Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2371/20.3T8STR-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – As decisões, como os contratos, como as leis e, bem assim, os acordos de regulação das responsabilidades parentais devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas.
2 – O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.
3 – O intérprete não se pode apartar das referências contextuais e da própria história privada do acordo, importando aqui claramente o comportamento das partes perante solicitações e vinculações anteriores.
4 – Deve ocorrer a harmonização do texto do acordo de regulação das responsabilidades parentais com o seu tempo no sentido de compreender o sentido e o alcance vinculativo do mesmo não apenas pelo exacto entendimento linguístico das expressões mas igualmente segundo as finalidades e tendo em vista as condições e necessidades sociais e individuais actuais do menor.
5 – Se na metodologia de cumprimento contratual anterior houve sempre uma vinculação do progenitor pai ao pagamento das despesas escolares extraordinárias do filho, as referências contextuais e da própria história privada do acordo impõem que as mesmas sejam consideradas para efeitos do presente incidente de incumprimento das responsabilidades contratuais.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2371/20.3T8STR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Família e Menores de Santarém – J2
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Recurso com efeito e regime de subida adequados.
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Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
Nos presentes autos de Regulação das Responsabilidades Parentais relativos ao menor (…), em que é requerido (…), o Ministério Público suscitou o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais. Proferida decisão, a progenitora (…) veio interpor recurso.
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O Ministério Público alegou que o requerido ficou obrigado a pagar a uma pensão de alimentos a favor do filho no valor de € 100,00 mensais, bem como metade dos custos extraordinários de saúde e de educação da criança, adiantando que, apesar de interpelado, o requerido não pagou pontualmente a sua comparticipação nas despesas do filho.
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Foi ordenada a citação do requerido para se pronunciar, querendo, sobre o incumprimento suscitado pelo Ministério Público, com a cominação de que, caso nada dissesse nem demonstrasse o pagamento das quantias em causa, se consideravam confessados os factos alegados, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro.
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O requerido não se pronunciou e o Ministério Público promoveu que se julgasse verificado o incumprimento suscitado.
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Por sentença datada de 22/03/2023, a Meritíssima Juíza de Direito decidiu:
a) julgar verificado o incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, no que toca às prestações alimentares a favor de (…) devidas pelo requerido (…) e vencidas nos meses de Novembro de 2022 a Janeiro de 2023, inclusive, no montante de € 300,00 (trezentos euros) e, consequentemente, condenou o requerido no seu pagamento.
b) absolver o requerido do demais peticionado.
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Inconformada com tal decisão, (…), na qualidade de progenitora, apresentou recurso de apelação e as alegações continham as seguintes conclusões:
«I – Por acordo homologado por decisão proferida no dia 10 de Maio de 2016 pela Conservatória do Registo Civil de Almeirim, transitada, no processo de divórcio n.º 199/2016, que ali correu termos, foi homologado um regime de exercício das responsabilidades parentais atinentes a (…), nos termos do qual e além do mais, se acordou que este menino ficaria entregue aos cuidados e à guarda da mãe, com que ficou a residir, e ainda que, a título de pensão de alimentos devidos ao filho, o pai pagará a quantia mensal de € 100,00, a transferir para conta bancária da mãe, até ao dia 5 do mês a que respeita. A ser actualizada anualmente à respectiva taxa de inflação, o que nunca até hoje sucedeu desde 2016.
II – No espírito do acordo de responsabilidades parentais, haja melhor ou pior redacção formal, no celebrado ficou ainda acordada a divisão, em partes iguais, por ambos os progenitores de (…) de todas as despesas extraordinárias do jovem. A menção designadamente faz clarificar, mas não circunscrever.
III – Vai mal a sentença proferida na medida em que não condena ao pagamento das despesas escolares imputadas, com o que sob pena de total incoerência processual, trânsito e caso julgado de posições, compete rectificar.
IV – Dando como não provado “que o requerido está obrigado ao pagamento de qualquer comparticipação nas despesas escolares do filho, designadamente nas descritas no artigo 7.º do requerimento inicial”, a sentença a quo erra ao compreender uma mera leitura incorrecta do acordo em apreço, infundamentada, fazendo tábua rasa do histórico processual e posicionamento confessório já adstrito no Tribunal a quo, pelas das partes, nomeadamente em sede de autos principais.
