Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1959/20.7T8FAR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
VALOR
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
I- Para fixação da indemnização por danos não patrimoniais à luz do artigo 496º, nº 1, do Código Civil é de atender à gravidade das lesões sofridas pelo lesado, ao sofrimento físico e psicológico inevitavelmente decorrente das mesmas e aos incidentes ocorridos no decurso dos internamentos, à sujeição a diversos exames médicos, às plúrimas consultas de especialidades, aos tratamentos de fisioterapia e outros, às transferências entre várias unidades hospitalares, e ao extenso período de tempo em que decorreu o internamento.
Tendo em consideração os intensos padecimentos que o acidente determinou ao Autor, na reviravolta que, de supetão, a sua existência levou, assim como as sequelas que o mesmo lhe causou e ponderando igualmente no juízo de censura que merece o condutor do veículo lesante, único culpado na produção do acidente, cremos ser a indemnização peticionada de €100.000 a título de danos não patrimoniais, a tida por justa e equitativa.
II- À indemnização definitiva ao lesado deverão ser oficiosamente abatidas as quantias indemnizatórias já liquidadas, no caso pelo FGA ao Autor, na sequência do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que este oportunamente intentou, sob pena de violação da regra da proibição de duplicação ou acumulação material de indemnizações ( art.º 388º, nº 3 do CPC).
III. Em contrapartida, caso na sentença proferida na acção principal não viesse a ser fixada indemnização alguma ou a fixada o fosse em valor inferior à provisoriamente estabelecida, deveria o lesado ter sido condenado a restituir o que fosse devido. (art.º 390º, nº2 do CPC).
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo: 1959/20.7T8FAR.E1

I. RELATÓRIO

1. AA intentou a presente ação declarativa de condenação contra AUTORIDADE DE SUPERVISÃO DE SEGUROS E FUNDOS DE PENSÕES – FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (doravante apenas FGA), BB e CC pedindo a condenação dos Réus no pagamento das seguintes quantias:

“1. € 77.035,00 (SETENTA E SETE MIL E TRINTA E CINCO EUROS), A TÍTULO DE PERDAS SALARIAIS COMPREENDIDAS ENTRE A DATA DO ACIDENTE, 13 DE OUTUBRO DE 2016 E 02 DE SETEMBRO DE 2020;
2. € 12.469,22 (CATORZE MIL QUATROCENTOS E SESSENTA E NOVE EUROS E VINTE E DOIS CÊNTIMOS) A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO PELA NECESSIDADE DE ADAPTAÇÃO DA HABITAÇÃO;
3. € 24.050,00 (VINTE E QUATRO MIL E CINQUENTA EUROS) A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO PELA NECESSIDADE DE APOIO DE TERCEIRA PESSOA;
4. € 100.000,00 (CEM MIL EUROS) A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO PELA IPP – INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL DE 100% DE QUE FICOU A PADECER E EM CONSEQUÊNCIA DA QUAL, JAMAIS, RETOMARÁ O EXERCÍCIO DA SUA ACTIVIDADE PROFISSIONAL;
5. € 100.000,00 (CEM MIL EUROS) A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS, SEM PREJUÍZO DE EVENTUAL AMPLIAÇÃO DO PEDIDO EM VIRTUDE DAS CONCLUSÕES APURADAS EM SEDE DE PERÍCIA MÉDICA A REALIZAR NA PESSOA DO AUTOR; BEM COMO,
6. NAS QUANTIAS QUE SE VENHAM A RECLAMAR A TÍTULO DE DESPESAS SUPORTADAS PELO AUTOR EM CONSEQUÊNCIA DO ACIDENTE A QUE REPORTAM OS PRESENTES AUTOS; E, AINDA,
7. NAS QUANTIAS QUE SE VIEREM A LIQUIDAR EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA NO RESPEITANTE A DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS DO AUTOR, RESULTANTES DE PERDAS SALARIAIS QUE VENHA A SOFRER POR FORÇA DE PERÍODOS DE INCAPACIDADE FUTUROS;”.
Por requerimento de 12.12.2023 veio o Autor ampliar o pedido formulado inicialmente, de forma a que o mesmo passasse de € 313.554,22 (trezentos e treze mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), para o montante de € 363.554,22 (trezentos e sessenta e três mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), por força do acréscimo em mais € 50.000,00 do pedido deduzido em 4) da petição inicial, e que o valor peticionado fosse acrescido de juros de mora.
A ampliação do pedido foi admitida por despacho proferido a 16.01.2024.
Para o efeito alegou, em síntese, que em outubro de 2016 sofreu um acidente de viação, que envolveu o seu veículo, por si conduzido, e o veículo do 2.º Réu, conduzido pelo 3.º Réu, o qual não possuía à data seguro válido e eficaz, tendo aquele ocorrido por culpa exclusiva deste último, que se despistou, invadindo a fila de trânsito na qual circulava.
Mais alegou que em consequência do referido acidente de viação sofreu danos de diversa índole, tendo o 1.º Réu assumido extrajudicialmente a responsabilidade pelo seu ressarcimento, procedendo, para o efeito, a adiantamentos mensais, o último em novembro de 2019, no valor de € 1.500,00. No entanto, face à sua frágil situação económica, teve que propor procedimento cautelar para arbitramento de reparação provisória contra aquele Réu, o qual findou por transação, que previa (e ocorreu) o pagamento por este de € 7.500,00 a título de renda provisória relativa aos meses de março a julho de 2020, e de € 1.500,00 relativos ao mês de agosto de 2020.
Considera, porém, que pese embora o pagamento pelo 1.º Réu daqueles valores, não se considera integralmente ressarcido pela totalidade dos danos sofridos.

Os 1.º e 2.º Réus foram citados pessoalmente, sendo que apenas o 1.º apresentou contestação.
Em sede de contestação o 1.º Réu, impugnou, na sua maioria, os factos alegados pelo Autor por não serem factos pessoais seus ou por deles não dever ter conhecimento (quer na parte relativa à dinâmica do embate, quer na parte relativa aos danos que o Autor invoca ter sofrido e os tratamentos que alega ter sido submetido), bem como impugnou, por exagerado, o montante peticionado a título de dano biológico e de danos morais.
O 3.º Réu foi citado editalmente, tendo o Ministério Público, em sua representação, apresentado contestação, onde impugnou todos os factos alegados que não resultassem de prova suficiente, bem assim por os desconhecer.

2. Realizada audiência final foi, subsequentemente, proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supracitados, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenam-se os Réus Fundo de Garantia Automóvel, BB e CC a pagarem ao Autor AA a quantia de € 142.088,85 (cento e quarenta e dois mil e oitenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos), sendo € 22.088,85 (vinte e dois mil e oitenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos) acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia da primeira citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.”.


3. É desta sentença que recorrem FGA e Autor, formulando nas respectivas apelações, as seguintes conclusões:

3.1. O FGA:

A) O Tribunal "ad quo" condenou, o Fundo de Garantia Automóvel solidariamente com os RR., a pagarem ao Autor, a quantia global de € 142.088,85.

B) Resulta desses facto provados 48 a 50, que o autor intentou contra os Réus providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, que correu termos o Juízo ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob os autos de processo n.º 337/20...., sendo que no âmbito desse processo cautelar o Autor e o Fundo de Garantia Automóvel celebraram transação, tendo o autor sido ressarcido dos danos decorrentes do sinistro de que foi vitima.

C) Inclusivamente, ficaram provados alguns dos valores, entretanto, pagos pelo Fundo de Garantia Automóvel ao Autor, a título de adiantamentos extra-judiciais.

D) Saliente-se, pois, que tais factos foram dados como provados, porque as partes referiram e aceitaram que tais pagamentos foram concretizados!

E) Pelo que não se compreende a posição do douto Tribunal “ad quo” ao afirmar: “Dizer ainda que pese embora se tenha provado que o autor já recebeu determinadas quantias por parte do FGA desconhece-se em concreto o valor das mesmas (até porque se provou que mesmo antes do procedimento cautelar, o FGA já tinha feito adiantamentos extrajudiciais ao Autor), sendo que competia a este alegar quais os valores pagos e peticionar respetiva dedução num eventual valor a pagar. Mas o FGA nada alegou neste sentido, nem nada peticionou. Destarte, não deverá o Tribunal pronunciar-se sobre objeto cujo conhecimento não lhe foi pedido.”

