Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOISÉS SILVA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO CINTO DE SEGURANÇA DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA | ||
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Data do Acordão: | 01/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | O simples não uso do cinto de segurança não conduz só por si à conclusão de que o sinistrado atuou com negligência grosseira e que tal foi causa exclusiva do acidente de trabalho. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO Apelante: Seguradoras, Unidas, SA (ré seguradora). Apelada: A… (autora, beneficiária). Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo do Trabalho de Santarém, J2. 1. A autora, na qualidade de viúva de B..., sinistrado falecido, intentou a presente ação emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, contra: - Seguradoras Unidas, SA, e Transportes Rodrigo Costa e Filho, SA, pedindo a condenação destas, a título subsidiário, no pagamento de uma pensão anual vitalícia no montante de € 4 908,29 (quatro mil, novecentos e oito euros e vinte e nove cêntimos) até atingir a idade da reforma e a quantia de € 6 544,39 (seis mil, quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e nove cêntimos) depois de atingir a idade da reforma por velhice, com inicio em 29.06.2017 e juros de mora sobre os duodécimos já vencidos; subsídio de férias e de Natal a pagar respetivamente em junho e novembro de cada ano; subsídio por morte no montante de € 5 533,68 (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos); subsídio por despesas de funeral no montante de € 3 689,12 (três mil, seiscentos e oitenta e nove euros e doze cêntimos) e despesas efetuadas com transporte e alimentação no montante de € 60 (sessenta euros). Alega, para tanto e em síntese, que B... sofreu um acidente de viação quando prestava o seu trabalho de motorista para a sua entidade empregadora Transportes Rodrigo Costa e Filho, SA, do qual resultaram lesões que lhe causaram a morte, tendo a entidade empregadora transferido a sua responsabilidade infortunística-laboral para a ré Seguradoras Unidas, SA. Mais alega que era casada com o sinistrado e é a sua única beneficiária legal, pelo que lhe assiste o direito a ser ressarcida dos danos causados ao sinistrado decorrentes do acidente de trabalho do qual em causa nos autos. Procedeu-se à citação das rés e do ISS, IP, sendo este para os efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, nada tendo sido requerido. A R. seguradora apresentou contestação na qual declarou aceitar a transferência de responsabilidade no âmbito do contrato de seguro em causa, até ao montante anual de € 16 360,98, a ocorrência do acidente em causa e o nexo de causalidade entre aquele e as lesões, mas não aceita a sua caraterização como acidente de trabalho, por entender que o mesmo ocorreu por negligência grosseira do sinistrado, que deu causa ao acidente de viação, uma vez que este conduzia de forma desatenta e descuidada, com velocidade desadequada ao local, e não sem fazer uso do cinto de segurança, concluindo pela sua descaraterização. Citada, a ré empregadora, esta excecionou a caducidade do direito de ação por à data da apresentação da Petição Inicial terem decorrido mais de 20 dias a contar da data da frustração da conciliação, concluindo pela extemporaneidade da apresentação da Petição Inicial. Mais apresentou defesa por impugnação alegando que aceita a ocorrência do acidente e o nexo causal entre o acidente e as lesões e entre estas e a morte do sinistrado, assim, como a transferência para a ré seguradora da responsabilidade infortunistico-laboral pela retribuição auferida pelo sinistrado. Não aceita, assim, qualquer responsabilidade pelos danos decorrentes do acidente, porque participou o mesmo à seguradora. Alega, ainda, que o acidente sucedeu por negligência grosseira do trabalhador, que no momento do embate não fazia uso do cinto de segurança, o que determinou que tivesse sido projetado do veículo vindo a sofrer as lesões que lhe determinaram a morte. Termina peticionando a improcedência da ação. Notificadas, abrigo do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil ex vi artigo 61.