Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2942/20.8T8STB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. No âmbito da matéria de direito o tribunal tem liberdade para qualificar a matéria de facto alegada pelas partes ou adquirida no processo, podendo corrigir uma deficiente qualificação jurídica que haja sido fornecida pelas partes, incumbindo-lhe, ainda, analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais. Assim, ainda que o autor tenha enquadrado a conduta da ré na figura da responsabilidade civil contratual uma eventual condenação da mesma por força do instituto da responsabilidade civil extracontratual não beliscaria o princípio do dispositivo. Até porque são muito reduzidas as diferenças entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional, sendo que a diferença essencial entre os dois regimes reside no diferente regime do ónus de prova, atenta a presunção de culpa que recai sobre o devedor na responsabilidade obrigacional (artigo 799.º/1, do CC), estando a obrigação de indemnização delas resultante sujeita a um regime unitário, o previsto nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.
2. Os deveres que impendem sobre o mediador imobiliário consagrados no artigo 17.º/1, do D/L n.º 15/2013, de 8 de fevereiro visam, sobretudo, proteger todos os terceiros interessados no contrato que o cliente da empresa de mediação visa realizar, angariados pela empresa de mediação ou que com ela tenham entrado em contacto com vista à realização do contrato mediado. As normas que consagram aqueles deveres são, portanto, normas de proteção, integrando a sua violação a segunda modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil – violação da lei que protege interesses alheios.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2942/20.8T8STB.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Ana Margarida Leite
Francisco Matos

