Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA FERNANDA PALMA | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO IN DUBIO PRO REO | ||
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Data do Acordão: | 11/13/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | DECLARADA NULIDADE DA SENTENÇA | ||
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Sumário: | Incorre em nulidade, por falta de adequado exame crítico da prova, a sentença que, perante a existência de versões contraditórias e opostas sobre os factos, mas não as analisando valorativamente, se escudou a daí extrair a aplicação do princípio “in dubio pro reo”. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 2975/11.5GBABF.E1 Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora No Processo Sumário nº 2975/11.5GBABF, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, por sentença de 15-12-2011, foi absolvido o arguido A da prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, al. b) e c), 73º, nº 1, al. a), 203º e 204º, do Código Penal. Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, nos termos que constam de fls. 66 a 90, concluindo nos seguintes termos: 1. Nos presentes autos, o arguido A foi acusado e julgado em processo sumário pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, al. b) e c), 23.º, nº 1, 73.º, nº 1 al. a), 203.º e 204.º, todos do Código Penal. 2. Na sequência do julgamento realizado, o Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa: A. No dia 21.11.2011, pela 01h45, o arguido encontrava-se junto à porta da lavandaria da residência Vila Mirante, Terras Novas, Vale Parra, área desta comarca de Albufeira, propriedade do ofendido B, a tentar abrir a mesma com uma ferramenta pequena ou uma chave e com uma pequena lanterna. B. O arguido ao se aperceber da presença do ofendido colocou-se imediatamente em fuga apeada, fugindo pelo portão grande da propriedade, de acesso das viaturas, em direcção a um terreno baldio que se situa entre a residência e a estrada de Vale Parra, sendo seguido pelo ofendido que nunca o perdeu de vista C. A cerca de 80 metros da referida residência o arguido entrou no veículo ligeiro, de cor cinzenta e de matrícula 91-97-VP, que se encontrava estacionado. D. Em sua posse tinha 104 chaves de residências e uma pequena lanterna. E. O arguido está referenciado pela GNR pela prática continuada de furto no interior de residências com chaves falsas na zona de Albufeira, fazendo disso o seu modo de vida. F. O arguido agiu sempre com o propósito de se apoderar de objectos de valor que pudesse encontrar no interior da residência do ofendido B, só não o concretizando por ao tentar abrir a porta, que lhe daria acesso ao interior daquele imóvel, ter sido surpreendido, e bem assim, sabia que utilizava para a abertura da porta chaves que não a pertenciam. G. Agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que agia contra a vontade do legítimo proprietário da residência e que a sua conduta é proibida e punida por lei. 3. Estes factos foram dados como não provados porque o Tribunal recorrido considerou que se encontrava perante duas versões contraditórias e opostas (a do arguido e a do ofendido) e que as contradições e divergências manifestas existentes entre os depoimentos do arguido e o depoimento do ofendido, com todas as suas incoerências, fazem suscitar a dúvida quanto à ocorrência ou não dos factos descritos na acusação, a que acresce o facto de não ter o Tribunal ouvido quaisquer outras testemunhas oculares e, como tal, porque a prova produzida se tornou dúbia deverá intervir em sede de valoração da mesma o principio in dubio pro reo. 4. Por essa razão, os factos que consubstanciam o furto qualificado tentado foram dados como não provados, resolvendo-se a dúvida no sentido mais favorável para o arguido. 5. Ao decidir deste modo o Tribunal recorrido fez uma errada apreciação da prova. 6. Por um lado, cumpre sublinhar que a versão do arguido acerca do sucedido naquela noite, designadamente, no que respeita à hora da prática do crime, não é credível nem minimamente plausível, mas antes completamente inverosimilhante e contrária às regras da experiência comum. 