Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/09.9TAVVC.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
RESPONSABILIDADE CRIMINAL DA PESSOA COLECTIVA
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1. A responsabilidade criminal da pessoa colectiva exige o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa colectiva, que será aquele que nela exerça liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas no art. 11º, nº 2 - a) e b) do Código Penal.

2. Mas a responsabilidade criminal da pessoa colectiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta.

3. Assim sucederá nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime; quando se sabe que a responsabilidade cabe a um dos administradores da sociedade, mas não é possível precisar a qual deles.

4. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e no seu interesse), a pessoa colectiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Processo n.º 60/09.9TAVVC do Tribunal Judicial de Vila Viçosa foi proferida sentença em que se decidiu:

a. Absolver a arguida I.., S.A. da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada dos artigos 7.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1, 4, 5 e 7 e 107.º, n.º 1 do RGIT e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

b. Absolver o arguido J da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, dos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 e 107.º, n.º 1 do RGIT e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

c. Absolver o arguido A da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, dos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 e 107.º, n.º 1 do RGIT e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo da forma seguinte:

1. O presente recurso tem por objecto o nosso desacordo relativamente à sentença proferida a 05-12-2011, que absolveu os arguidos I.. S.A., J e A, da prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

2. Inconformado com tal decisão, o presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de facto, tendo por objecto a sua discordância quanto à matéria de facto dada como não provada, alegando o erro notório na apreciação da prova.

3. O Ministério Público entende incorrectamente julgados os factos dados como não provados, designadamente:

“3. A arguida agiu no desenvolvimento de um plano previamente gizado, com o propósito alcançado de fazer suas e de integrar nos seus cofres todas as importâncias supra referidas e de as utilizar na sua gestão corrente, em proveito próprio, bem sabendo que tais quantias pertenciam à Segurança Social, e que lhe deveriam ter sido entregues, nos aludidos prazos e que, desta forma, actuava sem a autorização, contra a vontade e em prejuízo da Segurança Social.

4. A sociedade arguida, após não ter entregue pela primeira vez os montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas aludidas remunerações dos seus trabalhadores, praticou o mesmo tipo de conduta ao longo dos vários meses seguintes, convencendo-se, mercê da facilidade com que sucessivamente logrou concretizar os seus intentos, de que a sua actuação estava a ser bem sucedida, o que a levou à reiteração da prática supra descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo supra referido.

5. Bem sabia a sociedade arguida que todo o seu comportamento era proibido e punido por lei, tendo sempre agido de forma voluntária, livre e consciente.

6. Os arguidos J e A eram os responsáveis por toda a actividade desenvolvida na sociedade arguida, nomeadamente no tocante ao preenchimento das declarações sociais e ao apuramento e pagamento de todos os impostos e contribuições sociais devidas e à sua entrega ao Estado e à Segurança Social.

7. Durante o referido período contributivo referente aos meses de Dezembro de 2000 a Novembro de 2001, Fevereiro de 2002 a Fevereiro de 2003, Abril de 2003 a Agosto de 2005, Outubro de 2005 a Outubro de 2007, Dezembro de 2007 e Junho de 2008 e no exercício das respectivas funções de administração, eram os arguidos quem procedia ao pagamento das remunerações aos trabalhadores, cabendo-lhe igualmente a tarefa de efectuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social e entregar o respectivo montante à Segurança Social.

8. Os arguidos A e J agiram, no desenvolvimento de um plano previamente gizado, com o propósito alcançado de fazer suas e de integrar nos cofres da sociedade arguida todas as importâncias supra referidas, bem sabendo que tais quantias pertenciam à Segurança Social, e que lhe deveriam ter sido entregues, nos aludidos prazos e que, desta forma, actuavam sem a autorização, contra a vontade e em prejuízo da Segurança Social.

9. Os arguidos J e A após não terem entregue pela primeira vez os montantes destinados à Segurança Social que haviam deduzido nas aludidas remunerações dos seus trabalhadores, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos vários meses seguintes, convencendo-se, mercê da facilidade com que sucessivamente lograram concretizar os seus intentos, de que a sua actuação estava a ser bem sucedida, o que os levou à reiteração da prática supra descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo supra referido.

10. Bem sabiam os arguidos J e A que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei, tendo sempre agido de forma voluntária, livre e consciente.

4. Na verdade, o tribunal de 1.ª Instância não procedeu, o que, só por manifesto lapso se admite, a um exame criterioso do acervo probatório constante dos autos, pois se o tivesse feito teria dado como provados os factos acima referidos.

5. Os documentos juntos aos autos, bem como as declarações dos arguidos, do Senhor Administrador da insolvência e os depoimentos das testemunhas, conjugados e analisados de forma crítica, de acordo com regras de experiência e senso comuns, impunham um juízo diverso da matéria de facto e consequentemente, decisão diferente da recorrida.

6. Com efeito, em primeiro lugar, importa frisar que da certidão de matrícula da sociedade arguida I.... S.A., junta aos autos, cujo teor não foi colocado em causa, consta que no quadriénio 2003/2006 o conselho de administração era composto por A como presidente e por J e JA como vogais.

7. Sendo que JA faleceu em 02.11.2008, conforme certidão do assento de óbito junta aos autos, extinguindo-se o respectivo procedimento criminal, motivo pelo qual não foi proferido despacho acusatório contra este.

8. Em segundo lugar, deixemos os depoimentos testemunhais falarem por si.

9. O depoimento de NM que foi trabalhador da sociedade arguida entre 2001 e 2006, sessão de 14.10.2011, minuto 00:02:00 a 00:42:06. Esta testemunha, embora tivesse identificado JA como sócio maioritário, reconheceu os arguidos, pessoas singulares como administradores. Referiu que os arguidos se deslocavam com frequência às instalações da fábrica.

10. O depoimento de MT, que foi trabalhadora da sociedade arguida durante 20 anos e até 2006, sessão de 14.10.2011, minuto 00:07:51 a 00:38:56.

11. O depoimento de MJ, que foi trabalhadora da sociedade arguida entre 1997 e 2007, sessão de 14.10.2011, minuto 00:06:00 a 00:25:10.

12. O depoimento de PM, que foi trabalhador da sociedade arguida desde 2004, sessão de 14.10.2011, minuto 00:01:45 a 00:13:58.
13. O depoimento de RC, que foi trabalhador da sociedade arguida entre 1998 e 2001 e 2001 e 2007, sessão de 24.10.2011, minuto 00:04:00 a 00:32:39.

14. As testemunhas arroladas pelo Ministério Público referiram que os arguidos iam à fábrica, acrescentando que o arguido A dava a volta à fábrica e falava com os encarregados.

15. O Depoimento de LM, que foi mediador de seguros e responsável administrativo da sociedade M, que era titular da sociedade arguida sessão de 07.11.2011, minuto 00:01:00 a 00:32:31.

16. O depoimento de CJ, que foi trabalhador da M e membro do conselho fiscal da sociedade arguida, que era titular da sociedade arguida sessão de 07.11.2011, minuto 00:01:00 a 00:32:57.

17. Não se consegue perceber a sentença recorrida, quando se diz que “não foi possível esclarecer, sem qualquer dúvida, a real intervenção dos arguidos, pese embora a inscrição dos mesmos como administradores no registo comercial, no âmbito da organização e gestão da vida da sociedade, especificadamente na tomada de decisões quanto à entrega ou não entrega do dinheiro à Segurança social”.

18. Atento o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, não restam dúvidas quanto à participação activa dos arguidos na vida da sociedade, sendo os arguidos os seus administradores de direito e de facto.

