Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/15.9PATVR.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
DOLO
Data do Acordão: 01/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O ónus de especificação factual do dolo, que impende sobre o assistente (e o acusador), inclui os factos relativos ao dolo do tipo mas não impõe a narração dos factos relativos ao dolo da culpa.

II - Não deve ser rejeitado o requerimento de abertura da instrução formulado por assistente quando é ainda possível retirar dele que se está a imputar ao arguido também a “representação” e o “querer” dos sofrimentos e maus tratos que se descreveram como tendo sido objetivamente infligidos.

III - “Atuar com intenção de subjugar”, expressão que ali se narra, é querer subjugar; “ter gosto em humilhar e ridicularizar”, que também se descreve, pressupõe representar, pois a afirmação do gosto inclui a representação contida naquele.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo nº 49/15.9PATVR da Instância Central, 1ª Secção Instrução Criminal – J2 da Comarca de Faro, foi proferida decisão que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente E contra o arguido AM, por inadmissibilidade legal da instrução atento o teor do mesmo e a disciplina dos artigos 287º, nº 2, e 283º, nº 3, als. b) e c) do Código de Processo Penal.

Inconformada com o decidido recorreu a assistente, concluindo:

“A) O Despacho recorrido ao recusar o requerimento de abertura de instrução, adiante designado de RAI, apresentado pela assistente, por o considerar legalmente inadmissível atento o disposto no nº 3 do artigo 287º do Código do Processo Penal, defende uma posição excessivamente formalista e positivista.

B) Pois considera que o RAI padece de “ ausência de elemento integrador do dolo, total ausência sobre o elemento subjectivo”

C) É certo que a recorrente não utiliza o habitual chavão” o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser ilícita a proibida por lei a sua conduta”,

D) Mas as formalidades que a lei exige (artigo 283º nº 3 alínea b) do CPP) encontram-se cumpridas.

E) O RAI faz a descrição de inúmeros factos capazes de preencher o elemento objectivo do crime de violência doméstica, dos quais se destacam:

a) Após o nascimento do primeiro filho em 29 de Março de 2003 “ O denunciado começou a apresentar um comportamento muito instável, capaz de se exaltar apenas com o facto do autoclismo da casa de banho ter ficado mal fechado”

b) Com frequência a apelidava de “ és uma puta de merda”, “bosta” “ tás gorda” estás feia”, “não és nada sem mim”, “ nunca vais aprender”, “ vais morrer no esgoto”

c)- “Quando o filho J tinha cerca de três meses o denunciado partiu um interruptor simplesmente por a ora recorrente ter pedido ajuda por se encontrar exausta e o seu marido pretender ir sair com os amigos em Albufeira”

d)-“em Novembro de 2003 a assistente questionou o marido sobre se este teria algum caso extraconjugal, este respondeu-lhe com um soco que a atingiu do lado esquerdo da cara”

e)- “ o seu marido na altura do Natal, em ano posterior a 2007, com o punho fechado, agrediu-a na zona do maxilar”

f)- “ já em casa, na noite de 23 para 24 de Novembro …..o requerido começou a dirigir-se-lhe, começando a chamar-lhe nomes dizendo: “ és uma inútil”; “ monte de merda” e “ puta de merda”, “ a culpada és tu”

g)- “de repente o seu marido com olhar enfurecido, aproximou-se, já de braços levantados, pretendendo agredi-la”

h)- “O denunciado voltou a chamar nomes à ora recorrente, em tom muito alto e em frente dos filhos, dizendo: “ inútil”,” cavas a tua cova”, “ tu acabas num cano de esgoto”

i) “A agressividade e ameaças, com dezenas de telefonemas e mensagens por dia, intensificou-se a partir do momento em que o denunciado percebeu que a ora assistente não pretendia reatar a relação”.

j)“…O denunciado se veio a referir a um veículo automóvel que a mãe dos menores usaria, mas que não estaria em seu nome, mas sim em nome de seu pai, sogro do denunciado”.

l) - “ poucos dias volvidos ,…….., o referido veículo apareceu vandalizado…”

m)- “os danos ocorridos na viatura que utiliza tiveram como intuito amedrontar e assustar, sendo o único veículo vandalizado, foi um acto focalizado na pessoa da assistente, a qual usa em exclusivo a referida viatura, sendo que tal ocorreu a poucos metros da sua residência”

n) “Nessa mesma manhã a assistente recebeu telefonema do denunciado a hora a que este muito bem sabia que os filhos estavam na escola e os telefonemas repetiram-se”

o) “ Tendo-lhe feito olhares intimidatórios, os quais ainda conseguem colocá-la com medo e muito transtornada”