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), SA, co-ré na ação declarativa com processo comum ordinário que lhe foi movida por (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Setúbal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual:
(i) Declarou improcedente o pedido de resolução do contrato-promessa por incumprimento definitivo imputável ao Réu (…) e, consequentemente, absolveu aquele réu do pedido de condenação no pagamento de € 76.000,00;
(ii) Declarou procedente o pedido de condenação dos Réus no pagamento ao Autor do montante de € 38.000,00, a título de enriquecimento sem causa, cabendo ao réu (…) o pagamento da quantia de € 16.000,00 e à Ré (…), Mediação Imobiliária, Lda. o pagamento do montante de € 22.000,00;
(iii) Declarou improcedente o pedido de condenação dos Réus no pagamento do montante de € 3.500,00.
Na ação o autor peticionara que:
1) Se declarasse resolvido o contrato promessa por incumprimento definitivo imputável ao réu (…) e o condenasse no pagamento de uma indemnização ao autor, no valor total de € 76.000,00, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, acrescido de juros moratórios legais vencidos e vincendos desde a data da entrada em juízo da presente ação e até efetivo e integral pagamento;
2) Subsidiariamente, se condenasse os réus, solidariamente, no pagamento da quantia de € 38.000,00, ou caso assim não se entenda, apenas o 1.º réu;
Em qualquer caso,
3) Os réus fossem solidariamente condenados no pagamento das despesas não documentadas e honorários com o patrocínio da ação, em valor nunca inferior a € 3.500,00, ou caso assim não se entenda, a condenação apenas do 1.º réu no pagamento de tal valor.
Como fundamento das suas pretensões o autor alegou, em síntese, o seguinte: em 29 de setembro de 2019, o réu (…) era o único e exclusivo proprietário das frações autónomas designadas pelas letras “AT” e “AL”, correspondentes, respetivamente, aos 7º-B e 6º-B do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Av. (…) e Rua (…), da freguesia e concelho de Sesimbra; no exercício da sua atividade, a ré (…), publicitou a venda das referidas frações como “habitação duplex”, como sendo um T3-duplex com terraço e piscina localizado na 1.ª linha da praia; na sequência de tal publicidade, o pai do autor agendou com a ré, a pedido do autor, uma visita ao imóvel, acompanhado do diretor da primeira, (…), e nessa visita o autor, através do seu pai, constatou que o imóvel se compunha de dois andares ligados entre si por escada interior, sendo o piso superior, correspondente à entrada principal, composto por sala, cozinha, terraço e uma casa de banho, e o piso inferior por quartos e casas de banho; na sequência da visita, o autor manifestou junto do representante da ré a sua intenção de adquirir a habitação; a 2.ª ré, na pessoa de (…), vem a estabelecer o contacto entre o autor e o proprietário da fração para efeitos de celebração de um contrato de compra e venda; nessa sequência, em 29-09-2019, o autor assinou um contrato-promessa de compra e venda no qual o réu (…) se fez representar por (…), na qualidade de procuradora dele; no contrato-promessa ficou consignado que «a primeira outorgante é única e legítima proprietária e possuidora das frações ‘AL’ e ‘AT’ para habitação, sitas na Av. (…), Edifício (…), lote 1, (…), 6º-B e 7º-B, Sesimbra, (…) e descritos na Conservatória do Registo predial de Sesimbra sob o n.º (…), com a autorização de utilização n.º (…) emitida pela Câmara Municipal de Sesimbra em (…)»; aquando do processo de recolha e obtenção de toda a documentação necessária a instruir a escritura pública do contrato de compra e venda, o autor confrontado com a certidão do registo predial e caderneta predial deparou-se com a situação de a habitação não se encontrar legalizada como duplex, isto é, a habitação em causa que fisicamente corresponde a um duplex, não tinha sido objeto de qualquer tipo de regularização quer junto do Condomínio, quer junto da Câmara Municipal, quer junto do Serviço de Finanças e Conservatória do Registo Predial, o 1.º réu não havia diligenciado pelos respetivos registos, averbamentos e/ou licenciamentos; situação que veio a ser confirmada pelo Banco (…), entidade bancária junto da qual o autor solicitou empréstimo para a aquisição da habitação em causa, que lhe recusou o empréstimo com fundamento no facto de as duas frações autónomas não se encontrarem legalizadas como habitação duplex; incumbia ao promitente vendedor providenciar pela regularização e legalização da habitação pelo que ao não fazê-lo incumpriu, de forma definitiva aquela dever lateral ou acessório, legitimando, por isso, a resolução do negócio pela contraparte e a devolução ao autor do sinal por si entregue, no montante de € 38.000,00, em dobro; o autor interpelou o réu (…), na pessoa da procuradora do mesmo, para que lhe pagasse aquele valores em consequência da resolução do contrato, tendo o réu respondido que não podia restituir-lhe queles valores porque havia entregue o sinal, na sua totalidade, à 2.ª ré; resultando provado que o valor de € 38.000,00 foi pago pelo 1.º réu à ré, deverão ambos, solidariamente, ser condenados na restituição.
O réu (…) foi citado editalmente e foi cumprido o disposto no artigo 21.º do Código de Processo Civil, não tendo sido apresentada contestação pelo Ministério Público.
Na sua contestação a ré “(…)” defendeu-se por exceção, alegando a ineptidão da petição inicial (por inexistência de causa de pedir relativamente a ela) e a sua ilegitimidade passiva, e também por impugnação.
O autor replicou, alegando, em síntese, que a ré é parte legítima por ter sido a mediadora imobiliária que publicitou o imóvel e promoveu a visita do autor ao imóvel , tendo igualmente intermediado a celebração do contrato-promessa e que foi por sua causa que o autor entregou o sinal ao réu; que a prometida venda pelo promitente-vendedor de uma habitação duplex comportou para ambos os réus um dever lateral ou acessório de providenciarem pela respetiva regularização e legalização e que o facto impeditivo da concretização do contrato prometido foi a falta de legalização e/ou regularização das duas frações autónomas como habitação duplex, a qual havia sido publicitada pela ré; que ambos os réus são solidariamente responsáveis pela reparação do dano ao autor, cabendo à 2.ª ré a reparação de tal dano até ao valor do sinal em singelo; relativamente à 2.ª ré, o autor aduziu que aquela anunciou e publicitou a venda de uma habitação duplex quando bem sabia que a realidade física das duas frações não estava refletida na certidão de registo predial, na caderneta predial ou no título constitutivo de propriedade, criando no promitente-comprador a convição de que o imóvel se encontrava regularizado e legalizado, o que permitiu a celebração do contrato-promessa, sendo causa da entrega do sinal ao autor. Adiantou, ainda, que a ré não confirmou a legalidade das frações que estava a comercializar antes da celebração do contrato promessa, permitindo que o autor assinasse na convição de que as frações já estariam legalizadas.
Tendo sido convidado a concretizar os factos alegadamente praticados pela ré e que fundamentam o pedido contra ela, o autor juntou novo articulado no qual alegou que a 2.ª ré, no exercício da sua atividade, publicitou a venda do imóvel como habitação duplex e que foi a imobiliária que intermediou o negócio entre o autor e o 1.º ré que culminou na celebração do contrato promessa de compra e venda e que este contrato implicou também para a 2.º ré um especial dever lateral ou acessório de promover pela regularização e legalização do imóvel, dever que ela não cumpriu; aduziu que a 2.ª ré violou o dever de informação necessário à concretização do negócio objeto do contrato-promessa na medida em que não informou o autor, previamente à assinatura do contrato prometido, que o mesmo não estava registado, inscrito, legalizado como habitação duplex, ao contrário do publicitado. Concluiu o autor que o incumprimento do contrato-promessa se deveu também a facto imputável à 2.ª ré, sendo a sua responsabilidade solidária com a do promitente vendedor, cabendo-lhe, por conseguinte, a reparação do dano até ao valor do sinal em singelo.
Foi realizada uma audiência prévia na qual o tribunal a quo proferiu despacho saneador, pronunciou-se sobre as exceções invocadas, julgando ambas improcedentes, fixou o objeto do litígio e os temas de prova.
Realizada a audiência final, foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1.ª A sentença sub judice fez uma errada apreciação da prova produzida, relativamente à matéria constante do ponto 18 dos factos assentes (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC), tendo dado, erradamente, como assente nesse ponto que: "O A. ao obter a documentação necessária a instruir a escritura publica e ao apresentá-la junto da instituição bancária para obtenção de crédito bancário, confrontou-se com o teor dos documentos, nomeadamente certidão do registo predial e caderneta predial, constatando que a habitação não contava com sendo duplex", ponto esse que deve ser alterado.
2.ª - Dos autos constam meios probatórios que impunham decisão diferente da dada ao ponto 18 (artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC), nomeadamente o contrato promessa de compra e venda em cujas cláusulas primeira e segunda (pontos 11 e 12 dos factos assentes) está claramente previsto que o objeto da mesma eram as duas frações "AL" e "AT" correspondentes aos andares 6º-B e 7º-B, sendo certo que as regras da experiência comum, impediriam sempre que a matéria constante do ponto 18 dos factos assentes pudesse ser dada como assente, estando esta, aliás, em contradição com a constante dos pontos 11 e 12.
3.ª - De acordo com as regras da experiência comum, não pode deixar de se entender que, aquando da apresentação ao Apelado do contrato promessa de compra e venda e da sua assinatura, o Apelado não podia deixar de saber que o que ia adquirir e o que prometera adquirir eram duas frações autónoma distintas e não uma única que tivesse resultado da sua unificação.
4.ª - O depoimento da testemunha (…), cujas passagens estão acima transcritas e podem ser ouvidas aos minutos 9:31, 11:31, 12:13 e do minuto 12:54 ao minuto 136:23, é igualmente prova de quanto antecede, ou seja, que o Apelado bem sabia que o que estava a prometer adquirir eram duas frações autónomas e não uma, sendo certo que foi esta testemunha quem entregou ao Apelado, previamente à celebração do contrato promessa, a documentação relativa às frações, nomeadamente os documentos respeitantes aos dois IMIS, as duas cadernetas prediais, as plantas e a ata do condomínio de onde constava que em relação a ambas as frações não havia dívidas.
5.ª - A matéria do ponto 18, que deve ser alterada, sugerindo-se nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea c), do CPC, a seguinte redação: "Ao A. foi transmitido pela 2 a Ré, aquando da segunda visita ao imóvel, de que se tratavam de duas frações autónomas, distintas, tendo-lhe sido entregue duas cadernetas prediais, dois IMIS, as plantas e a ata do condomínio de onde constava a indicação de que respetivas despesas das duas frações estavam regularizadas".
6.ª - Entre Apelado e Apelante não foi celebrado qualquer contrato de que género seja, sendo certo que os vínculos contratuais que existiram nos presentes autos foram os constituídos entre o Apelado e o 1Réu (o vínculo emergente do contrato promessa de compra e venda) e entre ambos os Réus (o vínculo emergente do contrato de mediação), não podendo, pois, a Apelante ser condenada, como foi, a devolver ao Apelado qualquer quantia, porque este não lhe pagou, nem tinha de pagar, o que quer que seja.
7.ª - Se, por mera hipótese, o 1.º Réu fosse condenado a devolver ao Apelado a quantia correspondente ao sinal (€ 38.000,00) então, nesse caso, poderia, eventualmente, e se tivesse fundamento para tal, exercer o seu direito de regresso sobre a Apelante nada mais.
8.ª - Ao contrário do referido na sentença sub judice, a Apelante não se locupletou indevidamente com qualquer quantia do Apelado, sendo os € 22.000,00 que recebeu do 1.º Réu, o pagamento devido pela sua atividade de mediação imobiliária e pelo serviço de mediação imobiliária que prestou ao 1.º Réu, sendo certo nos termos do disposto no artigo 19 da referida Lei n.º 15/2013, a retribuição pela mediação imobiliária é devida com a conclusão da própria mediação, independentemente da conclusão do negócio visado.
9.ª - Nos termos do disposto no artigo 474.º do Código Civil, o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, com fundamento no qual a sentença sub judice condenou a ora Apelante apenas pode ter lugar, como a própria sentença sub judice refere, quando não há outra forma ou outro instituto a que se possa recorrer, não sendo tal o caso dos autos, já que, se acaso o Apelado considerava que a Apelante tinha agido de forma ilícita para consigo, teria de a ter acionado com fundamento da responsabilidade civil extracontratual (artigo 483.º do Código Civil).
10.ª - A este respeito o acórdão do STJ de 24.1.2019, proferido no proc. n.º 948/14.5TVLSB.L1:S1 diz o seguinte: "De facto, e como se sabe, a pretensão de enriquecimento sem causa tem caráter residual ou subsidiário, a significar, como explicita Almeida Costa [26] que no caso de um concreto núcleo factual preencher simultaneamente os pressupostos do enriquecimento sem causa e os de outro instituto ou norma, o empobrecido não dispõe de uma ação em alternativa; por força do princípio da subsidiariedade, consagrado na referida norma, apenas poderá recorrer à ação de enriquecimento se a lei lhe não facultar outro meio de ser indemnizado ou restituído, ou se, embora existindo ação normalmente adequada à proteção dos seus interesses, esta não puder "ser exercida em consequência de obstáculo legal", como é o caso da prescrição do direito de indemnização, ou de não poder sê-lo com utilidade, como acontece no caso de insolvência do devedor. Também Antunes [27] a propósito do caráter subsidiário da obrigação de restituir, dá conta de que na qualificação da mesma situação podem concorrer os institutos da responsabilidade civil (entre outros) e do enriquecimento sem causa, o que pressupõe que a intromissão nos bens ou direitos alheios, levada a cabo, culposamente, pelo intrometido gere para este um enriquecimento e, simultaneamente, cause um dano ao lesado. E, nesse caso, a natureza subsidiária da obrigação de restituir leva a que se deva "conceder primazia à obrigação de indemnizar" in www.dgsi.pt.
11.ª - Tendo o Apelado enquadrado na sua ação, por um lado, no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda (que manifestamente, não houve, como a própria sentença sub judice reconheceu) e, por outro (artigos 57 a 61 da p.i.), no instituto do enriquecimento sem causa, não poderia o Tribunal a quo condenar a Apelante recorrendo um qualquer outro instituto, nomeadamente ao da responsabilidade civil extracontratual, a isso estando impedido pelo princípio do dispositivo, mas isso não significa que o Apelado não pudesse ter recorrido a este instituto, nem legitima a condenação da Apelante com fundamento no enriquecimento sem causa.
12.ª - Se é verdade que o Apelado se poderia ter socorrido do instituto da responsabilidade civil extracontratual, o que não fez, também é verdade que, mesmo através deste instituto, a Apelante não podia ser condenada no pagamento ao Apelado de qualquer indemnização, por não se verificarem, nem terem sido alegados ou provados, os requisitos previstos no art 483 do Código Civil para que responsabilidade seja decretada.
13.ª - Nos termos do disposto no artigo 483.º do Código Civil, a responsabilidade extracontratual depende da verificação de um facto ilícito e culposo, praticado com dolo ou mera culpa, de que resulte um dano, tendo de haver um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o dano, não tendo, no caso dos autos, o Apelado invocado ou provado a prática pela Apelante de um facto ilícito e culposo, de um dano que tivesse decorrido desse mesmo facto ilícito e que houvesse um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.
14.ª - A Apelante não praticou qualquer facto ilícito, sendo certo que, tal como resulta dos factos assentes (ponto 3) no anúncio para venda dos imóveis dos autos, especificou claramente que se tratavam de "2 apartamentos completamente remodelados e transformados em T3 duplex. Com entradas independentes (...)", (ponto 5) o pai do A. em visita efetuada pôde constatar "que o imóvel – publicitado como duplex – compunha-se de dois andares, ligados entre si por escada interior, (pontos 11 e 12) as Cláusula primeira e Segunda do Contrato promessa identificavam claramente as duas frações como sendo objeto do mesmo contrato, e (pontos 25 e 26) as duas frações AL e AT foram posteriormente vendidas a (…).
15.ª - Qualquer homem médio, ou declaratário normal, colocado na posição do Apelado não teria razoavelmente tido dúvidas quanto ao que estava a prometer adquirir (artigo 236.º do Código Civil), ou seja, que eram duas frações autónomas e não apenas uma.
16.ª - Acresce que o contrato promessa não foi revisto apenas pelo Apelado, foi-o também por quem o Apelado entendeu que o devia rever, tendo, aliás, na sequência dessa revisão, sido solicitada a introdução de uma alteração, não tendo a Apelante incumprido quaisquer deveres que sobre ela impediam, nomeadamente os deveres que a sentença sub judice indica, constantes do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, nomeadamente das alíneas b) e c).
17.ª - A Apelante não publicitou, sem mais, que o imóvel em causa fosse um duplex, mas publicitou igualmente que tal imóvel era constituído por duas frações autónomas interligadas entre si, e a verdade é que as duas frações estavam interligadas entre si por uma escada interior e do ponto de vista fáctico era efetivamente um duplex.
18.ª - As duas referidas frações autónomas eram transacionáveis e suscetíveis de serem objeto de comércio jurídico, tanto mais que foram vendidas de seguida a um terceiro, como consta dos pontos 25 e 26 dos factos assentes e já tinham sido transacionadas quando haviam sido adquiridas pelo 1.º Réu (cfr. ponto 27 dos factos assentes).
19.ª - Acresce que não foi alegado, nem provado que previamente à celebração do contrato-promessa, o Apelado tenha alertado a Apelante para o facto de que teria de recorrer ao crédito bancário para efetuar a aquisição ou da essencialidade para o Apelado e para a formação da sua vontade de contratar que obtivesse crédito bancário, não podendo ser razoavelmente assacada responsabilidade à Apelante pelo facto Banco não ter alegadamente aprovado o crédito bancário ao Apelado.
20.ª - A compra de um imóvel é para qualquer pessoa média um negócio de sobeja importância, que não pode ser tratado de forma leviana ou pouco cuidadosa, pelo que o Apelado tinha a obrigação de se assegurar, previamente à assinatura do contrato promessa, de que tinha capacidade para o cumprir. Se o não fez, tal deve-se exclusivamente a culpa sua e não de terceiros e, muito menos, da Apelada.
21.ª - Da mesma forma, a Apelante não agiu, com dolo ou mera culpa, já que o Apelado não podia deixar de saber que estava a prometer comprar duas frações autónomas, sendo isso mesmo que constava do contrato promessa que assinou, não havendo igualmente nexo de causalidade entre a atuação da Apelante e o alegado dano do Apelado, uma vez que tal alegado dano se deve exclusivamente a culpa deste último.
22.ª - A sentença sub judice, é, pois, ilegal, porque, além de ter feito uma errada apreciação da prova (artigo 607.º, n.º 5, do CPC), violou, entre outras, as normas constantes dos artigos 474.º e 236.º do Código Civil, devendo ser revogada e substituída por outra decisão que julgue a presente ação totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a Apelante de todos os pedidos.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, a sentença sub judice revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente por provada, absolvendo a Apelante dos pedidos.