7. A sua versão dos factos, além de não ser corroborada por qualquer outro elemento de prova trazido aos autos revela-se absolutamente fantasiada. 8. Pelo contrário, a versão dos factos apresentada pelo ofendido, corroborada em parte pelos militares da GNR, mostra-se, essa sim, de acordo com as regras da experiência como verosímil e plausível. 9. Apesar disso, o Tribunal recorrido, centrando-se exclusivamente nas inseguranças do testemunho do ofendido, considerou encontrar-se perante duas versões contraditórias e opostas, ignorando por completo a demais prova carreada para os autos e bem assim as regras da experiência comum, e, em consequência, invocando o principio do in dubio pro reo, absolveu o arguido da prática do crime por que se encontrava acusado. 10. Porém, a análise conjunta de toda a prova trazida aos autos e produzida em julgamento, de acordo com as regras da experiência comum, impõe que todos os factos dados como não provados pelo Tribunal recorrido, sejam em rigor, dados como provados, nos termos que de seguida se especifica: A. No dia 21.11.2011, pela 01h45, o arguido encontrava-se junto à porta da lavandaria da residência Vila Mirante, Terras Novas, Vale Parra, área desta comarca de Albufeira, propriedade do ofendido B, a tentar abrir a mesma com uma ferramenta pequena ou uma chave e com uma pequena lanterna. B. O arguido ao se aperceber da presença do ofendido colocou-se imediatamente em fuga apeada, fugindo pelo portão grande da propriedade, de acesso das viaturas, em direcção a um terreno baldio que se situa entre a residência e a estrada de Vale Parra, sendo seguido pelo ofendido que nunca o perdeu de vista. - Declarações da testemunha B, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:22:38 | Declarações da testemunha C, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:11:26 | Declarações da testemunha D, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:10:06 | - O ofendido B declarou que no dia 21.11.2011, pela 01h45, avistou, da sua casa, uma luz junto à porta da lavandaria da sua outra habitação – Vila Marante – e que, por esse motivo, contactou de imediato e a GNR e aproximou-se do local, tendo visto alguém que, introduzindo um pequeno objecto na fechadura daquela porta, tentava abri-la. Como ao aproximar-se, fez barulho, a pessoa que lá se encontrava colocou-se imediatamente em fuga apeada, fugindo pelo portão grande da propriedade, de acesso das viaturas, em direcção a um terreno baldio que se situa entre a residência e a estrada de Vale Parra. Perseguiu esse indivíduo, sendo certo que em alguns momentos o perdeu de vista, porque estava escuro, mas que nunca deixou de perceber por onde o mesmo ia, pelo barulho que fazia enquanto corria. Veio então, a encontrar o arguido junto à estrada, a entrar no veículo automóvel que ali se encontrava estacionado. O ofendido declarou ainda que durante a perseguição não viu, ou sentiu mais ninguém, sendo apenas ele e o arguido as únicas pessoas que por ali se encontravam. - Por seu turno, C e D, militares da GNR, declaram que se encontravam de patrulha, quando lhes foi comunicado a ocorrência de um assalto na casa do ofendido. Como se encontravam próximo do local, demoram apenas alguns minutos a encontrar o ofendido junto à estrada a cerca de 80 metros da sua casa e o arguido dentro do veículo, preparando-se para iniciar a marcha. Abordaram-no e vieram a encontrar 104 chaves e uma pequena lanterna da sua posse. - Ora, resulta da análise conjunta destes testemunhos que a pessoa que se encontrava a tentar abrir a porta da lavandaria da residência do ofendido e que foi por este perseguida até à chegada das forças de autoridade, só pode ser o arguido, uma vez que mais ninguém por ali se encontrava. C. A cerca de 80 metros da referida residência o arguido entrou no veículo ligeiro, de cor cinzento e de matrícula 91-97-VP, que se encontrava estacionado. - Declarações da testemunha B, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:22:38 | Declarações da testemunha C, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:11:26 | Declarações da testemunha D, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:10:06 | - B afirmou de modo inequívoco que perseguiu, o arguido na sua fuga pela encosta abaixo, sendo certo que nalguns momentos