19. As testemunhas foram claras quando referiram que quem dava a cara pela empresa eram os arguidos pessoas singulares e se deslocavam à fábrica da sociedade arguida com maior ou menor frequência.

20. Estes depoimentos mereceram da parte do Tribunal maior cuidado na sua apreciação e avaliação.

21. Além do mais, os arguidos A e J tinham habilitações literárias e conhecimentos técnicos bastantes para conhecer cabalmente da real situação da sociedade arguida, da obrigação de entrega atempada à Segurança Social das prestações devidas nos termos da lei e que as mesmas não lhe pertenciam, nem podiam dispor delas por qualquer forma ou fim

22. É irrelevante a “preponderância” do JA, pois os arguidos A e J não eram obrigados a obedecer a “ordens” que constituíssem crime, tendo sempre como último recurso o abandono voluntário dos órgãos decisores da sociedade, o que manifestamente não aconteceu.

23. Não há dúvidas que os arguidos, com a sua conduta, preencheram os elementos objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social.

24. De igual forma, JA cometeu a prática do mesmo tipo-de-ilícito em causa, só não podendo ser responsabilizado criminalmente em virtude da sua morte (artigos 127.º e 128.º do Código penal).

25. Também não se concebe como é que o Tribunal “a quo” decidiu dar como não provada a actuação da sociedade, argumentando que não foi feita prova de quem tinha a incumbência de tomar decisões no seio societário.

26. Determinadamente não se compreende. Afinal de contas esta sociedade actuava por si mesma? Tinha vontade própria? Não nos parece.

27. Na verdade, as sociedades não actuam por si mesmas, não têm capacidade natural de acção, sendo meras criações jurídicas, actuando através dos seus órgãos ou representantes.

28. Diz Domingos de Andrade “ a pessoa colectiva constitui-se voluntariamente e para actuar, em ordem aos fins que se propõe, mediante os seus órgãos ou agentes”. O mesmo sucede no que concerne às infracções fiscais.

29. É ponto assente que são os órgãos ou representantes da sociedade que cometem a infracção, mas em nome e no interesse da sociedade. As pessoas colectivas não têm vontade própria.

30. No caso concreto, estão indubitavelmente identificados as pessoas físicas pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, são os administradores da sociedade arguida à data dos factos, melhor identificados na certidão de matrícula da mesma, e que durante o período contributivo em discussão actuaram na qualidade de administradores, desempenhando as suas funções e auferindo remunerações à medida das mesmas.

31. Ficou inequivocamente demonstrado nos autos e em julgamento que os arguidos A e J eram os responsáveis pelas decisões da vida da sociedade, a quem se atribuía o exercício das funções de administradores, sendo identificados como tal por todos quantos lidavam com a sociedade arguida, embora não reconhecendo-os como as pessoas que, em exclusivo, desempenhava essas funções.
32. Da prova produzida em sede de audiência e a constante dos autos nunca poderá resultar a dúvida quanto à responsabilidade jurídico-penal da sociedade.

33. Ora, salvo o devido e merecido respeito, extrapolou em muito o Tribunal “a quo”, o sentido, o alcance e o conteúdo do princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127.º do C.P.P.

34. O princípio da livre convicção, tal como está inscrito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, significa, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na «liberdade para a objectividade.

35. O Tribunal recorrido formou a sua convicção com base em presunções que violam o princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, princípio este que não pode ser discricionário, pois tem limites que não podem ser tacitamente ultrapassados, constituindo apenas uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material.

36. Assim, a prova produzida em audiência de julgamento não permitia dar como não provada, como foi, a matéria referida como factos não provados (1 a 8). São pontos essenciais da matéria de facto que foram incorrecta e erroneamente apreciados, o que redundou numa deficiente apreciação da prova e na injusta absolvição dos arguidos e da sociedade arguida pela prática do crime previsto e punido nos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1, 4, 5 e 7, 107.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, e artigos 26.º e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

37. Pelo exposto, o douto Tribunal "a quo” julgou incorrectamente os pontos de facto referidos supra enunciados (cfr. artigo 412. °, n.º 3, al. a) do C.P.P.).

38. A prova produzida impunha uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal "a quo" (artigo 412.º, n.º 3, al. b) do C.P.P.).

39. Impunham que o douto Tribunal "a quo" tivesse decidido provados os pontos de facto ora em crise.

40. Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal "a quo" ao considerar como não assentes os factos que supra se deixaram reproduzidos da douta decisão recorrida, violando o princípio da livre apreciação da prova e, consequentemente, o disposto no artigo 127.°. do CPP. ”

Os arguidos não responderam ao recurso.

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, nada acrescentando de novo.

Os arguidos A e J responderam ao parecer, pronunciando-se sumariamente no sentido da confirmação da decisão da 1ª instância.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. A arguida I, S.A. é uma sociedade comercial anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Vila Viçosa sob o número ---, com sede...,em Vila Viçosa.

2. Esta sociedade dedica-se à extracção, transformação e comercialização de mármores e granitos.

3. Em 26.09.1996, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a designação de JA como administrador da referida sociedade até ao termo do mandato 1995/1998, sendo um dos vogais A.

4. Em 01.02.2000, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a nomeação de J como membro do Conselho Fiscal da referida sociedade, para o quadriénio 1995/1998.

5. No quadriénio 1999/2002, o Conselho de Administração da sociedade arguida tinha a seguinte composição: Presidente – JS; vogais – A e JA.

6. No quadriénio 2003/2006 o conselho de administração da sociedade arguida tinha a seguinte composição: presidente – A; vogais: JA e J.

7. No período referente aos meses de Dezembro de 2000 a Novembro de 2001, Fevereiro de 2002 a Fevereiro de 2003, Abril de 2003 a Agosto de 2005, Outubro de 2005 a Setembro de 2007, a sociedade arguida, na prossecução e exercício da sobredita actividade descrita em 2., possuía diversos trabalhadores a seu cargo, a quem pagava, mensalmente, os respectivos salários.

8. Em tais meses, a sociedade arguida efectuou pagamentos aos seus empregados, sendo que, dessas remunerações brutas, lhes retirou as seguintes quantias, a título de contribuições para a Segurança Social:
anomêsmontante €
2000Dezembro6.254,43 €
2001Janeiro3.515,19 €
2001Fevereiro3.489,51 €
2001Março3.368,92 €
2001Abril3.854,33 €
2001Maio4.007,61 €
2001Junho3.518,25 €
2001Julho3.619,86 €
2001Agosto5.259,01 €
2001Setembro3.819,31 €
2001Outubro3.414,82 €
2001Novembro3.557,60 €
2002Fevereiro3.160,86 €
2002Março3.627,14 €
2002Abril3.823,19 €
2002Maio3.071,82 €
2002Junho3.554,95 €
2002Julho3.758,41 €
2002Agosto4.229,91 €
2002Setembro3.038,13 €
2002Outubro3.103,67 €
2002Novembro3.091,89 €
2002Dezembro5.784,68 €
2003Janeiro2.769,43 €
2003Fevereiro2.797,43 €
2003Abril2.624,63 €
2003Maio2.460,64 €
2003Junho2.410,21 €
2003Julho2.616,03 €
2003Agosto5.679,23 €
2003Setembro2.779,95 €
2003Outubro3.367,98 €
2003Novembro3.290,49 €
2003Dezembro3.405,63 €
2004Janeiro3.127,22 €
2004Fevereiro3.153,47 €
2004Março2.961,01 €
2004Abril3.014,22 €
2004Maio3.019,32 €
2004Junho3.148,74 €
2004Julho2.941,86 €
2004Agosto2.863,23 €
2004Setembro3.379,79 €
2004Outubro2.752,65 €
2004Novembro5.291,88 €
2004Dezembro2.599,63 €
2005Janeiro3.476,01 €
2005Fevereiro2.733,48 €
2005Março3.144,96 €
2005Abril2.827,89 €
2005Maio3.682,20 €
2005Junho2.654,38 €
2005Julho2.604,34 €
2005Agosto5.125,64 €
2005Outubro2.597,60 €
2005Novembro2.691,63 €
2005Dezembro4.969,57 €
2006Janeiro2.509,22 €
2006Fevereiro2.728,30 €
2006Março2.653,62 €
2006Abril2.603,13 €
2006Maio2.698,97 €
2006Junho3.119,18 €
2006Julho2.911,55 €
2006Agosto2.535,89 €
2006Setembro5.501,86 €
2006Outubro2.556,42 €
2006Novembro3.178,80 €
2006Dezembro2.542,58 €
2006Janeiro4.617,54 €
2007Fevereiro3.007,75 €
2007Março2.510,49 €
2007Abril3.115,83 €
2007Maio2.539,01 €
2007Junho2.369,65 €
2007Julho2.294,64 €
2007Agosto2.295,33 €
2007Setembro2.227,07 €