F) Para além dos factos referidos, constam do RAI diversos elementos subjectivos do crime de violência doméstica, vejamos:

a) “ A assistente por medo e por ter sido ameaçada pelo denunciado seu marido, chantageada, de que caso não o fizesse, lhe iria fazer a vida num inferno”

b) “ Esta agressividade e ameaças, com dezenas de telefonemas e mensagens por dia, intensificou-se a partir do momento em que o denunciado percebeu que a ora assistente não pretendia reatar a relação”

c) “ Tentando reduzir a vítima a um vazio enquanto pessoa humana, desvalorizando-a, ameaçando-a, obrigando-a a suportar todos os seus caprichos, como se não tivesse vontade própria e reduzindo a sua auto estima a zero”

d) “ O denunciado também praticou alguns actos de violência relativamente aos menores …, castigando-os e pressionando-os até à exaustão, revelando mais uma vez enorme perversidade”

e) “Sentia enorme gosto em ver os filhos subjugarem-se à sua autoridade”

f) “O denunciado é extremamente perverso e violento, tendo violado de modo reiterado a saúde física e psíquica da assistente, desrespeitando a sua dignidade enquanto pessoa humana.

g) “O denunciado sempre actuou com clara intenção de subjugar quer a assistente quer os filhos, dando-lhe um enorme prazer o sofrimento dos mesmos e sentindo depois um enorme gosto em fazer a vítima reconhecer que não tinha qualquer razão, ou que a sua vontade tinha qualquer relevância ou importância”

h) “ Criava frequentemente um sentimento de culpa na assistente, obrigando- a reconhecer essa culpa, não desistindo de a pressionar, enquanto a mesma não cedesse.

i) Tinha gosto em humilhá-la e ridicularizar mesmo na presença de terceiros, fazendo-o a rir com ar sarcástico, dizia repetidamente: “ és burra “ “ Não entendes nada.” Nunca irás perceber.”

G) A assistente fez a descrição dos factos de modo a ser possível aferir o dolo do agente. Ao contrário do que alega o Despacho recorrido, a assistente alegou factos com os quais quis demonstrar qual a intenção do denunciado e qual o seu estado anímico, no fundo o que movia o seu marido à prática dos actos que pormenorizada e circunstanciadamente, a assistente descreveu no seu RAI.

H) Pratica o crime de violência doméstica “….quem de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas corporais(..) ao cônjuge ou ex cônjuge(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos(….) , artigo 152º “

I) Estamos perante um crime de natureza dolosa, e para que haja dolo, necessário se torna que o agente conheça que a sua conduta preenche um tipo legal de crime (elemento cognitivo), e que mesmo assim tenha vontade de o realizar (elemento volitivo).

J) O elemento cognitivo do dolo está presente no RAI, na medida em que o agente ao ter praticado os factos constantes do referido RAI, revelou implicitamente ter consciência da sua ilicitude.

L) O fenómeno da violência doméstica com a reprovação social que lhe está associada bem como a natureza proibida das condutas que lhe são típicas, acompanha o dia a a dia de qualquer cidadão, mesmo que não muito esclarecido ou informado, pois raro é o dia em que não é noticiada a morte / agressão grave de alguma vítima de violência doméstica.

M) Qualquer cidadão médio sabe ser censurável, agredir física ou verbalmente o seu cônjuge, a quem prometeu respeitar e com quem celebrou um contrato que também sabe vigorar entre as partes. Sabe ser censurável agredir física e verbalmente a sua mulher, e chamar-lhe nomes.

N) E de tal modo sabe que a sua conduta é censurável, que, como se refere no ponto 6 do RAI a (… ) ameaçou e chantageou a assistente afirmando que se não desistisse fazia-lhe a vida num inferno.

O) Também, o elemento volitivo do dolo consta dos factos descritos no RAI. Existem no RAI factos mais do que suficientes que permitem configurar a vontade do agente em praticar os factos que lhe são imputados, já que expressões como: tentando reduzir a vítima a um vazio enquanto pessoa humana, desvalorizando-a, ameaçando-a, obrigando-a a suportar todos os seus caprichos, como se não tivesse vontade própria e reduzindo a sua auto estima a zero”/ revelando mais uma vez enorme perversidade”/ sentia enorme gosto/ clara intenção de subjugar / dando-lhe um enorme prazer /“ criava frequentemente um sentimento de culpa na assistente, obrigando- a reconhecer essa culpa, não desistindo de a pressionar, enquanto a mesma não cedesse./ Tinha gosto em humilhá-la e ridicularizar fazendo-o a rir com ar sarcástico revelam inequivocamente, a vontade do agente em querer, em ter uma intenção, tanto mais que, face à sua especial perversidade (diversas vezes referida e relatada no Rai), este seu modo de actuar lhe dava gozo/ prazer.