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, para se pronunciem sobre a eventual verificação da exceção de ilegitimidade passiva da ré empregadora, a autora pugnou pela legitimidade processual da ré e a ré empregadora pronunciou-se pela respetiva ilegitimidade. Foi proferido despacho saneador, no qual se conheceu oficiosamente da exceção de ilegitimidade passiva da ré empregadora, Transportes Rodrigo Costa e Filho, SA, a qual foi julgada procedente e absolvida da instância. Foram julgados verificados os demais pressupostos processuais e foi julgada improcedente a exceção de caducidade do direito de ação da autora. Foi proferido despacho de seleção da matéria de facto assente e de identificação do objeto do litígio e temas da prova, o qual foi não foi objeto de reclamação. As partes apresentaram os respetivos requerimentos probatórios ao abrigo do disposto no artigo 133.º do Código de Processo do Trabalho. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, conforme consta das respetivas atas. De seguida foi proferida sentença com a decisão seguinte: Em face do supra-exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação intentada por A… e, em consequência, condenar a ré Seguradoras Unidas, SA, a pagar à autora: 1.º - A pensão anual e vitalícia, no montante de € 4 908,29 (quatro mil, novecentos e oito euros e vinte e nove cêntimos) até à idade da reforma, e no montante de € 6 544,39 (seis mil, quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e nove cêntimos) após essa idade, em prestações mensais e no seu domicílio, desde 29/06/2017, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre as mensalidades já vencidas e não pagas na sua totalidade ou em parte; 2.º - Os subsídios de férias e de Natal, desde 29/06/2017, correspondentes, cada um, a 1/14 do montante da pensão anual, bem como juros de mora sobre as mensalidades já vencidas e não liquidadas na sua totalidade ou em parte; 3.º - O subsídio por morte do sinistrado, no montante de € 5 561,42 (cinco mil, quinhentos e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal devidos desde 29/06/2017. Absolver a ré do demais peticionado. Condena-se a ré nas custas da ação. Fixa-se o valor da ação em € 75 077,53 (setenta e cinco mil e setenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos). 2. Inconformada, veio a ré seguradora interpor recurso de apelação, que motivou e apresentou as conclusões seguintes: 1. Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica do Meritíssimo Juiz a quo afigura-se à recorrente Seguradoras Unidas, S.A que a douta Sentença recorrida, não poderá manter-se. 2. Vem o presente recurso interposto da Sentença de fls. dado que nela se decidiu pela não descaraterização do acidente em causa como acidente de trabalho. 3. O que não se aceita na medida em que tal decisão, a concretizar-se, traduz uma violação das mais elementares regras legais e processuais, nomeadamente, e entre outras, a prevista no n.º 1 do art.º 14.º da LAT. 4. Não se conformando a recorrente, e a par do referido, com o teor do ponto 35 da matéria de facto não provada — que se encontra incorretamente julgado que, pelas razões que explicaremos, e face aos elementos de prova constantes neste processo, não podem merecer por parte do Meritíssimo Senhor Juiz a quo a análise e a resposta exarada na douta sentença. 5. Devendo, ainda, e por outro lado, ser acrescentada à factualidade provada que: “O condutor do veículo FT conduzia de forma desatenta e descuidada”. 6. Tanto quanto se apurou, o condutor do FT circulava naquela Estrada Nacional de forma totalmente desatenta, negligente e desadequada às condições da via e ao veículo pesado que conduzia, pelo que perante a eminência da curva que se lhe deparou, não logrou controlar a linha e posição de marcha do mesmo, entrando em despiste isolado e transposto a linha contínua ali existente no eixo da via, que separa ambas as hemifaixas de rodagem. 7. Sem que adotasse uma velocidade adequada ao local e uma posição de marcha adequadas ao local e em conformidade com as competentes regras estradais e sem que nada o justificasse, o condutor do FT perdeu o controlo do seu veículo pesado, que entra em marcha desgovernada, e invadiu, repentinamente, a hemifaixa de rodagem esquerda (cfr.Doc. 1). 