9. Os arguidos e a sociedade arguida não entregaram as quantias elencadas em 8. à Segurança Social até ao 15 dia do mês seguinte àquele a que respeitavam nem nos noventa dias subsequentes.

10. Na data de 11.02.2009, os arguidos e a sociedade arguida foram notificados para pagar a quantia total em dívida acrescida dos respectivos juros de mora, não o tendo, contudo, feito nos trinta dias subsequentes ao recebimento de tal notificação, mostrando-se tal montante por pagar até à presente data.

Mais se provou que:

11. A sociedade arguida foi declarada insolvente, por sentença proferida em 07.09.2007 e transitada em julgado em 28.09.2007, no âmbito dos autos de insolvência n.º ---/07.8TBVVC, encontrando-se o processo ainda pendente.

12. A sociedade arguida atravessou um período de dificuldades económicas, coincidente com o período contributivo em causa nos autos, que determinou a penhora do seu património pelo estado e a constituição de hipotecas sobre o mesmo e, bem assim, o desenvolvimento de diligências no sentido da aprovação de um plano extrajudicial de conciliação, com intervenção do IAPMEI e dos seus credores, que veio, passados alguns anos, a não ser concretizado.

13. O arguido J é economista, estando presentemente reformado.

14. Aufere, mensalmente, a quantia de 1800,00 €.

15.Vive em casa própria, com a esposa, que é doméstica.

16. Suporta, mensalmente, o pagamento da quantia de 300,00 €, por força de um empréstimo contraído para a formação de um dos filhos.

17. É licenciado em gestão de empresas.

18. O arguido A é empresário em nome individual, actividade pela qual aufere o salário mínimo.

19. A esposa do arguido é contabilista, actividade pela qual aufere mensalmente a quantia de 2300,00 €.

20. Vive em casa arrendada, pela qual paga 300,00 € mensais de renda.

21. Possui o antigo 7.º ano e o 3.º ano do curso universitário de Engenharia electrónica.

22. O arguido J tem antecedentes criminais pela prática, em 2000, de crimes de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social, pelos quais foi condenado, por decisão proferida em 03.12.2010 e transitada em julgado em 17.01.2011, na pena única de 900 dias de multa.

23. O arguido A tem antecedentes criminais pela prática, em 2000, de um crime de abuso de confiança fiscal, pelo qual foi condenado, por decisão proferida em 13.12.2006 e transitada em julgado em 17.01.2008, na pena de prisão de 1 ano e 6 meses, suspensa na sua execução por 1 ano e pela prática, em 2000, de crimes de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social, pelos quais foi condenado, por decisão proferida em 03.12.2010 e transitada em julgado em 17.01.2011, na pena única de 900 dias de multa.

24. A sociedade arguida não possui antecedentes criminais.”

Foram, por seu turno, considerados não provados os seguintes factos:

“Não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação que estejam em oposição com a factualidade julgada provada e nomeadamente os seguintes:

1. No período referente aos meses Outubro de 2007, Dezembro de 2007 e Junho de 2008, a sociedade arguida, na prossecução e exercício da sobredita actividade descrita em 2., possuía diversos trabalhadores a seu cargo, a quem pagava, mensalmente, os respectivos salários.

2. Em tais meses, a sociedade arguida efectuou pagamentos aos seus empregados, sendo que, dessas remunerações brutas, lhes retirou as seguintes quantias, a título de contribuições para a Segurança Social:

2007Outubro1.596,83 €
2007Dezembro560,41 €
2008Junho2.543,62 €
3. A arguida agiu, no desenvolvimento de um plano previamente gizado, com o propósito alcançado de fazer suas e de integrar nos seus cofres todas as importâncias supra referidas e de as utilizar na sua gestão corrente, em seu proveito, bem sabendo que tais quantias pertenciam à Segurança Social e que lhe deveriam ter sido entregues nos aludidos prazos e que, desta forma, actuava sem a autorização, contra a vontade e em prejuízo da Segurança Social.

4. A sociedade arguida após não ter entregue pela primeira vez os montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas aludidas remunerações dos seus trabalhadores, praticou o mesmo tipo de conduta ao longo dos vários meses seguintes, convencendo-se, mercê da facilidade com que sucessivamente logrou concretizar os seus intentos, de que a sua actuação estava a ser bem sucedida, o que a levou à reiteração da prática supra descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo supra referido.

5. Bem sabia a sociedade arguida que todo o seu comportamento era proibido e punido por lei, tendo sempre agido de forma voluntária, livre e consciente.

6. Os arguidos J e A eram os responsáveis por toda a actividade desenvolvida na sociedade arguida, nomeadamente no tocante ao preenchimento das declarações sociais e ao apuramento e pagamento de todos os impostos e contribuições sociais devidas e à sua entrega ao Estado e à Segurança Social.

7. Durante o referido período contributivo referente aos meses de Dezembro de 2000 a Novembro de 2001, Fevereiro de 2002 a Fevereiro de 2003, Abril de 2003 a Agosto de 2005, Outubro de 2005 a Outubro de 2007, Dezembro de 2007 e Junho de 2008, e no exercício das respectivas funções de administração, eram os arguidos quem procedia ao pagamento das remunerações aos trabalhadores, cabendo-lhe igualmente a tarefa de efectuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social e entregar o respectivo montante à Segurança Social.

8. Os arguidos A e J agiram no desenvolvimento de um plano previamente gizado com o propósito alcançado de fazer suas e de integrar nos cofres da sociedade arguida todas as importâncias supra descritas, bem sabendo que tais quantias pertenciam à Segurança Social e que lhe deveriam ter sido por si entregues nos aludidos prazos e que, desta forma, actuavam sem a autorização, contra a vontade e em prejuízo da Segurança Social.

9. Os arguidos J e A após não terem entregue pela primeira vez os montantes destinados à Segurança Social que haviam deduzido nas aludidas remunerações dos seus trabalhadores, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos vários meses seguintes, convencendo-se, mercê da facilidade com que sucessivamente lograram concretizar os seus intentos, de que a sua actuação estava ser bem sucedida, o que os levou à reiteração da prática supra descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo supra referido.

10. Bem sabiam os arguidos J e A que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei, tendo sempre agido de forma voluntária, livre e consciente.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes: impugnação da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova.