P) Deverá por isso entender-se que se encontram preenchidos todos os requisitos para que o RAI seja aceite, aliás de acordo com a nossa posição estão pelo menos três decisões proferidas no Tribunal da Relação de Évora, são elas: Ac. Trib. Rel. Évora de 11/07/2013 Processo 126/12.8GAMAC. E1; Ac. Trib. Rel. Évora de 17/04/2012 Proc 138/10.6PAETZ E1 e Ac. Rel. Évora de 24/04/2012 Proc. 2156/2011.

Q) Face ao que, os factos constantes do Rai, a serem dados como provados, sempre determinariam a condenação do denunciado pelo crime de violência doméstica, não sendo sequer necessário recorrer a presunções de dolo, já que os factos constantes do RAI são suficientes e capazes de preencher todos os elementos típicos do crime.

R) Apenas por a assistente não ter utilizado uma fórmula, que é costume ser utilizada” O agente agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser ilícita a proibida por lei a sua conduta”, formalismo não imposto por lei, não deve o Tribunal a quo abster-se de averiguar / investigar os factos trazidos pela assistente, pois se assim for estará a ser -lhe negada justiça, num caso tão grave como o da violência doméstica.

S) O que a lei determina é que da acusação e também do RAI constem factos que consubstanciem a prática de um crime, aqui se incluindo o elementos objectivo e subjectivo, e esses constam do RAI ora em análise.

T) Não existindo elementos que nos levem a concluir pela inimputabilidade do denunciado, o qual é referido no RAI como tendo personalidade tipo borderline e revelando perversidade e violência, será na fase de instrução e posterior julgamento que tal se deverá aferir, mas para isso os presentes autos terão de prosseguir!!.”

O Ministério Público respondeu no sentido da improcedência do recurso, concluindo:

“1 - Nos presentes autos, o MP, na fase de inquérito, determinou o seu arquivamento, nos termos do artigo 277°, n? 2, do Código de Processo Penal por inexistirem indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, do Código Penal por parte do arguido.

2 - Não se conformando com este despacho, a Assistente requereu a instrução.

3 - Neste requerimento, a Assistente imputou ao arguido a prática de factos integradores dos elementos objectivos do aludido tipo legal.

4 - Contudo, não fez qualquer alusão aos elementos subjectivos do mesmo tipo, que geralmente se traduzem na formula "actuou deliberada, livre e conscientemente" e "sabia que tais condutas eram proibidas por lei",

5 - Motivo porque a requerida instrução foi rejeitada, tendo deste despacho de rejeição interposto a assistente o presente recurso.

6 - Contudo, não lhe assiste razão.

7 - Na verdade têm ensinado a Doutrina e a Jurisprudência que, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução requerida pelo assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido, tanto nos seus elementos objectivos como nos elementos subjectivos.

8 - Ora como o crime aqui em questão é doloso, deveriam ser alegados factos, pela Assistente, de onde se retirassem os elementos subjectivos, nomeadamente que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta e que ao actuar da forma descrita quis e conseguiu molestar física e psicologicamente a vítima, sua ex-mulher, sabendo que a fragilizava e desrespeitava, o que, como se disse, não sucedeu.

9 - Não é possível ao Juiz substituir-se ao Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta que se revelarem essenciais para a imputação do crime ao arguido, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial dos factos;

10 - A doutrina e a Jurisprudência também têm entendido que nestas situações não há lugar ao convite de aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente, pois, a existir, tal convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no artigo 287°, nº l, do Código de Processo Penal, violando as garantias de defesa do arguido e a celeridade processual;

11 - Assim sendo, bem andou o Exmo. Juiz recorrido ao indeferir o aludido requerimento, nos termos do artigo 287°, n" 3, do Código de Processo Penal por inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade prevista no artigo 283°, n° 3 do mencionado diploma, quer atenta a falta de objecto,

12 - Pelo que deverá ser mantido o douto despacho recorrido.”

Neste Tribunal, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, opinando também pela improcedência do recurso e a manutenção do despacho judicial.

Colhidos os vistos teve lugar a Conferência.

2. A decisão recorrida é do seguinte teor:
“O assistente requereu abertura de instrução, pretendendo com ela a pronúncia do arguido AM pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal.