Assim se fará JUSTIÇA!».

I.3. Na sua resposta às de recurso, o apelado defendeu a improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões.

«A) Vem a Ré, ora Recorrente, recorrer da Douta sentença proferida pelo “Tribunal a quo, de 27.1.2023, que julgou parcialmente procedente a ação intentada pelo Autor, ora Apelado, e que condenou a ora Apelante no pagamento àquele da quantia de € 22.000,00, fundamentando essa condenação no instituto do enriquecimento sem causa. Alegando que o Tribunal a quo não só fez uma errada apreciação da prova produzida, como fez um não menos errada aplicação do Direito, ao ter condenado a Apelante no pagamento da referida quantia, a título de enriquecimento sem causa”;

B) Ora, não se almeja como a Mm.ª Juíza a quo tenha feito uma errada apreciação da prova produzida relativamente à matéria do Ponto 18 dos factos dados por assentes – vide Ponto 18: «O A. ao obter a documentação necessária a instruir a escritura pública e ao apresentá-la junto da instituição bancária para obtenção de crédito bancário confrontou-se com o teor dos documentos, nomeadamente certidão de registo predial e caderneta predial, constatando que a habitação não constava como duplex»;

C) Resulta à evidência da redação do Ponto 18, que o A. apenas naquele momento (e não na data da assinatura do contrato de compra e venda) constatou que a realidade física do imóvel – antecipadamente conhecida – não estava refletida na documentação necessária a instruir a escritura pública e o empréstimo bancário;

D) E muito bem andou a Mm.ª Juíza a quo, quando concluiu:
«Compulsados os autos porém resulta que o publicitado era um duplex constituído por duas
frações interligadas e transformadas num T3, fazendo depois a descrição do que existia em
cada piso, logo não pode (…) nem (…) promotora imobiliária que promoveu o contacto entre o pai do A. e o 1.º R. pretenderem que promoveram a venda de duas fracções mas sim de um duplex composto por duas frações interligadas, aliás pela própria testemunha (…) foi explicado que é mais benéfico e atrativo em termos comerciais promover a venda de um duplex. Sendo que por (…) foi esclarecido que pela mesma foi indagado diretamente junto do 1.º R. se este quereria vender o apartamento, tendo a 2ª R. promovido assim a venda deste duplex e a venda da fração do A., no entanto não conseguiram atempadamente vender a fração do A. e tornou-se necessário o A. recorrer ao empréstimo. Mais esclareceram (…) e (…) que o contrato foi elaborado por este último e que foi mostrado ao A. tendo sido aditada a cláusula 8ª a pedido do A. por indicação de uma familiar. E que quando se tornou necessário recorrer ao crédito, o qual foi negado pelo banco pela discrepância entre a realidade registral e a composição das frações, até acompanharam o A. e o seu pai ao (…) Banco que é a instituição com que normalmente trabalham mas também não foi possível concessão de empréstimo. O que foi igualmente confirmado pela testemunha (…) que também os acompanhou ao (…) Banco. Tendo pela testemunha (…) sido referido que tudo fizeram para ajudar o sr. (…) e o filho mas que não foi possível realizar este negocio o que muito lamentava e que nada mais poderiam ter feito para os ajudar e mesmo quanto à devolução do dinheiro o R. (…) não estava na disposição de devolver a quantia que recebeu, por isso não foi o dinheiro devolvido ao Autor.»
E) Resultando evidente do depoimento de (…), não só a publicitação da venda de T3 duplex, como também, que nas cadernetas prediais originais não consta nem a realidade física de um imóvel T3, nem em cada uma delas considerada, representa a realidade física de cada uma das frações originais – tendo afirmado que a fração do andar inferior (6.º andar) não tem cozinha;
F) Efetivamente, o momento relevante para aferir da conformidade dos documentos de identificação da fração (certidão de registo predial e caderneta predial), seria sempre o da
outorga da escritura pública do contrato prometido e não desconhecendo a R. e ora Recorrente, do recurso a empréstimo bancário, o A. e ora Recorrido foi no momento da recusa do empréstimo bancário e, consequentemente, da impossibilidade de marcar a escritura, pela falta de correspondência entre a realidade fáctica e a realidade registral do duplex, que conheceu daquela discrepância;
G) Não sendo imputável ao A. e ora Recorrido a não marcação da escritura, pois não lhe foi
possível recorrer ao empréstimo bancário única e exclusivamente por desconformidade da
documentação com a realidade física do imóvel, designadamente pela falta de alteração do
título da propriedade horizontal, que incumbia ao promitente vendedor;
H) Razão pela qual, a Mm.ª Juiz a quo concluiu que a não devolução da quantia entregue pelo A. e ora Recorrido a título de sinal de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa;
I) Pelo que, deverá improceder a alegação de que decisão a quo andou mal ao ter dado como assente a matéria do Ponto 18, devendo assim improceder o pedido de alteração da redação do mesmo;
J) Vem a Ré e ora Recorrente ainda invocar que:
“A Apelante não podia ser condenada, como foi, a devolver ao Apelado qualquer quantia, porque este não lhe pagou, nem tinha de lhe pagar, o que quer que seja, tendo, ao invés, o
Apelado pago ao 1.º Réu o sinal de € 38.000,00 e tendo apenas a possibilidade de unicamente em relação a este pedir a devolução de tal sinal”;
K) Ora, não assiste qualquer razão à Ré e ora Recorrente, pois:
«Sucede, porém, que pelo A. foi efetivamente entregue ao R. o montante de € 38.000,00 e
desse valor foi entregue a quantia de € 22.000,00 à R. e € 16.000,00 ficaram na posse do 1º R. sendo que a nosso ver nada há que sustente a não devolução dessa quantia ao A. ficando os RR. com tal quantia quando não se concretizou a venda nos termos e pelas razões supra
enumeradas. Constituindo a não devolução de tal quantia pelos RR ao A. uma situação de enriquecimento sem causa»;
L) Aliás, é a testemunha (…) quem confirma que se o negócio não se fizesse o valor entregue pelo promitente comprador ser-lhe-ia devolvido: “A gente não vamos meter o dinheiro nas mãos do proprietário, porque se eles estão a recorrer a crédito bancário, é melhor o dinheiro vir para a nossa conta, porque se isto correr mal nós devolvemos o dinheiro” [minuto 19:21 da gravação com início em 11:46:53 e fim em 12:37:47];
M) Com efeito, é a R. e ora Recorrente que confessa o facto de se ter de devolver o dinheiro ao aqui Autor e ora Recorrido, por uma venda não concretizada, e por isso injustificado o seu recebimento;
N) Resultando evidente que ambos os RR. se locupletaram com valores que bem sabiam não ter justificação para tal;
O) Estatui o artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” e o n.º 2 que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”;
P) Resultando, desde logo, da factualidade provada que ocorreu enriquecimento dos RR pela entrega ao R. pelo A. de € 38.000,00 tendo este ficado com o montante de € 16.000,00 e entregue o montante de € 22.000,00 à R. como comissão;
Q) Não colhendo a justificação dada pela R. e ora Recorrente de que estavam a vender duas
frações conforme consta no contrato promessa e que nada mais tinham que transmitir ao A. para além do que anunciaram e mostraram ao A.;
R) Pois, as obrigações inerentes ao exercício da atividade de mediação imobiliária não se encerram na relação mediadora/cliente mas abarcam também os destinatários do serviço de mediação imobiliária;
S) Aliás, da factualidade provada constata-se que a R. e ora Recorrente não procedeu em conformidade com a obrigação a que está adstrita e que consta das alíneas b) e c) do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, supra mencionada, na medida em que: - Não se certificou da correspondência entre as características do imóvel e as que publicitou, nomeadamente pela consulta das cadernetas prediais e titulo constitutivo da propriedade horizontal dado que estava ciente de que mediava a compra e venda de um composto por duas frações que haviam sido intervencionadas e unidas formando o duplex, conforme a própria R. e ora Recorrente anunciou, não podendo alhear-se da realidade construtiva e registral dos bens cuja venda mediou;
T) Facto confirmado pela testemunha da R. e ora Recorrente (…) quando diz que sempre anunciaram a venda de «2 apartamentos interligados e transformados em duplex, estava assim comercializado (...) porque essa era a realidade» [minuto 20:56 da gravação com início em 11:46:53 e fim em 12:37:47];
U) Não podendo pois, considerar-se, como defendido pela Ré e ora Recorrente, que realizou a sua prestação como promotora imobiliária cabendo-lhe o direito de receber a comissão;
V) Se cabia ao R. (…) ter feito a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e subsequente retificação registral das frações transformadas em duplex T3 , cabia à R. e ora Recorrente ter verificado a correspondência das características do imóvel cuja venda promovia com os elementos documentais que o identificam;
W) Logo, não o tendo feito, inviabilizou a concretização do negócio, deixando de ter título que justifique o recebimento de um valor que deve ser devolvido ao A. e ora Recorrido, independentemente da inexistência de cláusula que condicione a celebração de escritura à
concessão de empréstimo bancário, uma vez que a não concessão de empréstimo bancário
não é imputável ao A., inexistindo outro instituto jurídico a que possa recorrer para obter a
devolução da referida quantia;
Y) Pelo supra exposto, deve manter-se a douta sentença recorrida por conter uma correta
apreciação dos factos dados por provados e uma correta aplicação do direito aos mesmos;
Z) Devendo assim, o presente Recurso improceder.
Termos em que, deve ser rejeitado o presente recurso, por não assistir razão à Recorrente, mantendo-se a Douta Sentença recorrida,
Condenando-se a Recorrente nas custas.
Com o que farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!».