Impõe o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação faz-se por referência ao consignado na acta devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (nº4).

O incumprimento destas formalidades, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, obsta ao conhecimento do recurso da matéria de facto, o que não ocorre no caso.

Antes de apreciar as concretas razões explanadas no recurso do Ministério Público, cumpre recordar a motivação da sentença, da qual se terá necessariamente de partir, já que o recurso da matéria de facto pressupõe, não a reapreciação total do complexo das provas, mas a reapreciação da razoabilidade da decisão do tribunal de julgamento quanto aos pontos de facto que o recorrente indica como incorrectamente julgados.

Assim, a motivação da matéria de facto na sentença apresenta-se da forma seguinte:

Exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal:

Quanto aos factos provados e não provados:

Na formação da sua convicção, o tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente a prova junta aos autos, segundo as regras da experiência comum e da sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, nomeadamente, a todos os documentos juntos aos autos e, bem assim, às declarações dos arguidos, do senhor administrador da insolvência e aos depoimentos das testemunhas.

Os arguidos optaram por não prestar declarações no início da audiência, tendo preferido fazê-lo na sua fase final, no exercício, aliás, de um direito que lhes assiste e que não os pode prejudicar.

De começar por dizer que o Tribunal valorou as declarações por si prestadas, em primeiro lugar, na formação da sua convicção quanto aos aspectos referentes às suas condições pessoais e económicas.

Pese embora tenham reconhecido a factualidade constante da acusação no que respeita às características da sociedade arguida, ao seu objecto social e, genericamente, a existência de trabalhadores em exercício de funções para essa sociedade no período em causa nos autos, ao que acresce a circunstância de não terem colocado em causa a sua inscrição no registo comercial como administradores – pelo menos em parte dos períodos de tempo constantes da acusação -, os arguidos invocaram que, na prática, não eram verdadeiros administradores da sociedade, nomeadamente no que diz respeito às tomadas de decisão quanto aos destinos dos dinheiros, aqui se englobando as questões do pagamento dos impostos e das contribuições à Segurança Social, pois que, quem determinava tais opções era JA, entretanto falecido – cf. Certidão de fls. 575.

Sustentaram os arguidos que, em bom rigor, as suas funções sempre foram as de directores de determinadas áreas e nunca de administradores, no sentido de terem vontade própria e autónoma em termos de decisão, pese embora a sua inscrição no registo comercial como administradores.

Justificaram tal inscrição com a circunstância de o verdadeiro dono – JA – pretender rodear-se de pessoas da sua confiança, sendo que os seus nomes apenas faziam número na lista dos administradores, na prática nunca tendo exercido essas funções.

Invocaram que a sociedade arguida pertencia a um grupo de sociedades, encabeçadas pela sociedade M, havendo sobreposição de órgãos sociais, tesouraria única e tomada de decisões centralizada em JA.

O Tribunal fez juntar aos autos a certidão do registo comercial referente a tal sociedade, certidão cujo teor permitiu suportar a versão dos arguidos quanto à sobreposição de órgãos sociais (cf. Fls. 1036 e ss.).

Por outro lado, mostra-se junta aos autos, a fls. 1041 e ss. cópia de uma acta de reunião do Conselho de Administração da sociedade M, cujo conteúdo permite comportar a versão apresentada pelos arguidos em audiência, quanto às funções efectivas e concretas de JA, especificamente, quanto à sociedade do grupo, a sociedade arguida.

De tal documento resulta que o mesmo assumiria – facto que foi posteriormente levado ao registo comercial – as funções de administrador delegado da M, com as funções de coordenação e supervisão das actividades das empresas do grupo M, da mesma resultando igualmente que foi decidido proceder à apreciação da proposta de organigrama e definição de funções, elemento esse que se mostra igualmente junto aos autos e do qual resulta que os ora arguidos, pessoas singulares, tinham como incumbências o mercado externo (A) e o plano administrativo (J).

Mais se mostra junto a fls. 1047, o organigrama do Grupo, do qual resulta que a sociedade arguida, como, aliás, foi afirmado pelos arguidos, era uma das 4 que fazia parte do grupo.

Note-se que tais documentos não foram impugnados.

Assim como não foram colocados em causa, em termos de conteúdo, pelos depoimentos testemunhais prestados.

Com efeito, e aqui excluindo, de todo, o depoimento prestado pela técnica da Segurança Social que nada revelou saber quanto a esta matéria, nenhuma das testemunhas ouvidas foi capaz de colocar frontalmente em causa – com verdadeiro conhecimento directo dos factos – as declarações prestadas pelos arguidos.

Se é certo que por todas, enquanto ex-trabalhadoras, foi referido que quem mais dava a cara pela empresa eram os arguidos pessoas singulares, pelas mesmas também foi dito que tais arguidos estavam em Lisboa, na sede (da M), vindo, de vez em quando, com maior ou menor frequência à fábrica (sociedade I), dando uma volta por ali, vendo se tudo corria bem, indo à linha de produção, falando com os encarregados.

Questionadas sobre se os arguidos, no local de funcionamento da I, tinham gabinete, se aí faziam reuniões, referiram que não.

Questionadas sobre as suas efectivas funções, revelaram saber que eram os administradores, ainda que, questionadas especificamente sobre se eram eles que preenchiam as declarações ou que coordenavam o seu preenchimento, se eram eles quem tomavam a iniciativa de não proceder ao envio do dinheiro para a Segurança Social ou davam ordens nesse sentido, nada referiram saber.

Outro aspecto de salientar nos depoimentos testemunhais tem que ver com a circunstância de, por todos os trabalhadores ouvidos como testemunhas, ter sido feita uma distinção entre aquele que viam como o dono - JA - e os demais.

Ora, a conjugação de toda esta prova – os documentos acima referenciados, as declarações dos arguidos, os depoimentos das testemunhas ex-trabalhadores –, pese embora as convicções pessoais que o Tribunal possa ter formado, foi de molde a concluir que, em termos objectivos, não foi possível esclarecer, sem qualquer dúvida, a real intervenção dos arguidos, pese embora a inscrição dos mesmos como administradores no registo comercial, no âmbito da organização e gestão da vida da sociedade, especificamente na tomada de decisões quanto à entrega ou não entrega do dinheiro à Segurança Social.

Com efeito, pese embora a circunstância de os mesmos constarem, no registo comercial como membros do conselho de administração – pelo menos em alguns períodos coincidentes com os períodos contributivos constantes da acusação – não pode valer por si só, pois que, apenas permite concluir que, de direito, os mesmos eram administradores, mas não que, de facto o eram.

Aliado a tudo o acima referenciado, o Tribunal atendeu ainda aos documentos constantes de fls. 1003 e ss., referentes à reclamação de créditos no âmbito do processo de insolvência de que a sociedade arguida foi alvo, dos quais é possível concluir que o próprio volume de negócios de tal sociedade e o número de credores reclamantes – mais de 100 – reclama a existência de uma gestão de dimensão considerável, muito diferente do modo de funcionamento de uma pequena sociedade por quotas, onde a dispersão e repartição de funções é condicionante do funcionamento adequado, não tendo a acusação produzido prova suficientemente esclarecedora do modo de funcionamento em concreto desta sociedade.

Com o que, no espírito do Tribunal, e uma vez produzida a prova que, ao abrigo do princípio do inquisitório, igualmente se julgou relevante, subsistiu uma dúvida objectiva e inultrapassável que, de acordo com o disposto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e por força do princípio in dubio pro reo, apenas poderia funcionar em benefício dos arguidos.

