Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ RAMIÃO | ||
Descritores: | CONCORRÊNCIA DESLEAL PROVA PERICIAL | ||
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Data do Acordão: | 12/05/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | A perícia é um meio de prova destinado à identificação de factos, cuja perceção terá de ser feita por pessoas munidas de conhecimentos especiais (técnicos ou científicos) que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoa, não devem ser objeto de inspeção judicial (art.º 388.º do C. Civil), não devendo ser dificultado o acesso a esse meio de prova salvo nos casos em que a diligência se revele impertinente ou dilatória (art.º 476.º/1 do CPC). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora *** I. Relatório. Na presente ação declarativa comum em que BB, e outros, demandam CC, DD, LDA. (AGÊNCIA DE VIAGEM), EE, LDA. (ALUGUER DE AUTOMÓVEIS LIGEIROS SEM CONDUTOR), na qual pedem a condenação solidária dos Réus no pagamento de uma indemnização mínima por juízos de equidade e que estimam em não menos de € 255.840,00 (100.00,00 + € 150.000,00 + € 5.840,00), alegando que este têm vindo a praticar atos de concorrência desleal nos termos do art.º 317.º/1 do Código da Propriedade Industrial, e geradores de responsabilidade civil no âmbito do art.º 483.º do C. Civil, em 2 de julho de 2019 foi proferido o seguinte despacho: “Nos presentes autos requereram os AA. a realização de extensa e minuciosa prova pericial financeira das empresas RR. A que os RR. se opõem por entenderem ser tal meio de prova excessivo atento o pedido dos AA. nos autos. * Ora, antes de mais cabe ter em conta que o objeto do litígio em causa nos autos é aferir da obrigação dos RR. indemnizarem os AA. pela prática de concorrência desleal. Assim, no cerne da questão em apreço nos autos está a verificação de práticas de concorrência desleal desenvolvidas pelos RR. Em detrimento e prejuízo dos AA. * Na verdade, o conceito de concorrência desleal está delineado a partir de dois vetores: haver um ato de concorrência e esse ato ser contrário às normas e usos honestos do respetivo ramo de atividade económica. A concorrência desleal visa pois obstar a atos contrários aos usos honestos do comércio, repudiados pela boa consciência dos agentes de mercado capazes de causar prejuízos a concorrentes que assomam como ilegítimos e injustificados resultantes não de competências próprias mas de aproveitamento, usurpação de competências alheias (neste sentido AC. STJ de 26.02.2015 in www.dgsi.pt). Desta feita o que se pretende tutelar é a confiança legítima de todos os agentes do mercado de que as atuações se pautarão pela boa-fé, censurando-se ao agente económico os meios de que ele se serve para atuar no mercado, não os concretos resultados que derivam dessa atuação (cf. Ac. STJ de 26.09.2013 in www.dgsi.pt ), assim sendo não se afigura adequada de momento, atento o objeto do litígio a realização da requerida prova pericial financeira tal como requerida pelos AA., cabendo, pois apreciar a forma de atuação dos RR. e os meios utilizados por forma a aferir se a sua atuação é contrária aos usos honestos do comércio atenta a atividade em causa. Pelo exposto indefere-se a realização da prova pericial requerida por não se afigurar pertinente e adequada a sua realização neste momento processual e atento o objeto do litígio. Notifique”. Inconformados com este despacho vieram os autores interpor o presente recurso de apelação, formulando, após alegações, as seguintes conclusões: I. O despacho recorrido indeferiu, sem razão, a perícia financeira requerida pelos recorrentes, justificada, em si e por si, nos pontos que nesta minuta ficaram incorporados em 21 supra, de (i) a (x), e de acordo com a Jurisprudência citada de 23 a 26. II. Como motivo apresentou: “[cabe apenas…] apreciar a forma de atuação dos RR. e os meios utilizados, por forma a aferir se a sua atuação é contrária aos usos honestos do comércio, atenta a atividade em causa”. III. Subordinado este à proposição: “[censura-se] ao agente económico os meios de que ele se serve para atuar no