F) É certo, sim, que o Tribunal desconhecia, à data, qual o montante global de rendas pagas pelo FGA ao Autor, mas encontrando-se provada tal matéria, não pode o douto Tribunal simplesmente ignorar tal facto.

G) Pois, os termos dos nº s 1 e 3 do Artº 388º CPC, o arbitramento de reparação provisória está subordinado a uma ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal e o montante que seja arbitrado naquela sede é imputada na liquidação definitiva do dano.

H) Por ser assim, a douta sentença deveria ter-se pronunciado quanto ao montante já liquidado pela recorrente ao recorrido, determinando a obrigação de a recorrente pagar apenas a diferença entre o montante da indemnização agora fixado, a título definitivo, e aquela que já foi adiantada ao recorrido, o que não fez, enfermando por isso de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615º CPC.

I) Para suprir tal nulidade, deverá a douta sentença recorrida, ser substituída por douto Acórdão que determine que o ora recorrente está desobrigado no montante correspondente às quantias que já pagou ao recorrido, independentemente de se conhecer ou não o seu montante global.

J) A douta sentença recorrida, violou, assim, o disposto nos nº s 1 e 3 do Art.º 388º e alínea d) do nº 1 do artigo 615º, ambos do Código Processo Civil.

3.2. O Autor:

PRIMEIRO. Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença, proferida pelo Juiz ... do Juízo Central Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca ... e , não se conformando o autor com os segmentos decisórios relativos aos pedidos por si deduzidos, nomeadamente, quanto à decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto: a. ao valor indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo a título de perdas salariais; b. quanto ao valor indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo a título de IPP – Incapacidade Permanente Parcial de que o autor ficou a padecer; c. quanto ao valor indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor ora recorrente.
SEGUNDO. Entende o autor ora recorrente que o Tribunal a quo incorreu em manifesto e grosseiro erro na apreciação da prova produzida nos presentes autos, com consequências na decisão de direito, nomeadamente, quanto à indemnização fixada a título de perdas salariais; tendo igualmente o Tribunal a quo incorrido em violação do disposto nos artigos 483°, 562º, 563.º 564.º, todos do Código Civil, no momento de fixar as indemnizações devidas a título de IPP – Incapacidade Permanente Parcial de que o autor ficou a padecer e a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
TERCEIRO. O autor ora recorrente não se conforma com a decisão proferida quanto ao montante indemnizatório fixado a título de perdas salariais, não se conformando igualmente com a decisão proferida quanto à matéria de facto, designadamente, quanto ao facto provado 42. e facto não provado c).
QUARTO. Da prova careada para os presentes autos, bem como da prova produzida em sede de audiência de julgamento, ficou inequivocamente demonstrado que o autor ora recorrente auferia um rendimento médio mensal de cerca de 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros); motivo pelo qual, tendo o autor ora recorrente sofrido período de incapacidade compreendido entre o dia do acidente (13 de outubro de 2016) e a data da consolidação médico legal das lesões (14 de maio de 2018), num total de 579 dias, o montante a fixar a título de indemnização pelas perdas salariais, teria de ser forçosamente superior àquele que foi fixado pelo Tribunal a quo.
QUINTO. A prova do rendimento médio mensal auferido pelo autor ora recorrente, conforme alegado no seu articulado inicial, resulta da conjugação da prova documental junta aos autos – nomeadamente, dos documentos juntos pelo autor com a sua petição inicial como documento 49, documento 50 e documento 51 – com a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento e, ainda, com as declarações de parte prestadas pelo autor ora recorrente na mesma sede.
SEXTO. Ao contrário da conclusão alcançada pelo Tribunal a quo, resulta da prova documental junta aos autos que o autor auferia um rendimento médio diário de € 54,39 (cinquenta e quatro euros e trinta e nove cêntimos); correspondendo o mesmo a um rendimento mensal médio de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros).
SÉTIMO. Dos seguintes meios de prova, resulta a seguinte factualidade: A. Do depoimento da testemunha DD – que prestou o seu depoimento em sede de Audiência de Julgamento a 26 de janeiro de 2024, tendo o mesmo ficado registado em suporte digital com início aos 26 minutos e 40 segundos e terminando aos 45 minutos e 20 segundos – resultou que o autor ora recorrente: - viva da música; - que o autor trabalhava praticamente todos os dias; - que auferia rendimentos médios compreendidos entre € 150,00 e € 200,00 por actuação (cfr. minutos 00:29:11 a 00:31:07; minutos 00:31:57 a 00:32:38 do depoimento da testemunha referida); B. do depoimento da testemunha EE – que prestou o seu depoimento em sede de Audiência de Julgamento a 26 de janeiro de 2024, tendo o mesmo ficado registado em suporte digital com início aos 46 minutos e 04 segundos e terminando aos 01:05 horas e minutos e 35 segundos – resultou que: - o autor ora recorrente, como músico, poderia facilmente auferir rendimentos médios compreendidos entre € 100,00 e € 180,00 por actuação; - que o autor sempre viveu da música (cfr. minutos 00:52:53 a 00:55:20); C. das declarações de parte do autor ora recorrente – prestadas em sede de Audiência de Julgamento a 26 de janeiro de 2024, tendo as mesmas ficado registadas em suporte digital com início aos 01 hora 07 minutos e 13 segundos e terminando aos 01 hora 42 minutos e 00 segundos e registadas ainda e também em suporte digital com início na segunda faixa de áudio aos 00 segundos e terminando aos 22 minutos e 15 segundos – resultou que: - o autor trabalhava o ano todo; - na época sazonal, o autor trabalhava praticamente todos os dias; auferia rendimentos anuais na ordem dos € 30.000,00 (trinta mil euros) (cfr.minutos 00:03:51 a 00:07:56; das declarações de parte do autor).
OITAVO. Assim, é imperativa a modificação da matéria de facto provada, nomeadamente, no sentido de, da mesma, passar a constar, como provado, que: à data do sinistro, o autor auferia mensalmente aproximadamente € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros) – correspondente ao facto não provado c); e, em simultâneo, no sentido de modificar o facto provado 42., nomeadamente, no sentido de passar a constar do mesmo que: - o autor prestava os seus serviços de músico durante, pelo menos, cinco dias da semana, emitindo recibos pelos serviços prestados entre 23 de maio de 2016 e 21 outubro de 2016 no valor de € 8.212,88.
NONO. Assim se modificando a matéria de facto, nos termos pugnados, haverá a modificar a decisão de direito proferida, considerando: - o período de incapacidade compreendido entre o dia do acidente (13 de outubro de 2016) e a data da consolidação médico legal das lesões (14 de maio de 2018), num total de 579 dias; - o valor médio auferido de € 8.212,88, correspondendo a um valor médio diário auferido de € 54,39.
DÉCIMO . Ora, considerando: € 54,39 x 579 dias, apura-se que o autor sofreu perdas salariais no montante de € 31.491,77 (trinta e um mil quatrocentos e noventa e um euros e setenta e sete cêntimos), valor no qual deverão os réus ser condenados a liquidar, pugnando assim o autor pela modificação da decisão nos termos pugnados.
DÉCIMO PRIMEIRO. O autor não se conforma igualmente com a indemnização fixada a título de dano biológico, por considerar a mesma parca e insuficiente para, de forma justa e razoável, ressarcir o autor pelo dano por si sofrido na totalidade da sua extensão.
DÉCIMO SEGUNDO. Ao contrário da motivação do Tribunal a quo, descrita na sua decisão, não é verdade que a incapacidade permanente parcial de que ficou o autor ora recorrente afectado permita ao autor ora recorrente encontrar outra profissão compatível com a sua preparação técnico profissional; uma vez que o autor, como resulta da prova produzida, sempre foi músico, não tendo qualquer outra preparação técnico profissional que lhe permita encontrar outra fonte de rendimento.
DÉCIMO TERCEIRO. Da prova produzida nos presentes autos, resulta que, por um lado, que ate ao momento do acidente o autor reunia os requisitos e condições físicas necessárias ao exercício da sua actividade profissional de músico; e, por outro, que, por um lado, desde a data do acidente a que reportam os presentes autos e por força do mesmo, o autor não mais conseguiu exercer a sua actividade profissional, nem auferir quaisquer rendimentos decorrentes da mesma e, por outro, que as sequelas resultantes do acidente, tornaram o autor incapaz, de forma permanente, de exercer a sua actividade profissional de músico. (cfr. factos provados 41, 43 e 44).
DÉCIMO QUARTO. Entende o autor ora recorrente que o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo é insuficiente, encontrando-se (inclusive) afastado daqueles que são os montantes indemnizatórios fixados na jurisprudência nacional para situações semelhantes – como sejam, as seguintes: a. Acórdão de 19.06.2019, P. 80/19, no qual foi atribuída indemnização no valor de € 195.000,00 a título de perda de capacidade de ganho/dano biológico, a um lesado com défice funcional permanente impeditivo do exercício da sua actividade profissional; b. Acórdão de 17.09.2019, P. 2706/17, no qual foi atribuída indemnização no valor de € 200.000,00 a título de perda de capacidade de ganho/dano biológico, a um lesado com défice funcional permanente impeditivo do exercício da sua actividade profissional; c. Acórdão de 07.09.2020, P. 2184/16, no qual foi atribuída indemnização no valor de € 145.000,00 a título de perda de capacidade de ganho/dano biológico, a um lesado com défice funcional permanente impeditivo do exercício da sua actividade profissional.
DÉCIMO QUINTO. A avaliação e quantificação do lucro cessante traduzido no dano biológico patrimonial implica não só atender às perdas salariais resultantes da interrupção de uma carreira profissional motivada pela incapacidade definitiva para o exercício da profissão, mas também reflectir, na indemnização arbitrada com recurso à equidade (art. 566º, 3, para fixar os danos no contexto de aplicação do art. 483º, 1, sempre do CCiv.), a privação de oportunidades profissionais futuras por parte do lesado e, no caos concreto, no grau de incapacidade fixado que impede o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional e económico empresarial do autor ora recorrente.
DÉCIMO SEXTO. No caso sub judice, resulta da factualidade apurada que o autor ora recorrente, à data do acidente, tinha 60 anos de idade; ficou a padecer de défice funcional de 20 pontos; as lesões sofridas são impeditivas do exercício da sua profissão habitual (músico, que exerceu durante mais de, pelo menos, 44 anos); que antes do acidente auferia um rendimento mensal médio de € 1.500,00; que, com caracter permanente, precisou a necessitar de assistência e tratamentos médicos da especialidade de medicina física e de reabilitação, que, de forma permanente, o autor ora recorrente precisa de ajuda de terceiras pessoas para realizar algumas das actividades da vida diária; entre as demais sequelas que se encontram elencadas e inequivocamente demonstradas nos presentes autos); não podendo ser esquecido que as potencialidades de trabalho do autor ora recorrente ou de aumento de ganho, na sua profissão ou em actividades alternativas, estão absoluta e inequivocamente extintas, uma vez que o autor ora recorrente padece de um deficit funcional permanente de incapacidade físico-psíquica de 20 pontos, estando impedido do exercício da actividade profissional de músico, bem como de qualquer outra, dado que não tem o mesmo qualquer preparação técnico-profissional que o permita exercer qualquer outra actividade profissional.
