merecer reparo a decisão tomada em 1ª Instância no sentido de qualificar a insolvência como culposa, sendo afetado pela qualificação o Recorrente (…).

Da desproporcionalidade dos 5 anos de inibição fixados
Nos termos do disposto no artigo 189.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CIRE, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Conforme se colhe do acórdão do TC n.º 280/2015, de 20 de maio, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.
Considerando os expedientes utilizados pelo Recorrente quer para afastar a evidência da apropriação dos bens da sociedade (alguns deles como se tivessem sido atribuídos à sócia … para pagamento de eventuais suprimentos – ou bem que tinha direito de crédito por suprimentos realizados, ou bem que não o tinha; a entrega de bens da sociedade para reembolso de suprimentos que são rotulados de eventuais constitui um ato de gestão danosa pelo gerente – mas que ficaram na loja de … quando foi entregue ao senhorio; outros como se tivessem sido dados em pagamento a credora da sociedade Insolvente mas que, afinal, foram afetos ao exercício do comércio pela sociedade … que se instalou na loja de …) quer para aparentar a alienação da quota social (a indivíduo que admitiu ter sido contactado para, mediante a quantia de € 500,00, assinar a aquisição da quota, tendo sido forjado o pagamento através de cheque bancário subscrito pela companheira do Recorrente, vindo este a levar o cheque a pagamento), afigura-se não ser exagerado o período de 5 anos fixado na sentença.

Da afetação de (…) pela qualificação da insolvência como culposa
A pretensão do Recorrente no sentido de ver afetada pela qualificação culposa a sócia (…) resulta desde logo inviabilizada pela circunstância de o Incidente não ter sido promovido contra a mesma, nos termos previstos no artigo 188.º/4, do CIRE.
Acresce que o rol dos factos provados não permite imputar à referida sócia condutas que se enquadrem nas previsões do normativo acima citado.

Da obrigação de indemnizar
Nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
O n.º 4, por sua vez, determina que ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
Nos termos do citado Ac. do TC, o grau de ilicitude e de culpa manifestado nos factos determinantes da qualificação legal determinam a fixação do montante de indemnização prevista na alínea e).
O montante da indemnização devida corresponde ao montante dos prejuízos sofridos, nunca ultrapassando o valor dos créditos não satisfeitos.
O concreto montante indemnizatório determina-se por via da medida da contribuição do devedor da indemnização para a verificação dos danos patrimoniais em causa[3], apurando os prejuízos sofridos por causa e em consequência da conduta que determinou a qualificação da insolvência.[4]
A referência legal à força dos patrimónios não implica na ponderação da situação patrimonial dos sujeitos obrigados à indemnização. Não é de atribuir a tal referência mais significado do que o de reiterar o que já resulta do disposto no artigo 601.º do CC, no sentido de que o devedor responde com todo o seu património pelas suas obrigações.[5] “A possibilidade de fazer refletir a situação patrimonial ou económica da indemnização está prevista na lei civil mas (…) apenas para o caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa (cfr. artigo 494.º do CC) – o que (…) não acontece aqui.”[6]
Assinala-se a jurisprudência inserta no Ac. STJ de 22/06/2021, proc. n.º 439/15:
III - Assim, no caso de indemnização consagrada no artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas.
IV - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.
V - Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do CIRE (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afetada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável.
VI - Será o caso – em que um gerente (afetado pela qualificação) é (sem desproporção) condenado a indemnizar os credores da devedora/insolvente no montante de todos os créditos reconhecidos não satisfeitos – de quem, em violação grosseira dos deveres gerais de gerente, passa a atividade duma sociedade de construção civil para outra sociedade (com atividade concorrente) de que também é sócio-gerente, deixando a primeira apenas com dívidas (e insolvente).
Termos em que se conclui que “é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial.
(…)
Cumpre ao juiz discriminar (…) entre as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência. Na prática, o dano causado pelas primeiras é suscetível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos. Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica.”[7]
Em 1ª instância, exarou-se que resultou demonstrado o nexo de causalidade da conduta culposa do gerente (…) e o agravamento da situação de insolvência da sociedade (…), Lda.. Quanto aos danos concretos, não se encontrando liquidados e tendo por limite máximo o valor de € 300.275,58 (correspondente ao total do valor dos créditos reconhecidos e não satisfeitos), o Requerido (…) foi condenado a indemnizar os credores da insolvente pelo valor dos danos sofridos até ao referido limite máximo, a liquidar posteriormente.
Perante o que o Recorrente alega não terem sido indicados os critérios a aplicar para a quantificação dos prejuízos a indemnizar.
Assiste-lhe razão.
Decorre do n.º 4 do artigo 189.º do CIRE que, não sendo possível a fixação do valor das indemnizações devidas em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, o juiz deve fixar os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
Na fixação de tais critérios, em ordem a apurar o denominado dano diferencial, cabe considerar o seguinte:
- o processo foi encerrado por insuficiência a massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente;
- não há evidência de que a Insolvente fosse titular de créditos cuja cobrança tenha sido inviabilizada pelo descaminho dos elementos contabilísticos;
- a conduta ilícita e culposa do Requerido (…) consubstanciou-se no descaminho dos elementos contabilísticos, na dissipação dos bens que constituíam o recheio das lojas da Insolvente em (…) e em …) e na afetação desses bens a sociedade da qual é gerente, passando a exercer o comércio na mesma loja de (…) através dessa sociedade;
- não há evidência de que as apontadas condutas do Requerido (…) tenham sido causa exclusiva da situação de insolvência.
Neste enquadramento, afigura-se ser de fixar a indemnização em função do valor dos bens e existências que pertenciam à Insolvente e de que se apropriou o Requerido (bens que integrariam a massa insolvente e viabilizariam a satisfação, ainda que parcial, dos créditos), designadamente os elencados nas listas que instruem o articulado Oposição, sem prejuízo de outros, a apurar em sede de liquidação de sentença, até ao montante máximo de € 300.275,58 (trezentos mil e duzentos e setenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos).

Procedem, neste âmbito, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente na proporção de 2/3, estando do mais isento o Ministério Público – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga o teor da alínea e) do segmento condenatório da decisão recorrida, passando a contemplar a seguinte redação:
e) Condenar (…) a indemnizar os credores da Insolvente pelo valor dos danos sofridos até ao máximo de € 300.275,58 (trezentos mil e duzentos e setenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), a fixar em função do valor dos bens e existências que pertenciam à Insolvente e de que se apropriou o Requerido, designadamente os elencados nas listas que instruem o articulado Oposição, sem prejuízo de outros, a apurar em sede de liquidação de sentença.

Custas pelo Recorrente na proporção de 2/3, do mais estando isento o M.º P.º.

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Évora, 16 de dezembro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás
José Francisco Saruga Martins
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[1] Ac. TRE de 12/07/2018, proc. n.º 7495/15.6T8STB.E1 (Vítor Sequinho dos Santos).
[2] Cfr. doc. de fls. 36 verso.
[3] Cfr. Ac. TRL de 2/02/2022, proc. n.º 1564/20.
[4] Cfr. Ac. TRC de 15/02/2022, proc. n.º 135/20.
[5] Cfr. Catarina Serra, O Incidente de Qualificação da Insolvência depois da Lei n.º 9/2022, Julgar, n.º 48, 2022, pág. 29.
[6] Catarina Serra, ob. e loc. citados.
[7] Catarina Serra, ob. cit., pág. 31.