I.4.
O Ministério Público não apresentou resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Saber se ocorreu erro de julgamento de facto.
2 – Saber se ocorreu erro de julgamento de direito.

II.3.
FUNDAMENTAÇÃO
II.3.1.
FACTOS
II.3.1.1.
Factos provados
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1 - Em 29.09.2019, estava inscrita a favor do A. a aquisição das frações autónomas designadas pelas letras “AT” e ”AL”, correspondentes aos 7º-B e 6º-B, respetivamente, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Av. dos (…) e Rua (…), da freguesia de … e concelho de Sesimbra.

2 - A 2.ª Ré (..) – Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., no exercício da atividade, foi a empresa que publicitou a venda das frações descritas no artigo anterior como «Duplex à venda em (…)-Sesimbra; 143 m2 construídos, 120m2 úteis, T3, 3 casas de banho, Lugar de garagem incluído no preço, armários embutidos, prédio com elevador, ar condicionado, piscina, (…)».

3- E como «Comentário do anunciante “2 apartamentos completamente remodelados e transformados em T3 Duplex. Com entradas independentes. Sala em open-space com cozinha completamente equipada; 3 quatros, um deles em suite, 3 casas de banho; Todas as divisões com ar condicionado; 2 varandas com vista mar, 3 garagens box, primeira linha de praia, acesso fácil, a 30 metros da praia do ouro em Sesimbra.”.

4 - (…), pai do A. realizou com (…), no (…), diretor da 2ª R. uma visita ao imóvel.
5 - (…) constatando que o imóvel – publicitado como duplex – compunha-se de dois andares, ligados entre si por escada interior, sendo o piso superior, composto por sala, cozinha, terraço e uma casa de banho e o piso inferior por quartos e casas de banho.
6 - A composição e a distribuição interior do imóvel duplex aliadas à localização geográfica e ao preço de venda do imóvel, transmitidas pelo pai do A. e verificadas mais tarde pelo A. que se deslocou ao apartamento com o seu pai, determinaram a formação da vontade do aqui Autor em adquirir tal habitação.

7 - Após o que, (…) apresentou, em 20.09.2019, ao Autor o documento “Reserva de Compra”, pretendendo com o mesmo assegurar a entrega pelo A. a título de reserva e princípio de pagamento da compra do valor de € 38.000,00 correspondente a 10% do valor da compra (€ 380.000,00).

8 - Documento que o Autor não aceitou e não assinou.

9 - A 2.ª Ré vem a estabelecer o contacto entre o Autor e o proprietário da habitação, para efeitos de celebração de um contrato promessa de compra e venda.

10 - Nessa sequência, o Autor veio a assinar, em 29.09.2019, o contrato promessa de compra e venda com o 1.º Réu (…), representado naquele ato por Anabela de Figueiredo Vicente Almeida, na qualidade de procuradora, conforme Procuração exibida para o efeito.

11 - Resulta de tal contrato que: «Cláusula primeira – A Primeira Outorgante é única e legítima proprietária e legítima proprietária e possuidora das frações “AL” e “AT” para habitação, sitas na Av. dos (…), Edifício (...), Lote 1, (…), 6º-B e 7º-B, 2970-637 Sesimbra, na freguesia de Sesimbra (…), Concelho de Sesimbra, inscritos na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob n.º (…) e com a autorização de utilização n.º (…), emitida pela Camara Municipal de Sesimbra em (…)».

12 - (…) «Cláusula segunda – Pelo presente contrato a Primeira Outorgante promete vender ao Segundo Outorgante e este promete comprar o imóvel identificado na cláusula anterior livre de qualquer ónus ou encargos».

13- O Autor obrigou-se a comprar pelo preço de € 380.000,00 a liquidar do seguinte modo:

14- (…) «Cláusula quarta – No ato da assinatura deste Contrato, o Segundo Outorgante entrega à Primeira Outorgante o valor de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), por transferência bancária para a conta IBAN: (…), com o (…)/(…): em nome da Primeira Outorgante do Banco».

15- (…) «Cláusula quinta – Na data da realização da escritura pública de compra e venda o Segundo Outorgante pagará à Primeira Outorgante o remanescente do preço, cujo valor é de € 342.000,00 (trezentos e quarenta e dois mil euros) através de cheque bancário em nome da Primeira Outorgante ou, por qualquer outro meio».

16- Nos termos acordados, o Autor efetuou o pagamento de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, ao 1.º Réu, por meio de transferência bancária para a conta bancária identificada no contrato.

17- Da Cláusula Sexta do contrato referido em 12) resulta que «a) a escritura pública de compra e venda será outorgada até dia 30 de Dezembro de 2019 em nome do Segundo Outorgante; b) Será da responsabilidade do Segundo outorgante a sua marcação assim como a comunicação à Primeira Outorgante da data, hora e local onde a mesma irá ter lugar, através de carta registada com aviso de receção a remeter para a morada referida neste contrato como residência ou por qualquer outro meio de comunicação aceite entre as partes, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias; c) Até essa data e sempre que tal seja solicitado deverá a primeira Outorgante fornecer ao Segundo Outorgante toda a documentação necessária à efetivação da mesma, bem assim como cópias dos seus documentos de identificação pessoal».
18 - O A. ao obter a documentação necessária a instruir a escritura publica e ao apresentá-la junto da instituição bancária para obtenção de crédito bancário confrontou-se com o teor dos documentos, nomeadamente certidão de registo predial e caderneta predial, constatando que a habitação não constava como duplex.

19- A habitação em causa, que fisicamente corresponde a um duplex, não tinha sido objeto de qualquer tipo de regularização junto do Condomínio, Câmara Municipal competente, Serviço de Finanças ou Conservatória do Registo Predial.

20- (…) tendo sido realizadas alterações nas frações que constituem a habitação duplex, ao nível da sua tipologia e outras, mas não tendo o 1.º Réu diligenciado pelos respetivos registos, averbamentos e/ou licenciamentos.

21- Situação que veio a ser aferida pelo Banco (…), entidade bancária junto da qual o Autor solicitou empréstimo para aquisição da habitação em causa, e viu ser recusado com esse fundamento.

22- O Autor enviou ao 1.º Réu, na pessoa da sua representante e procuradora (…), carta registada com aviso de receção remetida em 10.12.2019, de onde consta que «as frações em causa sofreram alterações (tipologia e outras) que não se encontram registadas e/ou licenciadas. Tal facto, da única e exclusiva responsabilidade do proprietário, aqui promitente vendedor, é impeditivo de concretização do contrato prometido (….) Deste modo, considerando-se para todos os efeitos por não cumprida a obrigação do promitente vendedor, tendo o direito potestativo de resolução do contrato promessa de compra e venda e, em consequência, exigir que me seja devolvido, no prazo máximo de 15 dias, o sinal que já entregámos (€ 38.000,00) acrescido de igual quantia, o que perfaz um total de € 76.000,00 (setenta e seis mil euros)».

23- Na ausência de qualquer notícia, veio ainda, em 27.01.2020, o Autor a reiterar o teor dessa carta por mail endereçado ao 1.º Réu, obtendo uma resposta pela mesma via, de onde consta «Infelizmente a maioria do dinheiro está com (…) e eles não querem devolver. Então eu não posso devolver o que não tenho».
24- Do valor de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), pago pelo A. a título de sinal, foram entregues à 2ª R. € 22.000,00, a título de comissão, ficando o 1.º R. com os restantes € 16.000,00.

25- O 1.º Réu colocou a habitação, objeto dos presentes autos e do contrato-promessa supra referido, à venda numa outra imobiliária (…), e quem promoveu e mediou esse negócio foi essa outra agência imobiliária que não a 2.ª Ré.

26- Tendo sido vendidas as frações “AL” e “AT” a (…) e (…), conforme registo datado de 14.02.2020.

27- A aquisição das frações AL e AT pelo 1.º Réu mostra-se registada em 26.11.2016.

28- Da cláusula 8 do contrato promessa resulta que «O incumprimento do presente contrato implica, nos termos legais, a restituição do sinal em dobro ou a perda do mesmo, caso o incumprimento seja imputável à primeira Outorgante ou ao segundo outorgante, respetivamente, sem prejuízo do recurso ao direito à execução especifica nos termos do artigo 830.º do Código Civil».

II.3.1.2.
Factos não provados
O tribunal de primeira instância julgou não provado que foi entregue à 2ª Ré pelo 1.º Réu a totalidade da quantia de € 38.000,00.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Impugnação da decisão de facto

Nesta sede, a apelante impugna o facto provado n.º 18 que tem a seguinte redação: «O A. ao obter a documentação necessária a instruir a escritura publica e ao apresentá-la junto da instituição bancária para obtenção de crédito bancário confrontou-se com o teor dos documentos, nomeadamente certidão de registo predial e caderneta predial, constatando que a habitação não constava como duplex».

Defende a recorrente que o julgador a quo fez «uma errada apreciação da prova produzida» relativamente à matéria constante do ponto de facto em apreço; concretamente, alegou que o contrato promessa de compra e venda identifica como objeto da compra e venda duas frações autónomas correspondentes aos andares 6º-B e 7º-B, pelo que o autor «sabia o que ia adquirir» e que o que prometeu adquirir foram duas frações autónomas distintas e não uma única que tivesse resultado da unificação daquelas outras, pelo que «não é razoável entender, como fez a sentença sub judice, que o autor apenas tomou conhecimento de que as duas frações em causa não estavam juridicamente unidas numa só aquando da obtenção da documentação para instrução da escritura pública e da sua apresentação no banco» (sic). Aduz a apelante que o depoimento da testemunha (…) conjugado com o texto do contrato-promessa e com as regras da experiência, impediriam que a matéria constante do ponto 18 dos factos assentes pudesse ser dada como assente. Propõe a recorrente que a redação deste ponto de facto passe a ser a seguinte: «Ao autor foi transmitido pela 2.ª ré, aquando da segunda visita ao imóvel, de que se tratavam de duas frações autónomas, distintas, tendo-lhe sido entregue duas cadernetas prediais, dois IMIs, plantas, a ata do condomínio de onde constava a indicação de que respetivas despesas das duas frações estavam regularizadas».