V – E fá-lo por mera menção a escrito, sem verter juízo crítico sobre tal, e sem qualquer fundamentação de facto e de direito, o que compreende nulidade.
VI – A posição do requerido sempre foi clara e confessória quanto às parcelas por si devidas a titulo de despesas extraordinárias (consideradas as despesas escolares, e as despesas médicas e medicamentosas), e que, por tal, com maior ou menor dificuldade, seja sob alçada de interpelação extrajudicial ou judicial, na prática veio assumindo.
VII – A conduta confessória já previamente vinculada pelo requerido nos autos principais, também de incidente de incumprimento de responsabilidades parentais, com dizeres, documentos e observações, já decorridos e seu trânsito em julgado, vai no sentido de aceitação do devido no que contende com despesas escolares.
VIII – Senão veja-se os ali emails do requerido, de 16 de Dezembro de 2020 e de 4 de Janeiro de 2021, pelos quais assume a sua obrigatoriedade, aludindo a seu suposto cumprimento de pagamento de despesas escolares e de saúde – anexos para mais fácil verificação.
IX – Ora, se assim foi, conforme aventado e transitado, consistindo em caso julgado, no que contende com apreciação do acordo em apreço e assumpção de génese do mesmo pelas partes, de tal não se pode afastar na sindicância do presente, sob pena de cabal incoerência jurídica.
X – Ora, ficou presente neste apenso que o requerido não pagou a respectiva comparticipação nas seguintes despesas do filho de ambos:
• Explicação respeitante ao mês de Novembro de 2022: € 55,00;
• Explicação respeitante ao mês de Dezembro de 2022: € 55,00;
• Visita de estudo a Lisboa referente ao mês de Janeiro de 2023: € 8,50;
• Explicação respeitante ao mês de Janeiro de 2023: € 55,00;
• Visita de estudo a Espanha, a realizar em Março e relativamente à qual o pai concordou pagar metade: € 180,00;
• Calções de banho para a disciplina de Educação Física (Janeiro de 2023): € 7,99.
XI – Citado nos termos e para os efeitos do artigo 41.º, n.º 3, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, com a advertência de que, caso nada dissesse, considerar-se-iam confessados os factos alegados no requerimento inicial, o requerido nada disse, nem fez prova, como lhe competia, de ter pago as quantias peticionadas neste processo.
XII – Sendo que historicamente confessou o espirito inerente ao acordo celebrado, o quanto do mesmo vigorou e tem vindo a vigorar, nomeadamente a interpretação de que na menção de despesas extraordinárias se incluem, como comummente, as despesas escolares e as despesas médicas e medicamentosas. Pelo que resulta confessadamente liquidado e adstrito o quanto de facto devido e sob condenação a suprir, a pagamento.
XIII – Aliás, se não se quisesse autonomizar no espirito do acordo sub iudice, do valor da pensão, o valor afecto a despesas escolares, não teriam curado as partes dali verter que “pagaria metade da mensalidade do ATL, no valor de € 90,00”. Se naquele momento a despesa escolar, em face da idade do menor, se circunscrevia àquela, em face da sua evolução e idade, com naturalidade, deixariam de se direccionar a mensalidade de ATL, substituindo-se pelas adstritas ao seu percurso educativo.
XIV – É consabido, que o modelo de pagamento de uma quantia mensal sempre igual adapta-se mal ao pagamento de despesas que não são regulares, como frequentemente sucede com as despesas de saúde e de educação. As de saúde são, na maior parte dos casos, imprevisíveis, e as de educação podem variar bastante ao longo da vida da criança ou do jovem. Pelo que em face desta dificuldade, na prática comum no estabelecimento de responsabilidades parentais – como o foi no espírito do presente acordo sub iudice – tem-se generalizado um modelo em que, a par de uma quantia fixa paga todos os meses, o progenitor que paga a pensão suporta ainda uma parte das despesas de educação e de saúde, quando existam. Amiúde, como no caso, estas despesas são pagas em partes iguais por ambos os pais. As regras da experiência comum, e o conhecimento judicial e prático corrente, facilmente implicam tal compreensão e atentar.
XV – O próprio artigo 2003.º do Código Civil atenta à distinção supra definindo no seu n.º 1, no que contende com um valor fixo “Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”, e no seu n.º 2 por valor irregular / imprevisível “Os alimentos compreendem também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor.”
