Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
447/23.4T9EVR.E1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: DIFAMAÇÃO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ACUSAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A doutrina e jurisprudência, entre nós, tem entendido que os crimes de injúria e difamação constituem crimes de direito penal clássico, sendo por isso encarados crimes “em si”, com relevo axiológico conhecido e difundido na comunidade. Por isso, o conhecimento da sua ilicitude é corrente. Presume-se, por parte de todo e qualquer cidadão.
Desta forma, e pese embora, nestas situações, seja desnecessária a alegação e prova do conhecimento da ilicitude, a expressão usada na acusação deduzida nos autos: ”bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida” é apta a consubstanciar o conhecimento de que a conduta é proibida e criminalmente punida, ou seja que se verifica consciência da ilicitude.

Assim, conclui-se que a acusação não padece do vício da nulidade por falta da narração dos factos que fundamentam a imputação do crime.

Decisão Texto Integral: Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Com data de 24 de fevereiro de 2025, foi proferida decisão instrutória nos seguintes termos:

“(…) declarar nula a acusação por violação do art. 283.º, n.º 3 al. b) aplicável ex vi art. 285.º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal e, em consequência, não pronuncio o arguido pela prática de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punidos pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal.”

*

1.2 Recursos

O Assistente interpôs recurso invocando, em sede de conclusões (transcrição):

1. A acusação particular encontra-se estruturada e contém o mínimo dos elementos que permitem a sua procedibilidade formal e substancial (artigos 285,n".2 e283,no.3 e 7, ambos do Código de Processo Penal), não existindo, pois, fundamento legal para a sua rejeição.

De todo o modo,

2. O conhecimento da proibição legal não integra o elemento subjetivo do tipo de ilícito (artigo 14º do C.P.), relevando apenas em sede de culpa, nos termos do artigo 17'do Código Penal.

3. Apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o "conhecimento da proibição legal" por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.

4. Assim sendo, como é, deveria ter sido ditado douto despacho de pronúncia contra o arguido, pela prática, em concurso real, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previstos e punidos pelo art.l80º, nº1 e 183º, no.1, al.a), do C.P.

Sem conceder,

5. Ainda que se considerasse, a título estritamente académico, que assistia razão ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, ainda assim, deveria ter sido concedida ao assistente a possibilidade de suprir a deficiência indicada, o que não sucedeu.

6. O Meritíssimo Juiz não levou a cabo uma correta interpretação do preceitos e diplomas legais invocados na presente peça recursiva.

1.2. Respostas/Parecer

O arguido apresentou resposta da qual extraiu as seguintes conclusões (transcrição):

A. O Assistente vem interpor recurso da Decisão Instrutória, proferida pelo Exmo. Senhor Juiz de Instrução, em 24 de fevereiro de 2025, que decidiu “declarar nula a acusação por violação do art. 283.º, n.º 3 al. b) aplicável ex vi art. 285.º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal e, em consequência, não pronuncio o arguido pela prática de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punidos pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal.”.

B. A Decisão Instrutória baseia-se no entendimento que: “Nos termos conjugados dos arts.º 9º, 14.º, 16.º, 17.º 40.º e 71.º todos do Cód. Penal, é pressuposto da aplicação/determinação da sanção criminal a verificação/apuramento do conhecimento e da vontade do agente na prática do ilícito e a culpa do agente do crime, a sua posição de contrariedade em relação ao direito, nos factos alegadamente praticados.

Analisando a acusação particular, não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos apontados para o preenchimento do tipo criminal, designadamente, o dolo da culpa dolosa (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei)”.

C. Ora, tendo em conta o regime legal aplicável, por confronto com o conteúdo da Acusação Particular, é por demais evidente que a Decisão Instrutória não padece de qualquer erro, incorreção ou ilegalidade, que justificam a sua revogação.

D. Com efeito, do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP decorre que a acusação deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e que se não o contiver é nula.

E. Assim sendo, os factos nela descritos terão que integrar, para além do mais, todos os elementos típicos do crime (elementos objetivos e subjetivos).