Vejamos.

Liminarmente se dirá que está implícito no facto provado n.º 18, tal como julgado pelo tribunal de primeira instância, que terá sido apenas quando obteve a documentação necessária para a instrução da escritura pública e ao apresentá-la junto da instituição bancária que o autor terá constatado ou tomado conhecimento da discrepância entre a configuração física da habitação que se propunha adquirir e a sua situação jurídica tal como resultava da certidão de registo predial e da caderneta predial, ou seja, que a habitação era constituída por duas frações autónomas e não apenas por uma única resultante da unificação de dois apartamentos. Porém, e como bem refere a apelante, no contrato promessa outorgado entre o autor e o 1.º réu, e que o primeiro assinou, está perfeitamente identificado o objeto do prometido negócio de compra e venda, a saber, duas frações autónomas (distintas) correspondentes ao 6º-B e 7º-B do edifício (…), lote 1, sito em (…), Sesimbra, e que a mera leitura do contrato promessa – não resultando dos autos que o autor não o tenha feito ou que não tenha tido a possibilidade de o fazer – permitia ao apelado verificar que o objeto da prometida compra e venda não era uma única fração autónoma resultante da unificação de duas frações autónomas. Por conseguinte, não é razoável presumir que só quando confrontado com os documentos relativos às duas frações é que o autor teria ficado a saber que o imóvel prometido vender pelo 1.º réu eram juridicamente duas frações autónomas. Ademais, ouvido o depoimento de (…) – do qual resulta que foi ele quem fez a primeira visita ao imóvel publicitado pela ré e quem, posteriormente, levou o autor a visitá-lo e que foi também com ele que foram entabuladas as negociações com vista à concretização do negócio de compra e venda em causa nos autos – o mesmo nunca afirmou que foi apenas quando viu os documentos que lhe foram entregues pela ré (nada tendo referido a propósito do momento em que recebeu os ditos documentos) que constatou que «a habitação não constava como duplex». O que ele disse foi que pediu os documentos para mostrar ao Banco e que o Banco não lhe emprestou o dinheiro por causa do andar inferior «que estava todo ilegal». Tudo considerado, julgamos não se poder manter a redação do ponto de facto provado n.º 18 tal como julgado pelo tribunal recorrido.

Contudo, também não pode proceder a alteração proposta pela apelante, desde logo porque a factualidade que aquela pretende introduzir na redação do ponto de facto provado n.º 18 não se mostra abrangida pelo poder de cognição do tribunal em termos de matéria de facto na medida em que não foi alegada pela ré nos seus articulados. Com efeito, a ré nunca contrapôs aos factos alegados pelo autor os factos que agora pretende ver transpostos para o elenco dos factos provados, factualidade que não pode, tão pouco, ser considerada complementar ou concretizadora de qualquer outra que tivesse sido por ela alegada em sede de contestação e que por força do disposto no artigo 5.º/2, do CPC pudesse vir a ser considerada pelo tribunal. Em síntese, tal factualidade escapa ao espectro dos factos abrangidos pelo poder de cognição do tribunal em matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 5.º/2, do CPC, pelo que não pode ser conhecida pelo tribunal. De todo o modo sempre se dirá que embora a testemunha (…) tenha declarado que ela própria entregou ao sr. (…), aquando da segunda visita deste ao imóvel, as cadernetas prediais e as plantas relativas a ambas as frações e uma ata de condomínio comprovativa da regularização das quotas do condomínio, tudo antes da celebração do contrato, este segmento das suas declarações foi contrariado pelo depoimento da testemunha (…), que revelou ter conhecimento fundamentado dos factos em apreço e depôs de forma que nos pareceu isenta e, por isso, credível, afirmando que os documentos relativos ao imóvel ainda não tinham sido facultados aquando da assinatura do contrato promessa.
Tudo considerado, julga-se parcialmente procedente a impugnação da decisão de facto e, em conformidade, decide-se que a redação do ponto de facto provado n.º 18 passará a ser a seguinte: «O A. obteve a documentação necessária a instruir a escritura publica e apresentou-a junto da instituição bancária para obtenção de crédito bancário».

II.4.2.

Reapreciação da decisão de mérito

O tribunal recorrido julgou procedente o pedido de condenação dos réus no pagamento ao autor do valor de € 38.000,00, equivalente ao valor do sinal entregue pelo autor/apelado ao 1.º réu, cabendo à 1.ª ré (ora recorrente) pagar € 22.000,00 e ao 1.º réu (promitente-vendedor) o valor remanescente, ou seja, € 16.000,00.
No presente recurso o que está em causa é, apenas, a condenação da ré/apelante no pagamento ao autor do valor de € 22.000,00, pois que o 1.º réu não recorreu da sentença que o condenou a pagar o montante de € 16.000,00 (correspondente a uma parte do montante que lhe foi entregue a título de sinal por força do contrato promessa de compra e venda outorgado entre o autor e o 1.º réu), pelo que a sentença, no que à condenação do 1.º réu respeita, transitou em julgado.
O tribunal recorrido fundou a condenação de ambos os réus no instituto do enriquecimento sem causa. Extrai-se da sentença o seguinte segmento fundamentador da condenação da ré: «(…) ao réu vendedor cabia ter feito a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e subsequente retificação registral das frações transformadas em duplex T3 e à ré cabia ter verificado a correspondência das características do imóvel cuja venda promovia com os elementos documentais que o identificam, não tendo o réu comprovado que o tenha feito, sendo certo que a ré promoveu a venda de um bem nestas condições, anunciando como duplex (o que a beneficia em termos comerciais) e referindo na descrição do produto que são dois apartamentos completamente remodelados e transformados em T3 duplex e, afinal, o A. não conseguiu obter o empréstimo e realizar a compra pelas faltas cometidas pelos réus, tendo pago o montante de € 38.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento, logo não se mostra justificado o recebimento pelos réus de tal montante, tendo o Autor direito à devolução do valor entregue aos réus não obstante a inexistência de cláusula que condicione a celebração da escritura à concessão de empréstimo bancário, uma vez que a não concessão de empréstimo bancário não é imputável ao autor, inexistindo outro instituto jurídico a que se possa recorrer para obter a devolução da referida quantia. Assim, pelo exposto, está a ré obrigada pelas regras do enriquecimento sem causa a devolver os € 22.000,00 confessadamente recebidos com este negócio e o 1.º réu está obrigado a devolver os restantes 16 mil euros, perfazendo assim a totalidade dos € 38.000,00 devidos ao autor».
A apelante insurge-se contra a sua condenação, defendendo a revogação da sentença e a substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente, absolvendo-a do pedido de condenação no pagamento ao autor do valor de € 22.000,00. Estriba a sua pretensão recursiva nos seguintes argumentos: atento o disposto no artigo 474.º do Código Civil o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa apenas pode ter lugar quando não há outra forma ou outro instituto a que se possa recorrer e, no caso concreto, «se acaso o apelado considerava que a apelante tinha agido de forma ilícita para consigo, teria de a ter acionado com fundamento em responsabilidade civil extracontratual (artigo 483.º do Código Civil)» (sic); não se pode recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa apenas por não haver factos que justifiquem a condenação nos termos do artigo 483.º do Código Civil, mas tão só quando a lei não faculte outro meio para obter ressarcimento; de qualquer modo, tendo o apelado enquadrado a ação por um lado no incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda (que não houve) e por outro no instituto do enriquecimento sem causa, não poderia o tribunal a quo condenar a apelante recorrendo a um qualquer outro instituto, sob pena de violação do princípio do dispositivo; não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483.º do Código Civil. Em síntese, a apelante defende que não pode ser condenada no pagamento ao autor da quantia de € 22.000,00 quer com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa atenta a subsidiariedade do instituto, quer com fundamento em responsabilidade extracontratual porque para além de não estarem verificados os respetivos pressupostos, a condenação da ré a esse título constituiria uma violação do princípio do dispositivo (já que o autor enquadrou a sua ação por um lado no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda e por outro no instituto do enriquecimento sem causa).

Apreciando.