Pese embora tenha sido referenciada a doença do JA e seja curial que, a determinada altura, se tenha invertido a forma de tomada de decisões, o Tribunal, para além de meras suposições, não conseguiu esclarecer-se com a certeza necessária para a realização de um juízo diferente.

Foi, pois, pelas razões expostas, que o Tribunal formou a sua convicção no sentido expresso na factualidade julgada não provada nos pontos 6. A 10..

Os factos constantes dos pontos 3. a 5. Dos factos não provados resultaram de o Tribunal ter dado como não provada a actuação dos arguidos pessoas singulares, razão pela qual teve necessariamente que dar como não provada a actuação da sociedade, uma vez que a mesma não tem vontade própria actuando por força da actuação dos seus representantes.

Note-se que também não foi feita prova de que era JA quem tinha a incumbência de tomar as decisões imputadas à sociedade por ela própria, caso em que o seu falecimento não era de molde a, necessariamente, afastar a responsabilidade jurídico-penal da sociedade, pelo contrário.

Com efeito, aquilo que resultou da prova produzida foi a dúvida, em função da pluralidade dos membros da administração da sociedade, daquelas que na prática eram as incumbências de cada um e nomeadamente dos arguidos A e J, dúvida essa que funcionou em seu benefício.

Quanto ao mais:

Para além dos documentos já referenciados, atendeu o Tribunal aos seguintes

- Fls. 7 a 12 e 79 a 84: mapa com a identificação das cotizações em falta.
- Fls. 91 a 94, 845 a 848 e 918 a 932.: cópia/certidões da inscrição no registo comercial da sociedade arguida.

- Fls. 85 a 90: relevantes na formação da convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados em 10.

- Fls. 103 a 111, 252 a 295 e 298 a 512: extracto de declaração de remunerações

Todos os documentos acima referenciados foram fundamentais na formação da convicção do Tribunal quanto aos factos julgados provados nos pontos 1. A 13. Dos factos provados.

- Fls. 567 a 572: certidão da sentença que declarou a insolvência da sociedade arguida, com nota de trânsito em julgado, fundamental na formação da convicção do Tribunal quanto ao facto julgado provado em 14..

- Fls. 1011 A 1017 - CRC referentes à sociedade arguida e aos arguidos, relevantes na formação da convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados quanto as antecedentes criminais (ou à sua ausência) de cada um;

- informação constante de fls. 540: relevante na formação da convicção do Tribunal quanto ao não pagamento das quantias em causa nos autos.

- Fls. 714 a 844 e 975 a 986: documentos relevantes na formação da convicção do Tribunal quanto ao facto dado como provado no ponto 15. Dos factos provados, circunstância à qual acresceram as declarações dos arguidos e, bem assim, das testemunhas NG, CL e LC.

O Tribunal ouviu o senhor administrador da insolvência, V, que pouco acrescentou com interesse quanto aos factos em discussão no processo, dado que a sua intervenção e conhecimento da sociedade é já no âmbito da sua insolvência.

De todo o modo, asseverou que posteriormente à declaração de insolvência, não existiam quaisquer trabalhadores em exercício de funções.

O Tribunal ouviu ainda LC, técnica especializada do Núcleo de Gestão de Contribuições do CDSS de Évora que prestou um depoimento por referência aos elementos documentais constantes dos autos, os quais sustentou, declarando ter sido dado cumprimento aos procedimentos legais relativamente aos arguidos e reiterando que, a situação de incumprimento nunca foi regularizada.

O depoimento desta testemunha foi importante enquanto complemento e suporte da prova documental já junta aos autos, nomeadamente, no que diz respeito à factualidade referente à arguida pessoa colectiva, tendo auxiliado o Tribunal, na formação da sua convicção quanto à mesma matéria de facto referida a propósito da prova documental.

A sociedade arguida foi declarada insolvente em Setembro de 2007, constando da acusação períodos contributivos referentes a Outubro de 2007 a Dezembro de 2007 e ainda Junho de 2008.

A testemunha referiu terem sido efectuados pedidos de anulação dessas quotizações, sendo que a Segurança Social, na enunciação de tais valores tomou isso em consideração – referiu fls. 79 e ss. dos autos.

Tendo-lhe sido pedido, porém, que explicasse em que termos, não foi capaz de avançar uma solução mais objectiva do que a remissão para o sistema informático, tendo acabado por admitir que, mesmo deixando a sociedade de ter trabalhadores, os mesmos possam continuar a aparecer no sistema, alegando que, os valores registados posteriormente à declaração de insolvência o foram porque alguém, no caso o contribuinte, os lançou, pois que as declarações em causa nos autos não são oficiosas, tendo sido entregues pelo contribuinte.

Ora, da conjugação das declarações do senhor administrador com o depoimento prestado pela testemunha L, ao que acresceu a ponderação do teor dos documentos de fls. 849 a 863 (junto pela arguida – pedido de anulação de declarações – e na sequência do depoimento da testemunha L – conta corrente), tendo o Tribunal considerado ainda o teor dos depoimentos prestados pelas demais testemunhas ouvidas, o Tribunal formou a sua convicção no sentido de dar como não provados os factos que fez inserir no ponto 1. E 2. Dos factos não provados.

Quanto aos administradores da empresa, o conhecimento da testemunha LP adveio, segundo referiu, da consulta ao sistema informático, tendo sido apenas com fundamento nessa informação que instruiu e desenvolveu o processo. De todo o modo, quando questionada, referiu desconhecer se eram eles os responsáveis pela vida da sociedade.

O Tribunal, para além da testemunha acima referenciada, ouviu ainda as seguintes (arroladas pelo Ministério Público ou cuja audição foi determinada pela iniciativa do Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 340.º do CPP):

a. NM (trabalhador da sociedade arguida entre 2001 e 2006)
b. MT (trabalhadora da sociedade arguida durante 20 anos e até 2006)
c. MJ (trabalhadora da sociedade arguida entre 1997 e 2007)
d. PM (trabalhador da sociedade arguida, desde 2004, tendo saído antes do encerramento)
e. RC (trabalhador da sociedade arguida entre 98 e 2001 e 2001 e 2007)
f. LC (mediador de seguros e responsável administrativo da sociedade M)
g. CL (foi trabalhador da M e, bem assim, membro da administração da mesma e da sociedade arguida)
h. MF (trabalhadora da sociedade arguida desde 1986)

Pelas testemunhas que revelaram algum conhecimento directo dos factos e, aliás, conforme já acima referenciado, foi dito que era JA quem punha e dispunha tudo na sociedade, que era ele quem mandava na empresa. E, note-se que tal foi afirmado não somente pelas testemunhas CL e LC, mas pelas próprias testemunhas arroladas na acusação. Por outro lado, por todas foi referenciado que os arguidos pessoas singulares estavam em Lisboa e que, quando se dirigiam às fábricas, no caso, à sociedade arguida, o faziam para discutir aspectos de produção. Nenhuma das testemunhas ouvidas se recordava claramente de quem emitia os cheques para pagamento dos ordenados, nem revelava saber quem fazia o trabalho de envio das declarações.

Aliás, pela própria testemunha identificada em primeiro lugar, que foi aquela que prestou um depoimento mais credível e objectivo, foram referenciadas, nos termos já ditos pelos arguidos, as funções de cada um deles.

E, por esta testemunha foi referenciado igualmente que, até se desvincular da empresa, os atrasos nos salários eram irrelevantes, sendo que, aquilo que se atrasava era o pagamentos dos subsídios.