8. O que faz numa manobra totalmente descontrolada, desmesurada e injustificada. 9. O condutor do pesado FT circulava de forma absolutamente desatenta e descuidada e não acurou numa circulação conveniente e adequada ao traçado que a faixa de rodagem ali descreve, facto que, associado, de resto, às enormes dimensões do pesado FT e a uma velocidade desadequada ao local, conduziu ao acidente ocorrido. 10. Violou, assim, de forma altamente grosseira, regras estradais primordiais cuja observância impõe aos condutores que circulem sobre o lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, moderando especialmente a velocidade em locais de curva e abstendo-se de invadir a outra metade da faixa de rodagem. 11. O que teria de cuidar, tanto mais que, configurando o local uma extensa reta seguida de curva ligeira à direita, o mesmo condutor poderia e deveria ter avistado, com a antecedência necessária, a existência da mesma curva e adequar a circulação do FT às condições do local, designadamente imprimindo ao mesmo uma velocidade adequada ao traçado que iria percorrer com aquele pesado, naturalmente instável, dadas as suas dimensões. 12. Poderia, por isso, ter tomado as precauções necessárias e evitar o embate que se veio a verificar, o que não fez. 13. Resulta, pois, do exposto ser o acidente em apreço da inteira e exclusiva responsabilidade do condutor do veículo FT, a qual, com a sua conduta, revelou um absoluto alheamento às mais elementares regras estradais, nomeadamente às previstas nos artigos 11º, 13º, 24º e 25.º, todos do Código da Estrada, bem como o sinal M1 “Linha contínua” prevista no artigo 60º do Regulamento de Sinalização de Trânsito. 14. O presente acidente de viação ocorreu em consequência do comportamento do sinistrado em violação, sem qualquer causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei. 15. Em qualquer caso e ainda que, por absurdo, assim não se considerasse, sempre seria de considerar que, face ao descrito, o acidente de viação objeto dos autos ocorreu exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado condutor. 16. Como descreveram as testemunhas (…) e (…) o camião “vinha desgovernado”, “ia lançado”, “foi tudo muito rápido”, “nem sequer travou”, “ouviu-se um estrondo enorme”. 17. Ainda que, como refere a Sentença recorrida, se possa não ter apurado, com exatidão, a velocidade de circulação do FT – o que não se admite – a verdade é que, da prova produzida em audiência de julgamento (nomeadamente perante os depoimentos e descrição das testemunhas (…), (…) e (…), aqui parcialmente transcritos) resulta demonstrado que a velocidade de circulação do FT, evidenciada pelas caraterísticas da via, pelo trajeto e comportamento do veículo, pela rapidez e violência dos embates, pela projeção do sinistrado e dos seus pertencentes, a distância a que o veículo se imobilizou, os pontos de embate, a falta de reação de todos os condutores, era excessiva e desadequada ao local. 18. Só assim, de resto, se compreende que, de dia, num local com boa visibilidade, piso betuminoso, em bom estado de conservação, sem qualquer intervenção de terceiros, tenha perdido o controlo do veículo, entrado em despiste, batido na valeta de cimento, subido o talude à sua direita, atravessado a faixa de rodagem para a sua esquerda, transposto a linha longitudinal contínua existente no eixo da via, invadido a hemifaixa de rodagem contrária, saído da fixa pela berma esquerda, descido o talude ali existente e circulado sobre o terreno agrícola — cfr. pontos 12, 19 e 24 da resposta à matéria de facto provada. 19. Por outro lado, olhando para os (diminutos) danos sofridos pelo veículo e para toda a dinâmica deste acidente somos forçados a concluir, que se o sinistrado estivesse a utilizar cinto de segurança não teria sido projetado, não teria sofrido as lesões documentadas (choque pélvico causado por lesões traumáticas abdominais que foram a causa da morte), nem teria falecido. Sendo que o sinistrado veio a falecer por não estar a utilizar aquele dispositivo de segurança. 20. O acidente de viação dos autos não dá direito à reparação legalmente prevista para os acidentes de trabalho, nos termos do disposto no artigo 14.