É consabido que por força do princípio do dispositivo a causa de pedir tal como configurada pelo autor não pode ser alterada pelo tribunal.
Princípio que postula que a vontade relevante e decisiva no processo é a das partes, é a elas que incumbe a decisão sobre a instauração do processo[1], não podendo o tribunal substituir-se a elas nesse domínio (artigo 3.º/1, do CPC) e é também a elas que incumbe delimitar o objeto do processo. Quanto a esta última vertente do princípio do dispositivo – aquela que ora releva – há que distinguir entre a formulação do pedido e a alegação dos factos necessários para que o tribunal profira uma decisão; relativamente ao pedido, são as partes – em especial o autor e reconvinte (quando existir reconvenção) – que o delimitam e fixam livremente. E, por isso, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que for pedido pela parte, sob pena da sua nulidade (artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC)[2]. Quanto à causa de pedir, é às partes que incumbe alegar, nos respetivos articulados, os factos principais, ou seja, aqueles que integram a causa de pedir, fundando o pedido (a cargo do autor) e os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (a cargo da contraparte). E o juiz não pode considerar na decisão factos principais diversos dos alegados pelas partes (em articulado ou em resultado da instrução da causa).
Já no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, o tribunal não está limitado pela alegação das partes. Justamente a este propósito dizem João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa[3] que «o tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável (…), tanto à admissibilidade do processo, como à admissibilidade e validade dos atos processuais, como ainda à apreciação do mérito da causa. Deste postulado decorrem três corolários:
- Um de carácter negativo: o tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo por um acordo destes) quanto ao direito aplicável na decisão da causa; daí que o tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes;
- Um outro igualmente de carácter negativo: as partes não podem afastar a aplicação pelo tribunal das regras de carácter imperativo, apesar de, naturalmente, poderem dispor das regras de natureza supletiva através de estipulações que as substituam; (…)
- Finalmente, um outro de carácter positivo: o tribunal deve analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais; este dever de esgotamento das qualificações jurídicas é, em regra, irrelevante quando a ação proceder, porque para o autor é, em princípio, indiferente o fundamente dessa improcedência, mas é sempre relevante quando a ação houver de ser julgada improcedente porque, nesse caso, há que esgotar todas as possibilidade de procedência da ação» (negritos nossos).
Sublinha-se que «o conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo, ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objeto do processo»[4].
Aqui chegados, vejamos em que termos o autor estruturou a sua ação.
Na petição inicial, o autor formulou os seguintes pedidos:
1) Declarar-se resolvido o contrato-promessa por cumprimento definitivo imputável ao 1.º réu e a condenação do mesmo no pagamento ao autor de uma indemnização, nos termos do artigo 442.º/2, do Código Civil, no valor total de € 76.000,00;
2) Subsidiariamente, a condenação solidária dos dois réus, ou caso assim não se entenda apenas do 1.º réu, no pagamento de € 38.000,00 ao autor;
3) Em qualquer caso, a condenação solidária dos réus, ou caso assim não se entenda, apenas do 1.º réu, no pagamento das despesas não documentadas e honorários com o patrocínio da ação, em valor nunca inferior a € 3.500,00 e nas custas judiciais e demais encargos legais resultantes da propositura da ação.
Assim, relativamente à ré/apelante, e para o que ora releva [pois que os únicos pedidos dirigidos à ré foram os acima mencionados sob os n.ºs 2) e 3) e a mesma foi absolvida do pedido referido supra em 3)], foi peticionada a sua condenação solidária no pagamento de € 38.000,00 (e apenas se não procedesse o pedido principal formulado apenas contra o 1.º réu, o promitente vendedor).
Ora se no que respeita ao 1.º réu o autor funda aquele pedido subsidiário no instituto do enriquecimento sem causa [alegando que tendo o contrato promessa sido resolvido por incumprimento imputável ao 1.º réu, «deixou de existir causa justificativa para o recebimento por parte deste do valor de € 38.000,00 e nessa medida o 1.º réu sempre teria a obrigação de restituir aquele valor, devendo ser condenado no pagamento de € 38.000,00 ao autor» (vide artigos 57.º a 60.º da PI)], já no que respeita à 2.ª ré (ora apelante) o autor alegou o seguinte: «foi a 2.ª ré quem promoveu a venda do imóvel, que não se concretizou, também por culpa sua, quando anuncia e publicita a venda de uma habitação duplex, gerando expectativas e criando a convicção no promitente comprador, aqui autor, que tal imóvel se encontrava regularizado e legalizado, quando bem sabia que publicitava um duplex a que correspondiam duas frações autónomas interligadas entre si por escada colocada no seu interior, sem que tal realidade estivesse refletida na certidão de registo predial, caderneta predial ou no título constitutivo da propriedade horizontal. Isto é, resultando numa publicitação enganosa!» (cfr. artigos 62.º, 63.º, 64.º e 65.º da PI).
No seu articulado de aperfeiçoamento da PI (onde, a convite do tribunal a quo, especificou os factos que fundamentam o pedido deduzido contra a 2.ª ré) o autor alegou ainda que:
- «(…) a 2.ª ré foi a mediadora imobiliária que intermediou o negócio entre o autor e o 1.º réu, que culminou na celebração do contrato-promessa de compra e venda, pelo qual o autor entregou o sinal ao 1.º Réu» (artigo 10.º);
- «(…) a prometida venda pelo promitente vendedor – aqui 1.º réu – da habitação duplex em causa, tendo intervenção de imobiliária, a aqui 2.ª ré, implicou para esta um especial dever lateral ou acessório de promover pela regularização e legalização do imóvel. Entendendo o A. que a 2.ª ré violou este específico dever» (artigos 11.º e 12.º);
- E, ainda, violou o dever de informação necessário à concretização do negócio objeto do contrato (…). Ambos os réus bem sabiam, que àquelas duas frações (objeto do contrato promessa) correspondia na realizada a habitação duplex em resultado das profundas e substanciais obras realizadas nas mesmas. E, ainda, bem sabiam os réus, em especial a 2.ª ré, que tais obras não haviam sido legalizadas e/ou regularizadas como habitação duplex correspondente à realidade física do imóvel, ao contrário, do que a 2.ª ré publicitara»;
- «Nem tão pouco a 2.º Ré informou o aqui Autor, previamente à assinatura do contrato-promessa de compra e venda, da situação real jurídica do imóvel, isto é, que o mesmo não estava registado, inscrito, legalizado como habitação duplex, ao contrário do publicitado. (…). E em consequência determinou o incumprimento definitivo de tal obrigação (…)»;
- «Sendo a responsabilidade da 2.º ré solidária com a do promitente vendedor (1.º Réu), cabe a esta a reparação do dano ao autor, até ao valor do sinal em singelo. Razão pela qual o A. reclama para si o pagamento de indemnização correspondente ao valor do sinal pago, de € 38.000,00».
Por aqui se vê que naquilo que respeita à ré/apelante o autor não estruturou o pedido contra ela deduzido no instituto do enriquecimento sem causa, mas sim no instituto da responsabilidade civil quer por a ré não ter diligenciado pela harmonização do título da propriedade horizontal, do registo e da inscrição predial dos imóveis objeto do contrato com a realidade física dos mesmos (transformados num único apartamento ligadas entre si por uma escada interior), quer por ter publicitado o imóvel de forma enganosa, quer ainda por não ter comunicado ao autor, antes da assinatura do contrato-promessa, a discrepância entre a realidade física das frações e a sua situação registral, predial e constante do título constitutivo da propriedade horizontal.
Ainda que nos pareça que o autor enquadrou a conduta da ré na responsabilidade civil contratual sempre se dirá que uma eventual condenação da ré por força do instituto da responsabilidade civil extracontratual não beliscaria o princípio do dispositivo[5]. Como já se referiu, no âmbito da matéria de direito o tribunal tem liberdade para qualificar a matéria de facto alegada pelas partes ou adquirida no processo, podendo corrigir uma deficiente qualificação jurídica que haja sido fornecida pelas partes, incumbindo-lhe, ainda, analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais[6].
No que respeita à 2.ª ré o autor sustentou que esta incumpriu deveres decorrentes da intermediação do contrato promessa de compra e venda que veio a ser outorgado entre o autor e o 1.º réu, concretamente, que aquela teria violado um denominado “dever de promover a legalização/regularização da habitação duplex” e um “dever de informação e de comunicação”.
Os contratos só obrigam os que neles intervêm e inexistindo uma qualquer relação negocial não se pode falar em deveres específicos próprios desta, quer nos seus preliminares quer na sua conclusão[7]. Uma vez que não foi alegado (logo, não se provou) que tenha havido uma relação contratual entre o autor e a ré (…), uma eventual responsabilidade desta por eventuais danos sofridos pelo autor na respetiva esfera jurídica não pode ser contratual.
Foi a Ré apelante quem, no exercício da sua atividade de mediação imobiliária, publicitou a venda das duas frações que foram propriedade do 1.º réu e foi também ela quem estabeleceu o contacto entre o autor e o 1.º réu para efeitos de celebração de um contrato promessa de compra e venda. E infere-se do facto provado n.º 24[8] que entre o 1.º réu e a 2.ª ré foi celebrado um contrato de mediação imobiliária (cfr. artigos 349.º e 351.º, ambos do Código Civil). De acordo com o disposto no artigo 2.º/1, da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro – a qual estabeleceu o regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária – a atividade de mediação imobiliária consiste na procura sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis. Nos termos do n.º 2, alínea b), do referido artigo 2.º a atividade de mediação imobiliária consubstancia-se, também, no desenvolvimento da promoção dos bens imóveis sobre os quais os clientes pretendam realizar negócios jurídicos, designadamente através da sua divulgação ou publicitação, ou da realização de leilões. Nos termos do n.º 5 do artigo 2.º considera-se “destinatário” do serviço a pessoa ou entidade que celebra com o cliente da empresa de mediação imobiliária qualquer negócio por esta mediado e nos termos do n.º 6 é designada de “cliente” a pessoa ou entidade que celebra com uma empresa habilitada um contrato visando a prestação de serviços de mediação imobiliária.