perdeu o contacto visual com o mesmo, porque estava escuro, mas que nunca deixou de sentir a sua presença pelos barulhos que provocava enquanto corria. No culminar dessa perseguição, que terminou quando chegaram à estrada, viu o arguido a entrar no carro que lá se encontrava estacionado e que, de resto, foi apreendido (cfr. auto de apreensão de fls. 12). - Este depoimento é corroborado pelo depoimento de C e D, que afirmaram ter encontrado o ofendido junto à estrada, enquanto se dirigiam para a sua casa e que o mesmo lhes apontou na direcção do arguido, que se encontrava dentro do carro, pronto para arrancar, mas que só não o fez, porque os mesmos lhe bloquearam a passagem com a própria viatura da GNR. D. Em sua posse tinha 104 chaves de residências e uma pequena lanterna. - Declarações da testemunha C, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:11:26 | Declarações da testemunha D, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:10:06 | - Ambas as testemunhas declararam ter revistado o arguido e ter encontrado uma lanterna e diversas chaves no bolso do casaco que vestia, tendo encontrado também diversas chaves no chão do seu veículo. - Por esse motivo, procederam à respectiva apreensão, conforme resulta do auto de notícia de fls. 4, auto de apreensão de fls. 12 e termo de entrega de fls. 16. E. O arguido está referenciado pela GNR pela prática continuada de furto no interior de residências com chaves falsas na zona de Albufeira, fazendo disso o seu modo de vida. - Declarações da testemunha C, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:11:26 | Declarações da testemunha D, gravadas no sistema H@bilus, de 00:00:01 a 00:10:06 | - A prova deste facto resulta directamente do auto de notíciade fls. 4 e das declarações das testemunhas C e D, que confirmaram em julgamento que o arguido está referenciado pela GNR pela prática continuada de furto no interior de residências com chaves falsas na zona de Albufeira, fazendo disso o seu modo de vida F. O arguido agiu sempre com o propósito de se apoderar de objectos de valor que pudesse encontrar no interior da residência do ofendido B, só não o concretizando por ao tentar abrir a porta, que lhe daria acesso ao interior daquele imóvel, ter sido surpreendido, e bem assim, sabia que utilizava para a abertura da porta chaves que não a pertenciam. G. Agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que agia contra a vontade do legítimo proprietário da residência e que a sua conduta é proibida e punida por lei. - Estes factos resultam provados da conjugação de todos os demais factos objectivos. - O arguido sabia que não possuía qualquer autorização para entrar na residência do ofendido pois que este, segundo declarou, nunca lhe tinha dado tal autorização, nem existia qualquer motivo legítimo para que o arguido quisesse entrar na sua casa. - Por outro lado, a hora e o local escolhidos pelo arguido, o facto de ter estacionado o seu veículo junto à estrada, num local próximo da casa do ofendido, mas ainda assim, suficientemente afastado para não ser para não ser relacionado com tal casa e bem assim a fuga que encetou, quando foi surpreendido pelo ofendido, não podem se não significar que o arguido ali se encontrava com o propósito de entrar naquela casa e de lá levar os objectos que lá se encontrassem e que lhe interessassem. - Refira-se a este respeito, que grande parte dos crimes cometidos contra o património ficam impunes precisamente porque são praticados por desconhecidos, que agem em condições em tudo semelhantes às deste caso, mas com a única diferença de que não chegam a ser surpreendidos por um terceiro. - A inexistência de outras testemunhas oculares e de outros vestígios da prática do crime – designadamente marcas na porta ou objectos retirados do interior da casa do ofendido – não podem, em face das circunstâncias que se encontram devidamente demonstradas e comprovadas, determinar a absolvição do arguido, sob pena, de assim acontecendo, ficarem impunes condutas graves, que o legislador expressamente entendeu serem de punir. 11. Na verdade, os artigos 125.