Dispõe o art.º 286º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art.º 287º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal).

Nos termos do n.º2 do art. 287º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as alíneas b) e c) do n.º3 do art. 283º.

No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido o Assistente quem requereu a abertura de instrução com vista à pronúncia do arguido, tinha aquela, por força do disposto nas als. b) e c) do n.º3 do art. 283.º daquele código, aplicável ex vi n.º2, parte final, do art. 287.º daquele diploma legal, indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação a este de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541, segundo o qual, “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo Assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido, tanto os elementos objectivos e subjectivos.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (3ª Edição, pág. 205-206) “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206) ”.

Assim, e tal como refere Germano Marques da Silva, em obra citada supra, pág. 144, “ o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Assim, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte do Assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303º, n.º3 e 309º, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, quer relativos ao elemento objectivo como subjectivo, estaria ferida de nulidade, porque resultaria em alteração substancial de factos.

Ora, e postas estas considerações, em nosso entender, temos que o requerimento de abertura de instrução do Assistente não respeita as imposições que decorrem quer das disposições legais aplicáveis quer dos princípios de direito, verificando-se, do teor dos factos vertidos no requerimento de abertura de instrução, que existe uma ausência absoluta de factos relativos ao elemento subjectivo.

Efectivamente, da leitura do requerimento em apreço, verifica-se uma invocação de factos objectivos, mas uma total ausência sobre o elemento subjectivo. Inexiste qualquer facto a propósito.

Não se poderá olvidar que o tipo de ilícito é constituído por elementos objectivos e subjectivos, pelo que a descrição fáctica constante de uma acusação tem que conter os dois elementos, pois só assim justifica a aplicação de uma pena ao agente.

Com efeito, o tipo subjectivo haverá que considerar, e fazer traduzir na matéria de facto descrita na acusação (ou no seu equivalente, como é o caso do requerimento de abertura de instrução), que se constitui a representação da situação objectiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objectiva, tal como ela se verifica.

Haverá que ter em consideração que nos crimes dolosos, como os em causa, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe a actuação livre, voluntária e o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual, o elemento volitivo e o chamado elemento emocional (vide a propósito o Ac. de Uniformização 1/2015, datado de 26 de Novembro de 2015, publicado no Diário da República de 27/1/2015).Não se esgotando o dolo no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é ainda necessário que àqueles acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso. Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.

Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica. Já o elemento volitivo traduz a «vontade do agente dirigida à realização do tipo» legal de crime. Finalmente, o elemento emocional representa o «conhecimento ou consciência do carácter ilícito» da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.

Nestes termos “o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, «sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correta e suficientemente orientada para esta” (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., págs. 199/204, e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73).

Atente-se ao recentíssimo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2015, datado de 26 de Novembro de 2015, publicado no Diário da República de 27/1/2015 que estabelece “A falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”

Ora, como vimos o crime é doloso, pelo que deviam ser alegados factos de onde se retire os elementos subjectivos inerentes do ilícito. Existe uma absoluta omissão quanto à descrição do elemento subjectivo, nomeadamente que o arguido agiu, livre, deliberada e consciente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta. Como também que ao actuar daquela forma, quis e conseguiu molestar física e psicologicamente a vitima sua ex-mulher, sabendo que a fragilizava e a desrespeitava (a formulação pode não ser exactamente esta, mas tem de estar alegado a consciência, a actuação livre e deliberada e a pretensão). Ao não estar alegado qualquer facto respeitante ao elemento subjectivo a imputação não está completa, não levando à aplicação de qualquer pena, pois que lhe faltam elementos essenciais e insupríveis.

Como já referimos supra, não é possível ao Juiz substituir-se ao Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta e que se revelam essenciais para a imputação do crime ao agente, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial de factos, o que sucede quanto sejam omissos os factos objectivos e subjectivos integradores do tipo.

Tal como se decidiu no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/05/97 (in CJ, Vol. III, pág. 143) “não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da ação penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor”.

Repetindo-nos, qualquer arguido só pode ser pronunciado pelos factos constantes do requerimento do Assistente, pois não há lugar a uma nova acusação, nem o Juiz se pode substituir ao assistente na tarefa de carrear factos para a pronúncia, pois a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução. Só assim se respeita, formal e materialmente, a acusatoriedade do processo, só assim o arguido sabe quais os factos que lhe são imputados, podendo exercer, com eficácia e segurança, o contraditório, e só desta forma se pode delimitar o objecto do processo e vincular-se tematicamente o tribunal, impedindo-se um alargamento arbitrário desse objecto.