Para o que ora releva cumpre chamar à colação o artigo 17.º/1, da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, o qual dispõe seguinte:
«1 – A empresa de mediação é obrigada a:
a) (…);
b) Certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes;
c) Propor aos destinatários os negócios de que for encarregada, fazendo uso da maior exatidão e clareza quanto às características, preço e condições de pagamento do imóvel em causa, de modo a não os induzir em erro;
d) Comunicar imediatamente aos destinatários qualquer facto que possa pôr em causa a concretização do negócio visado.
(…)».
O vínculo obrigacional principal do mediador consiste na aproximação entre o seu cliente e os possíveis destinatários do negócio mediado, pondo-os em contacto justamente com vista à celebração do negócio jurídico visado pelo cliente do mediador. Donde, uma das suas principais obrigações seja a de publicitar o(s) imóvel o melhor possível a fim de encontrar um interessado na realização do negócio jurídico visado pelo cliente do mediador. Publicitação que deve ser, nos termos do disposto no artigo 17.º/1, alínea c), da Lei n.º 15/2013, verdadeira e clara quanto às características, preço e condições de pagamento, de modo a não induzir em erro os possíveis interessados na celebração do negócio jurídico. O mediador tem também o dever de se informar e certificar, por todos os meios ao seu alcance, da situação dos imóveis nomeadamente se as suas características correspondem àquelas que foram fornecidas pelo seu cliente, como decorre da supra enunciada alínea b).
Os deveres que impendem sobre o mediador imobiliário consagrados no artigo 17.º/1, do supra citado diploma legal visam, sobretudo, proteger todos os terceiros interessados no contrato que o cliente da empresa de mediação visa realizar, angariados pela empresa de mediação ou que com ela tenham entrado em contacto com vista à realização do contrato mediado. As normas que consagram aqueles deveres são, portanto, normas de proteção, integrando a sua violação a segunda modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil – violação da lei que protege interesses alheios (por contraponto à violação de direitos subjetivos de outrem)[9].
A categoria de ilicitude em causa – violação de normas de proteção – exige os seguintes pressupostos:
(i) A não adoção de um comportamento definido em termos precisos pela norma;
(ii) Que o fim dessa imposição seja dirigido à tutela de interesses particulares;
(iii) A verificação de um dano no âmbito do círculo de interesses tutelados por esta via[10].
Em síntese, a violação dos deveres acima referidos (de informação, de diligência e de esclarecimento), quando causadora de danos designadamente ao terceiro que não interveio no contrato de mediação, é suscetível de conduzir à responsabilidade civil da empresa de mediação por via do disposto no artigo 483.º/1, do CPC, na forma de ilicitude “violação da lei que protege interesses alheios”.
No caso em apreço o autor alegou na ação que a atuação da ré colidiu com dois deveres que, na sua perspetiva, decorriam para a ré da intermediação por ela realizada e tendo em vista a angariação de interessados para a aquisição das duas frações autónomas que eram propriedade do 1.º réu; concretamente, um dever de promover a regularização e legalização das duas frações autónomas e de um dever de informação e comunicação ao autor da situação jurídica em que se encontrava a habitação duplex por aquela publicitada.
No que concerne ao denominado “dever de promover pela regularização e legalização do imóvel”, isto é, de diligenciar pela harmonização entre a configuração física da habitação e a respetiva situação registral e constante do título constitutivo de propriedade horizontal (duas frações autónomas independentes entre si) dir-se-á o seguinte:
(i) Aquele dever não está previsto em qualquer uma das alíneas do artigo 17.º/1, da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro;
(ii) A ré não outorgou o contrato promessa e não foi alegado (logo, não foi demonstrado) que ela se tivesse obrigado, por um outro título, a diligenciar pela harmonização entre a realidade física da habitação (constituída por dois apartamentos unidos entre si por uma escada interior) e a situação registral e que consta do título constitutivo de propriedade horizontal, perante os quais o 1.º réu era proprietário de duas frações autónomas; ademais, tão pouco resulta do referido contrato-promessa que o próprio 1.º réu se tivesse vinculado a proceder àquela harmonização.
Por conseguinte, uma condenação da ré a restituir ao autor o valor (recebido) de € 22.000,00 não pode ter como fundamento a violação pela ré daquele alegado dever.
O autor invocou, também, a violação pela ré de um dever de informação e de comunicação, alegando que a ré publicitou a habitação duplex “de forma enganosa” e que não lhe comunicou antes da assinatura do contrato promessa a verdadeira situação jurídica da habitação duplex.
A ré enquanto empresa de mediação ao propor aos destinatários os negócio de que for encarregada (no caso concreto de promover a venda das duas frações autónomas que foram objeto do contrato-promessa) deve “fazer uso da maior exatidão e clareza quanto às características, preço e condições de pagamento do imóvel em causa, de modo a não os induzir em erro” (artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do D/L n.º 15/2013, de 8 de fevereiro) o que transposto para o caso concreto implicava que a ré tivesse comunicado a situação jurídica dos apartamentos que constituíam a anunciada e publicitada habitação duplex (ou seja, que se tratava de duas frações autónomas, como tal registadas e inscritas).
Ora, a Ré publicitou a venda das duas frações autónomas melhor descritas supra da seguinte forma: «Duplex à venda em (…)-Sesimbra; 143 m2 construídos, 120m2 úteis, T3, 3 casas de banho, Lugar de garagem incluído no preço, armários embutidos, prédio com elevador, ar condicionado, piscina» e emComentário do anunciante” escreveu «2 apartamentos completamente remodelados e transformados em T3 Duplex. Com entradas independentes. Sala em open-space com cozinha completamente equipada; 3 quatros, um deles em suite, 3 casas de banho; Todas as divisões com ar condicionado; 2 varandas com vista mar, 3 garagens box, primeira linha de praia, acesso fácil, a 30 metros da praia do ouro em Sesimbra».
A publicidade acima descrita é, no mínimo, ambígua pois que embora faça referência a “dois apartamentos, com entradas independentes”, também anuncia que aquilo que está para venda é um T3 duplex, com sala em open-space com cozinha completamente equipada, 3 quatros, um deles em suite, 3 casas de banho, duas varandas com vista mar, 3 garagens box”; ou seja, para um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, era razoável entender que aquilo que estava a ser publicitado para venda era um único imóvel de tipologia T3. Assim, perante tal publicidade e não resultando dos autos que previamente à assinatura do contrato a ré tenha comunicado ao autor a real situação jurídica dos imóveis, parece-nos manifesto que a ré incumpriu deveres legais de informação e esclarecimento, assim ficando preenchido o pressuposto da ilicitude necessário à sua responsabilização ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Vejamos, no entanto, se em face do disposto no artigo 483.º/1, do Código Civil[11] se poderá afirmar que estão verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Nos termos do referido normativo legal para além do facto ilícito, do dano (aqui computado no montante do sinal entregue) e da culpa (a qual implica a formulação de um juízo de censurabilidade da conduta do agente; a conduta é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, o agente podia e devia ter agido de outro modo), exige-se um nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano: a conduta lesiva, para o ser, supõe uma determinada conexão entre a ação/omissão imputável a determinada pessoa e o dano a ela associado, não bastando, contudo, que o comportamento de alguém haja desencadeado o processo causal que conduziu à ocorrência do dano ou que aquela conduta seja uma das condições que concorrem para a produção do dano; ao invés, é necessário que exista uma particular ligação entre o primeiro e o segundo por via da qual se possa afirmar que o dano é atribuível à conduta de outrem, ou seja, é necessário definir que características deverá ter determinada condição para que se possa considerá-la causa juridicamente significativa de entre as várias condições que concorrem para a produção de determinado resultado. A orientação consagrada no nosso ordenamento jurídico é aquela que considera causa jurídica do prejuízo/dano a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar. A ideia de causalidade restringe-se às condições que apresentam aptidão ou idoneidade para a produção do dano[12]. Prescreve o artigo 563.º do Código Civil que «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão». Este normativo legal consagrou a chamada doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa, segundo a qual o facto que atuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano[13]. De acordo com a teoria da causalidade adequada ali consagrada há que determinar, em primeira linha, se o evento lesivo constituiu conditio sine qua non do dano causado e, em segunda linha, se, em abstrato, aquele evento se revela adequado a produzir o dano segundo o curso normal ou típico das circunstâncias à luz das regras da experiência comum, atendendo-se tanto às circunstâncias cognoscíveis, à data do facto, por um cidadão médio, como às circunstâncias realmente conhecidas pelo agente.
Volvendo ao caso em apreço está provado que o Autor veio a assinar, em 29.09.2019, o contrato promessa de compra e venda com o 1.º Réu (…) e que, nos termos acordados, o Autor efetuou o pagamento de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, ao 1.º Réu, por meio de transferência bancária para a conta bancária identificada no contrato.

Nos termos do referido contrato-promessa o Autor obrigou-se a comprar, pelo preço de € 380.000,00, as frações “AL” e “AT” para habitação, sitas na Av. (…), Edifício (…), Lote 1, (…),6º-B e 7º-B, 2970-637 Sesimbra, na freguesia de Sesimbra (…), Concelho de Sesimbra, inscritos na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descritos na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) e com a autorização de utilização n.º (…) emitida pela Câmara Municipal de Sesimbra em (…), ambas propriedade do 1.º réu e o preço de € 380.000,00 seria liquidado do seguinte modo: no ato da assinatura do contrato-promessa o autor entregaria ao 1.º réu o valor de € 38.000,00 e na data da realização da escritura pública de compra e venda o autor pagaria ao 1.º réu o remanescente do preço, no valor de € 342.000,00.

Posto isto, pergunta-se: terão sido aquela publicidade ambígua e o facto de a ré não ter alertado o autor, previamente à assinatura do contrato promessa, da real situação jurídica do apartamento publicitado relevantes para a consumação dos efeitos decorrentes do contrato-promessa, ao nível da prestação do sinal? Dito de outra forma, foi por causa da publicidade equívoca publicada pela ré e da falta de comunicação, antes da assinatura do contrato promessa, da real situação jurídica da habitação duplex anunciada que o autor veio a celebrar o contrato promessa e a despender a quantia de € 38.000,00 com o respetivo sinal?
Julgamos que não pelo simples facto de na cláusula primeira do contrato promessa o objeto da prometida compra e venda surgir claramente identificado como duas frações autónomas. Com efeito, no contrato promessa o objeto prometido vender/comprar surge descrito da seguinte forma: «frações “AL” e “AT” para habitação, sitas na Av. (…), Edifício (…), Lote 1, (…), 6º-B e 7º-B, 2970-637 Sesimbra, na freguesia de Sesimbra (…), Concelho de Sesimbra, inscritos na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descritos na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob n.º (…) e com a autorização de utilização n.º (…) emitida pela Camara Municipal de Sesimbra em (…)». Logo, bastava uma leitura do contrato promessa – e não resulta dos autos que o autor não tivesse lido o contrato-promessa ou que não tivesse tido a oportunidade de o fazer – para que o autor constatasse que o objeto da prometida compra e venda eram duas frações autónomas distintas. Diferente seria se no contrato promessa o objeto do contrato prometido estivesse identificado da mesma forma como foi publicitado pela ré e só depois, em face dos documentos, viesse a verificar que afinal se tratava de duas frações autónomas distintas. Ou seja, se até ao momento da assinatura do contrato promessa o autor poderia estar equivocado quanto à efetiva situação jurídica da habitação duplex, julgando que se tratava de uma única fração autónoma de tipologia T3, a partir do momento em que tem acesso ao contrato promessa – e, sublinha-se, não resulta dos autos que o autor não tivesse lido o contrato-promessa ou que não tivesse tido a oportunidade de o fazer –, tornou-se cognoscível a situação jurídica da habitação que foi publicitada pela ré, ou seja, que o objeto da prometida compra e venda eram duas frações autónomas e não uma habitação duplex de tipologia T3. Por conseguinte, se apesar disso, o autor assinou o contrato promessa e pagou o sinal nos termos acordados, não pode vir agora invocar a violação dos deveres legais de informação e de comunicação da ré para fundamentar a restituição daquilo que pagou.
Em síntese e concluindo, a ré, enquanto mediadora imobiliária, não pode ser responsabilizada pelo dano reclamado pelo autor (dano esse que coincide com o valor despendido com o pagamento do sinal) com fundamento em responsabilidade civil extracontratual. Dito de outra forma, o fundamento jurídico da sua pretensão no que à ré / apelante respeita não é reconduzível ao instituto da responsabilidade civil por facto ilícito.