º e 127 do Código de Processo Penal estabelecem que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, devendo as mesmas ser apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal. 12. Neste caso, cremos que a livre convicção do Julgador em 1ª Instância se mostra contrariada pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, nos termos supra expostos, motivo pelo qual, entendemos que todos os factos dados como não provados pelo Tribunal recorrido deviam e devem ser dados como provados devendo também, em consequência o arguido ser condenado pela prática do crime por que foi acusado. 13. Acresce que, embora tenha dado como não provado que na sua posse o arguido tinha 104 chaves de residências e uma pequena lanterna, o Tribunal recorrido “determino[u] a restituição dos objectos apreendidos nos autos ao arguido, de acordo com o disposto no artigo 186.º, do Código de Processo Penal, incorrendo assim em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º,nº 2, al. b) do Código de Processo Penal). 14. Por fim, ainda que o Tribunal recorrido não tivesse incorrido, como salvo melhor opinião, incorreu em erro na apreciação da prova, sempre teria de considerar, então, que este processo estava ferido de nulidade insanável por se ter feito emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei (artigo 119.º, al. f) do Código de Processo Penal). 15. Admitindo que não há prova da prática do crime, terá de se considerar que também não existiu qualquer situação de flagrante delito, uma vez que esta pressupõe a prática do crime. 16. Tendo admitido que os factos não aconteceram do modo descrito na acusação e que o arguido não praticou o crime que lhe era imputado, o Tribunal recorrido devia ter conhecido oficiosamente da nulidade do processo, por se ter empregue o processo sumário sem que se encontrassem preenchidos todos os pressupostos da sua utilização, designadamente a existência de flagrante delito. 17. Assim, caso se entenda, como entendeu o Tribunal de 1ª Instância, de que não há prova de que o arguido tenha praticado os factos por que foi acusado, então desde já se requer se declare a nulidade do processo por ter sido indevidamente utilizada uma forma de processo especial que ao caso não cabia, com todas as consequências legais, designadamente determinando-se a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público para tramitação do competente inquérito. Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V. Exas. que, após reapreciação da prova gravada, considerem provados todos os factos supra enumerados em A. a G. e em consequência, determinem a revogação da douta decisão proferida pelo Tribunal recorrido, que absolveu o arguido e a sua substituirão por outra, que o condene pela prática do crime por que foi acusado. Caso assim V. Exas. não entendam, então requer-se que seja declarada a nulidade do processo por ter sido indevidamente utilizada uma forma de processo especial que ao caso não cabia, com todas as consequências legais, designadamente determinando-se a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público para tramitação do competente inquérito. O arguido respondeu, nos termos que constam de fls. 96 a 109, concluindo pela manutenção do decidido. Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, este inteiramente concordante com a posição defendida pelo Ministério Público na 1ª Instância. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir: Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respectivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objecto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao Ministério Público, ora recorrente, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, estas relacionadas com a incorreção do decidido, porquanto, em seu entender, a prova produzida em audiência de julgamento deveria de ter conduzido à condenação do arguido pela prática do crime de furto qualificado, na forma tentada. Está em causa a seguinte matéria de facto apurada e não apurada: 1. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado a 29.06.2009, no processo n.° 1552/07.0GBABF, do 1o Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,00€. 2. O arguido está neste momento desempregado, sendo que vai fazendo alguns “biscates” quando estes aparecem. 3. Vive com a mulher, que trabalha e aufere o salário mensal de 600,00€, e um filho maior, em casa arrendada pela qual paga mensalmente 350,00€. 