º da LAT, mostrando-se descaracterizado. 21. Não se pode aceitar a resposta e a redação do ponto 35 dos factos não provados, que, visto está, não se encontra correta e que terá que ser alterada ou passar para a lista dos factos provados. 22. O conceito de “velocidade excessiva” tem que ser analisado na sua dupla vertente, considerando, para além dos limites legais, a adequação (ou não) à situação concreta. Tanto mais que, no caso, estamos perante um veículo pesado! 23. O ponto 35 dos factos não provados face aos elementos de prova constantes neste processo, não pode merecer por parte do Meritíssimo Senhor Juiz a quo a análise e a resposta exarada na douta sentença. Devendo, ao invés, constar da lista de factos provados — o que se requer. 24. Na hipótese de se entender que não se apurou a velocidade concreta imprimida pelo Sinistrado ao veículo FT, aquando do embate, o que se concede apenas por mera hipótese de raciocínio, deverá sempre o conteúdo do ponto 35 da lista de factos não provados ser alterada, passando para a lista de factos provados, com a redação de que a velocidade que o sinistrado imprimia, naquele dia, ao veículo FT era excessiva e desadequada o local, às caraterísticas da via e às condições envolventes e à tipologia do veículo que conduzia. 25. A Sentença proferido violou, pois, o disposto nos artigos 14.º, n.º 1, da LAT. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso interposto ser julgado procedente e, consequentemente, ser a decisão proferida alterada em conformidade com o aqui exposto, com todas e as devidas consequências legais. 3. Não foram oferecidas contra-alegações: 4. O Ministério Público emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida. Notificadas, a apelante veio reafirmar o anteriormente alegado. 5. Dispensados os vistos, em conferência, cumpre apreciar e decidir. 6. Objeto do recurso O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso. Questões a decidir: 1. Impugnação da matéria de facto. 2. Descaraterização do acidente de trabalho. II – FUNDAMENTAÇÃO A) DE FACTO A sentença recorrida considerou provada a matéria de facto seguinte: 1. O sinistrado B… e a autora A… celebraram casamento civil em 20 de agosto de 1985, sem convenção antenupcial [alínea A) dos factos assentes]. 2. Do casamento entre o sinistrado e a autora A… nasceu, em 2 de julho de 1987, C… [alínea B) dos factos assentes]. 3. O casamento entre o sinistrado e a autora foi dissolvido por morte daquele, em 28 de junho de 2017 [alínea C) dos factos assentes]. 4. A autora nasceu em 27 de fevereiro de 1965 [alínea D) dos factos assentes]. 5. O sinistrado nasceu em 18 de maio de 1962 [alínea E) dos factos assentes]. 6. O sinistrado foi admitido ao serviço da ré Transportes Rodrigo Costa e Filho, S.A., em 23 de julho de 1997, para exercer as funções correspondentes à categoria profissional de motorista de pesados [alínea F) dos factos assentes]. 7. Como contrapartida do seu trabalho, o sinistrado auferia a retribuição mensal ilíquida de € 630 x 14 de salário base, € 73,13 x 14 de diuturnidades, € 4,66 x 22d x 11m/ano de subsídio de alimentação, € 257,29 x 12m/ano em média de prémio de Produtividade, acrescido de € 195,33 x 12m/ano de média de gratificações [alínea G) dos factos assentes]. 8. A ré Transportes Rodrigo Costa & Filho, S.A. tinha a sua responsabilidade emergente de danos em acidentes de trabalho transferida para a ré Seguradoras Unidas, S.A. mediante contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho para trabalhadores por conta de outrem, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º 10.00318149, pela retribuição anual de € 16 360,98 (dezasseis mil, trezentos e sessenta euros e noventa e oito cêntimos) correspondente a € 630,00 x 14m (salário base) + € 73,13 x 14 (diuturnidades) + € 4,66 x 22d x 11m/ano (subsídio alimentação) + € 257,29 x 12m/ano (média de prémio de produtividades) + € 195,33 x 12m/ano (média de gratificação) [alínea H) dos factos assentes]. 