*
O tribunal a quo fundou a condenação da ré no instituto do enriquecimento sem causa.
O enriquecimento sem causa é um evento, um facto, que se verifica quando o património de alguém é aumentado, sem causa, pelo correlativo empobrecimento do património de outrem. Do enriquecimento sem causa deriva o direito de restituição para o dono do património empobrecido, com a correlativa obrigação de restituir por banda do dono do património enriquecido.
O enriquecimento sem causa mostra-se contemplado no artigo 473.º do Código Civil, onde se estatui o seguinte:
«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
O enriquecimento sem causa, enquanto fonte de obrigação, pressupõe, pois, nos termos do disposto no artigo 473.º do Código Civil, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
(i) Um enriquecimento de alguém, o qual «consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do ativo patrimonial (v. g. preço de alienação de coisa alheia; lucro da edição de obra alheia ou da representação de peça alheia; recebimento de prestação não devida porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida ou fora cedida entretanto; bens adquiridos ou benfeitorias realizadas pelo gestor; etc.); outras, numa diminuição do passivo (cumprimento efetuado por terceiro, na errónea convicção de estar obrigado a efetuá-lo); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes atos sejam suscetíveis de avaliação pecuniária […]; outras, ainda, na poupança de despesas»[14];
(ii) A inexistência de causa justificativa, o que ocorre quando o direito o não aprova ou consente porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial[15];
(iii) Que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem, à custa de quem requer a restituição. Isto é, à vantagem patrimonial alcançada por um deles corresponderá o empobrecimento do outro; a correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro[16].
Nos termos do disposto no artigo 474.º do Código Civil não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído. O que significa que o empobrecido só poderá recorrer à ação de enriquecimento quando a lei não lhe facultar outro meio para cobrir os seus prejuízos.
O artigo 474.º do Código Civil estabelece que a ação de enriquecimento sem causa seja o último recurso a utilizar pelo empobrecido. Assim, está-lhe vedada a sua utilização no caso de o empobrecido possuir outro fundamento para uma ação de restituição (como em caso de invalidade ou de resolução do contrato), no caso de a lei pretender que a aquisição à custa de outrem seja definitiva (como nas hipóteses de usucapião e prescrição) ou quando a lei atribui outros efeitos ao enriquecimento sem causa (como na modificação do contrato, em caso de usura ou alteração das circunstâncias). Essa exclusão ocorrerá mesmo que a ação concorrente não possa já ser exercida por ter decorrido o prazo respetivo, sob pena de perder o sentido o estabelecimento de um prazo.[17] Por conseguinte, e na análise da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa há que aquilatar a relação que existe entre as normas do enriquecimento sem causa e as da responsabilidade civil. Se uma mesma situação preencher os pressupostos do enriquecimento sem causa e da responsabilidade civil, o concurso é resolvido em prejuízo do primeiro, ou seja, serão as normas da responsabilidade civil que se aplicarão. Só depois de se apurar que as normas diretamente reportadas ao litígio não garantem a tutela da situação em concreto é que poderá recorrer-se complementarmente ao instituto do enriquecimento sem causa.
Porém, e como supra se referiu, no que concerne à 2.ª ré, tendo em conta os factos alegados pelo autor, este fundou a sua pretensão no instituto da responsabilidade civil e não no instituto do enriquecimento sem causa.
Já o dissemos supra: ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, atento o disposto no artigo 5.º/3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido.
Porém, «importa moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualitativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no artigo 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa – Ac. do STJ de 18-09-2018, processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1, consultável em www.dgsi.pt.
Perscrutando a petição inicial e o articulado onde o autor aperfeiçoou a sua pretensão relativamente à ré verifica-se que como causa de pedir o autor invocou como causa do dano sofrido uma ação ilícita daquela; concretamente, a publicidade enganosa do bem cujo negócio de compra e venda estava a intermediar, a falta de comunicação/informação ao autor, previamente à assinatura do contrato-promessa de compra e venda, da situação real jurídica do imóvel e o facto de aquela não ter diligenciado pela regularização/legalização do imóvel, objeto do contrato promessa de compra e venda. Ou seja, o fundamento jurídico da pretensão do autor relativamente à ré é uma responsabilidade civil extracontratual (cujos pressupostos não se verificam, como supra analisado).
Acresce que na petição inicial, o autor alegou, inclusive, que a ré recebeu do 1.º réu o valor de € 38.000,00 “a título de comissão” (cfr. artigo 36.º da PI), isto é, invocou uma causa jurídica para o recebimento daquele valor por banda da ré. Por conseguinte, a condenação da ré ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa extravasa o âmbito da causa de pedir tal como configurada pelo autor.
De qualquer modo sempre se acrescentará o seguinte:
Está provado que o autor pagou ao 1.º réu, a título de sinal, o montante de € 38.000,00 e desse valor pelo 1.º réu foi entregue à 2ª ré o montante de € 22.000,00, a título de comissão (ficando o 1.º réu com os restantes € 16.000,00 (cfr. facto provado n.º 24). Ou seja, a entrega à ré do valor de € 22.000,00, pelo 1.º réu, correspondeu à execução de um programa obrigacional, a saber, o pagamento da comissão devida pela intermediação acordada entre ambos. Logo, da matéria de facto provada não só não resulta a falta de causa para aquela deslocação patrimonial para a esfera jurídica da ré como se provou a causa jurídica concreta para a mesma. Logo, a pretensão do autor relativamente à ré não podia sequer ter abrigo no instituto do enriquecimento sem causa.
*
Em síntese e concluindo, a sentença recorrida deve ser revogada no segmento em que condenou a ré/apelante no pagamento ao autor da quantia de € 22.000,00, absolvendo-se a mesma daquele pedido.

Sumário: (…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar a apelação procedente e, em conformidade, revogam a sentença recorrida no segmento em que condenou a ré (…) – Mediação Imobiliária, Lda. no pagamento ao autor (…) do montante de vinte e dois mil euros (€ 22.000,00).
As custas na presente instância recursiva são da responsabilidade do apelado, sendo que a esse título apenas são devidas custas de parte porquanto aquele procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação de resposta às alegações de recurso.

Notifique.
Registe.
DN.
Évora, 18 de dezembro de 2023
Cristina Dá Mesquita
Ana Margarida Leite
Francisco Matos



__________________________________________________
[1] É ao autor que cabe dar início à instância mediante a propositura da ação.
[2] Esta regra da vinculação do tribunal ao pedido tem exceções designadamente as previstas no artigo 609.º/2 e no artigo 376.º/3, ambos do CPC.
[3] Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, 2022, pág. 90.
[4] Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 19.
[5] Refira-se que são muito reduzidas as diferenças entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional, sendo que a diferença essencial entre os dois regimes reside no diferente regime do ónus de prova, atenta a presunção de culpa que recai sobre o devedor na responsabilidade obrigacional (artigo 799.º/1, do Código Civil). E a obrigação de indemnização delas resultante está sujeita a um regime unitário, o previsto nos artigos 562.º e segs. do Código Civil. Como refere Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, 16.ª edição, Almedina, pág. 350, «tal também sucede em certas situações delituais. Para além disso, verifica-se que na responsabilidade obrigacional são tutelados todos os prejuízos sofridos e os benefícios que o credor deixou de obter pelo facto de lhe não ter sido realizada a prestação devida (artigo 798.º) o que permite a tutela nesta sede dos danos puramente patrimoniais. Já vimos, no entanto, que se tal não sucede na ilicitude por violação de direitos subjetivos (artigo 483.º), sucede nas outras categorias de ilicitude delitual». Conclui aquele professor que «as diferenças entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional não justificam que se prescinda de uma consideração unitária dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, uma vez que, conforme se verificou, eles são absolutamente idênticos nas duas categorias de responsabilidade».
[6] João de Castro Mendes/ Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, págs. 84 e segs..
[7] Acórdão do STJ de 24-06-2014, proferido no processo n.º 4806/07.1TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[8] Que tem o seguinte teor: «Do valor de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros), pago pelo A. a título de sinal, foram entregues à 2ª R. € 22.000,00, a título de comissão, ficando o 1.º R. com os restantes € 16.000,00».
[9] Higina Orvalho Castelo, Regime Jurídico da Atividade de Mediação Imobiliária Anotado, 2015, Almedina, págs. 111 e segs..
[10] Luís Menezes Leitão, ob. cit., pág. 291.
[11] Dispõe este normativo legal o seguinte: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
[12] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Coimbra Editora, Lda., pág. 380.
[13] Vd., entre outros, Acórdão do STJ de 27.01.2005, proc. n.º 05B2286-7 e Acórdão da RC de 29.04.2014, processo n.º 231/10.5TBSAT.C1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e atualizada, 1987, Coimbra Editora, pág. 454.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-01-2013, processo n.º 192/04.0TBMCN.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-01-2013, processo n.º 192/04.0TBMCN.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[17] Menezes Leitão, O enriquecimento sem Causa no Código Civil de 1966, pág. 17.