Nos termos do n.º3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

No caso, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, nº 3 quer atenta a falta de objecto, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso (cfr. entre muitos outros, Ac. do STJ de 27/02/02 e 26/06/02, ambos publicados em www.dgsi.pt e o aludido Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015, aqui aplicado ao juiz de instrução).

Na verdade, a realização da instrução constituiria um ato inútil, na medida em que, finda a mesma, atenta a ausência do elemento integrador do dolo, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objecto do processo (neste sentido, cfr. Ac. Trib. da Rel. de Lisboa de 9/02/00, in CJ, T.I, pág.153; Ac. Trib. Rel. do Porto de 5/05/93, in CJ, T. III, pág. 243, e Ac. Trib. da Rel. de Évora de 14/04/95, in CJ, T.I, pág. 280).

Também e desde já que referimos que, perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais Superiores que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05 e também Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 31/05/06 e de 1/03/06, publicados em texto integral em www.dgsi.pt), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 de 31/01/01, DR 2ª série de 23/03/01 e Acórdão n.º358/04, de 19/05, publicado no DR 2ª série de 28/06/04), bem como da celeridade processual (vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º636/2011, de 20/12/2011, acessível no site desse Tribunal).

Como o referiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º358/04 “ A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerente a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.

Face a tudo supra exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente Edite Cristina Pereira de Jesus Vitorino por o mesmo ser legalmente inadmissível, atento o preceituado no art.º 287º, n.º3 do Código de Processo Penal.”

3. Resulta das conclusões do recurso, definidoras do objecto deste (AFJ de 19.10.95), que a questão a apreciar consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente satisfaz as exigências legais ou se, no reverso, sobrevém caso de inadmissibilidade legal da instrução.

O art. 286º, nº 1 do Código de Processo Penal cuida da finalidade e âmbito da instrução, preceituando que esta fase do processo se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo Ministério Público, no fim do inquérito.

É desta segunda decisão que se trata aqui, ou seja, do exercício do controlo judicial da decisão de arquivar o inquérito. Mas nem legalmente, nem constitucionalmente, se podem comparar estes dois tipos de controlo judicial – respectivamente, o da decisão de acusar e o da decisão de arquivar. O problema do arquivamento e do controlo judicial deste é ainda um problema de separação de poderes, pelo que importará exercer o controlo de que se trata aqui (o do arquivamento) de um modo compatível com essa separação.

Na instrução, o juiz decide se a causa deve ou não ser submetida a julgamento. Em caso de discordância da decisão do Ministério Público, o juiz não pode ordenar-lhe que formule acusação em conformidade com a sua decisão; antes recebe uma outra acusação, aquela que em se tem de materializar, afinal, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente (pronunciando o arguido por essa acusação). Só assim se respeita o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória do processo (cf. Germano Marques da Silva, Curso PP, III, 126).

A instrução, no modelo do processo penal português, não é, pois, um suplemento ou um complemento de investigação e não visa a substituição do Ministério Público por um juiz da investigação.

O fim da instrução acaba por ser, sempre e só, o “da comprovação de uma acusação deduzida pelo Ministério Público ou pelo assistente, em ordem a uma decisão sobre o seu recebimento ou rejeição” (Germano Marques da Silva, ob. cit., p.128).

Daí as exigências de forma e de substância ínsitas no nº 2 do art. 287º do Código de Processo Penal: o requerimento deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (...) não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas, sendo aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.

Tem sido pacífico que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação, devendo, como tal, conter todos os elementos de uma acusação: incontornavelmente, a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido, bem como a indicação desse mesmo ilícito e da pessoa (arguido ou imputado) contra quem a instrução é dirigida. O princípio do acusatório, mas também o contraditório, impõem a necessidade de tal especificação.

Nas palavras de Henriques Gaspar, “a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui pois o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução” (As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução, in Que Futuro para o Processo Penal, 2009, p. 92-93).

É certo que o art. 287º, nº 2 começa por dizer que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais”, mas termina com a exigência de que contenha as imposições narrativas do art. 283º, nº 3 als b) e c), que são, como se sabe, a narração dos factos relativos à ilicitude e à culpa e a indicação dos tipos de crime – “a acusação contém, sob pena de nulidade: (...) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (...) as disposições legais aplicáveis (art. 283º nº3 als b) e c)”. Este nº 2 aglutina o que o nº 1 divide em duas alíneas.