9. No dia 28 de junho de 2017, pelas 10 horas, o sinistrado B... deslocava-se na EN 114, Km 68,280, Secorio, no sentido Santarém/Rio Maior, ao volante do veículo pesado de mercadorias com a matrícula 09-FT-09 e semi-reboque de carga com a matrícula L-181863, ao serviço da empregadora Transportes Rodrigo Costa & Filho, S.A., quando se despistou, saiu da estrada e embateu num muro de proteção de um poço [alínea I) dos factos assentes]. 10. Como consequência direta e necessária do embate referido em 9), o sinistrado sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia que aqui se dá por reproduzido, que lhe causaram a morte [alínea J) dos factos assentes]. 11. O sinistrado foi sepultado no cemitério de Alguber, concelho de Cadaval, para onde o seu corpo foi trasladado [alínea K) dos factos assentes]. 12. O local do acidente tinha boa visibilidade, piso betuminoso e em bom estado de conservação [alínea L) dos factos assentes]. 13. O local do acidente configura uma reta seguida de curva ligeira à direita, com inclinação descendente de 5% no sentido de marcha do veículo pesado de mercadorias de matrícula 09-FT-09 (doravante FT) [alínea M) dos factos assentes]. 14. O local tem como limite de velocidade 50 km/h, a faixa de rodagem tem a largura de 6,00m [alínea N) dos factos assentes]. 15. O local do embate situa-se dentro dos limites de uma localidade. 16. A faixa de rodagem é composta por duas hemifaixas de rodagem, afetas a ambos os sentidos de trânsito, Santarém - Rio Maior e vice-versa, separadas entre si por uma linha de traço contínuo. 17. No local a faixa de rodagem é ladeada por bermas de 0,50 m. 18. Na berma do lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo FT, existe de uma valeta em cimento. 19. As condições de visibilidade, à data e hora do acidente, eram boas, era dia, o tempo era bom [alínea O) dos factos assentes]. 20. O piso encontrava-se molhado. 21. À hora do acidente, à frente do FT circulava um veículo ligeiro e em sentido contrário circulavam dois veículos ligeiros. 22. No local do despiste e após este ficaram na faixa de trânsito marcas no piso, plásticos e outros vestígios. 23. O semi-reboque do FT circulava sem carga. 24. O veículo FT circulava pela hemi-faixa direita atento o seu sentido de marcha e, ao descrever a curva, por motivo não concretamente apurado, o sinistrado perdeu o controlo do veículo, que entrou em despiste, bateu na valeta de cimento, subiu o talude à sua direita e após, atravessou a faixa de rodagem para a sua esquerda, transpôs a linha longitudinal contínua ali existente no eixo da via, invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária e saiu da faixa pela berma esquerda, desceu o talude ali existente e circulou em linha reta sobre um terreno agrícola. 25. Ao transpor o talude, uma das portas do veículo abriu-se e o sinistrado foi projetado para fora da cabine do FT, vindo a cair no chão do terreno agrícola, onde ficou imobilizado. 26. O FT continuou a circular, até embater num poço existente no terreno agrícola, onde ficou imobilizado. 27. O embate do FT no poço deu-se com a sua parte frontal esquerda, sob a base da cabine. 28. Na sequência do embate, o veículo não sofreu quebra do vidro para-brisas ou do vidro das portas do lado esquerdo e direito. 29. No momento em que foi projetado, o sinistrado não tinha colocado o cinto de segurança. 30. O óbito do sinistrado foi verificado no local. 31. Correu termos na 3.ª secção do DIAP da comarca de Santarém, o inquérito número 44/17.3GTSTR, no âmbito do qual foi investigada a morte do sinistrado, o qual foi arquivado por ter concluído pela inexistência de crime. B) APRECIAÇÃO B1) Reapreciação da matéria de facto A apelante pretende que se dê como provado o facto dado como não provado sob o n.