Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
28/12.8PALGS.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Justifica-se o afastamento de pena de substituição (de pena de 9 meses de prisão) a condenado que sofreu já quatro condenações anteriores pela prática do crime de condução sob o efeito do álcool, uma das quais ainda em concurso efectivo com um crime de homicídio por negligência.

2. Dispondo os estabelecimentos prisionais de um conjunto de respostas dirigidas às necessidades específicas de reclusos com problemas de dependência de álcool, e não sendo possível formular um juízo de prognose de ressocialização em liberdade mesmo com sujeição a tratamento médico, a pena de prisão deverá ser efectiva e orientada para o tratamento da dependência do álcool (terapia que pressuporá a aceitação do arguido).[1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo nº 28/12.8PALGS. do Tribunal Judicial de Lagos foi proferida sentença que condenou o arguido C como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez do artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, na pena de nove meses de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade com obrigação de sujeição a tratamento médico contra a dependência do álcool e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor por um período de catorze meses.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., concluindo da forma seguinte:

“1. Mesmo depois de já ter sofrido 4 (quatro) condenações pela prática de crimes de condução sob a influência do álcool e de, por força dela, ter cumprido pena de prisão por homicídio negligente, o arguido, C, não interiorizou, ainda, o desvalor da sua conduta ou as consequências da mesma, persistindo em não conformar a sua personalidade com os comandos jurídicos e reiterando a sua conduta de condução de veículo em estado de embriaguez, comportamento que importa punir;

2. A dita punição não se compadece com uma pena de substituição como a decidida porque, absolutamente, nada permite sustentar o juízo de prognose social favorável de que o legislador – no artigo 58.º do Código Penal - faz depender a sua aplicação, não sendo bastantes para o alicerçar a confissão produzida em juízo ou a disponibilidade verbalizada pelo arguido, C, para se sujeitar a tratamento e/ou prestar trabalho a favor da comunidade, já que a dita confissão não surgiu - sequer - acompanhada de qualquer sentimento de pesar ou arrependimento e a mencionada disponibilidade também nada teve de espontâneo, exteriorizando-se sob a forma de mera "autorização" dada (ao tribunal) na sequência de interpelação que lhe foi dirigida pelo Mmo. Juiz a quo;

3. A ausência de eficácia dissuasória das condenações já sofridas pelo arguido, Carlos Manuel, e a necessidade que existe de restaurar a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada impõem outrossim que se conclua que só a aplicação de uma pena de nove meses de prisão efectiva é passível de satisfazer as exigências mínimas de prevenção que o caso reclama”

Na oportunidade concedida, o arguido respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido na sentença.

Neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, opinando também pela improcedência do recurso.

Cumprido o art. 417º, nº2, o arguido nada acrescentou.

Colhidos os Vistos, teve lugar a Conferência.

2. A decisão recorrida, na parte que agora interessa, tem o seguinte teor:
“O Ministério Público acusa, para julgamento com processo sumário, o arguido C, nascido a 1 de Junho de 1968 na freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, filho de..., com os demais sinais dos autos, por prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 2922, n2 1, e 692, n2 1, alínea a), do Código Penal.
(…)

Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 13 de Janeiro de 2012, pelas 04.30 horas, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula HX---, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,39 gramas por litro.

2. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, pois decidiu conduzir o veículo depois de ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para acusar uma elevada TAS, o que não o dissuadiu, não obstante saber que a sua conduta é proibida por lei.

3. O arguido, que se encontra desempregado e recebe um subsídio de 349,00 euros por mês, foi condenado em 21 de Julho de 1999, 23 de Junho de 2004, 15 de Março de 2004 e 22 de Novembro de 2007 por prática de crimes de condução sob a influência do álcool, tendo em tais circunstâncias cumprido pena de prisão por homicídio negligente, com liberdade condicional concedida por decisão de 18 de Setembro de 2006.

(…)
O arguido agiu com dolo e com consciência da ilicitude, sendo relevantes as exigências de prevenção geral e especial, porquanto o arguido não se mostrou sensível às condenações.

Esforça-se o arguido por eximir-se ao cumprimento de nova pena de prisão autorizando a sua submissão a tratamento e a imposição de trabalho a favor da cornunídade.