DÉCIMO SÉTIMO. Entende, por isso, o autor ora recorrente, que o montante de € 70.000,00 (setenta mil euros) fixado pelo Tribunal a quo é inequivocamente insuficiente para ressarcir o autor ora recorrente pelo prejuízo económico que o sinistrado sofrerá, em consequência da impossibilidade de realizar a sua actividade profissional até ao terminus da sua vida activa.
DÉCIMO OITAVO. E isto porque, mesmo que se concebesse que o autor auferia rendimentos mensais no valor do salário mínimo nacional, e que, por força do acidente a que reportam os presentes autos, deixou de auferir, facilmente se compreende que o montante de € 70.000,00 (setenta mil euros) não é suficiente, sequer, para compensar a perda de rendimentos que se verificaria entre a data da consolidação médico legal – 14 de maio de 2018 – e a presente data.
DÉCIMO NONO. Posto isto, é inequívoco que o montante fixado pelo Tribunal a quo a título de indemnização pelo dano biológico é manifestamente insuficiente e parco, estando em colisão com o princípio consagrado no artigo 564.º do Código Civil, que prevê que o dever de indemnizar compreende, não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão; ora, atento o parco valor fixado pelo Tribunal a quo, e distribuindo o mesmo pelo hiato temporal decorrido entre o acidente e a presente data, compreendemos que o mesmo não é sequer suficiente para restituir ao autor a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – como ordena que seja feito o artigo 483.º do Código Civil.
VIGÉSIMO. Ora, se não fosse o acidente a que reportam os presentes autos, o autor ora recorrente teria a seguinte situação: por um lado, continuaria a exercer a sua actividade profissional de músico, auferindo rendimentos pela mesma; por outro lado, manteria a sua capacidade física integra, isenta de qualquer lesão, limitação ou restrição; neste sentido, é inequívoco que o quantum indemnizatório fixado pelo Tribunal, pela sua insuficiência, viola o disposto nos normativos legais previstos nos artigos 8.º, número 3, 483.º, número 1, 563.º, 564.º, números 1 e 2 e 566.º, todos do Código Civil.
VIGÉSIMO PRIMEIRO. Termos em que, salvo melhor entendimento, importará a este Douto Tribunal de Recurso fixar um montante indemnizatório que, obedecendo a todos os critérios já supra elencados, se mostre adequado às circunstâncias específicas dos presentes autos, que desempenhe um papel corrector e que se mostre justo ao caso concreto, não olvidando, claro, dinâmicas igualmente relevantes ao apuramento da indemnização em causa, como sejam: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização, entre outros, em valor nunca inferior a € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
VIGÉSIMO SEGUNDO. O autor não consente que conste da matéria de facto não provada, o facto não provado c), uma vez que, da prova documental resultou que o autor padecia de disfunção eréctil, designadamente dos documentos n.ºs 9, 12, 13, 41 juntos com a petição inicial e email de 21.11.2017 junto pelo FGA com requerimento de 23.01.2023; tendo tal factualidade sido corroborada pela prova produzida através das declarações de parte do próprio autor ora recorrente, nomeadamente, aos minutos 00:08:59 a 00:10:24.
VIGÉSIMO TERCEIRO. Termos em que, face a todo o exposto, se impõem que, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, se modifique o elenco dos factos provados, fazendo constar do mesmo, o facto que, pelo Tribunal a quo, foi considerado não provado, nomeadamente, o facto não provado c); passando assim a constar do elenco de factos provados, que: 61. O autor ficou a padecer de disfunção eréctil.
VIGÉSIMO QUARTO. Por seu turno, não se conforma o autor ora recorrente com a indemnização por danos não patrimoniais fixada pelo Tribunal a quo, por entender que a mesma é escassa, desproporcional e desajustado face à gravidade dos danos sofridos – danos estes que, pela sua gravidade e extensão, acompanharão o autor ora recorrente para o resto da sua vida.
VIGÉSIMO QUINTO. Na presente acção logrou provar-se, de forma inequívoca, a extensão imensurável dos danos sofridos pelo autor em consequência do acidente de que foi vítima; recorde-se que, em consequência do acidente a que reportam os presentes autos: - o autor foi desencarcerado do local do acidente e assistido no mesmo por equipas de emergência médica; - o autor foi transportado para unidade hospitalar, onde foi internado, tendo ainda sido transferido entre diferentes unidades hospitalares até ao momento da alta para o domicílio decorridos mais de 6 meses do acidente; - o autor foi submetido a coma induzido; - o autor foi ventilado; - o autor correu perigo de vida; - o autor sofreu traumatismo crânio encefálico com hemorragia, contusão pulmonar com necessidade de ventilação, fratura complexa do membro inferior esquerdo, fratura do planalto tibial externo em joelho esquerdo, fratura do 3.º ao 5.º metatarsos do pé esquerdo, fratura luxação de Lisfranc do pé direito, ulcera de pressão em calcanhar esquerdo com necessidade de desbridamento cirúrgico e tratamento hiperbárico, ferida com perda de cobertura cutânea em face externa distal de perna direita, ferida do calcâneo direito com epitelização completa, ferida com maceração cutânea importante em sítio de pino de tração esquelética na tíbia esquerda; - o autor sofreu luxação traumática da cartilagem aritenóidea direita, da qual resultou disfonia e disfagia; - durante os períodos de internamento, o autor sofreu traqueobronquite com colonização a pseudomonas aeruginosa, traqueobronquite tendo feito levofloxacina, isolamento de pseudomonas aeruginosa na urina, AVC isquémico na face lateral direita do bulbo raquidiano, agravamento de colite ulcerosa, hipomobilidade direita e luxação da aritnoide direita, oclusão total da artéria femural superficial direita e do 1/3 distal da femural superficial esquerda, lesão neurológica bulboprotuberancial à direita com a presença de discreta ptose palpebral direita com anisocoria reactiva.
VIGÉSIMO SEXTO. O autor foi assistido, observado e acompanhado em consultas da especialidade de ortopedia, cirurgia, cirurgia vascular, cirurgia plástica, oftalmologia, neurologia e pneumologia e otorrinolaringologia; realizou diversos exames médicos; realizou diversos tratamentos de medicina física e de reabilitação; foi submetido a tratamentos de enfermagem; tendo ainda realizado consultas e tratamentos de terapia da fala.
VIGÉSIMO SÉTIMO. O autor teve necessidade de recorrer ao uso de cadeira de rodas para se mover, tendo ficado dependente da ajuda da sua companheira para as tarefas/atividades do seu dia-a-dia.
VIGÉSIMO OITAVO. À data do acidente, o autor tinha apenas 60 anos, era uma pessoa feliz e alegre, tendo, em consequência do acidente de que foi vítima, passado por períodos depressivos, bem como a passado a sentir-se desolado, triste, angustiado, diminuído, introvertido, frustrado e ansioso, quer pela sua condição física, quer pela perda de autonomia e independência que as lesões e sequelas lhe trouxeram e trarão, quer a nível pessoal e social, quer a nível profissional.
VIGÉSIMO NONO. Na sequência do acidente – e de forma permanente, absoluta e irremediável – o autor perdeu a destreza nos seus membros superiores para tocar instrumentos musicais, tendo igualmente perdido a capacidade para permanecer de pé por longos períodos de tempo, actuando – motivo pelo qual, por força do acidente, nunca mais voltará a ser músico.
TRIGÉSIMO. Mesmo decorridos quase 8 anos desde a ocorrência do acidente que o vitimou, o autor ora recorrente mantem a necessidade de realização de tratamentos de medicina física e de reabilitação; tendo ficado permanentemente afectado de um dano estético permanente em grau 4, um quantum doloris em grau 5, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer em grau 3 e um défice funcional permanente de integridade física de 20 pontos, que o impede de exercer a sua actividade profissional de músico.
TRIGÉSIMO PRIMEIRO. A vida que o autor tinha antes do acidente de que foi vítima, foi completamente destruída – sem que para tal facto tenha contribuído o autor; do mesmo modo, e igualmente única e exclusivamente por força do acidente, o autor ora recorrente nunca mais foi o mesmo, nem nunca mais será, as testemunhas inquiridas prestado depoimento nesse sentido, nomeadamente, a. A testemunha DD, que afirmou: - que o autor já não é a pessoa que era; sendo, por força do acidente de que foi vítima, uma pessoa completamente diferente daquela que era antes; - que o autor tem mobilidade reduzida, cansa-se em pequenas deslocações, usa bengala para se deslocar; - que o autor mantém o acompanhamento médico regular e frequente; - que o autor, nas humildes palavras da testemunha, seu irmão, já não pensa muito bem. (cfr. minutos 00:35:15 a 00:36:50, minutos 00:37:25 a 00:39:46); e, b. a testemunha EE, que afirmou: - que o autor não é a pessoa que era antes do acidente; - que o autor recorre a muletas para se deslocar, tendo dificuldades em se deslocar; - que o autor deixou de ser uma pessoa activa, tendo, inclusive, aumentado de peso; - que o autor é, agora, uma pessoa triste, desmotivada e deprimida; - que o autor sofre com dores diariamente (cfr. minutos 00:55:35 a 00:56:28, minutos 00:59:29 a 01:02:15).
TRIGÉSIMO SEGUNDO. Por seu turno, resulta evidenciado nos presentes autos – e provado, dada a sua natureza de facto notório – que a ré responsável pelo pagamento da indemnização em apreço é uma entidade com capacidade económica vantajosa – mais vantajosa, largamente, que aquela que é a capacidade económica do autor, pelo que, ao fixar o valor da indemnização por danos patrimoniais em valor inferior ao adequeado, justo e razoável ao ressarcimento dos danos sofridos pelo autor ora recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto nos normativos legais previstos nos artigos 8.º, número 3, 483.º, número 1, 563.º, 564.º, números 1 e 2 e 566.º, todos do Código Civil, tendo incorrido em igual desvio aos critérios que os mesmos estabelecem para, no caso concreto, fixar a indemnização devida a título de danos não patrimoniais.
TRIGÉSIMO TERCEIRO. Por tudo quanto exposto, pugna assim o autor ora recorrente pela procedência das presentes alegações de recurso e, consequentemente, que seja revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, substituindo-se a mesma por outra que condene os réus ora recorridos no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais em montante nunca inferior a € 100.000,00 (cem mil euros).
NESTES TERMOS, E SEMPRE COM O MUITO DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS., DEVE O PRESENTE RECURSO INTERPOSTO PELO ORA RECORRENTE SER JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, SER A DECISAO REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA NOS TERMOS PUGNADOS NO PRESENTE RECURSO,