º 35: “Que o FT circulava a velocidade superior a 50km/hora”. Pretende ainda que se acrescente ao elenco dos factos provados o seguinte: “A velocidade que o sinistrado imprimia, naquele dia, ao veículo FT era excessiva e desadequada ao local, às caraterísticas da via e às condições envolventes e à tipologia do veículo que conduzia”. Tudo conforme prova que indica. Apreciada a prova produzida, cumpre decidir. A testemunha (…), seguia ao volante do veículo que circulava imediatamente à frente do veículo sinistrado, no mesmo sentido de marcha e viu o despiste do camião através do espelho retrovisor. Referiu várias vezes que estava preocupada com o camião que seguia atrás de sim, pois não gosta que vão atrás de si. Havia um semáforo cujo sinal mudava para vermelho se excedesse os 50 Klms, mas a luz não mudou. As testemunhas (…) e (…) deslocavam-se ao volante dos respetivos veículos, mas no sentido de marcha oposto e só viram o camião quando este já tinha entrado em despiste, daí que desconhecessem a velocidade a que circulava. Ninguém mais presenciou o acidente. As testemunhas não sabiam a razão pela qual o camião se despistou, nem se o motorista não teve cuidado. Contudo, a testemunha (…) referiu que abrandou a marcha para o camião a ultrapassar, mas este não o fez e circulava atrás de si, mas não muito perto, o que indicia que o sinistrado até conduzia com precaução. Os depoimentos destas testemunhas mostram-se tão genuínos e espontâneos, que não temos dúvidas quanto à sua veracidade. Destes depoimentos e demais prova não resulta qualquer elemento que nos leve a formar a convicção no sentido de que o sinistrado conduzia a mais de 50 Klms/hora e/ou que o fizesse de forma imprudente, sem respeito pelas normas estradais. Em face dos depoimentos prestados, podem colocar-se muitas hipóteses para a causa do acidente, mas nenhuma que implique o condutor a título de alguma conduta imprevidente. Em qualquer caso, o facto que a apelante pretende que se dê como provado: “A velocidade que o sinistrado imprimia, naquele dia, ao veículo FT era excessiva e desadequada ao local, às caraterísticas da via e às condições envolventes e à tipologia do veículo que conduzia”, tem natureza conclusiva. Trata-se de um juízo de valor a extrair dos factos provados, pelo que não poderia integrar-se no elenco dos factos provados. Neste contexto, não podemos formar a nossa convicção no sentido de declarar provados os factos como pretendido pela apelante, improcedendo a impugnação da resposta à matéria de facto. B2) A descaraterização do acidente de trabalho Os casos de descaraterização de acidente de trabalho estão previstos no art.º 14.º n.º 1 e suas alíneas da Lei n.º 98/2009, de 04.09 e são os seguintes: o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente: a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação. Este art.º 14.º prescreve ainda que: para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la (n.º 2); e entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante de habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão (n.º 3). Às causas de não reparação referidas no artigo 14.º, acresce a prescrita no artigo 15.º, quando o acidente provier de caso de força maior. Quanto a esta matéria está provado que o sinistrado não tinha colocado o cinto de segurança. Este facto constitui uma violação do art.º 82.º do Código da Estrada. Contudo, o não uso do cinto de segurança não é causa do acidente. Pode é agravar as lesões caso este aconteça. A sua finalidade é a segurança do próprio ocupante. No caso concreto, não estão provados factos de onde resulte que a morte ocorreu por causa do não uso do cinto de segurança. A não reparação, como decorre da lei que citámos, exige que a culpa do sinistrado tenha sido exclusiva e grosseira. Os factos provados não permitem concluir nesse sentido. A apelante alega que o veículo transpôs a linha longitudinal contínua e que tal revela falta de cuidado por parte do sinistrado. Este facto está provado. Contudo, tal ocorreu após o despiste e o veículo se desgovernar. Ou seja, o sinistrado não transpôs a linha contínua e daí resultou o despiste. O despiste e descontrolo do veículo é que conduziram à transposição da linha contínua. Os factos provados não nos permitem concluir que a passagem da linha contínua foi a causa do acidente e que tal se deva a conduta culposa do sinistrado. Concluímos, tal como a sentença recorrida, que não ocorre a descaraterização do acidente de trabalho, pelo que o mesmo é reparável. Termos em que a apelação improcede e se confirma a sentença recorrida. III - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante. Notifique. (Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator). Évora, 13 de janeiro de 2022. Moisés Silva (relator) Mário Branco Coelho Paula do Paço |