4. Tem o 6o ano de escolaridade completo. Matéria de facto não apurada: A. No dia 21.11.2011, pela 01h45 o arguido encontrava-se junto à porta da lavandaria da residência Vila Mirante, Terras Novas, Vale Parra, área desta comarca de Albufeira, propriedade do ofendido B, a tentar abrir a mesma com uma ferramenta pequena ou uma chave e com uma pequena lanterna. B. O arguido ao se aperceber da presença do ofendido colocou-se imediatamente em fuga apeada, fugindo pelo portão grande da propriedade, de acesso das viaturas, em direcção a um terreno baldio que se situa entre a residência e a estrada de Vale Parra, sendo seguido pelo ofendido que nunca o perdeu de vista. C. A cerca de 80 metros da referida residência o arguido entrou no veículo ligeiro, de cor cinzenta e de matrícula 91-97-VP, que se encontrava estacionado. D. Em sua posse tinha 104 chaves de residências e uma pequena lanterna. E. O arguido está referenciado pela GNR pela prática continuada de furto no interior de residências com chaves falsas na zona de Albufeira, fazendo disso o seu modo de vida. F. O arguido agiu sempre com o propósito de se apoderar de objectos de valor que pudesse encontrar no interior da residência do ofendido B, só não o concretizando por ao tentar abrir a porta, que lhe daria acesso ao interior daquele imóvel, ter sido surpreendido, e bem assim, sabia que utilizava para a abertura da porta, chaves que não a pertenciam. G. Agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que agia contra a vontade do legítimo proprietário da residência e que a sua conduta é proibida e punida por lei. O Tribunal a quo fundou a decisão da matéria de facto nos seguintes termos: “Para formar a sua decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, o tribunal alicerçou-se na prova produzida na audiência de discussão e julgamento, analisada segundo as regras da lógica e da experiência comum, nos termos do disposto no artigo 127°, do Código de Processo Penal. Os antecedentes criminais do arguido resultaram provados do Certificado de Registo Criminal junto aos autos. As condições económicas do arguido resultaram provadas das suas declarações que por terem sido claras e coerentes foram credíveis para o Tribunal. Quanto à factualidade considerada não provada, a convicção do Tribunal resultou da insuficiência da prova produzida em audiência de julgamento, a qual não permitiu ao Tribunal convencer-se da sua verificação. Na verdade a prova não é, nem pode ser nunca, a certeza absoluta da ocorrência do facto, ela tem como função, para usar a expressão do artigo 341° do Código Civil, a demonstração da realidade dos factos, tendo como objectivo impossibilitar a fuga à deformação sofrida até à apreensão pelo receptor dos factos, tal como ocorreram. Como afirma Sentis Melendo, citado por Miguel Machado "suspeita, dúvida, certeza, evidência, são as etapas de um caminho até à verdade” Os factos, quando ocorrem, esgotam-se em si mesmos, tornando impossível a sua reconstituição natural. O que se pretende - e pretendeu - fazer na audiência, foi reconstituir o que se passou. Assim, a verdade que surge ao Tribunal é a verdade da audiência, do que nela se passou, já com o filtro do tempo sobre o depoimento da arguida e das testemunhas, com o perigo que estes trazem ínsitos. O arguido negou a prática dos factos que lhe são imputados contando a sua versão dos acontecimentos que consigo se passaram naquela noite. B, ofendido, depôs de forma decidida, mas algo incoerente o que fez perder credibilidade perante o Tribunal. Refere que todas as noites dá uma volta á casa para ver se está tudo bem, e que na noite dos factos saiu de casa e viu uma pequena luz junto à porta da lavandaria. Foi até lá e ao abrir o portão que dá acesso a essa zona da propriedade o referido portão fez barulho e a pessoa que viu de cócoras junto à porta, ao que lhe pareceu a tentar introduzir algo na fechadura, levantou-se e saiu a correr pelo outro portão grande, que estava aberto, e para o meio de um descampado. Referiu que a referida zona junto à lavandaria não tinha qualquer luz, apenas a tal lanterna que o indivíduo tinha consigo. Quando o indivíduo fugiu correu