POIS SÓ ASSIM SE FARÁ UMA CORRECTA APLICAÇÃO DO DIREITO E FEITA V/ EXAS. A COSTUMADA JUSTIÇA!!!”.

4. Não houve contra-alegações.

5. O objecto dos recursos, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

5.1. O do FGA:

a) Se a sentença enferma de nulidade;

b) Se ao montante indemnizatório fixado devem ser deduzidas as quantias já liquidadas pelo FGA em decorrência da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória.

5.2. Do Autor:

a) Impugnação da matéria de facto: o facto provado inserto no nº42 e os factos não provados insertos na alínea o) e na alínea c);

b) Se a indemnização por perdas salariais deve ser fixada em €31.491,77;

c) Se a “indemnização pelo dano biológico” que lhe foi atribuída deve ser fixada em €150.000,00;

d) Se a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada em € 100.000,00.


II. FUNDAMENTAÇÃO

6. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:

“A. Factos provados

Com relevância para a solução do presente dissenso encontram-se demonstrados os seguintes factos:

1. No dia 13 de outubro de 2016, cerca das 00 horas e 50 minutos, na estrada de ..., na freguesia ..., concelho ..., distrito ... (coordenadas latitude 37.08,4837N e longitude 08.12,9616W), ocorreu um embate que envolveu o veículo automóvel ..-..-OE (doravante OE), propriedade do Autor e conduzido, naquele momento, pelo mesmo, e o veículo automóvel ..-..-JX (doravante JX), propriedade do 2.º Réu e conduzido, naquele momento, pelo 3.º Réu.