Tratar-se-á, porventura, duma última tentativa de obter do arguido uma atitude colaborante, no sentido de jamais voltar a conduzir depois de alcoolizado, ou mais do que isso, no sentido de que se afaste do álcool, ao qual parece propenso.

Em conformidade se decidirá, pois, ficando todavia fortemente agravada a pena acessória que se lhe tem de aplicar.

Atenta a prova que se formou, pois, e tudo visto, o Tribunal decide o seguinte:

a) Condenar o arguido como autor material do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão.

b) Substituir a pena de prisão por duzentas e setenta horas de trabalho a favor da comunidade, em conformidade com o disposto nos artigos 58º e 59º do Código Penal, devendo o arguido, dentro do mesmo regime, submeter-se a tratamento médico contra a dependência do álcool, em obediência ao disposto no artigo 52º, nº 3, do mesmo Código.

c) Descontar na pena imposta um dia já cumprido sob a forma de detenção, nos termos do artigo 80º, nº 2, do Código Penal, pelo que cumprirá o arguido somente 269 horas de trabalho.

d) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir por catorze meses, nos termos do artigo 69º, n2 1, alínea a), do Código Penal.”.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95) – que, no caso, não se detectam – a única questão a apreciar respeita à substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade.

A ela se opõe o Ministério Público recorrente, impugnando a sentença apenas nesta parte.

O Exmo. Senhor Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação defende, porém, a manutenção do decidido.

Não está em causa a opção por pena principal de prisão, perante a pena abstracta compósita alternativa, nem tão pouco a determinação da sua medida.

Cumpre tão só apreciar da possibilidade (ou não) de opção por pena de substituição (prestação de trabalho a favor da comunidade), embora não esteja o tribunal de recurso impedido de sindicar a pena na sua totalidade. O que se fará.

O art. 292º do CP pune quem, pelo menos com negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l. E a pena prevista para o crime é a de prisão até um ano ou multa até 120 dias (se pena mais grave lhe não couber…).

No pensamento de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005), acompanhado por Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), toda a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

“Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.

Partindo dos princípios enunciados e olhando a decisão recorrida, constata-se que, perante pena abstracta compósita alternativa – prisão ou multa –,o tribunal optou adequadamente pela prisão, respeitando dispositivo nuclear do art. 70º do CP, tendo afastado a preferência por pena não privativa de liberdade por esta não realizar no caso de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Com efeito, o arguido sofreu a primeira condenação por crime semelhante ao dos autos em 1999 e continuou a cometê-los até ao presente. E mesmo que se considere que tais condenações não são numericamente muito significativas – quatro condenações por crime de condução sob o efeito de álcool e uma condenação por crime de homicídio negligente – elas revelam uma personalidade assaz desvaliosa revelada no facto sub judice, e construída ao longo de treze anos, que tornam desadequada a opção pela multa.

Seguidamente, no processo de determinação (concreta) do quantum de pena de prisão, também não se mostra incumprida quaisquer normas e princípios legais.

Identificam-se no caso prementes exigências de prevenção (geral e especial), mostrando-se elevado o grau de culpa do arguido, como se verá.

Na verdade, numa moldura abstracta de prisão até um ano, o tribunal aproximou-a do seu máximo. E fê-lo por ter devidamente valorado todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor e contra o arguido.

Assim, a acentuada taxa de alcoolemia (2,39 grs/l) eleva consideravelmente o grau da ilicitude do facto, revelando um dolo intenso – provada que está a base factual integrante de dolo – e, autonomamente, uma maior culpa.

Culpa entendida como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244), devendo o agente ser censurado pela personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade contrários ao direito e revelados nesse facto.

No caso, há a considerar muito negativamente o comportamento anterior do arguido, que sofreu quatro condenações por crime de condução em estado de embriaguez e uma condenação por crime de homicídio negligente (estradal, sob o efeito do álcool), como já se referiu. E mesmo que se considere tais condenações numericamente não muito significativas, elas não deixam de revelar um desaproveitamento total de todas as medidas punitivas anteriormente aplicadas.