F. No caso, em que o Assistente imputa ao Arguido um crime de difamação, com publicidade e calúnia previstos e punidos pelo art.º 180.º, n.º1 e 183.º, n.º1, alínea a), do CP, constata-se que a Acusação Particular não contém factos integrativos do elemento subjetivo do crime, ou seja, no que ao caso interessa, não contém factos integrativos do dolo (elemento que consiste no conhecimento dos elementos objetivos essenciais desse tipo — elemento intelectual ou cognoscitivo — e na vontade de praticar um certo ato criminoso ou, nos crimes materiais, de atingir um certo resultado — elemento volitivo).

G. A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 283.º, n.º 3, do CPP, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do Arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

H. A indicação dos factos imputados é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. artigo 32.º da Constituição da República.

I. In casu, verifica-se que a Acusação Particular não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito. De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do dolo.

J. Ora, analisados os factos vertidos na Acusação Particular, não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo dos tipos de crime de difamação, dado que, para existir dolo, necessário é que o Arguido tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta e, ao longo dos factos vertidos na Acusação, em lado algum se faz menção ao elemento intelectual do dolo, não se podendo entender tal como implícito.

K. Com efeito, o comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos.

L. Não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indireta, através de atos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.

M. Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo.

N. Conforme decidiu este Venerando Tribunal, no douto Acórdão de 24/09/2024, proferido no Processo n.º 410/22.2GBODEM.E1: “A Acusação Particular/Pública deverá conter (sob pena de nulidade) uma descrição fáctica, com a indicação precisa e completa dos factos que entende estarem indiciados e que integram o tipo de ilícito em causa (tanto os elementos objetivos do crime, como os elementos subjetivos daquele) e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Os elementos objetivos do crime constituem a materialidade do crime; traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Verificando-se na Acusação particular deduzida a omissão de factos integradores dos elementos constitutivos do tipo subjetivo dos ilícitos imputados, considera-se que a mesma é manifestamente infundada, devendo ser rejeitada, uma vez recebidos os autos em Tribunal (e não tendo havido Instrução), nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal”

O. No caso, o Assistente ao longo da Acusação Particular não logrou proceder, minimamente, à demonstração exigida.

P. Cumpre referir que, contrariamente ao pugnado pelo Assistente, não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente.

Q. Não só tal faculdade não se encontra expressamente admitida na lei, como a sua aceitação traduzir-se-ia em uma injustificada derrogação da estrutura acusatória do processo penal.

Também o Ministério Público apresentou resposta com as seguintes conclusões:

1.ª O princípio do acusatório e da vinculação temática ao objeto do processo, subjacente ao artigo 283.º n.º 3, al. b), do Código Processo Penal, exige que se faça constar na acusação, sob pena de nulidade, (toda) a factualidade que integra os elementos do tipo legal do crime imputado ao arguido;

2.ª A falta de referência na acusação à consciência da ilicitude, através da locução “bem sabendo que a sua [do arguido] conduta era punida e proibida por lei penal”, ou outra similar, conduz à nulidade da acusação, por violação do artigo 283.º, n.º 3 al. b), aplicável ex vi artigo 285.º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal;

3.ª Nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005 “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

O Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação apôs visto nos autos.

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2. Questões a decidir no recurso

As questões a apreciar e a decidir são as seguintes:

- saber se a acusação é nula por ausência do elemento que constitui o dolo da culpa (consciência da ilicitude);

- sendo nula, se é admissível o suprimento de tal vício.

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3. Fundamentação

3.1. Acusação particular

O assistente deduziu acusação particular com o seguinte teor (na parte que aqui releva):

1. O assistente nasceu no dia .. de fevereiro de 1972.

2. No dia … de fevereiro de 2023, o assistente deslocou-se a Sevilha, Espanha, para festejar o seu aniversário;

3. Nesse mesmo dia tomou conhecimento que o arguido tinha publicado na rede social “Facebook”, no mural do restaurante que gira sob o nome de “…”, sito em … de que é proprietário, o seguinte: Muitos Parabéns, Sr. AA, gerente da …. E quando é que me pagas o que me deves??? Não andes aí em Sevilha a gastar o que não é teu…

Ora,

4. O assistente não era, como não é, devedor do arguido a nenhum título ou natureza, como, aliás, o mesmo tem total conhecimento e plena consciência.