2. O veículo ..-..-JX não possuía seguro válido e eficaz.
3. O Autor conduzia o OE nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), no sentido .../..., dentro da sua respetiva mão de trânsito.
4. O 3.º Réu conduzia o JX nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), no sentido contrário ao do Autor, ou seja, no sentido .../....
5. No local do embate, a via é composta por uma fila de trânsito em cada um dos sentidos de marcha referidos em 3) e 4).
6. Imediatamente antes do local do embate, no sentido do JX, a artéria é caraterizada por uma curva à direita, com inclinação descendente.
7. No momento do embate chuviscava e o piso estava húmido.
8. Sem qualquer justificação, o condutor do JX despistou-se, invadindo a fila de trânsito reservada à circulação em sentido contrário, onde circulava o OE.
9. O despiste do JX provocou o embate frontal entre os dois veículos, JX e OE.
10. Na sequência do embate, o JX e o OE ficaram imobilizados na fila de trânsito onde circulava este último.
11. Ao local do embate dirigiu-se a GNR, que tomou conta da ocorrência, tendo elaborado a respetiva “participação de acidente de viação”.
12. Ao local do embate, dirigiu-se também o INEM, que assistiu o Autor no local e lhe prestou os primeiros socorros.
13. Posteriormente, o Autor foi transportado, em ambulância, para o Centro Hospitalar ... (unidade de Faro), dando entrada nos serviços de urgência.
14. A 26.10.2016 foi o Autor transferido para a unidade de cuidados intensivos polivalentes da ..., ainda ventilado.
15. A 27.10.2016 o Autor foi transferido entre unidades hospitalares, para o Hospital da sua área de residência.
16. O Autor foi ventilado.
17. O Autor foi submetido a coma induzido.
18. O Autor correu perigo de vida.
19. Na sequência do embate referido em 1), o Autor sofreu as seguintes lesões:
a. Traumatismo crânio encefálico com hemorragia subaracnoideia;
b. Contusão pulmonar bilateral com necessidade de ventilação até 04 de novembro de 2016;
c. Fratura complexa do membro inferior esquerdo (basicervical e diáfise femoral);
d. Fratura do planalto tibial externo em joelho esquerdo;
e. Fratura do 3.º ao 5.º metatarsos do pé esquerdo;
f. Fratura luxação de Lisfranc do pé direito;
g. Úlcera de pressão em calcanhar esquerdo com necessidade de desbridamento cirúrgico em 27 de dezembro de 2016 e tratamento hiperbárico;
h. Ferida com perda de cobertura cutânea em face externa distal de perna direita;
i. Ferida do calcâneo direito com epitelização completa;
j. Ferida com maceração cutânea importante em sítio de pino de tração esquelética na tíbia esquerda;
20. Face à gravidade das suas lesões, o Autor foi transportado ainda para o Hospital ....
21. No Hospital de Santa Maria, o Autor foi submetido, a 10 de novembro de 2016, a intervenção cirúrgica para tratamento de:
a. Fractura basicervical e diafisária cominutiva de fémur esquerdo tratado com redução cruenta e encavilhamento cefalomedular longo com parafuso cefálico e bloqueio distal;
b. Fractura planalto tibial (schatzker tipo I) operado com parafusos percutâneos compressivos (3 parafusos).
22. O Autor ficou internado, nos serviços de medicina intensiva do Hospital ..., com um quadro clínico instável.
23. No procedimento de intervenção cirúrgica a que foi submetido no Hospital ..., por dificuldade de intubação, o Autor sofreu luxação traumática da cartilagem aritenóidea direita, da qual resultou disfonia e disfagia.
24. Durante os internamentos o Autor sofreu vários incidentes, de entre os quais:
a. Traqueobronquite na unidade de cuidados intensivos de ... com colonização a pseudomonas aeruginosa;
b. Traqueobronquite sem agente isolado tendo feito levofloxacina em ...;
c. Isolamento de pseudomonas aeruginosa na urina;
d. AVC isquémico na face lateral direita do bulbo raquidiano;
e. Agravamento de colite ulcerosa;
f. Hipomobilidade direita e luxação da aritnoide direita;
g. Oclusão total da artéria femural superficial direita e do 1/3 distal da femural superficial esquerda.
25. O Autor sofreu ainda lesão neurológica bulbo-protuberancial à direita com a presença de discreta ptose palpebral direita com anisocoria reactiva.
26. O Autor foi observado e assistido em especialidades de ortopedia, cirurgia, cirurgia vascular, cirurgia plástica, oftalmologia, neurologia e pneumologia.
27. O Autor realizou diversos exames médicos.
28. Após ser transferido entre várias unidades hospitalares, o Autor teve alta médica para o domicílio a 10 de maio de 2017.
29. Aquando da alta para o domicílio, o Autor teve indicação médica para manter acompanhamento médico, bem como consumo de medicação e submissão a tratamentos de enfermagem para pensos.
30. Ao Autor foi indicado a realização de tratamentos de medicina física e de reabilitação, bem como a realização de terapia de fala.
31. O Autor realizou tratamentos de medicina física e de reabilitação, nomeadamente, fisioterapia e hidroterapia e tratamento de baroterapia.
32. O Autor manteve a realização de exames médicos.
33. O Autor teve acompanhamento em consultas médicas de diferentes especialidades, nomeadamente, de ortopedia, cirurgia, cirurgia vascular, oftalmologia, neurologia, pneumologia e otorrinolaringologia.
34. O Autor teve que recorrer ao uso de cadeira de rodas para se mover.
35. Na sequência do embate de que foi vítima, o Autor ficou dependente da ajuda da sua companheira para as tarefas/ atividades do seu dia-a-dia.
36. Com exceção dos períodos de internamento, a companheira do Autor prestou-lhe ajuda para as tarefas/ atividades do seu dia a dia até meados de junho de 2020, época em que o casal se separa.
37. Desde a data da ocorrência do embate, o Autor tem suportado despesas com acompanhamento médico, tratamentos médicos, consultas médicas, exames médicos, medicamentos, ajudas técnicas e deslocações.
38. À data do embate, o Autor tinha 60 anos.
39. À data do embate, o Autor era músico e prestava os seus serviços em diversos locais, nomeadamente, e entre os demais, no estabelecimento C... e estabelecimento A....
40. A prestação dos serviços de músico exigia que o Autor permanecesse de pé por longos períodos de tempo, destreza nos seus membros superiores para tocar instrumentos musicais, e ainda capacidade vocal.
41. Até ao momento do sinistro, o Autor reunia os requisitos e condições físicas necessárias ao exercício da sua atividade profissional.
42. O Autor prestava os seus serviços de músico durante, pelo menos, cinco dias da semana, emitindo recibos pelos serviços prestados entre 1 maio de 2016 e 9 outubro de 2016 no valor de € 8.212,88 ilíquidos, correspondendo ao valor líquido de € 6.180,31.
43. Desde a data do embate e por força do mesmo até à presente data, o Autor não conseguiu exercer a sua atividade profissional, nem auferir rendimentos decorrentes da mesma.
44. As sequelas resultantes do acidente para o Autor tornaram-no incapaz permanentemente para o exercício daquela que era a sua atividade habitual, mas são compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional.
45. A 06.10.2023 o perito do INML fixou a data da consolidação médico legal das lesões em 14.05.2018 e em 579 dias o período durante o qual o processo evolutivo das lesões sofridas pelo Autor em consequência do embate tiveram repercussão temporária na sua atividade profissional.
46. A Ré Fundo de Garantia Automóvel, após a participação do sinistro, assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo Autor em consequência daquele.
47. A Ré Fundo de Garantia Automóvel efetuou, em sede extrajudicial, adiantamentos mensais ao Autor.
48. O Autor intentou contra os ora Réus providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, que correu seus termos no Juízo ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob os autos de processo n.º 337/20.....
49. No âmbito do processo cautelar referido, o Autor e a ora Ré Fundo de Garantia Automóvel celebraram transação, tendo aquele sido parcialmente ressarcido dos danos decorrentes do sinistro de que foi vítima.
50. Ao abrigo da transação mencionada foram pagas ao Autor as seguintes quantias: € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a título de reparação provisória de danos relativa aos meses de março, abril, maio, junho e julho de 2020; € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de renda e reparação provisória de dano e relativa ao mês de agosto de 2020.
51. Até à data do embate, o Autor era uma pessoa feliz e alegre.
52. Desde o embate, e em consequência dele, o Autor passou a sentir-se desolado, triste, angustiado, diminuído, introvertido, frustrado e ansioso, quer pela sua condição física, quer pela perda de autonomia e independência que as lesões e sequelas lhe trouxeram e trarão.
53. O Autor passou por períodos depressivos.
54. À data da instauração da ação, o Autor mantinha acompanhamento médico, nomeadamente, para tratamentos de medicina física e de reabilitação.
55. A 06 de outubro de 2023 foi atribuído ao Autor pelo perito médico do INML, o grau 4, numa escala de 7 valores de gravidade crescente, quanto ao dano estético permanente considerando a claudicação da marcha e as cicatrizes que ficou a padecer na sequência do embate.
56. A 06 de outubro de 2023 foi atribuído ao Autor, na decorrência do embate, pelo perito médico do INML, de quantum doloris, o grau 5, numa escala de 7 valores de gravidade crescente.
57. A 06 de outubro de 2023 foi atribuído ao Autor, pelo perito médico do INML, em termos de repercussão permanente das sequelas resultantes do embate nas atividades desportivas e de lazer, o grau 3, numa escala de 7 valores de gravidade crescente.
58. A 06 de outubro de 2023 foi atribuído ao Autor, pelo perito médico do INML, em virtude das sequelas que para aquele resultaram do embate, um défice funcional permanente de integridade física de 20 pontos, numa escala de 100.
59. Futuramente, o Autor necessitará de assistência e tratamentos regulares de medicina física e de reabilitação, concretamente fisioterapia.