mercado, não os concretos resultados que derivam dessa atuação”. IV. Aqui, no jogo destas duas premissas, que serviu de único motivo ao indeferimento, radica o erro do despacho recorrido, e que é objeto do presente recurso. V. É que a atuação contrária aos “usos honestos do comércio”, conceito legal da concorrência desleal e seus malefícios, deriva do somatório das atuações dos RR., enquanto agentes económicos, e dos concretos resultados desse mesmo comércio, revestido numa única forma de agir: concorrência desleal. VI. Isto é, o fundamento do indeferimento é, ao contrário, motivo para deferir a perícia requerida: só assim se cumpre, aliás, o princípio do dispositivo e do acesso à justiça, no quadro do art.º 476.º/1 do CPC. VII. É que, a perícia financeira contemporânea (de protocolo académico), sob a perspetiva de uma auditoria empresarial, como foi a requerida pelos AA. (a benefício de, por exemplo, ser confiada a D…, S.A.), destina-se precisamente a dar resposta às questões que o despacho recorrido, pela negativa, remeteu para base do não deferimento. VIII. Dá lugar, contudo, a perícia em causa, e só ela, dado o protocolo científico que a rege, a todas as repostas incontornáveis e de necessidade probatória, enunciadas pelos recorrentes e centrais à boa e justa decisão da causa. IX. Sem a realização da perícia indeferida, a lide tornar-se-á vazia, por força da natureza própria e consubstancial ao litígio sub judice. X. Desta forma, o despacho recorrido infringiu o disposto no art.º 476.º/1, segmento inicial, do CPC: a perícia não é nem “impertinente”, nem “dilatória”. XI. Deve ser, pois, reformado o despacho recorrido, para que se siga o deferimento e realização da perícia dita. XII. Entretanto, a perícia requerida pelos recorrentes também diz respeito à contraprova da base factual alocada pelos recorridos ao pedido reconvencional. XIII. Ora, segundo o disposto no art.º 475.º/2 do CPC a perícia pode reportar-se quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária. XIV. Mais um motivo para a reforma do despacho recorrido, que nem a este subtema se referiu. XV. Por fim, respondendo diretamente a um argumento dos RR., uma tal perícia não ofende a reserva comercial: pelo contrário, foi esta, sim, desde logo posta em crise pela concorrência desleal que empreenderam e empreendem. XVI. E a avaliação do que seja e em que se concretize ou concretiza uma “concorrência desleal”, só pode, hoje em dia, ou melhor, no estado das coisas empresariais atual, resultar de uma perícia financeira, sob a metodologia das auditorias de resultados ou de value for money. *** Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. *** II – Âmbito do Recurso. Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser admitida a prova pericial requerida pelos autores na sua petição inicial. *** III – Fundamentação fáctico-jurídica. 1. Os recorrentes interpuseram recurso a decisão que rejeitou a prova pericial requerida. Na petição inicial os recorrentes indicam, entre outros meios de prova, a seguinte: “EXAME PERICIAL À CONTABILIDADE DAS 2.ª E 3.ª RR., para apuramento do número, preço somado das viagens, custos operacionais, movimentos de verbas e lucro líquido, por referência ao item criticado nesta p.i. (concorrência desleal), sob este quesito matriz, e no que diz respeito à faturação referente a viagens de marítimos e profissionais conexos requisitadas, de 2011 até ao presente, POR TODAS AS AGÊNCIAS DE NAVEGAÇÃO QUE OPERAM NOS TERMINAIS XXI (CONTENTORES), GRANÉIS LÍQUIDOS (CRUDE), GÁS NATURAL E CARGA GERAL (PORTSINES), do porto de Sines, e que nos lançamentos da escrita das 2.ª e 3.ª RR. possam ser detetados, nomeadamente os relativos a: a) O… Comércio e Navegação, S.A.; b) M… (Portugal)-Agentes de Navegação, S.A.; c) M… (Portugal), Sociedade Unipessoal, Lda.; Previnem, desde já, a nomeação de perito de parte, na modalidade de auditoria entregue a empresa especializada.” Os autores fundamentam o direito à indemnização peticionada no exercício de concorrência desleal exercida pelos réus e geradora do dever de indemnizar os prejuízos causados, afirmando, nomeadamente na petição inicial: “(…) Os pressupostos do conceito de concorrência desleal, encontram-se elencados no art.