Assim, a primeira condenação por crime de condução sob o efeito do álcool data de 1999, tendo o arguido continuado a delinquir até ao presente. Note-se que foi sempre sujeito ainda a pena acessória de proibição de conduzir, a última das quais, transitada em 13.12.2007 e pelo prazo de dois anos.

Regista-se que este último crime foi comedido em 26.11.2006, após concessão de liberdade condicional em 18.09.2006, no processo ---/00.1GCLGS, em que o arguido fora condenado por um crime de homicídio negligente, por um crime de condução de veículo em estado de embriagues e por duas contra-ordenações, na pena única de dois anos e oito meses de prisão, na coima de 399,64€ e na sanção acessória de proibição de conduzir por sete meses de prisão. A condução sob o efeito do álcool revelou-se aqui causal da morte daquela vítima. E estes crimes e contra-ordenações foram cometidos apenas três dias após uma anterior condenação também por crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

O crime dos autos foi, por sua vez, cometido após cumprimento de uma pena de prisão efectiva.

Tudo se revelou ineficaz para que o recorrido adapte o seu comportamento de forma a não conduzir após ingestão de álcool (em quantidade que ultrapasse a margem de alcoolemia estipulada por lei).

O arguido tem 44 anos de idade, desrespeitou as solenes advertências ínsitas nas anteriores condenações – em penas de multa, de prisão suspensa na execução e de prisão efectiva – desaproveitou todas as oportunidades anteriores de ressocialização (em liberdade e em reclusão), mantendo desinteriorizado que o exercício da condução é vedado a quem ingeriu álcool acima dos limites legais.

A pena principal encontra-se justamente determinada, mas é de afastar a aplicação de pena de substituição, conforme aqui defendido pelo recorrente Ministério Público.

Tem razão o Ministério Público em 1ª instância quando cuida que a substituição da pena, mesmo acompanhada de sujeição a tratamento médico, não garante no caso as exigências de prevenção.

E não garante particularmente as exigências de prevenção especial, já que no contexto exposto não é possível formular qualquer juízo de prognose de ressocialização em liberdade mesmo com sujeição a tratamento médico, cujo cumprimento em liberdade se apresenta como de adesão muito duvidosa. Tratamento médico que, no caso, se revela altamente aconselhável dada a relação da dependência do consumo de álcool com a prática do crime.

De acordo com os elementos entretanto oficiosamente obtidos por este tribunal de recurso (a fls. 111 e 112 dos autos), tal tratamento está disponível e pode ser prestado a recluso que a ele adira voluntariamente.

De acordo com esta informação da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, os estabelecimentos prisionais dispõem de um conjunto de respostas dirigidas às necessidades específicas de reclusos com problemas de dependência de álcool, sendo “a abordagem essencialmente de cariz médico e medicamentoso” e “estando em desenvolvimento um programa de cariz cognitivo comportamental que visa a dissuasão do consumo excessivo de álcool”.

E se a prevenção geral positiva ou de integração se apresenta como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, a prevenção especial positiva também não pode pôr em causa a pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

E se é certo que o tribunal deve optar por pena de substituição desde que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, havendo sempre que justificar a não opção por uma pena de substituição, no caso sub judice, considera-se que apenas a prisão efectiva é necessária para garantir as finalidades da punição, assim o impondo primordialmente as razões de prevenção especial.

Por todos os motivos, decorrentes das exigências de prevenção geral e sobretudo especial que no caso se reconhecem, são de afastar as penas de substituição – do art. 43º, nº1 do CP (multa de substituição), do art. 48º do CP (prestação de trabalho a favor da comunidade) e do art. 50º do CP (suspensão da execução da pena) – bem como os mecanismos ainda previstos no art. 44º (regime de permanência na habitação), no art. 45º (prisão por dias livres) e no art. 46º (regime de semi-detenção) do Código Penal.

A pena de prisão deverá, pois, ser efectiva, e orientada para o tratamento da dependência do álcool, dentro dos limites da (e uma vez confirmada a) voluntariedade do arguido, já verbalizada em julgamento e repetida na resposta ao recurso.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar procedente o recurso, determinando-se o cumprimento da pena de nove meses de prisão.

Sem custas.

Évora, 12.07.2012

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Casebre Latas)
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[1] - Sumariado pela relatora.