Por conseguinte

5. O único e exclusivo propósito do arguido foi difamar o assistente, designadamente na cidade de …, colocando em crise a sua honra, bom nome e consideração devida

6. O arguido agiu voluntária e conscientemente, difamando-o com publicidade, no propósito de ampliar a calúnia e fazer chegar a mesma ao maior número de pessoas possível, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida.

7. Ao proceder como fez, e sem razão alguma que o justifique, cometeu o arguido, em concurso real, um crime de difamação com publicidade e calúnia, previstos e punidos pelo art. 180º, nº1 e 183º, nº1, al.a), do Cód. Penal».

3.2. Despacho recorrido

O despacho recorrido tem, na parte que nos interessa, o seguinte teor:

«(…)

O assistente pretende o julgamento do arguido pela prática de, em concurso real, um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punido pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal, pelo que cabe ponderar se a acusação é formalmente válida e se é provável a condenação em sede de julgamento.

(…)

A questão prévia a decidir nos presentes autos é a de saber se a acusação reúne todos os requisitos formais para prosseguir para a fase de julgamento.

O n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal elenca, nas suas diversas alíneas, os requisitos que deverá conter a acusação, sob pena de nulidade. Entre estes requisitos está a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada conforme resulta do disposto na alínea b) do n.º 3 do citado normativo legal. A violação deste normativo implicará a rejeição da acusação por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal. A narração factual é um requisito que reveste especial importância na medida em que é a acusação que fixa objecto do processo, o qual se irá manter até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra eventuais alargamentos dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, por forma a garantir que uma vez comunicada a acusação ao arguido este possa conhecer quais os factos e o crime que lhe são imputados, permitindo-lhe, deste modo, preparar e organizar adequadamente a sua defesa.

“Uma conduta humana só poderá punir-se se estiver prevista numa norma penal que descreva claramente a conduta proibida ou ordenada, acompanhada da cominação de uma pena. Está aqui implicado o princípio da legalidade (…) A descrição exigida para a peça acusatória e (…) aos requisitos de abertura de instrução, reporta-se a todos os factos (factos essenciais) de que dependa a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, quer dizer, todos aqueles que constituem os elementos de algum crime” (Ac. TRG, de 14.02.2005, em CJ, 2005, t. 1, p. 299-300).

Como se defendeu no Ac. do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA de 30.03.2009, “Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).”.

Quanto a deficiências da acusação, temos o ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 1/2015, DE 27 DE JANEIRO, publicado no DR, I-A, de 27/01/2015, no qual se estabeleceu com força obrigatória a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».

Segundo o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 17 de fevereiro de 2022, relatado por MARIA JOSÉ CORTES CAÇADOR, “I–Relativamente aos elementos subjectivos do crime, terá de ser expresso na acusação, uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude); II– Quando numa acusação particular esta é omissa quanto a um dos elementos subjetivos do tipo de crime que vem imputados à arguida, ou seja, que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis pela lei penal, a acusação terá de ser rejeitada, por ser manifestamente infundada.”.

Consta do sumário do acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, datado de 02-03-2016, relatado por JORGE BISPO, que: «I - A consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do tipo. II – A jurisprudência fixada [Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015)] não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. III – O aditamento feito em audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, da expressão «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não se traduz numa alteração inócua e despicienda, mera reprodução de bordão acolhido pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional, antes dá plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição [por omissão de elemento essencial] do tipo subjetivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia [e que já ocorria no requerimento para abertura da instrução]. IV - O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, onde se inclui a consciência da ilicitude e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição.».