atrás dele, não tendo mantido sempre a visão porque estavam um pouco distantes e porque não havia qualquer iluminação no referido terreno. Depois chegou à estrada de alcatrão e viu uma pessoa a entrar para um automóvel cinzento que estava estacionado, e como entretanto já tinha chamado a GNR e estes chegaram no momento ao local, indicou-lhes que a pessoa que estava no tal automóvel era a pessoa que tinha tentado assaltar a sua casa. Esclareceu que a referida casa para onde o indivíduo tentava entrar estava desabitada, por ser uma casa para arrendar nas férias, e não ficou com a fechadura forçada, nada se notando na mesma que a teriam tentado abrir. Só mais tarde disse ao Tribunal que tinha acendido uma luz quando a pessoa estava junto à porta e por isso conseguiu ver quem era. No entanto no início do seu depoimento apenas disse que viu pessoa de cócoras e de costas, e que correu atrás dela, e que depois viu uma pessoa a entrar para um carro, e por tudo isso, e porque se passou tudo muito depressa, só podia ser o mesmo indivíduo, o arguido. As testemunhas C e D, militares da GNR que elaboraram o expediente respeitante aos factos ora em análise, são colegas do ofendido e descreveram a intervenção que tiveram naquela noite. Estavam ambos de patrulha às ocorrências, e receberam comunicação da central de que a casa do seu colega/ofendido estaria a ser assaltada. Quando chegaram ao local, cuja localização exacta desconheciam, viram o ofendido a esbracejar para lhes avisar que o autor do assalto tinha sido o indivíduo que estava dentro do carro cinzento que ali se encontrava parado. Assim que o abordaram reconheceram-no e tiveram a certeza de que teria sido ele, porquanto já anteriormente tinha estado envolvido e sido detido por praticar um furto a residência. No entanto, como se denota das suas declarações, estas testemunhas apenas souberam o que o ofendido lhes contou e que depois detiveram o arguido, nada mais. Em suma, o Tribunal tem duas versões contraditórias e opostas, a do arguido e a do ofendido, sendo que o arguido não está obrigado à verdade, mas também não é ele quem tem que provar que não praticou os factos pelos quais vem acusado. As contradições e divergências manifestas existentes entre os depoimentos do arguido e o depoimento do ofendido, com todas as suas incoerências, fazem suscitar a dúvida quanto à ocorrência ou não dos factos descritos na acusação, a que acresce o facto de não ter o Tribunal ouvido quaisquer outras testemunhas oculares. Por as declarações do ofendido não terem sido prestadas com suficiente clareza, isenção e objectividade que permitisse ao Tribunal convencer-se da sequência lógica e concreta que se terá passado naquela noite o Tribunal fica com uma dúvida que é razoável. Na verdade, porque a prova produzida se tornou dúbia deverá intervir em sede de valoração da mesma o princípio do “in dubio pro reo”, razão porque os factos que consubstanciam o furto qualificado tentado foram dados como não provados, resolvendo-se a dúvida no sentido mais favorável para o arguido. Neste sentido, refere o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 21.10.1998 "...se, por força da presunção de inocência, só podem dar-se provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável. Vejamos então: Antes de mais, cumpre referir, que o Ministério Público, ora recorrente, discordou da forma como foi decidida a matéria de facto apurada, e, por isso mesmo, impugnou tal decisão, sendo que o fez de acordo com o preceituado nas alíneas a) e b) do nº 3, e nº 4, do artigo 412º do Código de Processo Penal, chegando a transcrever, ainda, parte das declarações e depoimentos que, em sua opinião, impunham decisão diversa da recorrida. Ora, está em causa um crime de furto qualificado, na sua forma tentada, consistindo este ilícito, no dizer da acusação, na tentativa do arguido em entrar na lavandaria de uma habitação pertença do ofendido, B, pela calada da noite, servindo-se, para esse efeito de chaves falsas e de uma lanterna, esta a fim de fazer face à escuridão. Por esta via, pretenderia o arguido apoderar-se dos bens e valores que se encontrassem no interior da dita lavandaria. Sempre no dizer da acusação, o arguido não conseguiu lograr os seus