Esta testemunha sustentou igualmente a existência de um grupo e de uma interdependência entre todas as sociedades a esse grupo pertencentes, nos termos já referenciados, tendo-se referido, no sentido sustentado pelos arguidos, à elaboração de um plano extrajudicial de conciliação, que acabou por vir a não ser aprovado.

Mais referiu esta testemunha que o dono da empresa era JA, que era o sócio maioritário e que todas as decisões importantes eram dele.

A testemunha MT teve dificuldade em identificar um e outro arguido, referindo, para além do mais, desconhecer aquilo que A e J iam fazer à empresa (à sociedade arguida), mas sempre tendo dito que o arguido A dava a volta à fábrica, espreitava para ver a produção e falava com os encarregados, circunstância que foi igualmente afirmada por RC.

As testemunhas MJ e PC distinguiram entre aquilo que chamou de administradores e de patrão.

Pela generalidade das testemunhas foi dito que os salários foram sempre sendo pagos, ainda que com atrasos, sendo os não pagamentos referentes aos subsídios, ainda que por todos tenha sido referenciada a diminuição ou quebra de trabalho.

LC e CL prestaram depoimentos tendentes a suportar a versão dos arguidos, tendo tais depoimentos, porque não contrariados de forma decisiva por qualquer outro meio de prova, e porque, na sua generalidade, foram objectivos, o Tribunal igualmente valorou, nomeadamente dando como não provados os factos constantes dos pontos 3. E ss. dos factos não provados.

O depoimento da testemunha MF foi um depoimento inconsistente, pese embora o maior grau de conhecimento dos factos que revelou ter. De todo o modo, prestou um depoimento claro e objectivo em determinados aspectos, tendo omitido outros aspectos, de forma que o Tribunal reputou de surpreendente para uma pessoa que deveria estar a prestar um depoimento desinteressado. Ora, o Tribunal, contrariamente ao que sucedeu com as demais testemunhas, pese embora não tenha conseguido identificar claramente qual o seu interesse no processo, não pode deixar de reputar o seu depoimento como interessado e, em alguns aspectos, contraditório.

De todo o modo, o Tribunal ponderou a circunstância de a testemunha ter referido que existia apenas uma única tesouraria do grupo M, em Lisboa, sendo que a testemunha – pese embora em exercício de funções nos escritórios da I (por regra) enviava a documentação para Lisboa, nada mais sabendo do que, de seguida, se passava, ”.

Como resulta com exemplar clareza da própria literalidade da norma, os vícios do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal são os que se detectam no próprio texto da decisão, “por si só ou conjugado com as regras da experiência comum”. É também esta a leitura uniforme e pacífica da jurisprudência e da doutrina.

Assim, o leitor retirará da simples análise do texto, sem recurso a qualquer outro elemento do processo, a detecção de um dos três vícios – insuficiência da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, e erro notório na apreciação da prova.

No caso, o Ministério Público invoca o erro notório.

Trata-se de um erro (ignorância ou falsa representação da realidade) evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. Consiste em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum.

É uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Da leitura do recurso resulta que o Ministério Público pretende impugnar a matéria de facto, mas afirma simultaneamente a existência de erro notório, aqui, indevidamente.

Nem na motivação e nas conclusões do recurso se diz onde se situa o erro notório, nem tal vício é detectável do texto da sentença.

O texto antes evidencia a preocupação revelada na explicitação (exemplarmente conseguida) da formação da convicção da Senhora Juíza, apresentando-se a motivação da sentença desmerecedora de qualquer reparo a nível formal.

Cumpre, então, proceder à peticionada sindicância material ou substancial, de acordo com o pedido do recorrente, e entrando agora na apreciação dos concretos factos por via das concretas provas.

Dissemos já que o recurso da matéria de facto implica, não a reapreciação total do complexo das provas, mas a reapreciação da razoabilidade da decisão do tribunal de julgamento quanto aos pontos de facto que o recorrente indica como incorrectamente julgados.

Esses pontos de facto são, no caso, os factos não provados (todos eles à excepção dos indicados em 1. e 2., cuja ausência de demonstração é aceite pelo recorrente - os factos ocorridos entre Outubro de 2007 e Junho de 2008 ficam, assim, definitivamente arredados do objecto do processo).

Assim, de acordo com a ordem de apreciação a que procederemos, o Ministério Público insurge-se contra a resposta de “não provado” dada a:

1º - Factualidade respeitante à imputação dos factos provados à pessoa dos dois arguidos A e J;

2º - Factualidade respeitante à imputação dos factos provados à pessoa da arguida I..., S.A.

Centramo-nos agora apenas na prova dos factos relativos à responsabilidade dos arguidos pessoas físicas.

Dissemos já que o exame crítico da prova cumpre as exigências formais de fundamentação, tendo o tribunal dado a conhecer as razões racionais e objectivas da decisão. Identificou as provas produzidas e examinadas em audiência e expôs as razões de forma objectiva e precisa.

O facto impugnado ora em apreciação centra-se na imputação subjectiva dos factos provados à pessoa dos dois arguidos.

Recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir a presunção de inocência, impondo o in dubio pro reo a valoração do non liqued em questão de prova, sempre no sentido favorável ao arguido.

A conclusão de não provado baseou-se na constatação deste non liqued, tendo-se decidido não ser possível concluir, com a segurança que o direito exige, pela responsabilidade dos arguidos nos factos.

Muito sinteticamente, a sentença explica que havia um terceiro administrador da sociedade empregadora dos trabalhadores a quem foram retiradas da remuneração bruta as quantias a título de contribuições para a Segurança Social e não entregues à Segurança Social; que este terceiro administrador faleceu entretanto e por essa razão não foi julgado; que, de acordo com a leitura das provas a que se procedeu, este se apresenta, com um grau de probabilidade muito superior ao dos dois arguidos, como sendo o único potencial responsável pela prática dos factos.

Após análise exaustiva e rigorosa de todas as provas, aí se conclui “pelas testemunhas que revelaram algum conhecimento directo dos factos foi dito que era JA quem punha e dispunha tudo na sociedade, que era ele quem mandava na empresa. E, note-se que tal foi afirmado não somente pelas testemunhas CL e LC, mas pelas próprias testemunhas arroladas na acusação. Por outro lado, por todas foi referenciado que os arguidos pessoas singulares estavam em Lisboa e que, quando se dirigiam às fábricas, no caso, à sociedade arguida, o faziam para discutir aspectos de produção. Nenhuma das testemunhas ouvidas se recordava claramente de quem emitia os cheques para pagamento dos ordenados, nem revelava saber quem fazia o trabalho de envio das declarações”.

Aí se esclarece também que às mesmas conclusões se chega através da leitura da prova documental – “mostra-se junta aos autos, a fls. 1041 e ss. cópia de uma acta de reunião do Conselho de Administração da sociedade M, cujo conteúdo permite comportar a versão apresentada pelos arguidos em audiência, quanto às funções efectivas e concretas de JA, especificamente, quanto à sociedade do grupo, a sociedade arguida. De tal documento resulta que o mesmo assumiria – facto que foi posteriormente levado ao registo comercial – as funções de administrador delegado da M, com as funções de coordenação e supervisão das actividades das empresas do grupo M, da mesma resultando igualmente que foi decidido proceder à apreciação da proposta de organigrama e definição de funções, elemento esse que se mostra igualmente junto aos autos e do qual resulta que os ora arguidos, pessoas singulares, tinham como incumbências o mercado externo (A) e o plano administrativo (J). Mais se mostra junto a fls. 1047, o organigrama do Grupo, do qual resulta que a sociedade arguida, como, aliás, foi afirmado pelos arguidos, era uma das 4 que fazia parte do grupo”.