Por sua vez, de acordo com o Acórdão da TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 14-11-2023, relatado por ISILDA PINHO: «I. Independentemente do crime que seja imputado a um arguido, seja ele de direito penal clássico ou não, todos os elementos do respetivo tipo, incluindo o dolo da culpa, têm de constar obrigatoriamente da acusação, sob pena de se encontrar ferida de nulidade [artigo 283.º, n.º 3, al. b) ex vi artigo 285.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal]. II. A cominação de nulidade feita no artigo 283.º Código de Processo Penal visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação “deficiente” e trata-se de uma nulidade que deve ser arguida no prazo indicado na alínea c), do n.º 3, do artigo 120.º [não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito], não o tendo sido, nem tendo sido requerida a instrução, o processo segue para a fase de julgamento, onde as “deficiências” da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento do saneamento do processo - artigo 311.º, do Código de Processo Penal -, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias suscetíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada, não existindo qualquer disposição legal que sustente a possibilidade de efetuar convite ao aperfeiçoamento. III. Na verdade, a referida exigência legal ínsita no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal, exigência de rigor na delimitação do objeto do processo, não pode ser vista como uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, mas antes como a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo, respaldo da concretização das garantias de defesa do arguido. IV. Chegada a fase do julgamento, formular convite ao aperfeiçoamento, com a prolação de nova acusação, constituiria um desvirtuar do espírito do sistema processual penal, que, de alguma forma, protege as expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações. V. Ao invés do que se reporta ao Ministério Público, cujo prazo para deduzir acusação é meramente ordenador, o assistente dispõe de um prazo perentório para deduzir acusação particular e a solução adotada pelo legislador compromete a possibilidade de renovação de um ato nulo, caso, entretanto, tenha expirado o prazo perentório previsto para a sua prática.».

No Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA, de 07/03/2017, proc. n.º 533/18.2T9MMN, relatado por MARIA LEONOR ESTEVES, entendeu-se, em sumário e na parte que aqui releva quanto ao preenchimento do art. 283.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, que « I – A doutrina fixada pelo STJ no seu AUJ n.º 1/2015 deve ser aplicada ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente. II –Estando em causa crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjectivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução.» (negrito da nossa responsabilidade).

Nos termos conjugados dos arts.º 9º, 14.º, 16.º, 17.º 40.º e 71.º todos do Cód. Penal, é pressuposto da aplicação/determinação da sanção criminal a verificação/apuramento do conhecimento e da vontade do agente na prática do ilícito e a culpa do agente do crime, a sua posição de contrariedade em relação ao direito, nos factos alegadamente praticados.

Analisando a acusação particular, não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos apontados para o preenchimento do tipo criminal, designadamente, o dolo da culpa/a culpa dolosa (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei). A vacuidade da expressão “não era permitida” não esclarece se a conduta em causa era proibida e punida por Lei Penal. Tal expressão não comporta o mesmo conteúdo da expressão “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, sendo de concluir que a sua referência foi omitida do libelo acusatório. Não foram descritos factos que legitimam a aplicação de uma pena ao arguido. A mera referência a uma conduta que não era permitida pode levar a equacionar outros blocos normativos, nomeadamente, os civilísticos, que não o bloco normativo constante da Lei Penal.

Tendo assente a jurisprudência uniformizada do Acórdão nº 1/2015 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, inexistem os factos necessários a subsumir para efeitos de apuramento da culpa do agente e é a acusação legalmente inadmissível, devendo ser declarada nula. Concluímos, pelo exposto, não ter o assistente dado integral cumprimento ao disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.

Prescreve o art. 308.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal, “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”. De acordo com o n.º 3 deste normativo, “No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.”.

Em resumo, a conduta descrita é subjectivamente atípica e ocorre a violação do art. 283.º, n.º 3 al. b), do Código de Processo Penal, que determina a nulidade da acusação, de acordo com o enquadramento jurisprudencial citado, e logicamente, impõe-se a decisão de não pronúncia.

Nestes termos, e ao abrigo do disposto no art. 308.º, n.º3, do Cód. Processo Penal, decide-se:

a) declarar nula a acusação por violação do art. 283.º, n.º 3 al. b) aplicável ex vi art. 285.º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal e, em consequência, não pronuncio o arguido pela prática de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punidos pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal.

b) extinguir de imediato as medidas de coacção em vigor – art.º 214.º, n.º1, al. b) do Cód. Processo Penal; e,

c) determinar o oportuno arquivamento dos autos».

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3.2 – Nulidade da acusação por ausência do elemento que constitui o dolo da culpa

Não se suscitam quaisquer dúvidas que, como resulta dos arts. art. 283º, nº3, al.b), e 284º, nº2, do Cód. Proc. Penal a acusação, deve conter, sob pena de nulidade, “a narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Os factos concretos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido são exatamente aqueles que preenchem os elementos, objetivo e subjetivo, do tipo de crime em causa. Aquele define o objeto da ação e, este, o ânimo e vontade do agente na produção do facto típico. E, a ausência de tais elementos implicará a nulidade da sua acusação.