Em suma, a instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente. No primeiro caso, não tem de estar sujeita a nenhuma formalidade especial – há já uma acusação deduzida no processo e basta que o juiz de instrução criminal perceba as razões e a pretensão do arguido. Quando requerida pelo assistente, inexiste uma acusação no processo e, neste caso, ao requerimento do assistente aplica-se a norma que respeita à acusação pelo Ministério Público (art. 283º do Código de Processo Penal). Assim sucede sob pena de a instrução carecer de objecto.

A interpretação do modelo de Código e de Instrução não pode alhear-se também do concreto sentido do impulso processual que suscita concretamente a intervenção do juiz, no sentido de que, na instrução requerida pelo assistente, está em causa também a tutela efectiva do direito da vítima. A defesa destes interesses, legalmente protegidos também à luz da Constituição (art. 20º da CRP), não será seguramente compatível (adianta-se) com a colocação da avaliação dos requisitos formais do requerimento do assistente no patamar concretamente delineado no despacho recorrido.

Na verdade, no presente caso, o requerimento de abertura de instrução, se bem que minimamente, cumpre os requisitos legais, pois não deve considerar-se, como se fez no despacho em crise, que os factos relatados no requerimento da assistente não descrevem factualmente o tipo subjectivo e, logo, não constituem crime.

Não oferece dúvida que, “sem obediência a formalidades especiais” como refere a lei, nele se imputou a prática de um crime do Código Penal, nele se identificou o sujeito imputado e nele se articularam os factos que realizam objectiva e subjectivamente o tipo de crime imputado. Estes factos encontram-se situados no tempo e no espaço e descrevem uma acção típica.

Controvertida apresenta-se apenas, na delimitação do objecto do recurso e na fundamentação da própria decisão, a suficiência da especificação/narração dos factos integrantes do dolo. Pois na parte restante é de considerar que a decisão judicial aceita que o objecto da instrução se encontra suficientemente definido, e que o requerimento de abertura de instrução contém factos suficientes que permitiriam imputar ao arguido a prática de crime de violência doméstica. Já que ali se consignou que “da leitura do requerimento em apreço, verifica-se uma invocação de factos objectivos, mas uma total ausência sobre o elemento subjectivo. Inexiste qualquer facto a propósito.”

A ponderação sobre a suficiência dos factos articulados, filtrado sempre pelo crivo do acusatório, não deve descurar os direitos da vítima, que ao juiz de instrução compete igualmente assegurar, mormente na instrução requerida pelo assistente. Direitos que perigam numa percepção das exigências formais que impendem sobre o assistente que exorbite a disciplina realmente imposta pelo art. 287º, nºs 1-b) e 2 do Código de Processo Penal.

Na definição de Cavaleiro Ferreira, o crime é “totalmente um facto tipicamente ilícito” e “totalmente um facto tipicamente culpável” e “os elementos da noção de crime são partes do todo que é o crime, e não uma justaposição ou soma de elementos autónomos. Na análise do crime não se constrói a estrutura do crime pela sobreposição de elementos autónomos” (Lições de Direito Penal, I, 2010, p. 85).

Se assim é, por razões metodológicas costuma, no entanto, decompor-se o crime em partes, e a bipartição tipo objectivo / tipo subjectivo vem sendo considerada na doutrina e usada na jurisprudência. O tipo em apreciação não é punível a título de negligência (art. 13º do CP), não importando aqui tratar dessa modalidade.

O dolo desdobra-se nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional (Figueiredo Dias e Fernanda Palma incluem ainda uma componente emocional, relativa ao dolo da culpa). Aquelas correspondem, respectivamente, ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto. O elemento cognoscitivo ou intelectual pode bastar-se com a mera representação (dos elementos do tipo objectivo).

Em suma, o dolo traduz-se num saber (ou, pelo menos, representar) e num querer.

E é sempre factualmente que terá de resultar que o agente representou e quis os factos do tipo objectivo. A base factual tem, por isso, de incluir os factos do dolo do tipo. Estes factos têm de ser narrados na acusação, aceitando-se porém, contrariamente ao que parece transparecer do despacho, que os factos relativos ao elemento emocional – ou seja, os factos do dolo da culpa – não sejam de especificação obrigatória no requerimento do assistente (e na acusação), sob pena de o terem de ser todos os restantes elementos da doutrina do crime.

O Supremo Tribunal de Justiça, por AFJ nº 1/2015, fixou precisamente jurisprudência no sentido de que “a falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.