Considera o Ministério Público que o tribunal avaliou mal as provas pois elas permitiriam concluir pela responsabilização dos dois arguidos, independentemente ou apesar da eventual responsabilidade cumulativa do falecido JA nos factos.

Assim resultaria da prova documental – certidão de matrícula da sociedade arguida I onde consta que no quadriénio 2003/2006 o conselho de administração era composto por A como presidente e por J e JA como vogais – e da prova testemunhal, tendo as testemunhas por si arroladas referido que os dois arguidos iam à fábrica, que o arguido A dava a volta à fábrica e falava com os encarregados.

Adita que os dois arguidos tinham habilitações literárias e conhecimentos técnicos bastantes para conhecer cabalmente da real situação da sociedade arguida, da obrigação de entrega atempada à Segurança Social das prestações devidas nos termos da lei e que as mesmas não lhe pertenciam, nem podiam dispor delas por qualquer forma ou fim.

Acrescenta, por último, ser irrelevante a “preponderância” do JA, uma vez que os arguidos A e J não eram obrigados a obedecer a ordens que constituíssem crime, podendo abandonar voluntariamente os órgãos decisores da sociedade, o que não aconteceu.

De tudo resulta que o Ministério Público pretende que seja feita uma diferente leitura das provas que, no caso, adianta-se já, não é possível.

O tribunal da Relação sindica a decisão da matéria de facto mas sem se colocar na mesma posição do juiz de 1ª instância conhecendo do objecto do processo (acusação) através da (re)avaliação de todas as provas produzidas em julgamento. Aquilo que se pede (que pode ser pedido) à Relação é que sindique um juízo de apreciação de prova já efectuado (por outro tribunal) e não que decida directamente da verdade dos factos de uma acusação e de acordo com a totalidade das provas.

Cabe-lhe o controlo do julgamento e não a repetição do julgamento

Assim, a prova documental ora indicada como concreta prova não permite corrigir o juízo do tribunal de 1ª instância no sentido de “da circunstância dos arguidos constarem, no registo comercial como membros do conselho de administração não pode valer por si só, pois que, apenas permite concluir que, de direito, os mesmos eram administradores, mas não que, de facto o eram”.

Também as concretas provas pessoais indicadas – os depoimentos das testemunhas de acusação – não levam à detecção do erro de facto no sentido de demonstrarem que o tribunal de julgamento avaliou mal, que não podia ter deles retirados as conclusões que retirou.

Pelo contrário, apenas a leitura que delas faz o Ministério Público, que se admite como uma das leituras possíveis, diverge daquela que o tribunal efectuou mas não chega para se poder agora concluir que o tribunal de julgamento errou.

Na verdade, também a motivação da sentença encara e trata os mesmos factos instrumentais que o recorrente refere – as deslocações dos arguidos à fábrica e a forma como aí comportavam – procedendo à avaliação destes indícios no conjunto da prova, os quais não implicam concluir pelo exercício de um efectivo poder de decisão e de responsabilidade dos arguidos nos factos dos autos.

É possível, ou até mesmo provável que os dois arguidos tenham actuado da forma descrita na acusação; ou que tenham, pelo menos, conhecido e querido ou conhecido e aceite os factos provados.

Mas, na expressão sempre actual de Cavaleiro de Ferreira, “provado e provável são expressões antitéticas dum ponto de vista jurídico” (Curso de Processo Pena II, 1981, p. 283).

E sendo o crime da absolvição um crime doloso, nem sequer cumpriria apurar da eventual violação ou omissão de um qualquer dever de cuidado que impendesse especificamente sobre os dois arguidos.

As concretas provas ora indicadas não impõem, quanto a eles, decisão diversa da proferida pelo tribunal de 1ª instância e não permitem alterar a matéria de facto no sentido de concluir, designadamente, que eram os dois arguidos quem procedia ao pagamento das remunerações aos trabalhadores, cabendo-lhes igualmente a tarefa de efectuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social e entregar o respectivo montante à Segurança Social; que eram eles os responsáveis por toda a actividade desenvolvida na sociedade arguida, nomeadamente no tocante ao preenchimento das declarações sociais e ao apuramento e pagamento de todos os impostos e contribuições sociais devidas e à sua entrega ao Estado e à Segurança Social.

Resta apreciar o ponto de facto indicado em segundo lugar, ou seja, da responsabilidade da arguida I S.A. nos factos.

Como se viu, o raciocínio sobre as provas efectuado na sentença traduziu-se no seguinte: a sociedade teve, de direito, três administradores – os dois arguidos A e J, e o falecido JA; mas, de facto, quem administrava a sociedade e exercia os poderes de decisão quanto ao preenchimento das declarações sociais e ao apuramento e pagamento de todos os impostos e contribuições sociais devidas e à sua entrega ao Estado e à Segurança Social seria este último (JA). Pelo menos, as provas apontam prevalentemente neste sentido.

Assim, foi esta maior probabilidade de responsabilidade ou o papel preponderante (como diz o Ministério Público) deste administrador de direito na sociedade, que veio a ditar a sorte dos dois arguidos pessoas físicas – a absolvição. Pode ter sido JA, por si só, a agir da forma objectivamente descrita na acusação e subjectivamente imputada aos dois arguidos. Pode ter sido este e não os dois arguidos.

Até aqui, o exame crítico da prova não merece censura.

Mas, prossegue-se na sentença, embora já na decisão de direito (a ela temos, porém que ir, na medida em que a questão de facto ora em apreciação, embora necessariamente precedente, está muito estreitamente ligada à questão de direito. Aqui, como nunca, “uma quaestio juris é uma quaestio juris de uma certa quaestio facti” e “uma quaestio facti é necessariamente a quaestio facti de uma certa quaestio júris” (António Castanheira Neves, “A Distinção entre a Questão-de-facto e a Questão-de-direito e a Competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de «Revista» ”, in Neves, António Castanheira, Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, vol. 1º, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 511)).

Diz-se, então, já no enquadramento jurídico dos factos:

No que diz respeito à pessoa colectiva, a verdade é que se provou que esta, na prossecução e exercício da sua actividade, possuía diversos trabalhadores a seu cargo, a quem pagava, mensalmente, os respectivos salários.

Está igualmente provado que a sociedade arguida efectuou pagamentos salariais, sendo que dessas remunerações brutas lhes retirou quantias, a título de contribuições para a Segurança Social, quantias essas que não foram por si entregues à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos noventa dias subsequentes, nem nos 30 dias após terem sido notificados para o seu pagamento, mostrando-se tal montante por pagar até à presente data.

Tais circunstâncias, admitindo que se tinham provado os demais elementos do tipo subjectivo de ilícito, seriam de molde a concluir que, sendo a responsabilidade criminal cumulativa, para as empresas e para os seus administradores, a sociedade arguida poderia ser responsabilizada pela prática do crime pelo qual vinha acusada.

Sucede que, de harmonia com o disposto o artigo 11.° do Código Penal, salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.

Consagra este artigo o princípio do carácter pessoal da responsabilidade criminal, recusando, como regra, a atribuição da qualidade de sujeitos activos de infracções criminais às pessoas colectivas, quer porque o fim de prevenção especial das penas seria inoperante quanto a elas, quer porque são insusceptíveis de imputação moral, e dada a impossibilidade de se cometer um crime por intermédio dos órgãos sociais.