B. Factos não provados
Com relevância para a solução do pleito, resultaram por provar os seguintes factos:
a) O limite de velocidade no local é de 50 quilómetros por hora.
b) O coma induzido teve o seu fim em janeiro de 2017.
c) O autor ficou a padecer de disfunção eréctil.
d) Por força das lesões sofridas em consequência do embate, o Autor viu- se forçado a recorrer aos serviços de urgência do Centro Hospitalar ... a 21 fevereiro de 2018.
e) No seguimento do embate, o Autor foi submetido a novo internamento hospitalar em unidade de cuidados de intensivos a 2 de junho de 2018, estando internado desde este dia até 11 de junho de 2018 e voltando a ser internado no dia 12 de junho de 2018 até 14 de junho de 2018.
f) Por força do quadro clínico resultante do embate, o Autor necessitou de recorrer a serviços de cuidados respiratórios domiciliários, nomeadamente, oxigenoterapia.
g) Por força do quadro clínico resultante do embate, o Autor foi submetido a internamento a 05 de novembro de 2018, estando internado desde este dia até 06 de novembro de 2018.
h) Por força do quadro clínico resultante do embate, o Autor voltou a ser submetido a novo internamento hospitalar a 11 de janeiro de 2019, estando internado desde este dia até 17 de janeiro de 2019.
i) À data da instauração da ação, o Autor mantinha consultas através dos serviços médicos da Ré Fundo de Garantia Automóvel.
j) Em consequência do embate de que foi vítima, o Autor precisava de adaptar a sua habitação, nomeadamente, a casa de banho, o que implicava um custo de € 12.469,22.
k) À data do embate, o Autor era casado.
l) A esposa do Autor ficou em situação de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, determinada pela necessidade imperativa daquele necessitar do seu apoio para todas as tarefas do dia-a-dia.
m) A esposa do Autor teve que abandonar a profissão que exercia para lhe prestar apoio.
n) Na sequência do embate e do longo período de recuperação, o Autor viu o seu casamento chegar ao fim.
o) À data do sinistro, o Autor auferia mensalmente aproximadamente € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros).
p) O Autor teve que recorrer a ajuda económica de terceiros para garantir a sua subsistência.
q) O Autor viu-se forçado a vender diversos bens pessoais, inclusive a guitarra que usava na sua atividade profissional, para garantir a sua subsistência.
r) O Autor não recebe qualquer rendimento desde a data do embate.
s) A Ré Fundo de Garantia Automóvel efetuou, em sede extrajudicial, adiantamentos mensais ao Autor, o último dos quais havia sido liquidado em novembro de 2019 no valor de € 1.500,00.
t) Até à data do embate, o Autor era saudável e nunca tinha tido necessidade de recorrer a acompanhamento médico reiterado e constante.
u) O Autor passou a dormir mal e a sofrer de pesadelos.
v) Futuramente, por força do seu quadro clínico complexo, o Autor necessitará de consultas médicas de diversas especialidades médicas, ajudas medicamentosas e de apoio de terceira pessoa para a realização das tarefas do seu dia- a -dia.”.

7. Do mérito do recurso do FGA

7.1. Da nulidade da sentença

Entende o recorrente que a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia porque não deduziu ao montante indemnizatório em que condenou os Réus, as quantias já liquidadas pelo Fundo ao Autor na sequência do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que este oportunamente intentou.

Vejamos.

No que respeita o vício da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia rege o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que comina a sentença de nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento.

Ora, o Tribunal pronunciou-se expressamente sobre esta questão nos seguintes termos : “ Dizer ainda que pese embora se tenha provado que o Autor já recebeu determinadas quantias por parte do FGA desconhece-se em concreto o valor das mesmas (até porque se provou que mesmo antes do procedimento cautelar, o FGA já tinha feito adiantamentos extrajudiciais ao Autor), sendo que competia a este alegar quais os valores pagos e peticionar a respetiva dedução num eventual valor a pagar. Mas o FGA nada alegou neste sentido, nem nada peticionou. “.

Portanto, a questão foi resolvida.

Se bem ou mal é questão que diz respeito ao mérito da causa e que nessa sede, neste recurso, também foi suscitada.

Não enferma, pois, a sentença desta nulidade.

7.2. Cuidemos agora de averiguar se ao montante indemnizatório fixado na sentença deveriam ter sido deduzidas as quantias já liquidadas pelo FGA.

A esse propósito resultou provado o seguinte:

48. O Autor intentou contra os ora Réus providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, que correu seus termos no Juízo ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob os autos de processo n.º 337/20.....

49. No âmbito do processo cautelar referido, o Autor e a ora Ré Fundo de Garantia Automóvel celebraram transação, tendo aquele sido parcialmente ressarcido dos danos decorrentes do sinistro de que foi vítima.

50. Ao abrigo da transação mencionada foram pagas ao Autor as seguintes quantias: € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a título de reparação provisória de danos relativa aos meses de março, abril, maio, junho e julho de 2020; € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de renda e reparação provisória de dano e relativa ao mês de agosto de 2020.”.

Dispõe o artigo 388º, do Código de Processo Civil, quanto ao “Fundamento da reparação provisória”:

“1. Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o nº3 do artigo 495º do Código Civil, requerer o arbitramento da quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.

(…)

3. A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, é fixada equitativamente pelo tribunal.

(…)”

Por conseguinte, parece-nos claro, de acordo com a letra da lei, que à indemnização definitiva ao lesado deverão ser abatidas as quantias indemnizatórias já liquidadas sob pena de violação da regra da proibição de duplicação ou acumulação material de indemnizações.

De igual sorte, se tal decisão não fixar indemnização alguma ou a fixar em valor inferior à provisoriamente estabelecida, deverá ser o lesado ser condenado a restituir o que for devido (art.º 390º, nº2 do CPC).

Nenhuma destas decisões pressupõe um pedido do requerido nesse sentido, já que tal dedução ou condenação emerge da própria lei.

Aliás, “sendo o arbitramento de reparação provisório uma providência antecipatória da decisão que visa acautelar, as indemnizações pagas, sob a forma de renda, têm um cariz precário, sendo meros adiantamentos por conta da indemnização que se vier a apurar ser devida na ação declarativa da qual a providência é instrumental.

Assim, na hipótese do quantum da indemnização definitiva ser superior ao valor global das rendas provisórias entretanto pagas, estas devem ser imputadas naquele montante (art. 403º, nº3, do CPC), ficando a pessoa condenada na indemnização definitiva obrigada a pagar apenas a diferença entre os dois valores. A fixação da indemnização definitiva não deve ter em consideração os valores entretanto satisfeitos pelo obrigado ao seu pagamento, no cumprimento da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, mas o pagamento desses valores é imputado na dívida da indemnização definitiva. Esta imputação pode ser efectuada, com actualização dos valores pagos de acordo com a desvalorização monetária que, entretanto, se tenha verificado entre esses pagamentos e a data da sentença que fixou a indemnização definitiva, na medida em que esta também tenha atualizado o valor da indemnização à sua data, tomando em consideração a desvalorização monetária ocorrida[1]”.

Não vemos qualquer razão para distinguir os casos em que a indemnização provisória deve ser imputada à indemnização definitiva daqueles em que deve ser restituída: quer uma quer outra devem ser determinadas oficiosamente na sentença proferida na acção principal.

Assim, procede a apelação do Fundo neste conspecto.