intentos, porquanto o ofendido se apercebeu da sua presença, contactou a GNR, e tratou de o afugentar, perseguindo-o por um descampado, até à estrada, local onde o mesmo seria capturado por elementos daquela força policial, quando se preparava para arrancar no seu veículo automóvel. O Tribunal a quo absolveu o arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reu, e, no seu exame crítico da prova, não tomou em consideração as declarações daquele, por entender, e bem, que o mesmo não está obrigado à verdade sobre a matéria de que é acusado. Mais considerou, que o depoimento do ofendido foi um tanto ou quanto titubeante, e que os elementos da GNR se limitaram a comparecer no local porque solicitados pelo ofendido, e nada de relevante referiram, para além da versão dos factos que aquele apresentou. Ora, como dispõe o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, relativamente à estrutura e exigências da sentença, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.” No caso em apreço, o Tribunal a quo não conseguiu ultrapassar a dúvida quanto à efetiva participação do arguido na ocorrência em causa. E apreciou a prova de acordo com o princípio da livre apreciação da prova a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal. Segundo reza este preceito, "Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". Só que este sistema, que assenta na livre convicção do julgador, com base nas regras da experiência, possui regras de motivação com a finalidade de permitirem um controlo quer por parte dos destinatários quer por parte, eventualmente, de um tribunal superior em sede de recurso. Assim, como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal, pg. 229-230, citado por Maia Gonçalves, a fls. 665, do Código de Processo Penal anotado, 10ª edição, "A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º, nº 2. E, extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade". Assim, no caso sub júdice, a sentença, para além de aludir a uma certa atrapalhação do ofendido na exposição dos factos, não refere claramente o motivo pelo qual a versão daquele não convenceu, sendo que esta, à primeira vista, possui todos os ingredientes de credibilidade. Portanto, o Tribunal a quo, fala-nos da forma como tal depoimento foi prestado, mas olvida a apreciação do conteúdo do mesmo. É certo que o arguido não está obrigado a prestar declarações sobre a matéria de que é acusado e que constitui o objeto do processo, mas querendo prestá-las, estas devem ser consideradas, igualmente, tendo em atenção o citado princípio da livre apreciação da prova, devendo o teor das mesmas de ser cotejado com a demais prova produzida, que as poderá corroborar ou inferir, mas tais declarações não deverão de ser desprezadas e omitidas, como aconteceu neste caso. Ora, a versão do arguido não pode deixar de ser tida como fantasiosa, já que refere que se encontrava naquela estrada secundária, num local ermo, àquela hora da noite, a ver as vistas, e que o molho das cento e quarenta chaves que tinha consigo, o havia encontrado dias antes, junto a um poste de eletricidade, sendo esta a forma como já encontrara umas outras chaves, há uns tempos atrás, com as quais se envolveu num furto, pela prática do qual veio a ser condenado. Como tal, competia à sentença, no seu exame crítico da prova, ponderar sobre o teor de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento (arguido, ofendido e testemunhas), e tirar as ilações dos mesmos, atentas as regras da experiência comum, o que não foi feito, escudando-se tal peça processual no princípio in dubio pro reu. Tal carência ao nível do exame crítico da prova configura a nulidade a que alude o artigo 379º, nº 1, al a) do Código de Processo Penal, não se vislumbrando como supri-la, porquanto, até se admite a bondade do julgamento da matéria de facto, só que o Tribunal a quo deverá convencer os destinatários processuais, no dito exame crítico da prova, dessa mesma correção. Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em anular a sentença recorrida, devendo o Tribunal a quo de proferir outra sentença seguindo os parâmetros do exame crítico da prova acima referidos. Évora. 13-11-2012 Maria Fernanda Pereira Palma Maria Isabel Duarte |