º 317.º/1 do Código da Propriedade Industrial, e são os seguintes: (i) a prática de um ato de concorrência; (ii) que esse ato seja contrário às normas e usos honestos; (iii) de qualquer ramo de atividade económica; Este conceito é acompanhado de seis alíneas, que exemplificam as modalidades de atividade proibida, nomeadamente: (i) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue; (ii) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes; (iii) As inovações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios; (iv) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela; (v) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado; (vi) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento. - Nos termos do art.º 331.º do Código da Propriedade Industrial, é punido com coima de € 3.000,00 a € 30.000,00, caso se trate de pessoa coletiva, e de € 750,00 a € 7500,00, caso se trate de pessoa singular, quem praticar qualquer dos atos de concorrência desleal definidos no artigo supramencionado, sendo que é examinada na perspetiva de um ilícito de mera ordenação social; - A concorrência desleal pode igualmente configurar um ilícito civil, gerador de responsabilidade civil extracontratual, desde que verificados os requisitos exigidos pelo art.º 483.º do CC; como é sabido: (i) o ato ilícito; (ii) o dolo ou a mera culpa; (iii) o dano; - A quota de mercado, obtida através do conluio dos três RR., considerado o movimento de transportes de e para Sines dos marítimos e profissões conexas à armação das embarcações que utilizam os terminais XXI (contentores), Granéis Líquidos (crude), Gás Natural e Carga Geral (portsines), do porto de Sines, ascende a 25% e representa no mínimo uma mais-valia de € 100.000,00, no período que vai de 2011 até hoje; - É mais elevado o montante, porém, de que os três RR. beneficiaram pela prática do transporte dos marítimos e profissionais conexos, acima referidos, embarcados nos navios dos terminais XXI (contentores), Granéis Líquidos (crude), Gás Natural e Carga Geral (portsines), em Sines, sem se submeterem ao formato de licenciamento, despesas legais e dos preços de mercado dos transportes públicos de passageiros (táxi), por referência à atividade que se constitui nas respetivas viagens. Com efeito, ao lucro líquido acima contado acresce a poupança referente aos dispêndios em que não ocorreu a 2.ª R., de licenciamentos, exigências profissionais e de cuidado regulamentares que lhes seriam impostos, tudo num montante que os AA. Já articularam no ponto 12 desta minuta, a saber: € 5.840,00; - Acresce-lhe ainda o quantum, por excesso, da faturação respetiva, frente ao tabelamento do transporte de passageiros-táxi que é, durante o dia, de € 0,47, e à noite, de € 0,56; - Dado que os AA. não podem indicar com precisão, mas que ascenderá a, pelo menos, € 150.000,00, considerando-se a média, calculada em baixa, de 312.500 horas (mínimo de 25% do mercado, na baliza temporal de 2011 até à atualidade)57 a € 0,48 (mínimo do excesso médio de preço/hora58 cobrado pela 2.ª R., i.e. € 1,00), faturadas para o transporte rodoviário a que esta p.i. se tem vindo a referir, dizendo respeito, repetem os AA., aos transbordos do pessoal marítimo e profissões conexas adstrito a navios ancorados nos já ditos terminais do porto de Sines; - Contudo, a auditoria financeira que os AA. requererão como meio de prova às contas da 2.ª e 3.ª RR., para a qual eles AA. fornecerão os índices de contabilidade própria que sejam necessários e perícia que aproveite as estatísticas oficiais que digam respeito à dimensão do mercado sobredito, com certeza que chegará, nas conclusões, a dados de muito maior quantum”. *** 2. Está em causa a violação de disposições do Código da Propriedade Industrial, aprovada pelo Decreto-Lei 36/2003, de 5 de março (diploma legal a que pertencerão as normas legais citadas sem outra denominação de origem). Mais concretamente, segundo o alegado pelos recorrentes, a alínea a) do n.º1 do art.º 317.