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, requer-se a V. Exas. que seja concedido provimento ao presente recurso, substituindo a decisão recorrida e substituindo-a por outra, que julgue procedente, por provada, a integração e consideração de devido a pagamento, por decorrência do acordo celebrado, sua génese e espirito, aliás em confissão do requerido (tanto agora por não oposição, como por dizeres já processualmente afectos e transitados), por experiência comum, decorrência legal, e prática corrente, do quanto adstrito a despesas escolares, com todas as consequências legais.
Como se espera, fazendo-se Justiça!».
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O Ministério Público apresentou articulado de resposta, pronunciando-se no sentido de que a sentença recorrida deveria ser revogada e substituída por outra que julgasse verificado o incumprimento suscitado também no que respeita às despesas peticionadas no requerimento inicial.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de erro de facto e erro de direito.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Com interesse para a decisão do incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais foram considerados provados os seguintes factos:
1. O (…), nascido em 20 de Outubro de 2008, é filho de (…) e do requerido (…).
2. Por sentença proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento dos progenitores, em 10 de Maio de 2016 e transitada em julgado (ref.ª certidão junta nos autos principais), foi estipulado que o filho ficaria a residir com a mãe e que o requerido contribuiria mensalmente, a título de alimentos para aquele, com a quantia de € 100,00, quantia essa a ser paga até ao dia 5 de cada mês, por transferência bancária e actualizada anualmente, no mês de Janeiro, por referência à taxa de inflação, actualização que deveria ser comunicada por escrito ao pai; e, ainda, pagaria metade da mensalidade do ATL, no valor de € 90,00 e de todas as despesas extraordinárias, designadamente médicas e medicamentosas.
3. O requerido não procedeu ao pagamento das prestações de alimentos devidas ao filho nos meses de Novembro de 2022 a Janeiro de 2023.
4. O requerido está ainda obrigado ao pagamento da comparticipação nas despesas escolares extraordinárias do filho[1].
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3.2 – Factos não provados[2] [3]:
Inexistem.
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IV – Fundamentação:
Estabelece o n.º 1 do artigo 41.º da Lei n.º 141/2015, de 08/08, que «se relativamente à situação da criança, um dos pais ou terceira pessoa a quem ela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o Tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer ao Tribunal que for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respectivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos».
O processo de incumprimento do exercício de responsabilidades parentais constitui uma instância incidental, relativamente ao processo principal (de regulação dessas responsabilidades), destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo / censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) estabelecido[4].
Estamos no domínio de uma obrigação de alimentos e o conteúdo da mesma é definida pelo artigo 2003.º[5] do Código Civil e a noção abrange todas as despesas relacionadas com o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, aqui se incluindo todas as necessidades vitais como a instrução e a educação do alimentando, a saúde, a segurança, os transportes e todas as utilidades adequadas ao normal desenvolvimento.
A expressão alimentos consignada na norma não se reporta apenas às suas necessidades básicas, cuja satisfação é indispensável para a sua sobrevivência, antes abarca «tudo o que o menor precisa para usufruir de uma vida conforme à sua condição, às suas aptidões, estado de saúde e idade, tendo em vista a promoção do seu desenvolvimento intelectual, físico e emocional, em condições idênticas às que desfrutava antes da dissolução familiar»[6].
Mais do que a existência de uma dívida por incumprimento, a questão judicanda visa apurar o sentido de uma determinada cláusula do acordo de regulação das responsabilidades parentais com o objectivo de estabelecer o guião e os limites da prestação a que o requerido se mostra vinculado.
Na situação concreta, o Tribunal a quo entendeu que, quanto às despesas cujo pagamento era peticionado, não resultou demonstrado que «o requerido estivesse obrigado ao seu pagamento (mas apenas no pagamento de metade das despesas médicas e medicamentosas), não poderá ser nele condenado».
A este entendimento opõe-se o Ministério Público que defende que a cláusula V do acordo vigente prevê que “todas as despesas extraordinárias, designadamente, médicas e medicamentosas serão suportadas em partes iguais pelos progenitores”.