Assim, para que as pessoas colectivas sejam susceptíveis de responsabilidade criminal é necessário que a lei expressamente o diga (cf. Acórdão STJ de 02.02.2000, in SASTJ, n.° 38, p. 68), sendo certo que, conforme já acima referenciado, no âmbito da criminalidade fiscal foi consagrada uma excepção ao carácter pessoal da responsabilidade criminal, admitindo-se a responsabilidade das pessoas colectivas, pelas infracções cometidas pelos seus órgãos ou representantes.

Na verdade, a prática de crime fiscal, como qualquer ilícito criminal, é o resultado de uma acção (ou omissão) humana, necessário se tornando identificar, em concreto, o ente singular que, enquanto seu órgão ou representante, em seu nome e no interesse colectivo, actuou.

Esta responsabilidade da pessoa colectiva é cumulativa da responsabilidade dos seus representantes por crimes praticados no exercício das suas funções, isto é, estende-se-lhe a responsabilidade do agente pessoa física.

Assim sendo, é nosso entendimento o de que a sociedade só pode ser responsabilizada na medida em que o agente o seja também por ter sido ele o autor da conduta – ainda que em nome da sociedade -, sendo, por isso, " impossível que uma pessoa colectiva seja responsável se a pessoa física que tiver actuado em seu nome e no seu interesse não for também responsabilizada", como defende Isabel Marques da Silva, a propósito da responsabilidade fiscal das pessoas (vide Responsabilidade Fiscal Penal Cumulativa das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes).

Entendemos, pois, que a sociedade só é responsável na medida em que os seus agentes o sejam também, ou seja "a responsabilidade da pessoa colectiva pressupõe sempre que o titular do órgão ou o seu representante actuou por ela com culpa, pois a culpa da pessoa colectiva comunga da culpa daquele que age como seu órgão ou representante ".

No caso em apreço, não foi acusado um dos administradores da sociedade, por ter falecido, nenhuma outra consideração quanto à sua eventual responsabilidade tendo sido feita pelo Ministério Público ou constando da acusação, tendo-se extinguindo a sua responsabilidade criminal.

Quanto aos que foram acusados, conforme se referiu, não foi possível concluir que estes tivessem sido agentes da infracção ou a tenham ordenado.

Por essa razão, não pode, consequentemente a sociedade, sozinha, assumir responsabilidade penal.

Em consonância com o exposto, entendemos que não pode ser imputada a responsabilidade penal à sociedade arguida.

Com o que irão todos os arguidos absolvidos.”

Concorda-se genericamente com as razões aduzidas.

Cumpre no entanto aditar algo que não foi considerado na sentença, se bem que, a final, não venha a importar decisão divergente.

É certo que a responsabilidade criminal da pessoa colectiva exige sempre o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa colectiva, que será aquele que nela exerce liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (art. 11º, nº 2 - a) e b) do Código Penal).

Mas essa responsabilidade criminal (da pessoa colectiva) não exige necessariamente a responsabilização (condenação) do seu agente. Assim sucederá, por exemplo, quando esse agente entretanto faleceu ou quando o procedimento criminal quanto a ele se extinguiu por qualquer outra razão. Basta que seja factualmente possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta.

Assim sucederá, também, nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime; por outras palavras, quando se sabe que a responsabilidade cabe a um dos administradores da sociedade, mas não é possível precisar a qual deles. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e no seu interesse), a pessoa colectiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.

À partida, poderia ser esta a hipótese dos autos.

Como refere Germano Marques da Silva, “importa considerar os casos em que o tribunal pode comprovar que o acto foi praticado por um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo, sem o que não poderia ter ocorrido nos termos concretos em que foram realizados, mas não seja possível individualizar de entre aqueles quem foi o agente do acto. Cremos que esta dificuldade não impede a responsabilização da pessoa colectiva, desde que seja possível decidir que o acto só podia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas de um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo. É o que pensamos ser o sentido útil da parte final do nº 7 do art. 11º” (Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – alterações ao Código Penal, Rev. Cej nº 8, p. 87).

E a tal não obstaria a dissolução da sociedade por insolvência, pois “no caso de extinção da pessoa colectiva ou entidade equiparada, o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que for condenada” (art. 127º, nº2 do Código Penal).

Em suma, a lei exclui a imputação dos factos à pessoa colectiva quando não for viável imputá-los a quem nela ocupe posição de liderança. Mas é possível que essa imputação se faça relativamente a quem ocupe posição de liderança mesmo que não seja possível apurar concretamente a qual de entre os vários líderes.

Diz, então, o recorrente que “no caso concreto, estão indubitavelmente identificados as pessoas físicas pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, são os administradores da sociedade arguida à data dos factos, melhor identificados na certidão de matrícula da mesma, e que durante o período contributivo em discussão actuaram na qualidade de administradores, desempenhando as suas funções e auferindo remunerações à medida das mesmas”.

Mas ficou provado que “no quadriénio 1999/2002, o Conselho de Administração da sociedade arguida tinha a seguinte composição: Presidente – JS; vogais – A e JA. E que no quadriénio 2003/2006 o conselho de administração da sociedade arguida tinha a seguinte composição: presidente – A; vogais: JA e J”.

Como também se viu, não foi possível concluir terem sido os dois arguidos acusados as pessoas físicas responsáveis pelos factos provados. E assim sucedeu por a leitura das provas ter desviado essa responsabilidade para a pessoa de um terceiro administrador, já falecido.

Assim, a leitura das provas teria consentido dar como provado que pelo menos um dos três agentes, teria praticado os factos em nome e no interesse da sociedade arguida. O que, mesmo na ausência de individualização/determinação do agente físico concreto, teria bastado para determinar a sua responsabilização e condenação.

Uma leitura apressada da sentença parece indicar que ela pede correcção nos termos agora expostos. E assim seria caso a absolvição decorresse apenas como consequência automática e/ou necessária da absolvição dos dois arguidos.

Mas nela se diz acertadamente que “no caso em apreço, não foi acusado um dos administradores da sociedade, por ter falecido, nenhuma outra consideração quanto à sua eventual responsabilidade tendo sido feita pelo Ministério Público ou constando da acusação”.

Ou seja, a responsabilização da sociedade arguida, neste contexto e neste momento processual, implicaria a adição e apreciação de factos que não estão na acusação.

Enquanto titular do exercício da acção penal (art. 219º, nºs 1 e 2 da CRP), norteada pelo princípio da legalidade, compete ao MP dirigir o inquérito e deduzir acusação, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade (art. 53º do CPP). A “legalidade de actuação do Ministério Público significa que ele tem o dever de dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher indícios suficientes na fase de investigação (art. 283º, nº1 do CPP) ”, o que no CPP constitui “o ponto de partida da modelação do sistema” (Anabela Rodrigues, O inquérito no novo CPP, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo CPP, Cej, 1988, p. 74).

Assim, era ao Ministério Público que competia acautelar a condenação da arguida através da articulação de todos os factos necessários à sua responsabilização, a qual deriva mediatamente da responsabilização dos agentes físicos e exige a narração factual de todos os respectivos factos típicos.

Os factos relativos à conduta do administrador JA importavam para condenação da arguida sociedade, e vieram, a final, a revelar-se essenciais e imprescindíveis à procedência da acusação quanto a ela, independentemente ou apesar do falecimento dele.

Na falta destes factos – não estão na acusação nem tão pouco foram accionados os mecanismos legais que tratam da alteração de factos arts 358º e 359º do Código de Processo Penal – nada mais resta do que manter integralmente a sentença.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar improcedente o recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Évora, 26.06.2012

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)