º do C. P. I., que sobre a epígrafe de “Concorrência desleal” dispõe: “Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue”. E, nos termos do seu n.º2, à concorrência desleal é aplicável, com as devidas adaptações, as medidas previstas no art.º 338.º-I. Ato de concorrência será aquele ato que seja suscetível de, no âmbito de uma atividade económica, prejudicar um outro agente económico concorrente, ou seja, que exerce também essa atividade económica, prejuízo que se traduz num desvio de clientela própria em benefício de um concorrente. Sobre esta temática Jorge Patrício Paul, Revista da Ordem Advogados, 2005, Ano 65, Vol. I, junho de 2005, disponível em www.oa.pt., Estudo e Revista cit., refere: “O ato de concorrência é aquele que é idóneo a atribuir, em termos de clientela, posições vantajosas no mercado (…). A concorrência não é suscetível de ser definida em abstrato e só pode ser apreciada em concreto, pois o que interessa saber é se a atividade de um agente económico atinge ou não a atividade de outro, através da disputa da mesma clientela (…) O conceito de concorrência é, pois, um conceito relativo, que não pode ser aprioristicamente definido mas apenas casuisticamente apreciado, tendo em conta a atuação concreta dos diversos agentes económicos e a realidade da vida económica atual (...) No próprio conceito de ato de concorrência está ínsita a sua suscetibilidade de causar prejuízos a terceiros, ainda que tais prejuízos possam efetivamente não ocorrer (…) O ato de concorrência, para verdadeiramente o ser, tem como seu elemento conatural, implícito na própria noção, o perigo de dano, ou seja, a sua idoneidade ou aptidão para provocar danos a terceiros”. António Campinos e Luís Couto Gonçalves, ob. cit. pág. 87, citando Carlos Olavo, A Propriedade Industrial e a Competência dos Tribunais do Comércio”, in Direito Industrial, Vol. II, 2002, pág. 114, referem “ que a propriedade industrial corresponde à necessidade de ordenar a liberdade de concorrência, feita essencialmente por duas formas: por um lado, “ a atribuição da faculdade de explorar economicamente, de forma exclusiva ou não, certas realidades imateriais”, e, por outro, “ a imposição do dever de os vários agentes económicos que operam no mercado procederem honestamente”. E adiantam que “o legislador mantém uma visão redutora do instituto da concorrência desleal, sendo certo que este é independente da existência de qualquer direito privativo de propriedade industrial”. E, citando o Professor Oliveira Ascensão, in “Concorrência Desleal”, 2002, pág. 69 e ss, “os atos de concorrência desleal não se esgotam na violação de direitos privativos tutelados pelo CPI, podendo verificar-se concorrência desleal sem violação de um direito privativo, do mesmo modo que pode ocorrer a violação de direitos privativos sem existir concorrência desleal”. Neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ, de 26/09/2013, Proc. n.º 6742/1999.L1.S2 ( in www.dgsi.pt), referindo que “ Os direitos privativos da propriedade industrial e a repressão da concorrência desleal são institutos distintos na medida em que através daqueles se procura proteger uma utilização exclusiva de determinados bens imateriais, enquanto através da repressão da concorrência desleal se pretende estabelecer deveres recíprocos entre os vários agentes económicos. Assim, pode haver violação de um direito privativo sem que haja concorrência desleal nos casos em que o ato não cause prejuízo a outra pessoa através da subtração de sua clientela efetiva ou potencial”. E acrescenta, “A repressão da concorrência desleal condena o meio (a deslealdade) não o fim (desvios da clientela), pelo que a ilicitude radica-se na deslealdade e não em qualquer direito específico”. Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 578, “O perito não é apenas utilizado para apreciar e valorar factos, mas também para narrar factos. Essencial, em princípio, para que haja perícia, é que a perceção desses factos assente sobre conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, seja qual for a natureza (científica, técnica, artística, profissional ou de mera experiência) desses conhecimentos”. |