No mesmo diapasão, a mãe do menor defende que, historicamente, no desenvolvimento do acordo de regulação das responsabilidades parentais, tem vigorado o entendimento que «na menção de despesas extraordinárias se incluem, como comummente, as despesas escolares e as despesas médicas e medicamentosas».
É indiscutível que as decisões, como os contratos, como as leis, devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas[7]. Num caso deste tipo temos de perscrutar as "circunstâncias atendíveis para a interpretação", conforme decorre do disposto no artigo 236.°[8] do Código Civil, no contexto da teoria da impressão do destinatário.
A interpretação da declaração deve ser, assim, assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. No enquadramento de Carlos Ferreira de Almeida «o sentido relevante é aquele que se considere corresponder à compreensão do comportamento do declarante, segundo um padrão de normal diligência, atenção e racionalidade, tendo em conta a projecção tipológica da personalidade do declarante real e as circunstâncias concretas que envolveram a declaração negocial. (…) A impressão do declaratário tem o alcance de uma compreensão presumida com base em factores contextuais escolhidos pelo intérprete, observador da concreta interacção comunicativa, pessoa exterior ou acto para quem o acto já é passado»[9].
Por outras palavras, o padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real[10].
Nesta dinâmica da concretização do acordo da regulação das responsabilidades parentais, para além do texto do instrumento contratual, o intérprete não se pode apartar das referências contextuais e da própria história privada do acordo, importando aqui claramente os comportamentos concludentes das partes perante solicitações e vinculações anteriores.
Na determinação da concludência do comportamento em ordem a apurar o respectivo sentido, nomeadamente enquanto declaração negocial que dele deva deduzir-se com toda a probabilidade, é entendimento geralmente aceite que «a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido do auto-regulamento tacitamente expresso seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade», devendo ser «aferida por um critério prático», «baseada numa «conduta suficientemente significativa» e que não deixe «nenhum fundamento razoável para duvidar» do significado que dos factos se depreende[11] [12].
Os factos de que a vontade se deduz são os factos concludentes ou significativos, no sentido de se poder afirmar que, segundo os usos da vida, há toda a probabilidade de que o sujeito tenha querido, realmente, o negócio jurídico cuja realização deles se infere[13] [14].
Menezes Cordeiro ensina que «por força do contrato estabelece-se, entre as partes, uma relação de confiança. Essa relação de confiança, derivada da boa fé, constituiria as partes em deveres mútuos, nomeadamente tendentes a não permitir defraudar a crença pacífica do parceiro contratual num decurso, sem incidentes, da relação negocial»[15].
Isto radica naquilo que Canaris denomina por dever de protecção unitário e passa por uma consagração de deveres específicos de protecção alheios no âmbito do dever de prestar, de forma a proteger as pessoas afectadas por qualquer atentado doloso ou negligente que coloque em crise direitos e interesses relevantes legalmente protegidos[16].
Também Sousa Ribeiro faz apelo à lisura contratual e à solução que resulta de uma ponderação objectiva da incidência de factores externos na originária conformação de interesses. Este autor salienta que, «como norma comportamental, a boa fé posiciona-se basicamente como um padrão de actuação correcta, honesta, e leal na formação e no desenrolar de uma dada relação. Constitui, pois, um factor de determinação, em concreto dos efeitos de um vínculo obrigacional. Nesse sentido, desempenha funções normativas de concretização reguladora, de integração e também de delimitação. Pelos critérios da boa fé alcançámos a indicação dos modos correctos de efectuar a prestação e de exigir o seu cumprimento; por ele preenchemos integrativamente o conteúdo vinculativo da relação; por eles; ainda, demarcamos certos limites do exercício legítimo de um poder formalmente reconhecido pela ordem jurídica, no quadro de cláusula geral do abuso do direito»[17].
Desta união entre o texto do contrato, a essencialidade dos alimentos e o pagamento anterior de despesas escolares extraordinárias conciliadas com a boa fé extrai-se claramente que as despesas em causa estão englobadas na obrigação de alimentos.
E não se está aqui perante a simples impressão do destinatário, pois o contexto negocial é exactamente esse e o mesmo é resultado de uma interpretação dinâmica do acordo – a harmonização do texto do acordo de regulação das responsabilidades parentais com o seu tempo no sentido de compreender o sentido e o alcance vinculativo do mesmo não apenas pelo exacto entendimento linguístico das expressões mas igualmente segundo as finalidades e tendo em vista as condições e necessidades sociais e individuais actuais do menor. E as regras da experiência e da normalidade social apontam exactamente no sentido percepcionado pela recorrente e pelo Ministério Público.