8. Do mérito do recurso do Autor

8.1. Impugnação da matéria de facto

Entende o apelante/autor que o facto provado inserto no nº42 (O Autor prestava os seus serviços de músico durante, pelo menos, cinco dias da semana, emitindo recibos pelos serviços prestados entre 1 maio de 2016 e 9 outubro de 2016 no valor de € 8.212,88 ilíquidos, correspondendo ao valor líquido de € 6.180,31 ) foi mal julgado, assim como o foi, o facto inserto na alínea o) dos “ Não Provados” ( À data do sinistro, o Autor auferia mensalmente aproximadamente € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros), já que de acordo com o documento 51 junto à p.i. que o seu rendimento diário era de € 54,39, o que foi corroborado pelas testemunhas que refere.
Para justificar a sua decisão, referiu-se na motivação da sentença o seguinte:

“O facto n.º 42 foi considerado provado em face da conjugação dos documentos n.ºs 49 a 51 juntos com a petição inicial, sendo que da consulta em particular do documento n.º 51 (para qual o Autor remete, pelo que pode considerar-se o que dele resulta) resulta que o valor de € 8.212,88 (e não € 8.212,78 que se afigura se ter tratado de apenas um mero lapso de cálculo) é um valor ilíquido, correspondendo ao valor líquido de € 6.180,31.”. (…) “Por sua vez, foi considerado não provado o facto da al. o), porquanto, conforme já se constatou no facto provado n.º 42, o Autor emitiu recibos pelos serviços prestados entre 1 maio de 2016 e 9 outubro de 2016 no valor de € 8.212,88 ilíquidos. Logo, o valor de € 1.650,00 não correspondia à média dos recibos emitidos constantes do documento n.º 51 (€ 8.212.88 / 5 meses, 8 dias). E de qualquer forma há que considerar que o valor de € 8.212.88 era um valor bruto, pelo que o rendimento auferido pelo Autor não podia ter por base este valor, mas sim o líquido de € 6.180,31”.

Portanto, como está bem de ver, o dissenso relaciona-se com o valor a considerar ser líquido ou ilíquido e ao cálculo do valor médio mensal.

Ora, a redacção dada ao facto nº42 é a que espelha com rigor a remuneração auferida pelo Autor de acordo com a prova documental efectuada, sendo que a matéria da alínea o) não corresponde à média das remunerações auferidas e documentadas.
Por isso, a pretensão do apelante não tem fundamento sério.

Pugna igualmente o apelante pela transição do facto vertido na alínea c) (O autor ficou a padecer de disfunção eréctil) do rol dos “Não Provados” para o dos “Provados” com base nos documentos que refere e, bem assim, com fundamento nas declarações do próprio.

Por seu turno, o Tribunal “a quo” motivou a sua resposta a este facto, nos seguintes termos: “No que concerne ao facto da al. c), as informações médicas juntas apenas dão nota que o Autor referiu ter disfunção erétil (documentos n.ºs 9, 12, 13, 41 juntos com a petição inicial e email de 21.11.2017 junto pelo FGA com requerimento de 23.01.2023), não que a tenha ficado a padecer de tal patologia, sendo ainda que o relatório pericial não refere a existência de nenhum dano neste âmbito”.
Vejamos.

O relatório do INML (enviado por email em 9.10.2023) é, de facto, completamente omisso relativamente à existência de tal dano.

Admitindo que podem ocorrer episódios de disfunção dessa natureza após um acidente com tal gravidade, a questão que aqui se coloca é outra: se o acidente teve uma repercussão permanente na actividade sexual do autor.

Ora, como se salientou, a perícia médico-legal não evidenciou a existência de tal dano. E o certo é que, quando está em causa a avaliação do dano em direito civil, não basta a apreciação de um médico, ainda que especialista na área, estando o cálculo da incapacidade permanente do lesado para efeitos de reparação civil do dano que lhe foi causado, atribuída legalmente pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, artigo 2.º, n.º 3, a médicos especialistas em medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil e das respetivas regras.[2]
Não há, pois, também fundamento para alterar o decidido.

8.2. Se a indemnização por perdas salariais deve ser fixada em €31.491,77

Esta pretensão do apelante pressupunha a alteração da remuneração diária de €38,15 dia (€ 6.180,31:162 dias) para € 54,39 dia, realidade que o apelante não logrou demonstrar.

Por consequência, mantemos a indemnização fixada a esse título na sentença - € 22.088,85.

8.3. Se a indemnização pelo “Dano Biológico” que lhe foi atribuída deve ser aumentada para €150.000,00.

A afectação da integridade Física/Psíquica do Autor que outrora correspondia ao que se designava como Incapacidade Permanente Geral, foi avaliada no parâmetro do “Dano Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica “tendo no relatório da perícia médico legal sido fixado em 20 pontos (cfr ponto 58)

O Tribunal atribuiu ao autor €70.000,00 a título de “dano biológico”.

Vejamos então.

Como defendido pelo Conselheiro Salvador da Costa[3] perante matéria tão complexa como é a do cálculo do dano corporal, em quadro de desiderato de uniformização e, consequentemente, de consecução nesta matéria do princípio da igualdade, os critérios da Lei , i.e os previstos na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/2008 de 25 de Junho não poderão deixar de ser considerados pelos Tribunais, como ponto de referência ( acrescentamos nós).

Sufragamos entendimento de que se em certa hipótese concreta, ensaiados os índices facultados por tais instrumentos, o resultado a que se chegue for um que o senso de justiça e os padrões habitualmente seguidos nos tribunais não permitam aceitar, deve esse resultado ser corrigido para moldes mais adequados e ajustados, dentro do que consinta e exorte o critério da equidade (art.º 566º nº3 do C.C.).

Na verdade, quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal, sendo, por isso e também, uma forma de justiça.

Para a questão que agora nos interessa há que ter em conta o anexo IV da citada Portaria que dispõe sobre a compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica, no que é designado por dano biológico, com base em pontos e na idade do lesado à data do acidente.

Para uma desvalorização entre 16 e 20 pontos são estabelecidos os valores de € 666,90 a € 800,28 quando a vítima tenha entre 56 a 60 anos de idade.

Havendo no caso concreto uma desvalorização equivalente a 20 pontos e equivalendo cada ponto a €800,28 (valor mais elevado do quadro tendo em conta que a idade do lesado era a “maior “desse quadro, ou seja, 60 anos e 20 pontos a pontuação também mais elevada mesmo) a indemnização a atribuir seria de € 16.005,60 (20x €800,28).

Considerando, porém, que os pontos são atribuídos de acordo com a RMMG (retribuição mínima mensal garantida) de 2007 (cfr. nota 1) que era então de 403€, mas que actualmente, i.e. à data da fixação de tal indemnização ( 2024) tal remuneração ascende a 820 €/mês , alcança-se, de acordo com uma “regra de três simples”, um total de € 32.507,23, quantia que, no caso concreto, se mostra muito aquém da fixada pelo Tribunal de acordo com um juízo de equidade.

Assim, entendemos ser de manter a quantia de € 70.000,00 fixada pelo Tribunal destinada a ressarcir o dano pelo Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica de que o Autor ficou a padecer.

8.3. Se a indemnização por danos não patrimoniais deve ser aumentada para € 100.000,00.

O Tribunal fixou-a em € 50.000,00.

Emerge com clareza dos factos provados:

- A gravidade das lesões sofridas ( ponto 19) O sofrimento físico e psicológico inevitavelmente decorrente das mesmas e dos incidentes ocorridos no decurso dos internamentos ( pontos 24 e 25) da sujeição a diversos exames médicos ( ponto 27 e 32), plúrimas consultas de especialidades ( ponto 33), tratamentos de fisioterapia e outros ( ponto 31) transferências entre várias unidades hospitalares com alta médica para o domicílio só sete meses depois do acidente ( ponto 28).

Aliás, em termos médico-legais, importa sublinhar que o concreto quantum doloris do Autor, no caso dos autos e na escala valorativa de 7 graus, com os dados constantes do processo, foi fixado pelo INML no grau 5, sendo que um dos principais componentes do direito à integridade física consiste no direito ao bem-estar corporal, ou seja, o direito à ausência de dores ou incómodos físicos.

- As deformidades de que ficou a padecer (claudicação da marcha e cicatrizes ) e a reviravolta que a sua vida levou em razão do acidente, deixando de exercer a sua actividade profissional ( pontos 43 e 44) sendo compreensível que viva desolado, triste, angustiado, diminuído, introvertido, frustrado e ansioso, quer pela sua condição física, quer pela perda de autonomia e independência que as lesões e sequelas lhe trouxeram e trarão ( ponto 52).

Aliás, foi-lhe, pelo dano estético, atribuído pelo INML o grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

- A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer – cfr. ponto 57 – o que levou o INML a fixar-lhe o grau 3 numa escala de 7 graus .

São, pois, evidentes os intensos padecimentos que o acidente determinou ao Autor , na reviravolta que, de supetão, a sua existência levou, assim como as sequelas que o mesmo lhe causou.