No presente caso, a decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução fundou-se numa invocada ausência total de descrição factual do elemento subjectivo do tipo de crime imputado pela assistente ao arguido. Escreveu-se no despacho judicial: “(…) o crime é doloso, pelo que deviam ser alegados factos de onde se retire os elementos subjectivos inerentes do ilícito. Existe uma absoluta omissão quanto à descrição do elemento subjectivo, nomeadamente que o arguido agiu, livre, deliberada e consciente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta. Como também que ao actuar daquela forma, quis e conseguiu molestar física e psicologicamente a vitima sua ex-mulher, sabendo que a fragilizava e a desrespeitava (a formulação pode não ser exactamente esta, mas tem de estar alegado a consciência, a actuação livre e deliberada e a pretensão). Ao não estar alegado qualquer facto respeitante ao elemento subjectivo a imputação não está completa, não levando à aplicação de qualquer pena, pois que lhe faltam elementos essenciais e insupríveis.”

Contudo, da leitura do requerimento de abertura de instrução resulta o infundado da afirmação exarada no despacho, de que “existe uma absoluta omissão quanto à descrição do elemento subjectivo”.

Ao contrário do que ali também se considera, a descrição do dolo não exige especificação prática por via do enunciado “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”. Este enunciado linguístico corresponde, é certo, a uma fórmula genérica e abstracta muito utilizada na prática, para a descrição factual do dolo. Mas ela, por si só, nem consegue esgotar a especificação factual do dolo, nem se mostra imprescindível a essa descrição.

A utilização prática do enunciado “agiu livre, consciente e voluntariamente” provém da vigência do anterior Código Penal de 1886 e transitou para o presente. Aquele diploma definia crime, no seu art. 1º, como “o facto voluntário declarado punível pela lei penal”. Não definia dolo, não empregava sequer a palavra “dolo”. Utilizava a expressão “intenção criminosa” que, no entanto, também não definia.

O Código Penal actual define o dolo nas três modalidades previstas no art.14º, inexistindo nele uma correspondência com a expressão factual que a prática manteve (agiu livre, consciente e voluntariamente). A expressão utilizada, que é adaptável a qualquer crime e a qualquer circunstância, se desacompanhada de outras que no caso se imponham (consoante o concreto tipo de crime em apreciação) dificilmente constituirá base factual bastante para configuração do dolo.

Sendo factualmente que terá de resultar que o agente representou e quis os factos do tipo objectivo e tendo, por isso, a base factual, que incluir factos susceptíveis de integrar o dolo do tipo, no presente caso teria de mencionar-se que, ao actuar da forma objectivamente descrita, o arguido representou que atingia a ofendida na sua dignidade, que lhe causava maus tratos físicos e/ou psíquicos, e quis atingi-la e maltratá-la do modo descrito, não tendo que ser rigorosamente estas as expressões utilizadas.

Estes factos têm de ser narrados na acusação. No caso, e pelas razões que se expuseram, também no requerimento de abertura da instrução. E não pode, por exemplo, considerar-se que tais factos (subjectivos) sempre poderiam resultar dos factos objectivos descritos. Pois uma coisa é a base factual que vai definir o objecto do processo de acordo com as regras da estrutura acusatória, outra é a prova desses mesmos factos que, esta sim, pode vir a fazer-se com recurso a presunções e inferências lógicas.

Já a ausência considerada no despacho recorrido, da especificação factual do “conhecimento do carácter proibido da conduta”, não respeitaria à descrição factual do dolo, mas ao conhecimento da proibição e à consciência da ilicitude.

A propósito da narração dos factos relativos ao conhecimento da proibição e à consciência da ilicitude, transcrevemos o seguinte excerto do AFJ nº 1/2015:

“O conhecimento da proibição legal, que não é exactamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […] » FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que actuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, actuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg.

A essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, referido supra, 9.2.1., que à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não teria da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”.

Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobe a ilicitude, contemplada no art. 17º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.

Escreve FIGUEIREDO DIAS, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)

Diz ainda o mesmo Autor, noutra passagem da mesma obra, que o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., p. 351).

10.2.4. Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.

O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correcta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.

De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objectiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus De Alegar E De Provar Em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142)”.

Observando agora o requerimento de abertura de instrução à luz do que se deixou exposto, concretamente os factos nele descritos e aproveitáveis para uma conclusão sobre o preenchimento do dolo (do tipo), conclui-se que o requerimento da assistente os descreve, minimamente é certo, mas ainda suficientemente.

Essa descrição é desordenada e segmentada, no entanto passível de ser descortinada no requerimento de abertura de instrução, não estando depois o juiz impedido, e se for caso disso, de lhe vir a conferir uma melhor arrumação na decisão instrutória. O juiz de instrução não se encontra obrigado ao emprego, ou à repetição, das exactas palavras empregues pelo assistente na descrição da factualidade que imputa ao arguido.