Não é assim plausível, nem razoável, face ao critério normativo da impressão do destinatário e ao princípio da boa fé contratual, que, ao prever o pagamento de extraordinárias e ao utilizar o vocábulo «designadamente», a intenção das partes não fosse outra senão a de incluir as despesas escolares extraordinárias, sendo que, na metodologia de cumprimento contratual anterior, houve sempre uma vinculação do progenitor pai ao pagamento desse conjunto de dispêndios.
Na verdade, in casu, é assim claro que, tal como vaticina a recorrente, «em face da sua evolução e idade, com naturalidade, deixariam de se direccionar a mensalidade de ATL, substituindo-se pelas adstritas ao seu percurso educativo».
E a constatação em causa, no domínio factual, poderia ser igualmente retirada do efeito cominatório aplicável nos autos, pois, com a sua inércia, o requerido assumiu ser devedor de tais prestações, designadamente das que estão relacionadas com as visitas de estudo, a que deu a respectiva aquiescência.
Deste modo, impõe-se assim alterar a decisão de facto relativamente à alínea a) dos factos não provados, passando aquela matéria com as devidas adaptações a integrar o acervo dos factos provados. A referida inserção será realizada directamente na decisão de facto, ficando evidenciada a negrito, a fim de melhor ser percepcionada a correspondente alteração.
E, no plano do mérito, como consequência directa e necessária, por integrar o conceito lato de alimentos devidos, importa revogar parcialmente a sentença sub judice, determinando o prosseguimento do presente incidente em ordem a obter o pagamento de metade das despesas referenciadas no artigo 7.º do requerimento inicial.
Em síntese, em função da actual idade do menor e da sua evolução no processo educativo, face ao comportamento concludente anterior e tendo presente a teoria do declaratário normal, a supra mencionada cláusula V do acordo vigente contempla, assim, para além das contribuições médicas e medicamentosas, os gastos extraordinários relacionados com a frequência do ensino escolar, que surgem aqui como substitutivos da satisfação dos encargos com o ATL.
A presente determinação prejudica assim o conhecimento da nulidade convocada pelo recorrente a propósito da falta de fundamentação da sentença quanto à fixação do facto não provado, por força da decisão de revogação parcial da sentença recorrida.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, que é substituída por outra que julga totalmente verificado o incidente de incumprimento e determina o prosseguimento dos autos para obter o pagamento de metade das despesas escolares.
Sem tributação, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 12/10/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

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[1] Alteração da decisão de facto realizada no capítulo IV da presente decisão singular que considerou a matéria da alínea a) dos factos não provados passaria a integrar o ponto 4 dos factos provados.
[2] Ficou consignado na decisão que «não se provou, atendendo ao teor do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais homologado».
[3] No capítulo IV da presente decisão singular decidiu-se eliminar a matéria de facto não provada, a qual passou a integrar o ponto 4 dos factos provados.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de lisboa de 22/02/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Artigo 2003.º (Noção)
1. Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
2. Os alimentos compreendem também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor.
[6] Maria Aurora Vieira de Oliveira, Alimentos devidos a Menor, Universidade de Coimbra, Coimbra 2015, pág. 54, in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/.../Alimentos%20devidos%20a%20menores.pdf.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/06/1994, in www.dgsi.pt.
[8] Artigo 236.º (Sentido normal da declaração):
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
[9] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, vol. IV – Funções. Circunstâncias. Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 262.
[10] Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição (por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 444.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/2007, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[12] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2010 e de 09/07/2014, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2014, consultável em www.dgsi.pt.
[14] I. Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., pág. 136.
[15] Menezes Cordeiro, Da pós-eficácia das obrigações, vol. I, pág. 168-169, in Estudos de Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1987.
[16] Claus-Wilhelm Canaris, Ansprüche wegen «positiver Vertragsverletzungen» und «Schutzwirkung für Dritte» bei nichtigen Versträgen, JZ 1965, págs. 475-482.
[17] Joaquim de Sousa Ribeiro, A boa fé como norma de validade, in Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.