A indemnização por danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, nº 1, do Código Civil) fixa-se mediante juízos de equidade tendo em consideração, designadamente, o grau de culpabilidade do lesante, a situação económica relativa do responsável e do próprio lesado e, bem assim, todas as demais circunstâncias concretas do caso (artigos 496º, nº 3, início, e 494º, do Código Civil).)

Na fixação desta indemnização, não podemos deixar de evidenciar o juízo de censura que merece o condutor do veículo “JX”, único culpado na produção do acidente que invadiu a fila de trânsito reservada à circulação em sentido contrário, por onde circulava o OE, conduzido pelo Autor, embatendo-lhe frontalmente.

Nesta conformidade, tendo em conta as lesões, as dores e o sofrimento psicológico sofridos, o dano estético de que o Autor ficou a padecer e os reflexos permanentes na sua vida que o acidente determinou, assim como, o grau de culpa do agente, entende este Tribunal que é de atribuir-lhe a indemnização peticionada de €100.000 a título de danos não patrimoniais, por se afigurar justa e equitativa.

III. DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em:

A) Julgar procedente o recurso do FGA e em consequência determinar que à indemnização por danos patrimoniais atribuída na sentença ao Autor sejam deduzidos os montantes que adiantadamente lhe foram pagos pelo FGA em cumprimento do provisoriamente arbitrado;

B) Julgar parcialmente procedente o recurso do Autor e em consequência atribuir-lhe a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 100.000 (cem mil euros).

C) Manter o demais decidido na sentença.

Custas dos recursos pelo Autor na proporção do decaimento.

Évora, 12 de Setembro de 2024

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Ana Pessoa

Manuel Bargado (vencido nos termos da declaração que segue)

Vencido quanto à indemnização atribuída pelos danos não patrimoniais.
Visto que o Código Civil não contém quaisquer tabelas que estabeleçam montantes de indemnização em função da gravidade dos danos e que a compensação devida pelos danos não patrimoniais prevista na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, serve para efeitos de apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, por parte das seguradoras, não afastando a fixação de valores superiores aos aí previstos (n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º da Portaria), os tribunais procuram alcançar a equidade, a proporcionalidade na fixação da indemnização, recorrendo ao que é decidido, especialmente pelo Supremo Tribunal de Justiça, em casos análogos.
Este caminho tem apoio no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, que estabelece que “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, e no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa).
Socorrendo-nos de outras decisões do STJ, como indicadores ou auxiliares na questão da proporcionalidade, importa reconhecer que as indicações que se colhem nelas é a de que o montante de 60 mil euros é atribuído a vítimas de acidentes de viação com danos não patrimoniais de gravidade idêntica do que os que se provaram em relação ao autor.
Foi o que sucedeu, por exemplo, no acórdão do STJ de 10.02.2022, proc. 12213/15.6T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt. Nesta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça fixou o montante da indemnização por danos não patrimoniais em sessenta mil euros (€ 60 000) com o seguinte quadro de lesões e danos não patrimoniais:
- O autor sofreu traumatismo e fracturas, ao nível craniano, da face, mandibular, orbital, do ombro, úmero, clavícula, antebraço esquerdo e estrutura pélvica; efectuou 4 transfusões sanguíneas;
- Foi submetido a duas operações cirúrgicas do foro ortopédico e maxilo-facial;
- Teve alta cerca de 1 mês após o acidente, mas registou outros internamentos hospitalares;
- Foi submetido a mais 3 operações cirúrgicas (à mandíbula, ao nariz e à coluna vertebral, clavícula e antebraço);
- Por via de sequelas permanentes, deverá manter o tratamento maxilo-facial e do foro dentário;
- Após o acidente, passou a registar humor e sintomatologia ansiosa, relacionada com a condução automóvel;
- Regista diversas cicatrizes visíveis, a nível facial, bem como variados vestígios de suturas, ao nível do tronco, braços e mãos; possui dor e limitação nos movimentos de flexão/extensão do punho;
- Possui igualmente um défice funcional permanente de integridade psico-física de 14 pontos, mas é expectável o agravamento futuro das sequelas, sobretudo ao nível do punho esquerdo;
- O quantum doloris, grau de sofrimento físico e psíquico vivenciado pelo Autor entre a data do acidente e a data da consolidação das lesões, atingiu o grau 7 de 7;
- A afectação da imagem do Autor, em relação a si próprio e perante os outros, atinge o grau 5 de 7;
- A repercussão nas actividades desportivas e de lazer (espaço de realização e gratificação pessoal comprovadas do Autor) atingiu um grau 5 de 7.

Já o acórdão de 05.09.2023, proc. 549/16.3T8LRA.C2.S1, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça considerou equitativa a indemnização de 75 mil euros por danos não patrimoniais, no âmbito do seguinte quadro de facto:
- Queixas permanentes de cervicalgias com irradiação aos membros superiores, de modo mais evidente à direita;
- Dor localizada à região clavicular direita, agravada pelos esforços, mesmo que ligeiros;
- Omalgia direita, com limitação da mobilidade articular, agravada pelos esforços;
- Queixas persistentes de parestesias/formigueiros dos 4 membros (de modo mais marcado nos membros superiores e à direita), agravadas pela mobilização cervical;
- Disfunção sexual grave, com grave compromisso da libido e disfunção eréctil;
- Grave compromisso do funcionamento cognitivo global, traduzido por dificuldades de concentração e aprendizagem, esquecimentos frequentes e incapacidade marcada para a aprendizagem de novas competências.
- O Autor está afectado de uma IPP de 37%, a qual, atendendo à natureza do seu trabalho, especificidades e exigências, esta incapacidade deve ser considerada total e permanente para o desempenho da sua actividade profissional.
- O Autor nasceu em ... de ../../1977.
- Atualmente e para o resto da vida não pode o Autor conduzir qualquer veículo pois ao fim de pouco tempo de condução, tem dores na coluna e adormecem-lhe quer os membros superiores, quer os membros inferiores.
- O Autor sofre de lesão grave – síndroma do desfiladeiro torácico -, o que o invalida para a, quase totalidade das suas actividades diárias.
- O Autor sofre um enorme desgosto e angústia de se ver tremendamente inutilizado para o resto da sua vida.
- Perdeu a alegria de viver.
- Já não convive com os seus amigos.
- Devido às lesões graves sofridas no acidente e acima descritas, o Autor, devido aos tratamentos a que foi submetido, viu a sua situação inicial de doente renal, agravar-se e hoje o Autor é um doente cronico renal com uma situação agravada devido ao acidente, que o obrigará a fazer hemodiálise permanente.
- Tudo isso tem transtornado completamente o Autor e toda a sua vida, que se sente inútil, e desmotivado, para continuar a viver e a lutar por si, e sua família, incluindo dois filhos menores com 16 e 13 anos de idade.
- O Autor perdeu completamente, a sua libido, não consegue o Autor ter relações sexuais com a sua esposa, desde o acidente, o que degrada completamente a sua vida familiar, e desestabiliza completamente o Autor.
- Daí, as consultas de psiquiatria, a que por indicação do próprio Tribunal do Trabalho, o Autor, está agora a ser submetido.

Comparando as lesões, os danos não patrimoniais delas emergentes e as sequelas descritas nas decisões acima referidas com as lesões e os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, designadamente o quantum doloris, o défice funcional permanente da integridade física permanente, a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer e o prejuízo estético, a conclusão a que se chega é a de que os danos não patrimoniais indemnizados com o montante de 60 mil são idênticos, em termos de gravidade, aos danos não patrimoniais do autor, e são mais graves no caso em que foi atribuída a indemnização de 75 mil euros.
Assim, pese embora o respeito que nos merecem os danos não patrimoniais do autor, entendemos que a indemnização de 100 mil euros fixada no acórdão, não é proporcional, por excessiva, à gravidade dos danos não patrimoniais em causa nos autos, pelo que fixaria tal indemnização em montante nunca superior a 70 mil euros.
Manuel Bargado
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[1] Cura Mariano in A Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória”, 2ª ed., Almedina, pp.119-120.

[2] Neste sentido, acórdão deste Tribunal de 28.9.2023 relatado por Albertina Pedroso e no qual interveio como adjunta a ora Relatora.

[3] No âmbito da formação contínua do CEJ de 2009/2010, em Abril de 2010: Temas de Direito Civil e Processual Civil, em intervenção subordinada ao tema “Caracterização, Avaliação e Indemnização do Dano Biológico “