Releiam-se, então, alguns dos excertos de enunciados fácticos trazidos pela recorrente às conclusões do recurso: “O denunciado é extremamente perverso e violento, tendo violado de modo reiterado a saúde física e psíquica da assistente, desrespeitando a sua dignidade enquanto pessoa humana; “O denunciado sempre actuou com clara intenção de subjugar quer a assistente quer os filhos, dando-lhe um enorme prazer o sofrimento dos mesmos e sentindo depois um enorme gosto em fazer a vítima reconhecer que não tinha qualquer razão, ou que a sua vontade tinha qualquer relevância ou importância”; “ Criava frequentemente um sentimento de culpa na assistente, obrigando-a reconhecer essa culpa, não desistindo de a pressionar, enquanto a mesma não cedesse; Tinha gosto em humilhá-la e ridicularizar mesmo na presença de terceiros, fazendo-o a rir com ar sarcástico, dizia repetidamente: “ és burra “ “ Não entendes nada.” Nunca irás perceber.”; “tentando reduzir a vítima a um vazio enquanto pessoa humana, desvalorizando-a, ameaçando-a, obrigando-a a suportar todos os seus caprichos, como se não tivesse vontade própria e reduzindo a sua auto estima a zero”/ revelando mais uma vez enorme perversidade”/ sentia enorme gosto/ clara intenção de subjugar / dando-lhe um enorme prazer /“ criava frequentemente um sentimento de culpa na assistente, obrigando- a reconhecer essa culpa, não desistindo de a pressionar, enquanto a mesma não cedesse./ Tinha gosto em humilhá-la e ridicularizar fazendo-o a rir com ar sarcástico revelam inequivocamente, a vontade do agente em querer, em ter uma intenção, tanto mais que, face à sua especial perversidade (diversas vezes referida e relatada no Rai), este seu modo de actuar lhe dava gozo/ prazer.”

Como a recorrente sustenta agora, do seu requerimento de abertura de instrução é possível retirar que está a imputar ao arguido também a representação e o querer dos sofrimentos e maus tratos que descreveu como tendo sido objectivamente infligidos.

“Actuar com intenção de subjugar”, expressão que narra, é querer subjugar; “ter gosto em humilhar e ridicularizar” é até mais do que representar. Pois a afirmação do gosto pressupõe a representação contida naquele.

Como se decidiu no acórdão de 11-07-2013 deste TRE (Rel. Sénio Alves), “I. Expressões do género “o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecer do carácter proibido da sua conduta”, destinadas à uniformização do jargão judiciário, não podem transformar-se em fórmulas sacramentais. II. Imputada ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, se no RAI se afirma que este “manifestou intenção de agredir fisicamente” a queixosa, que agiu, “com propósitos de humilhação”, “determinado em continuar a agredir a queixosa”, “para (…) atingir a sua filha L.”, estamos perante expressões reveladoras de uma vontade livre e esclarecida, de um querer, mesmo de uma intenção. III. E no que concerne ao elemento cognitivo do dolo, qualquer cidadão médio sabe que agredir física e verbalmente a pessoa que jurou amar e respeitar e a quem o liga um contrato de casamento, é algo de profundamente censurável, ofensivo das regras que presidem à vida em sociedade e, por isso, não permitido por lei. Daí que, nada sendo alegado e demonstrado em sentido contrário, se haja de concluir em conformidade com as regras da experiência de vida, isto é, que o arguido sabia ser proibido ofender física ou psiquicamente a assistente, a quem o ligava um contrato de casamento, cuja existência seguramente também não ignorava”.

Por tudo, não é de sufragar a afirmação, feita no despacho, de “não estar alegado qualquer facto respeitante ao elemento subjectivo”. Este ainda se encontra descrito no requerimento de abertura de instrução, sendo certo que o ónus de especificação factual do dolo, que impende sobre o assistente (e sobre o acusador) inclui os factos relativos ao dolo do tipo e não impõe a narração dos factos relativos ao dolo da culpa.

Por isso também não é exigível a narração factual do elemento emocional do dolo, sob pena de terem de ser então descritos todos os restantes elementos da doutrina do crime. O que se apresenta como indefensável.

Por último, não deve confundir-se o despacho de abertura de instrução com a própria decisão instrutória, não cumprindo antecipar naquele os juízos e as conclusões que apenas nesta caberá formular.

4. Face ao exposto, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que declare aberta a instrução.

Sem custas.

Évora, 07.01.201

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)