No caso, a decisão recorrida, sem mencionar em concreto quaisquer outros elementos, entende que da acusação não consta a alegação da consciência da ilicitude da conduta, o que constitui um elemento subjetivo essencial ao preenchimento do tipo de crime. E é com esse fundamento que declara a nulidade da acusação, não pronunciando o arguido.

Cumpre deste modo apreciar se assim é.

O dolo, enquanto elemento subjetivo do tipo penal, desdobra-se em dois componentes essenciais que devem estar presentes para a sua configuração:

- o elemento intelectual (ou cognitivo), que consiste no conhecimento, ou representação pelo agente dos elementos constitutivos do tipo objetivo e que inclui quer os elementos descritivos, quer os normativos. Ou seja, o agente deve ter consciência das circunstâncias de facto que integram o tipo penal;

- o elemento volitivo, que se traduz na vontade do agente em realizar o facto típico depois de ter representado ou previsto as circunstâncias ou elementos do tipo objetivo.

Mas, existe uma distinção entre o dolo do tipo e o dolo da culpa. Este, que constitui a consciência da ilicitude, trata-se de um elemento autónomo relativamente ao dolo do tipo (não consta do art. 14º, do Cód. Penal), situando-se antes no plano da culpabilidade. Não é por isso elemento integrante do elemento subjetivo do tipo.

Tal decorre desde logo do regime do erro sobre a ilicitude – art. 17º, do Cód. Penal – o qual, ocorrendo – nas situações em que o desconhecimento da ilicitude se mostra relevante – determina a exclusão da culpa (e não do dolo, num dos elementos do tipo subjetivo)

O Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1/2015, em que a decisão recorrida assenta, no seu sumário (“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”) respeita essencialmente às situações em que os elementos subjetivos do tipo não foram descritos na acusação. Porém no seu texto, é também abordada a questão que ora nos ocupa, nos seguintes termos:

«(…) "O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a "consciência da ilicitude" será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito.

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social.

Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg".

A doutrina e jurisprudência, entre nós, tem entendido que os crimes de injúria e difamação constituem crimes de direito penal clássico, sendo por isso encarados crimes “em si”, com relevo axiológico conhecido e difundido na comunidade. Por isso, o conhecimento da sua ilicitude é corrente. Presume-se, por parte de todo e qualquer cidadão.

Desta forma, e pese embora, nestas situações, seja desnecessária a alegação e prova do conhecimento da ilicitude, a expressão usada na acusação de que agora tratamos: ”bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida” é apta a consubstanciar o conhecimento de que a conduta é proibida e criminalmente punida, ou seja que se verifica consciência da ilicitude. É que, e como se refere no citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência, é claro que qualquer cidadão sabe que imputar a outrem

factos que afetem a sua honra e consideração (como é o facto de não pagar as suas dívidas, o que equivale a ser apelidado de caloteiro ou pessoa desonesta) constitui crime.

Veja-se a este propósito, e no mesmo sentido, entre outros: Ac. TRC de 13/12/23; Ac. TRE de 7/5/24; Ac. TRE de 19/12/19; Ac. TRP, de 3/7/24; Ac. TRE de 5/2/19; Ac. TRE de 26/10/21, todos em www.dsgi.pt e Ac. TRE de 25/6/25, proc. nº 214/23.5T9EVR.E1

Desta forma, conclui-se que a acusação não padece do vício da nulidade por falta da narração dos factos que fundamentam a imputação do crime.

Fica assim prejudicada a questão de saber se pode ser concedida ao assistente a faculdade de suprir a nulidade da acusação. Porém, sempre se dirá que tal possibilidade se mostra afastada por força do Ac. de fixação de Jurisprudência do STJ nº7/2005, de 12/5 (DR 212, série I, 4/11/05).

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4 - DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso interposto e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que não considere a acusação nula por falta dos elementos previstos no artigo 283º nº 3 al. b) do Cód. Proc. Penal.

Sem custas.

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Porto,10 de julho de 2025

Carla Oliveira (Relatora)

Carla Francisco (1ªAdjunta)

Manuel Soares (2ºAdjunto)